segunda-feira, abril 18, 2022

Democracia vs. autocracia

 

A resistência corajosa do exército e da população ucraniana à ofensiva russa tem sido servido de inspiração para muitos que se revêem nos ideais da liberdade e da democracia.

Na sequência de invasão e com as manifestações de solidariedade sem precedentes com a Ucrânia renovou-se a convicção de que os países democráticos devem responder com firmeza às incursões agressivas das autocracias. Em alguns sectores mais optimistas até se considerou que com a nova euforia à volta dos valores democráticos mesmo nas democracias seria possível pôr um travão ao avanço de forças iliberais tanto da extrema direita como da extrema esquerda, algumas delas com ligações ao presidente Putin. As eleições recentes na semana passada na Hungria e na França vieram, porém, demonstrar que a realidade é mais complexa do que se pensa.

É verdade que sentimentos de indignação e de solidariedade por causa da guerra têm estado na base da unidade de propósitos das democracias em matérias como sanções económicas e financeiras, apoio aos milhões de refugiados e fornecimento em tempo de armas para conter o ímpeto russo e eventualmente empurrar as suas forças para além das fronteiras internacionalmente reconhecidas. Seria um desenvolvimento extraordinário que esses sentimentos também tivessem um impacto na política interna das democracias, quase todas elas, em maior ou menor grau, com sintomas de crise no quadro do que se convencionou chamar de recessão democrática. As eleições referidas, que na Hungria deram a Viktor Orbán a sua quarta maioria folgada e na França colocaram a candidata da extrema direita, Marine Le Pen na sua melhor posição de sempre para a conquista da presidência na segunda volta, vieram desfazer qualquer ilusão a esse respeito.

Também nos Estados Unidos o apoio ao partido republicano não parece ter sido beliscado pela proximidade de Putin a vários dos seus dignatários, a começar por Donald Trump, nem por posturas populistas que contribuem para descrédito das instituições como as evidenciadas na confirmação pelo Senado da Juíza Ketanji Jackson. São exemplos que contrariam a hipótese aventada por alguns analistas de que a solidariedade com a Ucrânia fosse o ponto de partida para um novo entusiasmo pelos valores liberais, reminiscente dos anos 1989-90 da queda do Muro de Berlim e do fim do império soviético, que contribuísse para pôr um travão à deriva populista nas democracias.

A crise da democracia e das suas instituições têm certamente outras causas que levam as pessoas a não se sentirem representadas e a se verem impedidas de uma participação efectiva. A frustração e o ressentimento que daí resulta torna-as alvo de discursos políticos que em regra trazem à baila humilhações imaginárias, fomentam sentimentos anti-elitistas, alimentam teorias conspirativas e xenófobas e fazem apologia do chefe único, autêntico e cuja vontade confunde-se com a vontade do povo. Não espanta, pois, que regimes autocráticos estejam em ascensão e que mesmo nas democracias derivas iliberais sejam tentadas.

Vários desenvolvimentos recentes como a globalização, as novas tecnologias de informação e comunicação e as redes sociais facultaram às pessoas plataformas para interagirem, se informarem, produzir informação e se associarem numa escala nunca antes atingida. Se em termos globais os resultados da globalização têm sido extraordinários na diminuição do número de pobres e no aumento da riqueza produzida, a verdade é que tem aparecido disparidades enormes tanto à escala mundial como nacional e local. O resultado para uns tem sido degradação dos níveis de vida com diminuição do estatuto social e baixa de expectativa em relação ao futuro. Para outros é a marginalização económica e social com risco de serem apanhados nos círculos viciosos da pobreza e pobreza extrema. Ainda para muito poucos tem sido o acumular de uma fatia muito grande da riqueza nacional aumentando a desigualdade social e pondo em causa o contracto social.

O mal-estar, malaise, que é criado depois contribui para a violência social, a criminalidade, a corrupção, o cinismo na política e finalmente o descrédito das instituições. Aparentemente nem a situação de crise existencial como foi recentemente a pandemia da covid-19 consegue mobilizar a energia colectiva necessária para a ultrapassar com o menor custo possível. Em países como os Estados Unidos da América com quase um milhão de mortes em cerca de seis milhões em todo o mundo viu-se como a desinformação desenfreada, atitudes anti-ciência, boicotes de instituições, partidarização do uso de máscaras, teorias de conspiração contra vacinas terão contribuído para o que claramente configura como um numero excessivo de mortes. Ciente dessa situação certos países autocráticos fazem apologia do seu sistema político, supostamente mais eficientes e mais capazes na gestão das crises. Mesmo nas democracias já há forças políticas que abertamente clamam por restrições de direitos, limitações na independência da justiça e maior escopo de acção das forças de segurança para restaurar a ordem ou mesmo a “civilização”. Putin é popular nesses círculos.

Também em Cabo Verde os efeitos da crise da democracia se fazem sentir. Nota-se a erosão das instituições com particular enfoque no parlamento, mas afectando em maior ou menor grau os outros órgãos de soberania e as câmaras municipais. As crises sucessivas, as persistentes vulnerabilidades do país e a crescente dependência do Estado não favorecem um ambiente propício para se reverter a situação. Aos partidos políticos do arco do poder cabe uma maior responsabilidade. O problema é que afectados pelo populismo prevalecente dificilmente terão energia, motivação e foco para fazer o caminho inverso.

O PAICV provavelmente ciente que os desaires eleitorais em boa medida se devem a opções populistas na formulação de políticas e na escolha de dirigentes no seu congresso da semana passada optou por uma política mais conciliatória considerando os extraordinários desafios do país e uma nova abordagem na composição dos seus órgãos dirigentes. A recusa do presidente da câmara municipal da Praia em participar nos órgãos do partido assim reformulados poderá sugerir outros entendimentos e futuros problemas considerando que as eleições autárquicas em 2024 precedem as legislativas de 2026.

O MpD enquanto partido do poder estará sujeito a uma maior pressão para defender a sua actual maioria autárquica e concorrer para um terceiro mandato. Dificilmente a tendência será de mudar o que já existe. Quaisquer alterações de fundo provavelmente irão acontecer na convenção posterior às autárquicas de 2025 e não em 2023. De outros partidos, como a realidade eleitoral do país já demonstrou, fica-se em geral pelo mimetismo do que já se viu em política populista e se assistiu em alguns países.

O grande problema é que Cabo Verde com as incertezas actuais, a pesada dívida pública e os efeitos de crises sucessivas, seca, covid-19 e alta de preços de energia e alimentos não pode esperar para 2026 para melhor se ajustar para enfrentar os desafios. O caminho passará por aprofundar a democracia consciente de que há mais “que nos une do que o que nos separa”. Deriva autocrática é que não é solução. Os primeiros quinze anos de país independente foram elucidativos a esse respeito. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1063 de 13 de Abril de 2022.

segunda-feira, abril 11, 2022

Segurança, um activo estratégico

 

Na semana passada no âmbito de um seminário sobre “operações especiais de prevenção criminal” a Polícia Nacional veio confirmar a percepção de insegurança sentida no país e em particular na Cidade da Praia no ano de 2021. Segundos os dados apresentados pela PN, a criminalidade aumentou em cerca de 33% em relação ao ano 2020.

As razões, de acordo com o ministro da Administração Interna, têm a ver com “a retoma da vida social e económica e o aumento da conflitualidade social”. Entretanto, não se explicita que mecanismos, ambientes ou lugares são os mais propícios ao crime e como combatê-lo para evitar que o regresso a uma certa normalidade não se traduza logo no aumento da criminalidade.

Na comunicação feita ao público, as autoridades trouxeram à baila, talvez pela primeira vez, o papel das armas em circulação no país como um dos factores facilitadores do crime. O Procurador-Geral da República na sua intervenção considerou que o número de ocorrências criminais com armas de fogo é preocupante pela dimensão destas cidades e pelas dimensões do país. Dias antes, a 27 de Março, dois polícias tinham sido baleados quando responderam a uma ocorrência num dos bairros da capital. Na população há muito que existe a percepção do risco acrescido representado pelo uso de armas de fogo nos assaltos e em outros crimes. Não se viu ao longo dos anos o que deviam ser acções efectivas das autoridades em retirar armas da circulação. Menos ainda foi visto um esforço legislativo, regulamentar e operacional para desarmar a população a exemplo do que outros países fizeram quando confrontados com ondas de criminalidade violenta.

É notório o desencontro entre os dados oficiais da criminalidade e a percepção de insegurança pelos cidadãos. As pessoas sentem que há mais assaltos com armas de fogo, mas dos dados apresentados fica-se a saber que “no ano findo a PN apreendeu menos 81 armas artesanais do que em 2020, menos 69 armas convencionais e menos 5.660 munições”. Diz-se que os actuais dados da criminalidade, como que a contramão, interromperam o “ciclo de cinco anos (2016 a 2021), em que consecutivamente se registou diminuição acentuada das ocorrências criminais no país”. A realidade é que a percepção de insegurança persistiu ao longo dos anos com picos, por exemplo, em 2019 que levaram o então Presidente da República a chamar a atenção das autoridades no Dia de Defesa Nacional e na mensagem de Ano Novo para a necessidade de restaurar a tranquilidade e obrigou a embaixada americana a alertar os cidadãos americanos para o aumento de assaltos na Cidade da Praia.

Perante mais um aumento da criminalidade no país não se pode ficar pelo simples aprimoramento das abordagens anteriores que até agora não conseguiram diminuir a sensação de insegurança das pessoas. Segundo o ministro da Administração Interna, pretende-se pôr um foco nas operações especiais de prevenção criminal no quadro de uma estratégia de “frente e inovadora”, visando, sobretudo, a questão que tem que ver com as armas. Para o bem de todos é de desejar que desta vez tenham boa sorte em pôr em prática a estratégia. Um bom começo foi o encontro organizado para discutir essas operações especiais de prevenção do crime em que participaram magistrados do ministério público e magistrados judiciais. Espera-se que depois a responsabilidade pela insegurança não fique diluída nas justificações do tipo a polícia prendeu, mas o tribunal pôs em liberdade. Cabo Verde é um Estado de Direito democrático e todos querem ter a garantia que a polícia actua de acordo com a lei e no estrito respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos e que os tribunais são independentes na administração da justiça.

A verdade é que ambientes facilitadores de crimes são por natureza complexos e nem sempre susceptíveis de serem tratados com certas abordagens policiais que fazem lembrar tácticas militares e provocam reacções negativas das comunidades. Em muitos casos depois de megas operações policiais não se vêem apreensões de armas ou de outros produtos ilegais e não se fazem prisões que justifiquem o aparato. A repetição dessas operações agrava a situação porque como não há colaboração das pessoas, não há trabalho prévio de inteligência e os eventuais infractores conseguem escapar, enquanto outras pessoas inocentes são apanhadas na rede e ficam ressentidas com buscas e inquirições que consideram despropositadas.

