Este sábado, dia 25 de Setembro, realizaram-se manifestações clamando por “mais justiça” e repudiando a situação de “não Justiça” com a presença de centenas ou alguns milhares de pessoas em S.Vicente e na Cidade da Praia.
Tudo leva a crer que não conseguiram ter o impacto desejado nem a adesão esperada apesar dos esforços feitos pelos seus mentores, da cobertura recebida dos órgãos de comunicação social e da forte presença nas redes sociais. A anteceder essas manifestações já se vinha verificando passeatas em vários pontos do país com paragens nos tribunais. Razões invocadas são em alguns casos discordância com as formas de coação (TIR) impostas a pessoas acusadas de crimes e noutros casos considerar como excessiva a prisão preventiva. Em outros casos ainda há o que o presidente da república, em entrevista à televisão pública, no domingo passado, chamou de confusão da justiça com segurança.
A novidade em todas estas situações está na aparente predisposição das pessoas em levar as suas queixas, insatisfações e receios às sedes dos tribunais aparentemente fazendo o poder judicial o principal culpado pela insegurança, criminalidade e falhas da justiça. A morosidade e a qualidade da justiça dispensada poderão eventualmente justificar críticas ao sistema e acções para responsabilizar quem deve assegurar que a justiça é realizada com eficácia e em nome do povo. Incitar a população contra os tribunais não é certamente a forma de fazer isso, particularmente quando se levanta em arco um caso de fuga do país de pessoa acusada e julgada por homicídio. Um caso que parece configurar a chamada justiça justiceira ou justiça pelas próprias mãos que é incompatível com o primado da Lei, o Estado de Direito e a existência de uma sociedade civilizada.
O incitamento contra o poder judicial infelizmente tem-se tornado normal em democracias em que já é notório uma espécie de “deriva iliberal”. A Hungria e a Polónia nos últimos anos têm sido objecto de resoluções do parlamento europeu condenando ataques aos juízes, à imprensa e aos direitos das minorias. No Brasil, o confronto do presidente Bolsonaro com o sistema de justiça visando a sua descredibilização é parte essencial da deriva para um Brasil menos livre e menos democrático. Nos Estados Unidos da América, os quatro anos de Trump foram de ataque sistemático a todas as instituições democráticas. Segundo revelações recentes, aventava-se mesmo a possibilidade de um golpe de estado na sequência da derrota eleitoral do presidente. O assalto ao Capitol por populares no 6 de Janeiro deste ano era para desencadear o plano para esse efeito. Em todos esses casos o objectivo é o exercício do poder sem os limites que os direitos humanos, o primado da Lei e uma justiça independente impõem.
Aos seus seguidores e à sociedade em geral quer-se fazer crer que é o excesso de direitos e o excesso de garantias que dificultam a realização da justiça. Muitas vezes a mensagem é condimentada com acusações de corrupção ou de incompetência dos magistrados e com queixas em relação às exigências processuais procurando capitalizar sobre o sentimento generalizado das pessoas que a justiça não é suficientemente célere e eficaz. Invariavelmente, o objectivo é conseguir com promessas de acção musculada, guerra ao crime e justiça imediata que as pessoas cedam liberdade em troca de segurança e deixem de acreditar num poder judicial independente. A tentação das forças de segurança e de alguns políticos de se justificarem passando a ideia que fazem a sua parte, mas que os tribunais atrapalham tudo com o invocar de direitos e garantias, reforça esse sentimento, mas tem o seu contrário. Deixa no ar a ideia de que, ou se está perante confissão de incompetência, ou de má-fé vinda de quem por lei devia estar na primeira linha de defesa dos direitos dos cidadãos quando investiga e combate o crime e quando impõe a autoridade do Estado. Não ver um caso investigado avançar devia ser motivo para rever práticas e melhorar a cientificidade da abordagem e não para alimentar desconfiança no sistema de justiça, tornar aceitável fazer a justiça com as próprias mãos e promover políticas do tipo “bandido bom é bandido morto’’.
