No fim do ano parlamentar vê-se que divergem as opiniões sobre o estado da Nação mas em relação ao estado do Parlamento a posição é quase unânime que não está bem. Os trabalhos na plenária parecem desenvolver-se num registo quase caótico com múltiplas intervenções de deputados em todas as matérias e interrupções sucessivas com interpelações à mesa e defesas de honra. Demasiadas vezes funciona-se como se não houvesse uma estratégia de grupo parlamentar para, de forma mais eficaz e com economia de tempo, debater as questões. Passou a ser costume os sujeitos parlamentares dirigirem-se directamente aos que escutam na rádio ou assistem pela televisão num esforço de se apresentarem como representantes de interesses que supostamente estariam a ser postos em causa pelos argumentos dos colegas de outras bancadas ou como porta-vozes de recados enviados pelo eleitorado. Nestas circunstâncias é difícil para a Mesa da Assembleia Nacional mostrar que está efectivamente em controlo dos trabalhos. Não estranha que tenham acontecido ao longo deste ano parlamentar situações prejudiciais para a imagem do Parlamento e para a legalidade dos seus actos como as de dar como aprovadas matérias sem a maioria regimental exigida ou sem os votos de todos os deputados presentes na sala de sessões no momento de votação.
As reacções à esta percepção geral de fragilidade do Parlamento nesta legislatura têm levado vários observadores a propor alterações no sistema eleitoral e o fim do monopólio dos partidos na apresentação de candidatos a deputados. Outros vão mais longe e, além de pedirem a adopção do sistema uninominal em substituição do proporcional actualmente existente, querem acabar com a disciplina partidária que para eles tem impedido que os deputados sejam realmente representantes do povo. Para outros observadores, o problema estaria com os partidos políticos que monopolizam a vida política, alimentam a crispação e estando no governo vêem o adversário como quem não tem em conta os interesses do país e funciona numa lógica de “quanto pior, melhor”. Curiosamente, quem faz essas propostas não tem a preocupação de trazer à discussão os exemplos actuais e muitos outros do passado onde essas soluções foram adoptadas e as consequências em termos de configuração do quadro partidário e de estabilidade governativa, que se seguiram à sua implementação, foram desastrosas. Pode-se criticar muitos aspectos da chamada democracia de partidos, mas a história das democracias depois da segunda guerra mundial mostra como ela foi crucial para a estabilidade nas décadas de prosperidade quase ininterrupta e sem precedentes que se seguiram.
Percebe-se facilmente que parte desta reacção deriva da chamada crise de representação que aflige hoje muitas democracias avançadas na Europa em que as pessoas vêm como os seus governos são ultrapassados por forças exteriores de natureza económica criadas pela globalização e também por outras de natureza política no quadro da União Europeia. Outra parte dessa atitude porém tem uma base na realidade nacional e provém da reacção às décadas de regime autoritário no país que deixaram uma desconfiança profunda em relação à democracia representativa e justificam a postura ainda nostálgica de “democracias revolucionárias” que encontra alguma satisfação em privilegiar formas de democracia participativa sobre a representativa. Tendo isso como pano de fundo e no actual ambiente dominado pelo médias e com a internet e acesso às redes sociais a todo o tempo tudo parece convergir para que se caia na chamada pessoalização da política em que a acção política em vez de levar ao debate de temas e ideias focaliza-se no ataque pessoal. De facto, fica mais fácil e mais imediato mobilizar sentimentos e despertar emoções e paixões do que engajar-se na discussão de opções políticas num quadro do pluralismo em que se assume que todos procuram o melhor para o país.
A focalização nos políticos e em particular na sua imagem e notoriedade vem-se verificando progressivamente de algum tempo para cá na política cabo-verdiana. Em certos aspectos não é muito diferente do que se passa noutros países a braços com crises diversas incluindo a de representação, não identificação com as elites e protagonismo individual mais acentuado nas redes sociais. É um fenómeno que vem acompanhando o recrudescer do populismo nas democracias ocidentais com as consequências mais conhecidas do Brexit, da eleição de Donald Trump, reconfiguração dos partidos em Espanha com o Podemos e Ciudadanos e o colapso dos partidos franceses nas últimas eleições. Se nesses países de democracia consolidada tem-se contado com a resiliência das instituições e a influência dos órgãos de comunicação social e a presença de uma sociedade civil autónoma para conter os efeitos mais nefastos do fenómeno, não se pode dizer o mesmo nas novas democracias onde todos esses ingredientes essenciais ainda estão em estado embrionário. Em Cabo Verde foram também sentidos os ventos fortes do populismo no período pré-eleitoral tanto em movimentos da sociedade civil (MAC #114) como na dinâmica dos grandes partidos. Acabou por afectar profundamente a escolha de candidatos a deputados com as consequências já conhecidas para além de condicionar a relação que no pós-eleições viriam estabelecer entre os órgãos de soberania todos eles centrados nas pessoas.