Constatações similares foram feitas noutras paragens a partir da implementação das políticas de tolerância zero ou da teoria de “broken-window” que levaram a situações de abusos de pessoas e hostilidade das comunidades visadas. Hoje, procura-se fazer uma intervenção mais compreensiva que não fica pela acção policial, envolvendo outras entidades, designadamente o poder local, a sociedade civil e também a própria comunidade. É entendimento de muitos que indo por essa via a acção policial na prevenção do crime ganharia muito em eficiência e eficácia. Os recursos são limitados e nem o uso da tecnologia via sistemas de videovigilância sofisticados pode compensar por deficiências de organização, de estratégia e de colaboração voluntária da comunidade e de outras entidades.

A segurança é um bem necessário e um activo estratégico para o desenvolvimento. Depende essencialmente da vontade do país para ser garantido. Recursos substanciais têm sido investidos no sector sem que haja diminuição da percepção de insegurança da população em particular nos centros urbanos. Com as incertezas do mundo actual o futuro vai depender muito da capacidade de se conseguir realizar o sonho de ter um país de paz e morabeza e aberto ao mundo. Para isso impõe-se uma maior atenção em relação à qualidade dos investimentos e à escolha dos objectivos e prioridades para o sector. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1062 de 6 de Abril de 2022.

segunda-feira, abril 04, 2022

Visão e perseverança

 

Os efeitos da guerra na Ucrânia já se fazem sentir terrivelmente nos preços de todos os produtos a começar pelos combustíveis e bens alimentares. Inaugura-se um novo período de preços voláteis em produtos essenciais devido a tensões geopolíticas e a escassez no mercado a ponto de ruptura de stocks por razões que têm a ver com a diminuição da oferta na origem e por constrangimentos logísticos no transporte e na distribuição.

A tendência para o aumento dos preços já vinha do período da pandemia da covid-19. A guerra, as sanções económicas e financeiras e as tentativas de isolamento da Rússia só a agravou. A crise económica assim gerada tem uma abrangência tal que não deixa nenhum país incólume. Num pequeno país insular e arquipelágico os efeitos tendem a multiplicar-se ainda mais.

Reconhecendo a nova realidade, o governo tomou algumas medidas para diminuir o impacto da subida dos preços dos produtos petrolíferos e alimentares entre as quais a suspensão temporária do mecanismo de fixação de preços dos combustíveis entre Abril e Junho. Nesse período vai-se manter o preço do gás butano e do combustível para a produção de electricidade, enquanto os outros produtos ficarão sujeitos a ajustes até 5%. Já na resposta à alta de preços devido à pandemia já se tinha tomado medidas no sentido da baixa do IVA para energia de 15% para 8%, e de majoração às empresas em 30% dos custos de energia e água e aumento da tarifa social de 30 para 50%. Não se sabe é até quando esta conjuntura de alta de preços vai durar e se haverá recursos que permitirão por tempo mais longo amortecer o choque do aumento dos preços.

Na resolução do governo está-se a contar com alguns mecanismos de compensação para o diferencial entre o preço real e o praticado incluindo impostos e eventual escalonamento e diluição do remanescente a pagar em doze meses. Prevêem-se outras medidas se não houver uma mudança da conjuntura, mas dificilmente vai-se evitar que os aumentos de preços, a persistiram, não serão repassados para os consumidores, afectando a economia no seu todo e diminuindo o poder de compra das populações. A questão que agora se coloca – perante o que claramente se configura como um choque externo que vem em cima de um outro, a pandemia da covid-19 – é em que medida o país se tem preparado para esse tipo de contingências.

É verdade que não era fácil prever a invasão da Ucrânia e o seu impacto no mundo, mas de há muito que se sabe da transição energética que deve ser feita para que as alterações climáticas já manifestas não ganhem proporções catastróficas. Noutros países esse processo é extremamente complexo e com passagens faseadas de carvão ou fuel para gás natural e depois para as energias renováveis. Em Cabo Verde, com o potencial existente na energia o solar e na eólica e a menor dependência numa industrialização de base em combustíveis fósseis, o processo poderia talvez ter sido mais directo e expedito. Vários foram os projectos virados para uso e exploração da energia do sol e do vento que tiveram financiamento ao longo de décadas. Os resultados é que são diminutos em relação aos investimentos feitos.

Segundo o governo, as renováveis constituem 18% da energia actualmente disponível, mas com os financiamentos já acordados com o Banco Mundial espera-se 30% em 2030, e a partir de 2030, 50%. Não se pode dizer que o que existe actualmente e mesmo o que se projecta para o médio prazo seja uma posição adequada ou confortável em termos energéticos, em particular para fazer face a eventuais choques externos. Faz falta uma estratégia clara e assumida por todos para se conseguir a maior independência energética possível. De há muito que isso devia ser óbvio, considerando os preços extremamente altos da energia que enfraqueçam o poder de compra das pessoas e que aumentam os custos das empresas e diminuem a competitividade do país. Acrescenta-se a isso o facto de a transição energética para as renováveis ser algo globalmente incontornável e quem primeiro por aí enveredar mais possibilidades teria de aproveitar as oportunidades abertas no novo mercado energético.

Não agindo de forma compreensiva para as energias renováveis acaba-se por ficar com uma espécie de manta de retalho de projectos que não “somam” para dar o resultado que devia ser expectável de tantos milhões gastos. Em 2010 foram cerca de 30 milhões de euros de uma linha de crédito português que foi investido em parques solares na ilha do Sal e em Santiago. Deviam “produzir 4% do total da energia que existe na rede, mas está a produzir cerca de 1,5% para rede” segundo o então director do CERMI numa entrevista a este jornal em Setembro de 2017. A Cabeólica que segundo o ministro da Indústria e Energia é responsável por quase 20% da energia consumida na rede tem parques eólicos em Santiago, S. Vicente, Sal e na Boa Vista e funciona com um contrato “take or pay” que muitos consideram oneroso para a Electra. Na comemoração dos seus dez anos não se ficou a saber se vai investir para alargar ou criar mais parques eólicos ou se vai continuar com o mesmo contrato, não obstante os efeitos da pandemia na economia e a alta de preços dos combustíveis fósseis. Até agora o consumidor cabo-verdiano ainda não sentiu os efeitos dos investimentos feitos nas energias renováveis nos preços de electricidade.

Também quando não há essa perspectiva abrangente fica-se com um handicap duplo. Nas negociações com os parceiros a tendência é para adoptar a agenda e as prioridades que acompanham a promessa de financiamento sem a devida interligação e encadeamento com o já existente criando ineficiências várias. Por outro lado, sem uma visão própria não se contempla soluções a partir de uma gestão criteriosa de recursos próprios como por exemplo quando a cooperação luxemburguesa teve que financiar painéis fotovoltaicos no valor de cerca de 15 mil contos para que a Assembleia Nacional pudesse poupar 27% da sua factura de energia eléctrica. O uso generalizado de energia fotovoltaica nos serviços do Estado há muito que deveria ter sido feito e com recursos endógenos. Afinal, os serviços funcionam principalmente durante o dia quando o sol brilha e os painéis podem produzir electricidade suficiente para as necessidades das instalações.

Os ganhos teriam sido múltiplos e transversais como por exemplo na factura paga à Electra que diminuiria, nos postos de trabalho para instalação e a manutenção que seriam criados para os jovens formados no CERMI e noutros centros em todas as ilhas e, possivelmente, em menos combustível importado. Considerando ainda o peso do Estado nas compras de painéis solares talvez outras entidades e particulares interessados acabassem por ser beneficiados com preços mais baixos desse tipo de equipamento. O exemplo do parque fotovoltaico da Caixa Económica que em seis meses poupou mil contos na factura da Electra como veio em 2019 relatado neste jornal é ilustrativo a este propósito. Não se tinha, de facto, de esperar por um projecto do Banco Mundial para fazer, com recursos próprios e para criar poupanças múltiplas e dinamizar uma actividade com futuro, o que há muito se deveria ter encetado em nome de mais segurança energética para o país e de uma energia mais barata para todos.

Como nas energias renováveis, também noutros sectores o país precisa engajar-se com agenda própria e prioridades bem definidas. Em certos domínios como segurança, educação com qualidade e sistema de saúde competente e eficaz, que são pressupostos indispensáveis para o desenvolvimento do país, nada pode substituir a vontade própria da nação e dos seus governantes em conseguir resultados significativos e sustentáveis. Ter visão própria e ser perseverante é fundamental para vencer a batalha do futuro nestes tempos de incertezas. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1061 de 30 de Março de 2022.

segunda-feira, março 28, 2022

Crise, perigos e oportunidades

 A invasão da Ucrânia pela Rússia a completar quatro semanas amanhã, dia 24, desencadeou uma guerra brutal e destrutiva que não parece ter um fim à vista. A agressão contra a soberania e a integridade territorial da Ucrânia mereceu a condenação da generalidade dos países e provocou uma onda de solidariedade sem precedentes.

A perspectiva do conflito se prolongar ainda por mais tempo e potencialmente tornar-se ainda mais mortífera, seja nas batalhas urbanas para a conquista de cidades, seja num possível alastramento para um ou mais países, é motivo de profunda preocupação, particularmente quando as conversações em curso não deixam saber qual podia ser eventualmente uma saída a contente das partes. Entretanto, para esta sexta-feira, dia 25, o Papa Francisco num acto de profundo significado convidou todas as comunidades de fé a reunirem-se para uma prece pela paz na Ucrânia.

A bravura do povo ucraniano demonstrada na resistência à ofensiva russa e na defesa da liberdade e da democracia tem sido motivo de inspiração para muita gente. Já houve governantes em vários países que fizeram mudanças até há pouco tempo consideradas impensáveis nas políticas de sectores- chave como a energética, as relações externas e a defesa. Várias empresas multinacionais retiraram-se da Rússia por decisão dos seus corpos directivos ou por pressão dos consumidores. Personalidades e organizações da sociedade civil moveram-se decisivamente para bloquear a participação da Rússia em eventos culturais e desportivos. São exemplos de protagonismo surpreendente que fazem lembrar o que Albert Einstein teria dito que “no meio de cada crise encontra-se a grande oportunidade”, mas tendo em atenção o que para John Kennedy a palavra representa em chinês: perigo + oportunidade.

O perigo na crise da guerra da Ucrânia é visível na odisseia forçada de milhões de refugiados que o resto da Europa vai ter que absorver e amparar, na tragédia representada pelos milhares de mortos e pelas cidades destruídas e na possibilidade real de a guerra alastrar-se para outros países, não se excluindo mesmo uma escalada com utilização de armas nucleares. Também o perigo reside no impacto que estarão a ter as sanções económicas, financeiras e também culturais e desportivas lançadas contra a Rússia que efectivamente estão a torná-lo num estado pária e talvez mais perigoso, mas cujos efeitos fazem ricochete sobre quem as promove. É exemplo disso o aumento dos preços dos combustíveis, da energia, dos alimentos e da generalidade dos bens e serviços que na Europa e na América têm contribuído para taxas de inflação de respectivamente 5,9% e 7,9 % que há décadas não se registavam nesses países. Nos países em desenvolvimento a pressão inflacionista é, em muitos casos maior, e o mais natural é que venham a sofrer ainda mais com a elevação das taxas de juro e outras medidas de política monetária que já estão a verificar-se nos países do Ocidente para assegurar a contenção da inflação.

