A resistência corajosa do exército e da população ucraniana à ofensiva russa tem sido servido de inspiração para muitos que se revêem nos ideais da liberdade e da democracia.
Na sequência de invasão e com as manifestações de solidariedade sem precedentes com a Ucrânia renovou-se a convicção de que os países democráticos devem responder com firmeza às incursões agressivas das autocracias. Em alguns sectores mais optimistas até se considerou que com a nova euforia à volta dos valores democráticos mesmo nas democracias seria possível pôr um travão ao avanço de forças iliberais tanto da extrema direita como da extrema esquerda, algumas delas com ligações ao presidente Putin. As eleições recentes na semana passada na Hungria e na França vieram, porém, demonstrar que a realidade é mais complexa do que se pensa.
É verdade que sentimentos de indignação e de solidariedade por causa da guerra têm estado na base da unidade de propósitos das democracias em matérias como sanções económicas e financeiras, apoio aos milhões de refugiados e fornecimento em tempo de armas para conter o ímpeto russo e eventualmente empurrar as suas forças para além das fronteiras internacionalmente reconhecidas. Seria um desenvolvimento extraordinário que esses sentimentos também tivessem um impacto na política interna das democracias, quase todas elas, em maior ou menor grau, com sintomas de crise no quadro do que se convencionou chamar de recessão democrática. As eleições referidas, que na Hungria deram a Viktor Orbán a sua quarta maioria folgada e na França colocaram a candidata da extrema direita, Marine Le Pen na sua melhor posição de sempre para a conquista da presidência na segunda volta, vieram desfazer qualquer ilusão a esse respeito.
Também nos Estados Unidos o apoio ao partido republicano não parece ter sido beliscado pela proximidade de Putin a vários dos seus dignatários, a começar por Donald Trump, nem por posturas populistas que contribuem para descrédito das instituições como as evidenciadas na confirmação pelo Senado da Juíza Ketanji Jackson. São exemplos que contrariam a hipótese aventada por alguns analistas de que a solidariedade com a Ucrânia fosse o ponto de partida para um novo entusiasmo pelos valores liberais, reminiscente dos anos 1989-90 da queda do Muro de Berlim e do fim do império soviético, que contribuísse para pôr um travão à deriva populista nas democracias.
A crise da democracia e das suas instituições têm certamente outras causas que levam as pessoas a não se sentirem representadas e a se verem impedidas de uma participação efectiva. A frustração e o ressentimento que daí resulta torna-as alvo de discursos políticos que em regra trazem à baila humilhações imaginárias, fomentam sentimentos anti-elitistas, alimentam teorias conspirativas e xenófobas e fazem apologia do chefe único, autêntico e cuja vontade confunde-se com a vontade do povo. Não espanta, pois, que regimes autocráticos estejam em ascensão e que mesmo nas democracias derivas iliberais sejam tentadas.
Vários desenvolvimentos recentes como a globalização, as novas tecnologias de informação e comunicação e as redes sociais facultaram às pessoas plataformas para interagirem, se informarem, produzir informação e se associarem numa escala nunca antes atingida. Se em termos globais os resultados da globalização têm sido extraordinários na diminuição do número de pobres e no aumento da riqueza produzida, a verdade é que tem aparecido disparidades enormes tanto à escala mundial como nacional e local. O resultado para uns tem sido degradação dos níveis de vida com diminuição do estatuto social e baixa de expectativa em relação ao futuro. Para outros é a marginalização económica e social com risco de serem apanhados nos círculos viciosos da pobreza e pobreza extrema. Ainda para muito poucos tem sido o acumular de uma fatia muito grande da riqueza nacional aumentando a desigualdade social e pondo em causa o contracto social.
O mal-estar, malaise, que é criado depois contribui para a violência social, a criminalidade, a corrupção, o cinismo na política e finalmente o descrédito das instituições. Aparentemente nem a situação de crise existencial como foi recentemente a pandemia da covid-19 consegue mobilizar a energia colectiva necessária para a ultrapassar com o menor custo possível. Em países como os Estados Unidos da América com quase um milhão de mortes em cerca de seis milhões em todo o mundo viu-se como a desinformação desenfreada, atitudes anti-ciência, boicotes de instituições, partidarização do uso de máscaras, teorias de conspiração contra vacinas terão contribuído para o que claramente configura como um numero excessivo de mortes. Ciente dessa situação certos países autocráticos fazem apologia do seu sistema político, supostamente mais eficientes e mais capazes na gestão das crises. Mesmo nas democracias já há forças políticas que abertamente clamam por restrições de direitos, limitações na independência da justiça e maior escopo de acção das forças de segurança para restaurar a ordem ou mesmo a “civilização”. Putin é popular nesses círculos.
Também em Cabo Verde os efeitos da crise da democracia se fazem sentir. Nota-se a erosão das instituições com particular enfoque no parlamento, mas afectando em maior ou menor grau os outros órgãos de soberania e as câmaras municipais. As crises sucessivas, as persistentes vulnerabilidades do país e a crescente dependência do Estado não favorecem um ambiente propício para se reverter a situação. Aos partidos políticos do arco do poder cabe uma maior responsabilidade. O problema é que afectados pelo populismo prevalecente dificilmente terão energia, motivação e foco para fazer o caminho inverso.
O PAICV provavelmente ciente que os desaires eleitorais em boa medida se devem a opções populistas na formulação de políticas e na escolha de dirigentes no seu congresso da semana passada optou por uma política mais conciliatória considerando os extraordinários desafios do país e uma nova abordagem na composição dos seus órgãos dirigentes. A recusa do presidente da câmara municipal da Praia em participar nos órgãos do partido assim reformulados poderá sugerir outros entendimentos e futuros problemas considerando que as eleições autárquicas em 2024 precedem as legislativas de 2026.
O MpD enquanto partido do poder estará sujeito a uma maior pressão para defender a sua actual maioria autárquica e concorrer para um terceiro mandato. Dificilmente a tendência será de mudar o que já existe. Quaisquer alterações de fundo provavelmente irão acontecer na convenção posterior às autárquicas de 2025 e não em 2023. De outros partidos, como a realidade eleitoral do país já demonstrou, fica-se em geral pelo mimetismo do que já se viu em política populista e se assistiu em alguns países.
O grande problema é que Cabo Verde com as incertezas actuais, a pesada dívida pública e os efeitos de crises sucessivas, seca, covid-19 e alta de preços de energia e alimentos não pode esperar para 2026 para melhor se ajustar para enfrentar os desafios. O caminho passará por aprofundar a democracia consciente de que há mais “que nos une do que o que nos separa”. Deriva autocrática é que não é solução. Os primeiros quinze anos de país independente foram elucidativos a esse respeito.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1063 de 13 de Abril de 2022.