Um facto já constatado repetidas vezes em vários países, incluindo Cabo Verde, é que não há Justiça sem Liberdade e sem Justiça não há paz. Ir por atalhos que sacrificam direitos, aumentam o poder arbitrário e discricionário do Estado e deixam os cidadãos sem possibilidade de defesa, não é o que se espera de um Estado constitucional. A expectativa é que qualquer deriva deve poder ser controlada e revertida com “checks and balances”, pesos e contrapesos, que resultam designadamente do pluralismo do sistema político, da actuação moderadora do presidente da república suprapartidário e das decisões de magistraturas independentes. Para isso é fundamental a assunção plena dos cargos e o exercício das respectivas competências num quadro de lealdade, ciente de que as virtudes do sistema só se revelam com o funcionamento na totalidade das suas diferentes partes. Também fundamental é manter bem vivo do lado dos cidadãos o sistema de valores e princípios consagrados na Constituição e trabalhar para que seja seguido e aplicado por todos na república. Como disse James Madison se não há virtudes [republicanas] entre nós, vamos estar numa situação miserável.
Administrar a Justiça significa dirimir conflitos partindo do princípio que todos são iguais perante a lei e que a lei deve ser aplicada a todos de forma igual. Para que a justiça seja eficaz e aceite por todas as partes é evidente que tem que ser independente, em particular na relação com o Estado que é a entidade mais poderosa no país, e há que assegurar que o próprio Estado se submete à lei e às decisões dos tribunais.Conseguir criar um corpo de magistrados com uma cultura institucional em que todos e cada um veja como sua missão realizar com independência, com competência e com celeridade razoável para ser efectiva não é tarefa fácil em qualquer democracia. De facto, quantas vezes já se tentaram reformas da justiça em países como Portugal e França. Na Itália, há uns três meses atrás, estava-se a ultimar a mais recente reforma centrada nos prazos processuais e nas prescrições. Em Cabo Verde, avançou-se com uma revisão constitucional em 2010, instalaram-se os tribunais de relação, em 2016 e fizeram-se várias alterações nas leis para além de injecções de recursos materiais e humanos ao longo dos anos para se ter uma justiça mais eficaz.
Ninguém está completamente satisfeito com os resultados obtidos, mas é claro que conciliar a independência em relação ao poder político com a exigência de uma prestação na administração da justiça atempada para ser útil a uma magistratura com autogoverno, e por isso propício a atitudes corporativistas, também não deverá ser fácil. Há opções que podiam ser feitas para melhorar a situação e garantir uma maioria de não magistrados nos conselhos das magistraturas como a Constituição anteriormente previa e acontece noutros países. De qualquer forma, o parlamento está em falta há vários anos ao não eleger substitutos nos conselhos superiores que terminaram o mandato. Também devia-se avaliar se a inovação quanto à composição e a presidência do CSMJ, que deixou de ser por inerência o presidente do supremo tribunal de justiça, tem sido útil para o sistema e qual deve ser o papel do Presidente da República no processo da nomeação dos presidentes desses órgãos. A Inspecção Judicial merece uma outra reflexão provavelmente “fora da caixa” para se encontrar uma solução que sirva os objectivos da autogestão da magistratura e ajude a recuperar a confiança dos cidadãos na capacidade de o sistema rever as suas práticas, promover o mérito no seu seio e manter-se distante da influência política e de outros interesses prejudiciais à integridade da magistratura.
É evidente que o que não se precisa é instigar as pessoas contra o sistema como se verificou nos últimos dias. Na prática significa atirá-las contra as instâncias que eventualmente poderão defendê-las se todos as outras falharem em reconhecer-lhes direitos. Por outro lado, há que existir maior sensibilidade da parte da magistratura quanto à oportunidade de apresentação da questão salarial e outros benefícios como pensões em caso de aposentação. Não é o que transparece no relatório sobre o Estado da Justiça entregue ao parlamento. Com o país a enfrentar a crise pandémica, não é o melhor momento para isso. De qualquer maneira, a suposta indexação aos salários dos políticos já foi contornada com os vários subsídios e depois dos acórdãos do STJ de 2019, tais subsídios já contam para a pensão.
Contenção e razoabilidade devem prevalecer principalmente quando existem forças que, aproveitando-se das fragilidades da democracia, procuram pôr em causa as instituições. Deve-se entender que, ao atacar a justiça da forma como tem sido feita, é a própria liberdade que fica em risco de ser esvaziada. O momento é para unir esforços para enfrentar essas ameaças e impedir que a crise pandémica vá além dos seus efeitos socio-económicos e se transforme numa crise da democracia.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1035 de 29 de Setembro de 2021.