Aproveitar a oportunidade, ou seja, tudo fazer para conseguir resultados positivos ao mesmo tempo que se mantém consciente do perigo deve ser a atitude a adoptar quando se enfrenta qualquer crise. Como disse bem o antigo presidente da câmara municipal de Chicago, Rahm Emanuel, não se deve desperdiçar uma crise. Deve-se aproveitar para realizar coisas que antes não poderiam ser feitas. É o que se nota agora por causa da crise na Ucrânia e do seu impacto no mundo. Tem sido possível avançar com mudanças completamente inesperadas de políticas em vários domínios beneficiando do apoio popular que não se podia adivinhar à partida. Um caso paradigmático é o que está a verificar-se na Alemanha.

Também é o que acontece, como reconhece Francis Fukuyama num ensaio publicado no Financial Times de 4 de Março, quando a agressão russa na Ucrânia veio relembrar as pessoas das consequências de viver em ditaduras iliberais em que não há liberdade, não se respeitam os direitos fundamentais, os governantes não são escolhidos pelo voto livre e plural e não se instituiu a independência dos tribunais e o primado da lei. A complacência, que de algum tempo vem reinando em muitas democracias perante a erosão dos valores liberais sob os ataques do populismo tanto da direita como da esquerda, segundo este cientista político, poderá estar, com o exemplo da coragem dos ucranianos, a ceder lugar a uma maior consciência da importância da defesa dos valores liberais e ao renovar do espírito de 1989-90 que levou à queda de regimes autoritários e totalitários em todos os continentes.

A consciência dos perigos que acompanham as crises nem sempre é clara e presente. Em consequência fica mais difícil reconhecer que se está a caminhar para pontos de não retorno e tomar as medidas necessárias para os evitar. Muito menos há predisposição para identificar realidades emergentes e as oportunidades que podiam ser aproveitadas. Um exemplo claro disso são as alterações climáticas em relação às quais se está ainda longe de adoptar as medidas conjuntas que se impõem para enfrentar uma ameaça à escala planetária. Aliás, nem mesma a pandemia do SARS-CoV-2, com os seus seis milhões de mortos e quase quinhentos milhões de infectados conseguiu-se evitar o egoísmo e a falta de solidariedade e inculcar o sentido de urgência que a situação requeria. A crer na mensagem que o recente filme da Netflix “Não Olhe para Cima” quis passar, também uma colisão com um asteróide não seria suficiente para focar a atenção das pessoas nas ameaças existenciais que poderão surgir. A invasão da Ucrânia veio mostrar que talvez não seja bem assim.

Em Cabo Verde, da mesma forma, as crises sucessivas não têm servido para se procurar identificar as razões por que não se consegue sair do círculo vicioso que reproduz a precariedade e a vulnerabilidade das populações e do país. As crises em geral tomam a forma de secas que podem durar um ou mais anos ou de choques externos como aconteceu com a crise financeira, a pandemia do coronavírus e agora a guerra na Europa. Em geral, os efeitos das crises são mitigados pela ajuda externa e nesse quadro são regularmente implementados programas de luta contra pobreza cujos resultados não se têm revelado sustentáveis. O país com poucos recursos e pequena população não tem conseguido criar uma estrutura produtiva capaz de efectivamente combater o desemprego, não obstante os enormes investimentos feitos e a grande dívida pública acumulada.

Como não se fica a saber das razões, também não se aproveitam as oportunidades que surgem nas crises para se fazer outras abordagens dos problemas do país, encetar reformas e mudar a atitude. Com o passar dos anos, depois de esperanças goradas postas em clusters, hubs, plataformas e outras iniciativas que supostamente seriam o caminho para a prosperidade do país acaba por prevalecer a ideia que é o sector público o único que parece oferecer menos risco e mais estabilidade de rendimentos. O turismo tem peso, mas como a pandemia acabou por provar que é demasiado sensível a choques externos. Não estranha, pois, a que a dependência do Estado tende a aumentar mesmo abarcando o sector privado que supostamente deveria ser o motor da economia e a base de uma sociedade civil autónoma e interventiva.

Com o reforço do sector público, mais dependência do Estado e menos recursos para dividir, poucos incentivos existem para quebrar o círculo vicioso. Reconhecer que se está a governar na crise, a pior das últimas décadas, talvez possa ser um bom ponto de partida para novas abordagens, para convergências mais profícuas e duradoiras e um foco maior no que é prioritário e serve para construir um futuro com mais sustentabilidade. Os tempos e os exemplos que vêm de fora da luta pela liberdade e democracia deixam perceber que é possível a união e a solidariedade necessárias para se ultrapassar qualquer crise. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1060 de 23 de Março de 2022.

segunda-feira, março 21, 2022

Priorizar o interesse colectivo

 Como fazer para desenvolver Cabo Verde é a grande questão sempre colocada por gerações e gerações de cabo-verdianos ao longo dos séculos. Durante todo esse tempo, recomendações, sugestões e palpites sucederam-se na busca de respostas.

Grandes planos, projectos e programas foram implementados por sucessivos governos na perspectiva de ultrapassar os obstáculos existentes e quebrar o círculo vicioso da miséria reinante no arquipélago. Claramente que, não obstante os progressos feitos, se ficou muito aquém da tarefa. Os dados de hoje da pobreza e da extrema pobreza, de vulnerabilidade e precariedade social, de fragilidade e não diversificação da estrutura produtiva e ainda quanto ao montante da dívida pública são elucidativos a esse respeito. Tempo talvez para se fazer outras abordagens e rever ideias fixas sobre Cabo Verde, cuja realidade de país arquipélago, relativamente remoto, pobre em recursos naturais e escassa população nem sempre se tem em devida conta.

A urgência na procura de vias alternativas de desenvolvimento aumentou nos últimos tempos em que o mundo ganhou maior complexidade e tornou-se mais imprevisível, primeiro com a pandemia do SARS-CoV-2 e agora com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Já de há algum tempo, pelo menos desde a crise financeira de 2008, que a globalização da economia mundial, com as oportunidades múltiplas que abriu nas três décadas passadas, designadamente para países em desenvolvimento, vinha perdendo impulso. É provável que o processo esteja a acelerar na actual conjuntura internacional e a abrir caminho para rearranjos nas relações económicas internacionais que à partida não se sabe se serão mais ou menos favoráveis para os pequenos países como Cabo Verde. Na nova realidade que se desenha não se pode, sob pena de se ficar ainda mais para trás, deixar de proceder a reflexões mais aprofundadas sobre os constrangimentos que até agora têm limitado o desenvolvimento e mantidas as vulnerabilidades do país.

Não se deve ficar tentado repetir o que é essencialmente o mais do mesmo apesar de aparentar ser diferente. Não augura que se esteja realmente a mudar quando, por exemplo, ainda se conjectura o uso de terrenos noutros países para cultivo numa perspectiva de segurança alimentar como aconteceu no passado com os terrenos do Paraguai, da Guiné-Conacri e de Angola. Ou quando ainda não se deixou de acumular dívidas com a TACV – mas continua-se a falar em reactivar o hub do Sal como se nada tivesse acontecido na aviação comercial mundial – ou de se pôr a hipótese do regresso ao mercado doméstico, não obstante se ter convidado um operador para fazer serviço público na ligação entre as ilhas. Ou ainda quando se insiste na ideia “estafada” de ser porta de entrada de outros países para a África Ocidental mesmo com o facto presente de que Cabo Verde não consegue nas importações e exportações com a região ir além dos 5% do seu comércio exterior.

Também devia-se relegar para um outro plano essa tendência de mimetismo ou de replicação das mesmas iniciativas em todos os pontos do país. Apresentadas como criativas pelos seus patrocinadores, na prática fazem esquecer que Cabo Verde, apesar de ter nove ilhas habitadas, é um único país. Por outro lado, desincentiva-se a exploração da diversidade que potencia a participação das ilhas na criação da riqueza nacional. Nessa onda de suposta criatividade que do Carnaval passou para pólos universitários e até já se quer criar zonas económicas especiais em todos os pontos do país. É o modismo a substituir as razões de fundo por que são criadas zonas económicas especiais.

ZEEs em vários países surgiram como entidades que entre outras coisas facilitam a atracção do investimento directo estrangeiro, o aumento das exportações, a transferência de tecnologias e processos de produção e a criação de emprego massivo. Beneficiam de ambiente de negócios propício que pode incluir incentivos fiscais, acesso a propriedade, novo regime laboral e facilidades administrativas que não existem em outros pontos do país. O sucesso das zonas especiais como se pode constatar em países como as Maurícias, a China e Bangladesh é maior quando a partir do que é o investimento para exportação de bens e serviços se consegue conectar com empresas nacionais que fornecendo bens intermediários ou serviços diversos directa ou indirectamente beneficiam do acesso a mercados externos em expansão, arrastando no processo vários sectores da economia. É evidente que não podem ser ao mesmo tempo excepção e regra. Nem na China depois de 40 anos se alargou o conceito para todo o país. Como campos de experimentação de políticas viradas para maior eficiência, competitividade e crescimento e criação de emprego precisam ser circunscritas antes de algumas medidas serem aplicadas de forma generalizada.

É talvez a falta de foco nos resultados que justifica o mimetismo e a falta de criatividade nas propostas e iniciativas apresentadas em nome do desenvolvimento e da luta contra a pobreza. É nesse sentido que, por exemplo, a comunicação na esfera pública é pontuada por expressões como empoderamento, empreendedorismo e resiliência. Gastos em meios, formações e actos de socialização de estudos e documentos são desfilados ininterruptamente. Mas fica-se em geral por saber que mais produtos foram vendidos, que mais mercados foram criados ou alargados, que empregos permanentes passaram a existir e que impacto nos rendimentos e na qualidade de vida das pessoas se conseguiu de todo o investimento feito. Certamente que efeitos positivos existem, mas não se põe suficiente ênfase nisso, como se os ganhos maiores estão no acto de anunciar, patrocinar, financiar e inaugurar.

A persistente precariedade e vulnerabilidade das populações depois de vários programas de milhões de dólares gastos na luta contra a pobreza mostra o limite de uma abordagem de desenvolvimento que tendencialmente quer fazer crer que toda a gente é empreendedora e é capaz de criar o seu próprio emprego. Pode até prestar-se como uma espécie de paliativo para os problemas do momento, mas não deve substituir o esforço para se conseguir crescimento económico que traz prosperidade e suporta com sustentabilidade os mecanismos da redistribuição dirigidos para os vulneráveis e para os mais pobres. As prioridades devem ser outras na sua definição e não devem orientar-se por objectivos e metas que, findos os projectos e perante qualquer choque económico ou choque externo, imediatamente mostram que não são sustentáveis.

Os desafios e incertezas que se colocam neste momento são de uma gravidade sem paralelo em que a hipótese de guerra e de disrupção na logística de alimentos e de combustíveis não está excluída. Não é tempo para simplesmente se ir ao sabor do que ao país é oferecido. Há que definir prioridades, que focar nos resultados e construir resiliência sem comprometer a eficiência na utilização dos recursos disponíveis. Mais do que nunca o interesse colectivo deve sobrepor-se aos ganhos políticos individuais. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1059 de 16 de Março de 2022.

segunda-feira, março 14, 2022

O emergir de uma nova ordem mundial

 

Catorze dias pós a invasão da Rússia, parece não haver qualquer dúvida que se está a presenciar a emergência de uma nova ordem mundial. Pôs-se em movimento algo cujas consequências provavelmente não se tinha previsto, mas que não vai parar.

