É consenso geral que a democracia para se consolidar precisa de ter uma sociedade civil actuante e ciosa da sua autonomia. Tocqueville nas primeiras décadas da república americana já chamava a atenção para a importância crucial do associativismo e do que hoje se chama de capital social para o funcionamento pleno da democracia.
Cabo Verde a completar no dia 25 de Setembro 30 anos de construção das suas instituições democráticas no quadro da Constituição de 1992 depara-se ainda com uma sociedade civil incipiente porque extremamente dependente do Estado e com capital social baixo, como comprovado em vários estudos, incluindo os do Afrobarómetro. Esse desequilíbrio entre a sociedade política e a sociedade civil além de prejudicar a acountability necessária para a consolidação da democracia acaba por ser uma fonte de frustração e ressentimento das pessoas que com o passar do tempo já não se sentem representadas ou se veem impotentes para fazer mudanças.
As recentes manifestações em várias ilhas a pretexto do problema dos transportes entre as ilhas e da agitação social à volta do caso Amadeu Oliveira são exemplos disso. Assim como são outras reivindicações como as de maior autonomia para ilhas, de descentralização dos poderes no país e de uma justiça mais eficaz. Na sequência de todas elas e pelo facto de não se conseguir da parte do governo e do conjunto da classe política resposta compreensiva para os problemas, nota-se um sentimento de impotência que primeiramente indispõe as pessoas contra as instituições em particular o parlamento e contra os partidos políticos. Depois, como veio a acontecer, esse sentimento pode progredir para atingir instituições como a justiça se tentativas de mexer com o actual sistema, via criação de outros partidos ou participação em eleições autárquicas com grupos de cidadãos, acabar por falhar.
A evolução dos Sokols e de outros movimentos em S. Vicente é paradigmático a esse respeito. Noutras ilhas algo similar vem acontecendo. Alguns viram-se em dificuldades depois de ter falhado a via eleitoral com os poucos votos conseguidos nas urnas. Também não resultou a tentativa de manter alguma continuidade de acção com indignações sucessivas porque acabam por se revelar efémeras e não dão consistência aos grupos. Uma outra via podia ser através das redes sociais que, por terem sido adoptadas por quase todos e pelo seu aparente alcance, criam a ilusão de um protagonismo que, desde a Primavera Árabe e dos movimentos de Occupy Wall Street de há dez anos atrás, se sabe que não têm tradução na realidade. De facto, cedo se percebeu que as redes sociais podem ser muito úteis na mobilização para eventos de rua, mas que dificilmente se prestam para garantir continuidade de acção de grupos por tempo suficiente para serem transformadores. O problema é que, depois da ilusão criada, a frustração é ainda maior e o efeito disso tudo nem sempre é de mudar a abordagem, mas sim de insurgir contra as instituições. O conteúdo de algumas declarações à volta do caso Amadeu Oliveira é ilustrativo a esse respeito.
E ninguém ganha com isso. Não ganha a sociedade política, nem a sociedade civil. Como diz Mo Ibrahim “O Estado de Direito (rule of law) é o elemento mais importante em qualquer sociedade civil”. Não se compagina com vigilantes, heróis ou mártires e a sua defesa é fundamental para se ter liberdade e segurança na democracia. Perante o que configura um caminho que até agora só vem acumulando frustração e ressentimento em vários sectores, a questão que se coloca é procurar saber as razões da fragilidade da sociedade civil cabo-verdiana. A partir daí avançar com uma outra abordagem que a torne efectiva no papel que deve desempenhar na consolidação da democracia.
A ideia da sociedade civil ganhou um outro vigor nos processos de transição para a democracia de regimes autoritários e totalitários verificados nos finais da década de oitenta e princípios da década de noventa na sequência das reformas “Glasnost e Perestroika” introduzidas por Mikhail Gorbatchev na União Soviética. Em Cabo Verde, a ideia da sociedade civil ainda foi suprimida nos textos do III Congresso do então partido único em 1988, mas depois da queda do Muro de Berlim e da abertura política foi recuperada no movimento popular de 1990 que levou ao 13 de Janeiro de 1991. Os efeitos de quinze anos de confinamento da intervenção social das pessoas aos limites e condicionalismos das organizações de massa porém não desapareceram completamente. A dependência do Estado não acabou e a tendência para políticas eleitoralistas num quadro de precariedade e de grandes vulnerabilidades da população certamente que não contribuiu para a autonomia e afirmação da sociedade civil.
Um outro facto é que a política seguida nos quinze de anos de partido único de intimidação das elites anteriores dirigida contra proprietários agrícolas, comerciantes e intelectuais em Maio de 1977 e no dia 31 de Agosto de 1981 designadamente levaram a um vazio substituído por uma elite dócil à volta do Estado. Como a centralidade do papel do Estado na economia e noutros sectores da vida do país ainda não foi contrabalançada por um sector privado dinâmico é evidente que muito condicionalismo das elites actuais ainda persiste, não obstante o ambiente de liberdade e pluralismo formalmente existente. Nem aparentemente o surgimento das universidades tanto públicas como privadas resultaram num revigor do discurso e um maior nível de participação na esfera pública protagonizado por elementos da academia e por estudantes livre-pensadores e inconformistas. O espectáculo recente de um ministro a anunciar uma cátedra da emigração na Uni-CV e a escolher a sua sede na presença do magnífico reitor não foi um bom sinal da autonomia que se espera encontrar nas universidades.
O caminho para se ter uma sociedade civil mais autónoma e mais actuante tem que ser percorrido com renovado vigor e energia e ciente dos muitos percalços ainda existentes. Fundamental para isso é construir uma economia próspera suportada pelo sector privado que diminua a dependência das pessoas em relação ao Estado. A par de se pôr de lado os resquícios do igualitarismo que promove a mediocridade e não reconhece o mérito há que elevar o sentido de responsabilidade pessoal tanto na consecução do bem comum como na intervenção cívica e política que mais se coaduna com o exercício de uma cidadania livre. Só com isso é que se pode evitar as derivas na participação no espaço público que levam à frustração e ao ressentimento e aumentam o sentimento de impotência. Também por aí é que se evita que demagogos, autocratas e populistas de outras estirpes consigam mobilizar adeptos na luta para destruir a democracia.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1083 de 31 de Agosto de 2022.