Se não for devidamente contida, a pessoalização da política tem os efeitos que se conhecem, por exemplo, em fragilizar as instituições, esvaziar o debate público e promover candidatos a autocratas. A luta contra os efeitos nefastos da partidarização da política não deve conduzir à pessoalização da política que se nutre do populismo para manter a imagem e garantir níveis elevados de notoriedade. Cabo Verde é uma democracia ainda por consolidar e neste ano do vigésimo quinto aniversário da Constituição 1992 deve estar alerta para todos os perigos que podem ameaçar a democracia representativa, a única que historicamente garantiu a liberdade e abriu caminho à prosperidade. Os inimigos são muitos e, neste momento, no mundo inteiro, o populismo, em suas várias formas, é o pior de todos.
As reacções à esta percepção geral de fragilidade do Parlamento nesta legislatura têm levado vários observadores a propor alterações no sistema eleitoral e o fim do monopólio dos partidos na apresentação de candidatos a deputados. Outros vão mais longe e, além de pedirem a adopção do sistema uninominal em substituição do proporcional actualmente existente, querem acabar com a disciplina partidária que para eles tem impedido que os deputados sejam realmente representantes do povo. Para outros observadores, o problema estaria com os partidos políticos que monopolizam a vida política, alimentam a crispação e estando no governo vêem o adversário como quem não tem em conta os interesses do país e funciona numa lógica de “quanto pior, melhor”. Curiosamente, quem faz essas propostas não tem a preocupação de trazer à discussão os exemplos actuais e muitos outros do passado onde essas soluções foram adoptadas e as consequências em termos de configuração do quadro partidário e de estabilidade governativa, que se seguiram à sua implementação, foram desastrosas. Pode-se criticar muitos aspectos da chamada democracia de partidos, mas a história das democracias depois da segunda guerra mundial mostra como ela foi crucial para a estabilidade nas décadas de prosperidade quase ininterrupta e sem precedentes que se seguiram.
Percebe-se facilmente que parte desta reacção deriva da chamada crise de representação que aflige hoje muitas democracias avançadas na Europa em que as pessoas vêm como os seus governos são ultrapassados por forças exteriores de natureza económica criadas pela globalização e também por outras de natureza política no quadro da União Europeia. Outra parte dessa atitude porém tem uma base na realidade nacional e provém da reacção às décadas de regime autoritário no país que deixaram uma desconfiança profunda em relação à democracia representativa e justificam a postura ainda nostálgica de “democracias revolucionárias” que encontra alguma satisfação em privilegiar formas de democracia participativa sobre a representativa. Tendo isso como pano de fundo e no actual ambiente dominado pelo médias e com a internet e acesso às redes sociais a todo o tempo tudo parece convergir para que se caia na chamada pessoalização da política em que a acção política em vez de levar ao debate de temas e ideias focaliza-se no ataque pessoal. De facto, fica mais fácil e mais imediato mobilizar sentimentos e despertar emoções e paixões do que engajar-se na discussão de opções políticas num quadro do pluralismo em que se assume que todos procuram o melhor para o país.
A focalização nos políticos e em particular na sua imagem e notoriedade vem-se verificando progressivamente de algum tempo para cá na política cabo-verdiana. Em certos aspectos não é muito diferente do que se passa noutros países a braços com crises diversas incluindo a de representação, não identificação com as elites e protagonismo individual mais acentuado nas redes sociais. É um fenómeno que vem acompanhando o recrudescer do populismo nas democracias ocidentais com as consequências mais conhecidas do Brexit, da eleição de Donald Trump, reconfiguração dos partidos em Espanha com o Podemos e Ciudadanos e o colapso dos partidos franceses nas últimas eleições. Se nesses países de democracia consolidada tem-se contado com a resiliência das instituições e a influência dos órgãos de comunicação social e a presença de uma sociedade civil autónoma para conter os efeitos mais nefastos do fenómeno, não se pode dizer o mesmo nas novas democracias onde todos esses ingredientes essenciais ainda estão em estado embrionário. Em Cabo Verde foram também sentidos os ventos fortes do populismo no período pré-eleitoral tanto em movimentos da sociedade civil (MAC #114) como na dinâmica dos grandes partidos. Acabou por afectar profundamente a escolha de candidatos a deputados com as consequências já conhecidas para além de condicionar a relação que no pós-eleições viriam estabelecer entre os órgãos de soberania todos eles centrados nas pessoas.
Se não for devidamente contida, a pessoalização da política tem os efeitos que se conhecem, por exemplo, em fragilizar as instituições, esvaziar o debate público e promover candidatos a autocratas. A luta contra os efeitos nefastos da partidarização da política não deve conduzir à pessoalização da política que se nutre do populismo para manter a imagem e garantir níveis elevados de notoriedade. Cabo Verde é uma democracia ainda por consolidar e neste ano do vigésimo quinto aniversário da Constituição 1992 deve estar alerta para todos os perigos que podem ameaçar a democracia representativa, a única que historicamente garantiu a liberdade e abriu caminho à prosperidade. Os inimigos são muitos e, neste momento, no mundo inteiro, o populismo, em suas várias formas, é o pior de todos.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 818 de 02 de Agosto de 2017