E é assim porque a Ucrânia invadida tem resistido heroicamente e 143 entre 190 países nas Nações Unidas já condenaram a agressão. Sanções económicas e financeiras nunca antes implementadas foram montadas para forçar a retirada das tropas russas. Países como a Alemanha, a Suécia e a Finlândia mudaram política externa e de defesa e pela primeira vez a própria Suíça não ficou neutra. Manifestações contra a guerra acompanhado de gestos de solidariedade têm sucedido por quase todo o mundo.

Nunca antes se viu tal convergência de vontades em condenar o que claramente é um ataque gratuito, não provocado de um país a outro e, pior, sem que se descortine qual seria o real objectivo. Em consequência, assiste-se a um processo de isolamento da Rússia à medida que é cortada das redes financeiras e bloqueada nas importações e exportações, impedida no acesso a bens de capital, bens intermédios e matérias-primas e ainda boicotada nos negócios por uma multitude de empresas e nas vendas por consumidores indignados. A persistir por mais dias e meses não será certamente algo fácil de inverter. Pelo contrário, será de o aprofundar até porque não se consegue descortinar qual seria uma estratégia de saída que, adoptada, salvasse a face do regime autocrático da Rússia.

Nesse sentido, ao procurar subtrair-se ao isolamento, poderá ter a tentação de se aliar a países com interesses comuns nas disputas com os países democráticos do Ocidente e acelerar a tendência de compartimentação nas relações de comércio internacional com blocos de interesses distintos e antagónicos análogos aos existentes no passado com o primeiro, o segundo e o terceiro mundo. A acontecer seria uma mudança de 180 graus no processo de globalização que depois do fim do comunismo e da derrocada do império soviético acelerou e integrou a China e outros países antes à margem da economia mundial, criou cadeias de valor globais e facilitou a movimentação livre de capitais. Sinais de recuo na globalização já vinham de antes e é natural que com o choque aberto entre os países democráticos do Ocidente e os países autocráticos se note uma aceleração do processo.

Vários factores têm contribuído nestes últimos anos para esse repensar da globalização entre os quais as desigualdades sociais reveladas pela crise financeira de 2008, as rivalidades entre países intensificadas com a ascensão da China à posição de segunda maior economia do mundo e mais recentemente o ressurgimento do proteccionismo devido à pandemia do Sars-cov-2. Em consequência de há algum tempo para cá que em alguns países se nota pressão para se “reindustrializar”, aumentar tarifas e proteger indústrias nacionais. A pandemia com os confinamentos, o fechar de fronteiras e açambarcamento de produtos essenciais exacerbou essas tendências. A guerra na Ucrânia, ao deitar abaixo a crença de que, com interdependência económica e vantagem mútua em manter cadeias de valor globais, países com regimes políticos diferentes poderiam resolver as suas diferenças e rivalidades sem recorrer à agressão militar, deu-lhes um impulso maior.

O mais natural é que o processo de “decoupling”, ou dissociação das economias de várias países e regiões do mundo, venha ser acelerado à medida que cadeias de abastecimentos sejam revistas, certas indústrias sejam repatriadas e a procura de independência energética obrigue a apostas em fontes seguras. Imagine-se o efeito que todo esse reconstruir das relações económicas irá ter sobre vários países, muitos deles pobres e sem possibilidade de acesso directo aos grandes mercados e que por isso têm procurado integrar cadeias de valor globais para se desenvolverem. Se se acrescentar ainda uma possível diminuição na disponibilidade de ajuda externa com os esperados aumentos nos orçamentos de defesa e nas despesas extraordinárias para se fazer face aos estragos resultantes da guerra particularmente na Europa, o grande desafio dos países menos desenvolvidos será saber como se reposicionar para continuar a ser útil e beneficiar de vendas de bens e serviços na nova ordem internacional.

O FMI já veio dizer em comunicado da semana passada que a guerra na Ucrânia e as sanções impostas à Rússia vão ter um forte impacto na economia mundial. Acrescenta também que o choque nos preços irá afectar especialmente os pobres para quem alimentos e energia constitui a fracção maior das despesas. O FMI aconselha ainda que via política orçamental se procure apoiar os mais vulneráveis e amortecer o aumento do custo de vida. Em Cabo Verde os alertas do FMI vêm em boa hora porque, de facto, o momento exige outras ponderações na definição das prioridades nacionais e não é muito visível pelos discursos dos diferentes actores políticos, ainda dominados por reivindicações de uns e promessas de outros, que o país tenha realmente consciência dos extraordinários desafios que se colocam actualmente.

Secas repetidas e subsequente revelação da precariedade e vulnerabilidade das pessoas em particular nas zonas rurais não foram suficientes para mudar a atitude e enfrentar os problemas do país de uma outra forma. Veio a pandemia e, não obstante todas as dificuldades, a contracção violenta da economia e as incertezas quanto à retoma, a abordagem dos problemas do país continua basicamente a ser a mesma. Agora há um terceiro choque com a guerra na Ucrânia e as suas consequências e não se nota ainda disponibilidade para realmente se pensar o país de uma outra forma. Aparentemente não se vê que se está a viver o fim de uma ordem internacional e o emergir de uma outra cujos os contornos ainda não se consegue discernir completamente.

Momentos como os actualmente vividos são propícios para o surgimento ou a revelação de lideranças inesperadas como já se constata em alguns países nas viragens políticas surpreendentes verificadas nos últimos dias. A mais extraordinária de todos é a do presidente Zelensky da Ucrânia que com bravura e tenacidade tem inspirado o seu povo e conquistado a admiração do mundo. É de se augurar que também em Cabo Verde se se liberte do estilo de liderança do “mais do mesmo” para que o país possa ser conduzido a um bom porto neste momento charneira do mundo em que uma ordem mundial liberal cede lugar a uma nova com todos os desafios, dificuldades e oportunidades que pode vir a representar. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1058 de 9 de Março de 2022.

segunda-feira, março 07, 2022

Solidariedade com a Ucrânia

 

A Rússia invadiu a Ucrânia na quinta-feira, dia 24 de Fevereiro. O que já se vinha esperando há algum tempo, mas com esperança que não acontecesse acabou mesmo por se verificar. O choque foi geral com manifestações de repúdio e consternação em todo o mundo, incluindo na própria Rússia.

A resistência surpreendente que a nação ucraniana, as forças armadas e o presidente Volodymyr Zelensky vêm oferecendo à agressão das tropas russas tem galvanizado a opinião pública internacional com efeito directo no posicionamento dos estados democráticos em reacção à violação da integridade territorial da Ucrânia.

As sanções económicas e financeiras que já tinham sido estabelecidas ou aventadas pela União Europeia, os Estados Unidos da América, o Japão e outros países foram radicalmente agravadas. A ajuda militar de armamento avançado e outros equipamentos aumentou extraordinariamente com a contribuição de vários países. Rapidamente se pôs de pé a logística necessária para acolher e apoiar refugiados ucranianos, na maioria mulheres e crianças. Como consequência da resistência ucraniana e do esforço concertado dos países democráticos e de organizações internacionais em fazer da Rússia um país pária, em quase uma semana depois da invasão, já se tem como certo que Putin falhou nos seus cálculos.

É verdade que a guerra vai continuar e provavelmente vai-se tornar mais brutal, mas dificilmente se irá ver uma Ucrânia ocupada, submissa e alinhada com os interesses do governo autocrático russo nos moldes do que já acontece com a Bielorrússia. Em vez de estados tampões como almofadas de segurança à boa maneira dos arranjos geopolíticos do passado, a Rússia autocrática presidida por Putin vai ter que se preocupar com uma NATO talvez nunca antes tão unida e tão predisposta a assumir-se como força dissuasora de agressões contra os seus membros.

Um sinal claro de que mudaram os tempos foi a decisão da Alemanha tomada no domingo de fazer uma reviravolta na política externa e de defesa que vinha desde o fim da segunda guerra mundial. Além de suspender o gasoduto Nord Stream 2 que deveria fornecer gás russo à Europa e de dar o seu acordo para impor restrições de acesso ao SWIFT a bancos russos, decidiu modernizar as suas forças armadas com um fundo de 100 mil milhões de euros e aumentar de forma permanente as suas despesas militares para mais de 2% do PIB. De imediato prometeu enviar material militar letal para a Ucrânia.

Os cálculos do presidente russo parecem também ter falhado em relação às sanções. Pensou que as podia contornar, mas quando os bancos centrais da América e da Europa e de outros países moveram-se para limitar o acesso às suas reservas externas em dólares, euros e iene a queda do rublo russo foi imediata. Na sequência tem-se visto escassez de bens e alta de preços afectando directamente os consumidores, quebra na actividade económica e constrangimentos sérios no acesso à tecnologia, bens de luxo e produtos essenciais para produção, manutenção e renovação de equipamentos vitais em sectores-chave.

Um outro aspecto em que o cálculo de Putin poderá não bater certo é no tempo previsto para conseguir submeter a Ucrânia. Se deixa arrastar a operação militar com o seu cortejo de mortes e destruição num quadro de crescente isolamento do país, instabilidade monetária e escassez de tudo poderá ser obrigado a enfrentar as consequências da erosão do apoio das elites, de segmentos da população e das próprias forças armadas que nem sempre são fáceis de controlar. As incertezas daí advenientes não prognosticam nada de bom para os próximos tempos. A guerra pode intensificar e alargar-se para outros teatros e eventual confronto com a NATO ou acabar na sequência de uma reviravolta de políticas no Kremlin. Uma outra hipótese, talvez de menos custos, seria encontrar uma solução que, a exemplo do que aconteceu na Crise de Mísseis de Cuba em 1963, pudesse dar a todas as partes a possibilidade de salvar a face.

Desde os primórdios da segunda guerra mundial nos anos trinta do século passado que um regime autocrático não tinha recorrido à agressão militar para tentar neutralizar e submeter um país democrático. O choque sentido em todas as democracias tem a ver em grande parte com o facto de que não passava pela cabeça de ninguém que nos tempos actuais se fizesse uma tentativa violenta de atropelar os direitos fundamentais dos cidadãos e pôr em causa o Estado de Direito e a possibilidade dos povos escolherem livremente os seus governantes. A invasão da Ucrânia serviu de toque de despertar. A indignação sentida por todos vem do facto de abertamente e sem rebuços se estar a atacar a democracia no seu núcleo essencial.

A democracia é tida pela generalidade das pessoas como um dado adquirido da vida em sociedade. Por isso, é que não causa muita preocupação que não poucas vezes ela seja mais criticada nas suas insuficiências do que reafirmada nos seus fundamentos e procedimentos. Nos tempos de hoje considerados por alguns estudiosos de recessão da democracia até se assiste em certos momentos a acções sistemáticas de descredibilização das instituições vindas dos extremos do espectro político, mas também da classe política governante sem que sejam compreendidas como tais e contrapostas por ideias e práticas que renovam o consenso essencial à volta dos seus princípios e valores.

A complacência generalizada com os inimigos da democracia poderá talvez diminuir agora que se vê até onde pode ir a hostilidade em relação aos países democráticos. Já se sabia antes de casos em que houve financiamento de forças descontentes com a democracia, outros de interferências nas eleições e até de ataques cibernéticos para criar instabilidade política e social. Com a agressão militar à Ucrânia, constata-se que pode subir para um outro patamar e que nem o desenvolvimento de relação económicas internacionais de interdependência como forma de engajamento parece atenuar a antipatia e servir de dissuasor de actos hostis. O despertar das pessoas para essa realidade e o exemplo da resistência do povo ucraniano contra a tentativa de lhes roubar a liberdade e a democracia talvez agora mobilize vontades para contrariar a actual deriva das democracias para o populismo e para os ideais iliberais que minam o exercício da cidadania plena e alimentam a desconfiança e o ressentimento.

O ano de 2022 que se iniciou prenhe de incertezas e a meio de mais uma onda do coronavírus na variante Ómicron ficou ainda mais complicado com o conflito na Europa. O mais natural é que todos os constrangimentos tanto ao nível da inflação, como de escassez de bens alimentares e outros produtos, aumentos de custos de energia sejam maiores do que os previstos inicialmente. A acrescentar a isso é expectável que venha a diminuir os montantes para ajuda ao desenvolvimento no momento em que mais recursos poderão ir para o sector de defesa e que contribuições no âmbito da solidariedade internacional com os refugiados da Ucrânia e a reconstrução do país terão de ser feitas.

Para Cabo Verde provavelmente tudo isso poderá constituir mais um choque externo a acrescentar à pandemia da covid-19 e à seca que há quatro anos vem assolando o país. Mais uma razão para que o país face às incertezas procurar cada vez mais ganhos de eficiência na sua economia adoptando uma atitude de austeridade e solidariedade e uma cultura de resultados. O exemplo da luta do povo da Ucrânia pela liberdade e democracia perante perigos extremos deve reforçar em todos a importância de preservar o respeito pela dignidade humana em todas as circunstâncias. É a base para se almejar uma vida de paz, justiça e prosperidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1057 de 2 de Março de 2022.

segunda-feira, fevereiro 28, 2022

Nem quebrando tabus se ganha em clarividência

 

Denúncias de fome em Cabo Verde vêm sendo ouvidas num crescendo de há algum tempo para cá. Primeiro surgiram pontual e timidamente em embates políticos e sindicais de pouca monta, depois mais abertas e ousadamente nas redes sociais e mais tarde guindaram-se para a imprensa formal.

Agora parece que finalmente já estão no ponto de serem adoptadas como arma de arremesso político. Como é habitual na política cabo-verdiana quando questões de fundo e de importância são colocadas elas não são realmente discutidas com a seriedade que o respeito pelos factos, a busca da verdade e o foco no interesse geral exigiria. Na maioria dos casos passam simplesmente a integrar o arsenal que se utiliza nos infindáveis confrontos políticos. Exemplo disso é a questão da TACV e dos transportes aéreos que na sessão da Assembleia Nacional desta semana vai ser objecto de mais um inquérito parlamentar dos muitos que quando chega ao fim é como se não fosse e imediatamente se volta ao ponto de partida.

Falar da Fome em Cabo Verde sempre foi um tabu. Como ameaça existencial traduzida nos milhares de mortes que se seguiam às estiagens permaneceu bem viva na memória colectiva da nação. O tabu é não permitir que se confunda com qualquer situação de carestia e dificuldades da vida que conjunturalmente possam existir. Como hoje se reconhece em todo o mundo as fomes na história são feitas pelo homem. Ou seja, em geral não resultam de secas, mas sim de falhas de mercado ou da incapacidade ou falta de vontade dos governos em resolver a situação. Um exemplo disso é que aconteceu em Cabo Verde depois da fome de 1947. A atitude das autoridades mudou no sentido de garantir segurança alimentar e como resultado nunca mais houve fomes apesar das secas que se sucederam até agora.

Insuficiências alimentares em maior ou menor grau existiram e ainda existem em vários segmentos da população que se encontram em situação de pobreza ou de extrema pobreza. Agravam-se com as secas particularmente nas zonas rurais e devem merecer uma resposta compreensiva do governo no que respeita à garantia de rendimentos mínimos, acesso a alimentos e cuidados especiais dirigidos à população mais vulnerável. Num país com défice de produção alimentar e constrangimentos vários devido à insularidade e à pequenez da população, a intervenção do Estado é fundamental para fazer face às imperfeições e falhas de mercado não se excluindo à partida a subsidiação de bens básicos e de certos factores de produção, particularmente quando em presença de choques externos. De facto, nem sempre o mercado é resposta aos problemas e, além de se garantir acesso a alimentos a todos com tais medidas, há que acautelar outras consequências que sendo transversais podem fazer o país entrar numa espiral de alta de preços e salários, incomportáveis a prazo e prejudiciais para a competitividade do país.

A tentação de fazer aproveitamento político da memória das fomes em Cabo Verde é sempre presente. Antes a denúncia de fomes passadas serviu para o PAIGC se reivindicar como único representante das ilhas. Após a independência procurou-se legitimar o regime imposto, atribuindo-lhe o mérito de ter erradicado a fome quando, de facto, se deu a continuidade a medidas para garantir segurança alimentar com o apoio da ajuda internacional. Que tais argumentos já não tinham o peso de outrora viu-se quando nos anos noventa o então presidente da câmara de S. Vicente denunciou fome na ilha e foi tomada como mais uma excentricidade do político do que uma realidade que a ilha estaria a enfrentar. As pessoas sabem o que realmente significa declarar que há fome nas ilhas e a desesperança que tal perspectiva acarreta.

Não é à toa que só ultimamente é que se ousou trazer a questão para o espaço político. Percebe-se a tentação de aproveitar para ganhos políticos a fragilidade criada pela pandemia do coronavírus, ela própria uma ameaça existencial, que provocou uma contracção brusca da economia em cerca de 15% e expôs a precariedade e a vulnerabilidade da população. Ainda por cima nas condições actuais de incertezas de vária ordem e de constrangimentos diversos e de tensões geopolíticas graves em que as pessoas tendem a ficar mais ansiosas e frustradas na expectativa de uma retoma que por ora parece mais distante e menos linear. A verdade é que com isso não se vai conseguir pôr em causa a legitimidade de quem governa, mas vai-se adiar outra vez o debate crucial para o país. E devia ser de interesse de todos saber o porquê da persistência das vulnerabilidades na população, apesar dos milhões de dólares gastos em programas de luta contra a pobreza, e o que impede que se faça as reformas e os investimentos necessários para o país crescer mais e debelar o desemprego.

Varrer problemas para debaixo do tapete e concentrar-se no arremesso político parece ser o desporto nacional favorito. É o que se assistiu mais uma vez nesta semana da Língua Materna. Não há proposta de avanço que se faça para ampliar o conhecimento do crioulo que não é posto no contexto de uma luta identitária contra os que supostamente albergam algum “preconceito linguístico”. A eventual introdução do estudo da língua no 10º ano é por alguns visto logo como oportunidade “para ter um conjunto de alunos do 10º ano que são defensores acérrimos do crioulo e que irão defender o crioulo com unhas e dentes”. Ou seja, quer-se fazer de alunos previamente doutrinados combatentes de uma causa que provavelmente nem é de se ter nas escolas uma disciplina da língua materna, mas de fazer do crioulo a língua de ensino.

Está a ficar cada vez mais evidente que com a insistência na oficialização do crioulo o que realmente se pretende é sua introdução como língua de ensino. Diz-se que a maioria das competências técnicas do país em matéria linguística converge nesse objectivo e só se está à espera que os políticos o aceitem e ajam nesse sentido. De fora parece ficar o sentimento dos pais que todos os anos têm que se preocupar com a qualidade do ensino que os filhos vão receber nas escolas e também a expectativa da sociedade quanto ao retorno que o país vai ter do enorme investimento feito no sector crucial para competitividade e produtividade do país.

A urgência que se quer pôr nesta mudança sem cuidado aparente com o que se iria exigir em termos de preparação dos professores e manuais e outros recursos didácticos para ter resultados e qualidade no ensino ministrado mostra o quanto questões de qualidade e eficácia são sacrificadas em lutas identitárias que depois de uma forma ou outra têm tradução política. Também esbarra com a realidade inultrapassável de se ter o português como língua oficial. Ao roubar às crianças e jovens cabo-verdianas o único espaço, a escola, onde podem ter uma imersão completa na língua portuguesa, porque os professores falam crioulo e várias disciplinas são ministradas também em crioulo, limita-se efectivamente a possibilidade de ganharem o nível desejável de proficiência no uso do português. Certamente que os pais e de entre eles muitos dos “experts” vão querer arranjar alternativas em escolas privadas para os seus filhos como de há muito vem acontecendo. Prejudicados na carreira e na participação cidadã, ficam os que não têm nem meios nem contactos para isso.

Entretanto o país vai caminhando crispado com os confrontos políticos estéreis e sem ser demovido desse caminho já claramente desastroso nem por secas, pandemias ou quaisquer outras ameaças existenciais. Evocar o espectro da fome nestas circunstâncias é mais um fait divers que não altera praticamente nada. Quebra-se o tabu, mas não se ganha em clarividência e vontade para fazer das fomes, insuficiência alimentar e pobreza uma memória longínqua. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1056 de 23 de Fevereiro de 2022.

segunda-feira, fevereiro 21, 2022

O país precisa sair do círculo vicioso

 

Os primeiros 100 dias do presidente da república José Maria Neves têm sido intensos, divididos entre audiências, visitas e encontros para além dos actos oficiais.

Eleito a 17 de Outubro – já antes da investidura a 9 de Novembro, o novo PR com várias iniciativas e em particular com a visita ao Gana para convidar pessoalmente o presidente desse país e presidente em exercício da CEDEAO – começou a sinalizar a pró-actividade que aparentemente vai caracterizar a sua presidência. Originário de um sector político diferente daquele que suporta o governo, vai ser interessante observar como o anunciado activismo presidencial irá funcionar num quadro de um governo de maioria absoluta de forma a que sua magistratura de influência seja vista com efectiva. É a segunda vez que JMN participa num exercício de “coabitação”. A diferença é que desta vez os papéis estão trocados e o seu papel já não é de chefiar o governo do país, mas sim de árbitro e moderador do sistema político.

Diz-se muitas vezes que o poder de influência do presidente da república em sistemas de governo como o de Cabo Verde ou de Portugal é de geometria variável. No dia da vitória do Partido Socialista com maioria absoluta, quando questionado sobre as linhas vermelhas no exercício do poder, o primeiro ministro português António Costa traduziu essa ideia respondendo que “o primeiro garante de que não pisaremos o risco sou eu próprio”. Antes tinha dito que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa não permitiria que o PS pisasse o risco. Quando governos são minoritários ou suportam-se em coligações frágeis, o PR tem campo para um activismo mais pronunciado. Há mais contenção nos casos onde existem maiorias sólidas.

Em Cabo Verde, durante os trinta anos de democracia, só pontualmente as maiorias na governação se mostraram frágeis e, quando aconteceu, viu-se o activismo do presidente mas nem sempre de forma positiva. Curiosamente, o actual governo, apesar de ser expressão de uma maioria absoluta saída das últimas eleições legislativas, deixa por vezes passar a ideia de que não está seguro do seu suporte em momentos cruciais da vida parlamentar. Aconteceu na aprovação da moção de confiança que se seguiu à apresentação do programa do governo e voltou a verificar-se nos dias que antecederam a discussão parlamentar da proposta do Orçamento do Estado. No primeiro caso, a UCID, como que a querer reforçar a maioria necessária para viabilizar o governo, apareceu a oferecer apoio à moção de confiança. No segundo caso, foi a vez do presidente da república, depois do acto inédito do primeiro-ministro e dois ministros irem ao palácio apresentar-lhe o OE, a convocar partidos políticos no que se presumiu ser busca de consensos para garantir a aprovação da lei na sessão parlamentar imediatamente a seguir.

Situações como as verificadas na semana passada no parlamento, a começar pela aprovação da ordem do dia, continuam a dar sinais de fragilidades diversas e de falta de coesão da maioria parlamentar. Existindo já uma intenção de uma presidência mais activa na sua magistratura de influência e num contexto em que o governo na relação com a sua maioria parlamentar deixa passar uma imagem de fragilidade, a questão a saber é se, por um lado, não se está a abrir excessivamente as portas a uma intervenção mais musculada do presidente e se, por outro, não se está a aumentar para além do razoável as expectativas das pessoas quanto ao que o PR pode, de facto, fazer. A verdade é que o presidente não governa, e enverando por caminhos de maior intervencionismo, pode prejudicar no processo a sua credibilidade e a sua função essencial que é de ser árbitro e moderador do sistema político e de ser visto como figura suprapartidária sempre focado no interesse geral e não em interesses particulares.

Estes primeiros 100 dias da presidência decorreram num ambiente político e sócio-económico extremamente desafiante. Viu-se de tudo, desde um surto grave de coronavírus na variante Ómicron, estrangulamentos nas cadeias de abastecimento com impacto nos stocks e preços dos produtos, inflação crescente em todo mundo e já com impacto em Cabo Verde e ainda tensões geopolíticas graves, em particular na Europa, a tornar mais imprevisível o futuro próximo. Com o país na expectativa de retoma económica, mas com a dura realidade da dívida pública e da perda de receitas e com muitas incertezas pelo meio a tarefa que se põe ao conjunto do país não se afigura nada fácil. É da maior importância que se possa contar com a contribuição do conjunto da classe política para que, sem prejuízo da democracia e do pluralismo, se trabalhe para manter os equilíbrios, a credibilidade e sustentabilidade das instituições, cultivar a serenidade perante dificuldades incontornáveis e focar o país no que deve ser realmente prioritário.

O facto de o novo ciclo eleitoral estar ainda relativamente distante podia ser útil para no entrementes se dar passos decisivos na consolidação de uma cultura democrática em que no debate político a utilidade do dissenso não é posta em causa pela necessidade de consensos em questões essenciais. Pelo caracter singular da sua função, o PR pode desempenhar um papel fundamental nesse processo, construindo pontes, como se propôs fazer e tem feito, ouvindo pessoas, recebendo organizações e visitando instituições numa autêntica roda-viva nos últimos 100 dias. Um outro papel seria de contribuir para a contenção da chamada crise das democracias e para pôr um travão a tentações populistas, reafirmando os direitos fundamentais dos cidadãos e sendo frontal e directo na defesa da independência dos tribunais, da autonomia do ministério público e do princípio da subordinação do poder militar ao poder civil constitucionalmente legitimado.

Essencial ainda será manter o ambiente adequado para o diálogo aberto entre as partes, sejam elas correntes de opinião políticas ou filosóficas, ideológicas ou expressões estéticas e culturais. Sendo o PR o representante da república, ou seja, o presidente de todos os cabo-verdianos não faz muito sentido que se torne promotor e mentor principal de partes num debate ainda em aberto. Aliás, a Constituição (art. 50º-2/c) explicitamente proíbe dirigismo estatal do ponto de vista filosófico, ideológico ou estético no sistema educativo. É por isso contranatura o patrocínio que se solicita ao PR para causas que relembram o culto de personalidade próprio de regimes totalitários como é o caso do culto de Cabral que se instila nas crianças e jovens em todos os níveis do sistema de ensino em Cabo Verde.

Causas divisivas da Nação não deviam merecer qualquer tipo de preferência de quem é o representante da unidade nacional. A democracia cabo-verdiana ainda é nova e precisa resgatar-se dos condicionamentos impostos à nação nos anos da ideologia do partido único. Liberdade intelectual e diálogo de ideias sem interferências e preferências do Estado é fundamental para que isso aconteça na tranquilidade e com ganhos para todos. Num mundo em que a capacidade de criar e de inovar é fundamental para a criação de riqueza e para o desenvolvimento não se pode manter a reprodução de ideologias bolorentas cerceadoras do espírito de iniciativa e autonomia e também da assunção de riscos.

Na condição actual não estranha que Cabo Verde, segundo o último índex da democracia, continue a ser uma democracia imperfeita (37º lugar). Falha precisamente na participação onde só pode dar o salto com uma sociedade civil autónoma, liberdade intelectual e sem dirigismo ideológico do Estado. O país precisa sair do círculo vicioso que o limita nas suas liberdades, esvazia o debate e constitui um entrave ao seu desenvolvimento. Cabo Verde agradeceria se, passados os 100 dias, o resto do mandato do PR fosse nesse sentido.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1055 de 16 de Fevereiro de 2022.

segunda-feira, fevereiro 14, 2022

Dignidade, solidariedade e confiança

 A última vaga do coronavírus em Cabo Verde protagonizada pela variante Ómicron parece estar a perder impulso há algumas semanas e o número de novos casos de infecção tem diminuído consideravelmente. O mesmo vem acontecendo em vários países e nos diferentes continentes.

Passado o momento de grande mobilização e também de ansiedade para responder à ofensiva do que veio a revelar-se uma variante do Sars-cov2 muito contagiosa, mas menos letal, já há países que a exemplo da Dinamarca diminuíram extraordinariamente as restrições impostas e sinalizaram que a partir de agora vão entrar num quadro de normalidade de convivência com o vírus. Um quadro que não será muito diferente do que existe para a gripe com a sua sazonalidade, com o risco acrescido de doenças respiratórias e a preocupação especial com os mais idosos.

Acredita-se que é possível ir por essa via porque hoje com as taxas elevadas de vacinação acompanhadas de “boosters” anuais, a disponibilidade de remédios capazes de atenuar os efeitos dos sintomas e de combater complicações da covid-19 e também com a instalação de sistemas de detecção e de resposta rápida a surtos já é possível enfrentar com sucesso qualquer eventualidade. Um senão poderá vir do aparecimento de mais uma variante que se mostre igual ou mais contagiosa que a Ómicron e ao mesmo tempo mais letal. Um outro senão viria do caso de persistir resistências à vacinação no país e de no resto do mundo por escassez de vacinas ou por deficiências diversas o coronavírus continuar a ter na população não vacinada a possibilidade de fazer mutações que lhe permitiriam provocar novos surtos de reinfecções.

Em qualquer dos casos uma resposta rápida e vigorosa das autoridades e da sociedade e das pessoas será fundamental para se evitar o regresso aos confinamentos, lockdowns e outras medidas que tão profundamente têm prejudicado a economia, as relações sociais, a vida cultural e mesmo a saúde mental de muita gente em todo o mundo. O problema é saber quais é que seriam os contornos certos de uma eventual resposta a mais uma emergência pandémica. A experiência dos diferentes países nestes dois anos de pandemia enfrentando vagas sucessivas de variantes Alfa, Delta e Ómicron sugere que aparentemente ninguém tem a fórmula certa.

Acontece muitas vezes que se é-se bem-sucedido no combate a uma vaga, já na vaga seguinte não se consegue conter o aumento de casos e mitigar os efeitos da pandemia apesar dos avanços feitos na prevenção, nos testes e nos cuidados médicos. O maior exemplo da complexidade do problema é o que se passa nos Estado Unidos da América, o país cujos indicadores de segurança sanitária colocavam em primeiro lugar no mundo para responder a uma ameaça global do tipo que se verificou com o Sars-cov2. Paradoxalmente tem sido o país onde aconteceram mais casos de contágio e mais mortes devido à covid-19. Importa, pois, saber com mais alguma certeza o que fazer para além de aconselhar o uso de máscaras, promover vacinas, determinar confinamentos e tomar outras medidas para que com alguma eficácia se enfrentar epidemias futuras.

Um estudo publicado na revista científica The Lancet referenciado num artigo do jornal New York Times de 6 de Fevereiro procura elucidar as razões por detrás dos resultados do combate ao coronavírus tão díspares entre os diferentes países. Ajustando os dados de infecções e de mortes recebidos, considerando várias variáveis como estrutura etária, PIB per capita, densidade populacional, obesidade, existência de um serviço nacional de saúde, número de camas, infecções anteriores de coronavírus, verificou-se que embora haja uma correlação clara entre a taxa de letalidade entre os infectados (IFR) e a idade da população, em relação às outras variáveis não se nota impacto significativo nem no número de infecções, nem na taxa de letalidade. Curiosamente, os resultados do estudo apontam que o que parece ter realmente impacto na capacidade de controlo da pandemia e mitigação dos seus efeitos é a confiança no governo e confiança interpessoal. Para vários autores e comentadores a tragédia da covid-19 na América é o exemplo paradigmático do que acontece quando há disfunções na governação e perda de confiança nas instituições.

Ainda segundo esse estudo publicado na revista The Lancet “para promover a resiliência na resposta e recuperação de desastres, deve-se aprofundar “a confiança dentro e entre as comunidades, desde os desfavorecidos económica e socialmente até aqueles em posição de autoridade”. Essa é uma recomendação com uma pertinência muito especial para Cabo Verde. A pandemia deixou o país extremamente endividado, com uma população cada vez mais dependente do Estado, empresas fragilizadas e perspectivas de retoma sem muitas certezas considerando as dificuldades do sector do turismo, a fraca diversificação da economia e conjuntura internacional marcada pela inflação e pelas perturbações nas cadeias de abastecimento. Entretanto a crise sanitária ainda não terminou e, por razões várias de desconfiança natural ou induzida o ímpeto das vacinações tem diminuído em particular para a terceira dose que ainda só chegou aos 10%, não obstante a disponibilidade de vacinas. Com uma parcela significativa da população ainda por vacinar aumentam as incertezas porque fica sempre o perigo de reinfecções e no caso de surtos pode haver medidas de contenção que acabam por ter impacto na actividade económica.

Como o estudo referido aponta, é fundamental o investimento no capital social para se construir a confiança nas instituições e crucialmente também para gerar a confiança interpessoal e enfrentar a situação extraordinária que o país vive actualmente. De facto, sem isso não se tem a solidariedade necessária para se pôr de lado tacticismos político-partidários, protagonismos pessoais, interesses corporativos e de grupos que levam a polarizações excessivas e tornam legítima as pretensões de todos e cada um de procurar tirar a sua parte sem preocupação com o bem comum. E sem espírito solidário não é possível focar no essencial que neste momento é vencer a crise sanitária e económica e social, definir prioridades para o futuro, fazer o melhor dos recursos existentes e lançar o país num outro caminho que privilegie o conhecimento, o empreendedorismo e um engajamento com o mundo que contribua para a criação de riqueza no país e para a prosperidade de todos.

Infelizmente vários sinais no país sugerem que se está a ir na contramão. Há que arrepiar caminho e não permitir que descontentamentos, frustrações e ressentimentos das pessoas levem à descredibilização das instituições. Uma especial responsabilidade cabe aos dirigentes das instituições que não poucas vezes contribuem com omissões e protagonismos para esse processo de descrédito. Fazer da “dignidade a pedra angular do nosso compromisso, de nossa paixão cívica”, como disse o presidente italiano Mattarella no seu discurso recente de tomada de posse, pode ser a via a trilhar para construir confiança nas instituições e nas relações interpessoais, indispensável para se combater a crise da democracia e a crise social e ainda reacender a esperança no futuro.

Humberto Cardoso 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1054 de 9 de Fevereiro de 2022.

segunda-feira, fevereiro 07, 2022

Omissões criam desconfiança

 

Notícias recentes que jornalistas e jornais foram constituídos arguidos num caso de violação do segredo de justiça têm sido motivo de apreensão de vários segmentos da população.

Pelos órgãos de comunicação social, pelas redes sociais e nos encontros informais multiplicam-se debates de peritos e conversas simples de pessoas sobre como entre outros aspectos conciliar o direito de informação com o respeito pelo segredo de justiça. A atenção do público que a questão vem merecendo não se deve simplesmente ao facto o de se estar ou não a atentar contra a liberdade de imprensa. A razão principal é que parece dar corpo à suspeição de que se quer tirar o foco de um assunto candente e sensível para o colocar numa outra questão que é importante, mas acessória.

A alegada violação do segredo de justiça pelos jornalistas consistiria no facto de se ter avançado elementos tirados de um processo de investigação judicial em curso lançando uma nova luz sobre a morte violenta de uma pessoa há sete anos atrás no âmbito de uma operação policial. Até à publicação dos relatos na imprensa, de acordo com comunicado do Ministério Público ninguém tinha sido constituído arguido e aparentemente nem chamado a testemunhar. Naturalmente que a generalidade das pessoas fica perplexa ao verificar que o MP, que não se ouviu durante vários anos em que ponto se encontrava a investigação do caso da morte do indivíduo, agora se mostra muito activo em descobrir como se processou a fuga de informações. Mais perplexas ainda ficam quando se deixa passar a impressão que o foco estaria nos jornalistas e não em quem seria óbvio, ou seja, nos envolventes na investigação e na instrução do processo.

A verdade é que o que aconteceu há sete anos atrás precisa ser esclarecido de uma vez por todas. Acusações directas publicamente feitas contra um membro do governo durante anos seguidos nas redes sociais e em artigos de jornais não podem deixar de ser investigadas e clarificadas, particularmente quando vêm de personalidades que ocuparam altos cargos na polícia. Mais urgente se torna esclarecê-las se são aventadas em sede de debate parlamentar e suscitando suspeições de todo o tipo acabam por contribuir para a degradação do discurso político e a descredibilização das instituições. Um maior protagonismo do MP se esperaria na linha do que em 2017 o então presidente da república Jorge Carlos Fonseca disse na tomada de posse do novo PGR: o Ministério Público “está colocado no vértice da pirâmide de fiscalização da legalidade”, e espera-se “coragem de poder desagradar e causar incómodos, (…) mesmo em relação àqueles que pensam estar acima dela, julgando que as suas acções não estão submetidas à sindicância”.

Infelizmente não é esse o sentimento que muitos têm em relação ao funcionamento global da justiça em Cabo Verde. Não se vê que ela seja suficientemente eficaz para em tempo útil clarificar situações, dirimir conflitos e proteger direitos fundamentais. As deficiências e omissões são geralmente maiores quando se trata de acusações de abusos de autoridade, de violência policial e de mortes em encontros com a polícia. Demasiados casos ficam por esclarecer, não se vê investigação de falhas que depois leve à introdução de boas práticas, nota-se excesso de corporativismo que impede transparência na relação com o público e sente-se que a falta de cooperação entre as forças, apesar de identificada há muito, ainda não foi ultrapassada prejudicando a eficácia da investigação criminal. Aliás, os últimos acontecimentos que levaram à constituição de profissionais da PJ como arguidos e que deixam entender que há tensões entre os diferentes órgãos da polícia criminal não augura nada de bom para o sistema.

Por isso focar nos jornalistas e no eventual papel que tiveram na violação do segredo de justiça quando há tanta coisa urgente a rever e a resolver não pode deixar de causar mal-estar na sociedade. Em todo o mundo democrático depara-se com situações em que se confrontam a liberdade de imprensa com outros direitos como o direito à honra e à imagem e também com a necessidade de se salvaguardar o segredo de justiça para assegurar investigação e instrução criminal. Um outro confronto é com o segredo do Estado em que é preciso ponderar o direito de informar e de ser informado com questões de segurança do Estado. Mesmo em países onde há um forte balanceamento em direcção à protecção do direito de informar como nos Estados Unidos na América acções judiciais são dirigidos contra jornais e jornalistas como no célebre caso dos “Papéis do Pentágono” em que se procurava evitar a sua publicação no Washington Post e no New York Times.

Em qualquer das circunstâncias são sempre os tribunais a decidir caso a caso qual dos direitos deve prevalecer, sendo certo que a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa em geral acabam quase sempre por prevalecer, como se verificou no caso referido. Quando, porém, se deixa instalar um clima de desconfiança em que as pessoas se sentem compelidas a ver em certas decisões “vingança dos magistrados ou do sistema de justiça”, tudo fica mais complicado. Casos que podiam ser com tranquilidade dirimidos pelos tribunais são exacerbados, dão origem a denúncias internacionais e as pessoas alvo dessas acções judiciais sentem-se genuinamente intimidadas pessoalmente e no exercício da sua profissão, o que não devia acontecer num Estado de Direito democrático.

A experiência dos últimos tempos que muitos consideram de crise das democracias tem mostrado que o mesmo tipo de desconfiança e de descredibilização das instituições que para gáudio de alguns se vê afectar os partidos políticos, o parlamento e a classe política em geral, nem sempre fica por aí. Já há vários exemplos que tendem avançar e atingir o sistema de justiça ameaçando destabilizar os alicerces do Estado de Direito democrático. Quem também não fica incólume neste processo de perda de confiança nas instituições é a imprensa. Como se viu claramente de casos como o da presidência de Trump e de Bolsonaro a liberdade de imprensa é um dos alvos a abater escolhidos por todos os aspirantes a autocratas que cavalgam as ondas de desconfiança e de cinismo que têm levado ao enfraquecimento da democracia.

Para os media chamados de “fake news” por esses autocratas na tentativa de as denegrir é importante perceberem também o papel que têm desempenhado em alimentar essa desconfiança e o cinismo das pessoas. Há talvez na sua actividade que ir além das razões de audiência e de outros interesses para se poder ultrapassar o estado actual de falta de confiança. Nesse sentido é preciso garantir a todos e a todo momento o direito de informar, de se informar e de ser informado. O comprometimento com uma cidadania plena que se realiza num ambiente sócio-político suportado por instituições sólidas e credíveis é fundamental para se evitar a erosão das liberdades. Mesmo nos piores momentos das democracias, este não é combate que se deve abandonar. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1053 de 2 de Fevereiro de 2022.

sexta-feira, janeiro 28, 2022

País refém de uma história contada

 

A propósito das controvérsias que sempre aparecem na chamada Semana da República entre os dias 13 e 20 de Janeiro, o Presidente da República, José Maria Neves, disse que “não temos cumprido uma grande promessa da democracia que é a educação para a cidadania”. Acrescenta ainda que “quem quer ser cidadão tem de procurar conhecer a história, sobretudo, a contemporânea do seu país”. A falha detectada pelo PR tem pelo menos duas causas mais visíveis.

A primeira é que o Estado não se esforça o suficiente para passar para as pessoas, para a sociedade e em particular para as novas gerações os princípios e valores universais a começar pelo respeito pela dignidade humana e o direito à liberdade, que estão plasmados na Constituição de 1992, nem a importância do pluralismo, do princípio da separação de poderes e da independência dos tribunais no funcionamento pleno da democracia. Em consequência, fica por desenvolver adequadamente a vontade de participação, autonomia de pensamento e acção, auto-responsabilidade e o espírito de pertença à comunidade que se espera de cidadãos plenos. Pelo contrário, põe-se demasiado ênfase em alegados actos libertadores e heróicos de indivíduos e grupos, revoltas e ressentimentos do passado e manifestações de um paternalismo “salvítico” que deixa todos gratos e dependentes do Estado e na condição de cidadãos menores. 

A outra causa tem a ver com a disputa permanente no país entre a “história contada” e a “história vivida”, entre factos e mitos, entre a procura da verdade e as tentativas de mascarar a realidade fazendo apelo a sentimentos, a lealdades antigas e a demonização do outro. De facto, a única história que realmente se é permitido conhecer não é a que aconteceu nas ilhas, mas a que supostamente teria passado nas matas da Guiné e em Conakry. Uma história perpassada por narrativas carregadas de heroísmo, de generosidade e de boas intenções que depois com as independências e o poder conquistado não se viu correspondência com a realidade dos regimes implantados tanto na Guiné como em Cabo Verde. Os seus protagonistas surpreenderam toda a gente com a perda da liberdade, a arrogância de “melhores filhos” no exercício do poder e a visão curta de quem sempre que foi dado a escolher entre desenvolvimento das pessoas e do país e o seu regime político ditatorial invariavelmente optava pela manutenção do poder. A outra história, aquela vivida nas ilhas e que foi da ditadura, de oportunidades perdidas e de vidas amarfanhadas pela falta de liberdade, pela inibição de iniciativa individual e pela sujeição a ideologias simplistas e ultrapassadas, essa durou quinze anos, mas é como se não tivesse acontecido. 

É uma história praticamente ignorada pelas instituições, pelas escolas, pela comunicação social pública e até pelos estudiosos e académicos. Só se estudam acontecimentos até à independência e depois da chamada abertura política em Fevereiro de 1990. São os momentos em que os “heróis” entram em cena, num caso para dar ao povo a independência e noutro para, em mais um acto de generosidade, oferecer liberdade e democracia. No meio fica um hiato que ninguém quer transpor com receio de ferir as susceptibilidades dos auto-indigitados “Comandantes” (ver decreto-lei nº 8/75 e decreto nº 18/80) que ocuparam os lugares-chave do poder durante a ditadura. Mesmo assim, nunca estão satisfeitos e todos os anos pelo 5 de Julho e pelo 20 de Janeiro repetem que a história da luta não é estudada suficientemente nas escolas e que os ensinamentos da Cabral não estão a ser seguidos. É uma pressão que vai continuar mesmo que hipoteticamente um número de pessoas próximo, dos 100% se submetesse à narrativa heróica, declarando “estar em paz com a história”. 

Com esse tipo de pressão, feita com o beneplácito do Estado e das suas instituições, dificilmente vai-se ter o cidadão pleno que o PR diz que precisa conhecer a história contemporânea do seu país. Não se ajuda, porém, nesse conhecimento quando se procura transpor o hiato dos quinze anos, durante os quais a aplicação dos ensinamentos de Cabral pela organização por ele criado, o PAIGC, e por dirigentes por ele formados resultou em sucessivas tragédias na Guiné-Bissau e em um Cabo Verde sem liberdade e economicamente estagnado, e se propõe elegê-lo “como o símbolo maior dessa luta pela liberdade e dignidade da pessoa humana e pela igualdade”. Aí Pedro Pires tem mais razão ao apresentá-lo como personalidade que “deu tudo o que tinha a favor da libertação do país”. E é libertação porque liberdade e dignidade individual, que certamente não é reconhecida quando em vez de pessoas se vêem massas populares e se define a pertença à comunidade política com base em concepções do tipo o povo é quem está com o partido, são princípios e valores que só seriam conquistados 15 anos depois pelos homens e mulheres das ilhas. 

Pelas reacções de diferentes personalidades durante a chamada Semana da República vê-se claramente que mais de trinta anos depois da instalação da democracia a “história contada” ainda se sobrepõe à “história vivida” mesmo quando colide frontalmente com os princípios e valores constitucionais. Instrumental nisso tudo tem sido precisamente as instituições do Estado e particularmente os órgãos de soberania. Resistências várias impediram durante 17 anos que o 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia, fosse comemorado pela Assembleia Nacional, a casa da pluralismo e a sede do contraditório na democracia. Agora já há quem queira comemorar o 20 de Janeiro com uma sessão especial da Assembleia Nacional quando se sabe pela experiência de outras democracias que comemorações da independência, da república e da memória, porque momentos de unidade e exaltação nacional, normalmente são presididas pelo presidente da república. A guerrilha continua como que para demonstrar o quanto a iniciativa da semana da república é um fiasco na tentativa de reconciliação à volta das datas históricas. 

Nos últimos dias a colisão de narrativas históricas com a Constituição centrou-se sobre o que devem ser as comemorações do Dia das Forças Armadas (FA). O Governo na pessoa da Ministra da Defesa, em linha com os ditames da Constituição de 1992, realçou a função constitucional das forças armadas de assegurar a defesa nacional, a sua subordinação ao poder civil, o seu serviço à nação e o seu apartidarismo e neutralidade política. Os “comandantes” vieram à liça reivindicar a reposição da história das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP) e o papel que teriam tido na sua origem. 

O problema é que as FARP que sempre foram concebidas como braço armado do partido, como está explícito no texto da proclamação da Independência e confirmado pela voz autorizada de Aristides Pereira em 1985 ao dizer que “a acção política e ideológica constitui uma componente essencial no trabalho das forças de defesa” e ter-se referido ao facto de as FARP, serem integradas, não por militares, mas por militantes armados”, deixaram de existir com a entrada em vigor da Constituição a 25 de Setembro de 1992 dando lugar às FA. Não faz, portanto, qualquer sentido referir-se a papéis ou missões passadas que conflituam directamente com as funções constitucionais actuais. 

Mesmo na questão do Dia das Forças Armadas nota-se a conveniência e o desejo de auto glorificação. Até 1987 o dia das FARP comemorava-se a 16 de Novembro em referência à origem das forças em 1964 na sequência do Congresso de Cassacá, assim como é ainda comemorado pelas FARP na Guiné-Bissau. O objectivo então era identificarem-se com a luta na Guiné. Em 1988, oito anos depois do golpe na Guiné e com o poder seguro em Cabo Verde acharam que podiam fazer das suas pessoas a referência do braço armado do partido. Com um simples decreto (decreto nº 5/88) criaram um novo Dia das FARP (15 de Janeiro de 1987). Agora acham que as FA não podem ter outra referência mais consentânea com a sua função actual. É mesmo patético. 

É evidente que o país não deve continuar refém de uma narrativa que glorifica pessoas responsáveis por um regime ditatorial, que promove o culto de personalidade em plena democracia e que pode causar instabilidade institucional pelos seus persistentes conflitos com os princípios e valores constitucionalmente estabelecidos. Os titulares dos órgãos de soberania devem lembrar-se todos do seu juramento de respeitar e cumprir a Constituição da República. Estar ao serviço do povo e não de quais outros interesses é a via certa para a construção de uma vida de liberdade, paz e prosperidade para todos.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1051 de 19 de Janeiro de 2022.

segunda-feira, janeiro 24, 2022

Diversificar não é disparar para todos os lados

 

​O Banco Mundial no relatório sobre a Situação e Perspectivas Económicas Mundiais previu para Cabo Verde um crescimento económico de 4% do PIB para 2021 e 5,2% e 6,1 % para respectivamente 2022 e 2023.Se se considerar que em 2020, no ano de pandemia, houve uma recessão de 14,8 % deve-se imaginar que ainda vai levar algum tempo para o país se recuperar da violenta contracção da economia e retomar a partir do que já tinha atingido em 2019.

Qualquer previsão está condicionada por incertezas várias que incluem as resultantes de tensões internacionais, estrangulamentos nas cadeias de abastecimento e o ressurgimento da inflação. Outrossim, a dependência actual do turismo enquanto motor da economia torna uma retoma económica do país mais complicada. É o sector mais afectado pelas incertezas derivadas da pandemia e condiciona directamente os sectores de viagens e de hotelaria que comandam milhares de postos de trabalho e têm um forte efeito de arrastamento de outros sectores importantes da economia nacional.

Essa situação já de si mesma preocupante é agravada pelos condicionalismos macroeconómicos e macro fiscais colocados pela dívida pública de 160,9% do PIB segundo o BCV e pelos défices orçamentais impostos pelas despesas extraordinárias necessárias para financiar o sistema de saúde e conter o impacto da pandemia da covid-19 no rendimento das pessoas e na actividade das empresas. Sem o turismo e sem o crescimento de uma procura externa de bens e serviços fica difícil gerar um fluxo de receitas suficiente para fazer face ao serviço da dívida externa e realizar os investimentos que vão sendo necessários para combater o vírus e os investimentos indispensáveis para a retoma.

A tentação de aumentar os impostos também não é o melhor caminho mesmo que traga algum alívio para o Estado. No fim do dia, sempre acaba por prejudicar as empresas e também os consumidores. Um esforço maior podia ser posto na atracção do investimento externo, mas tirando o sector do turismo à base de sol e mar aparentemente o país não tem muito a oferecer. Não melhorou como devia a sua competitividade, não valorizou adequadamente o seu capital humano e não fez as reformas da administração pública que seriam necessárias para o Estado ser visto como facilitador da actividade económica e não como um factor de ineficiência contribuindo significativamente para os custos de contexto.

Na encruzilhada difícil que se vive não faltam vozes nacionais, internacionais e institucionais que clamam pela diversificação da economia como solução para os males do país. Aparentemente esquece-se que esse clamor vem de longe e no passado recente tomou várias formas em projectos de milhões que propuseram clusters, hubs e plataformas em vários sectores designadamente financeiro, transportes aéreos, transbordo, agronegócios, energias renováveis e tecnologias de informação e comunicação.

Alguns não resultaram, outros ficaram aquém dos objectivos traçados, mas todos contribuíram para aumentar a dívida externa e deixaram na sua esteira frustrações e ressentimentos. O estranho é que sem se deter para uma análise compreensiva do que correu mal nas tentativas anteriores ainda se quer continuar a fazer as mesmas apostas. A diferença é que aparecem com outros invólucros como economia azul e economia verde e no quadro de políticas de contenção dos efeitos das alterações climáticas e de aumento da capacidade de resiliências a choques externos. É aí que estão agora os milhões.

Duvidoso é se desta vez, a incorrer em custos como os de 20 mil contos em cursos de coding com a duração de 14 semanas para 22 jovens (post no facebook do Vice PM) se vai conseguir que o digital chegue a 25% do PIB como prometeu o Primeiro-Ministro em discurso recente. Os falhanços anteriores com muitos outros projectos deviam convidar a uma serenidade e ponderação no que se deveria fazer para não repetir erros do passado e para aumentar as chances de sucesso de forma a assegurar sustentabilidade dos projectos para além do seu tempo de implementação. O que se vê mais nessa procura de diversificar a economia parece mais um exercício de “disparar para todos os lados” sem uma definição de prioridades, sem o encadeamento das acções, sem a mobilização e adequação do capital humano e sem uma preocupação central em identificar nichos de mercado, avaliar o seu potencial e traçar estratégias de exploração e desenvolvimento.

Quer-se, por exemplo, que a produção nacional capture uma fatia significativa do que em produtos agropecuários se consomem nos hotéis nas ilhas turísticas do Sal e da Boa Vista. É de se perguntar se durante o período de crise pandémica se investiu para qualificar potenciais fornecedores de acordo com os standards de qualidade exigidos. Se quem já investiu nisso, como incentivo, foi ressarcido do que já gastou, no que se pode considerar uma actividade de exportação. Aliás, nessa linha de ideias devia haver um pacote de incentivos para exportar “cá dentro” considerando que a procura é realmente externa, tende a expandir-se, criando mais emprego local, e resulta num saldo positivo de divisas. Diversificar a economia devia passar por criar linhas de conexão entre várias actividades empresariais num esforço de estruturação da economia nacional, de unificação de mercado e de identificação e atracção de investimento externo que, para além de capital e know how, também trouxesse mercado.

Como as duas últimas décadas demonstram, não é indo atrás de projectos propostos por outros ou de financiamentos aparentemente concessionais que se vai conseguir diversificar a economia e tornar o país sustentável e mais resiliente aos choques externos. O que se vê hoje, na dependência excessiva do turismo, nas persistentes vulnerabilidades das populações e no peso crescente da dívida pública, é o resultado do país não encarar devidamente os seus problemas fundamentais, não debater democraticamente soluções apresentadas e não mobilizar as vontades para dar os passos difíceis, mas essenciais para se construir a prosperidade. Prefere-se ir atrás dos projectos e dos milhões anunciados quase todos os dias na rádio e na televisão. Dão para anunciar com pompa e circunstância, mas não parece que o aproveitamento que deles foi feito tenha trazido maiores certezas para o futuro. Qualquer ilusão a esse respeito foi desfeita pela pandemia.

Governar não deve significar alimentar ilusões mesmo que tragam milhões. Nem também reproduzir mitos de salvação do povo que andam à volta da chuva, da emigração ou mesmo do dinheiro de Angola da canção “Oi Teresinha”. Pior ainda, induzir sentimentos de vitimização a partir de afirmações como “a escravatura é vivência fundante dos cabo-verdianos” que se supõe só podem servir para tentar conseguir alguns milhões de compensação por atrocidades passadas. Governar para se chegar à diversificação da economia que o país precisa deve, pelo contrário, primar-se pelo realismo que descarta mitos e ideologias ultrapassadas, pelo pragmatismo que funciona com resultados concretos e sustentáveis e pela procura do interesse colectivo que reforça o sentido da cidadania, a auto-estima e a confiança no futuro. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1051 de 19 de Janeiro de 2022.