A Rússia invadiu a Ucrânia na quinta-feira, dia 24 de Fevereiro. O que já se vinha esperando há algum tempo, mas com esperança que não acontecesse acabou mesmo por se verificar. O choque foi geral com manifestações de repúdio e consternação em todo o mundo, incluindo na própria Rússia.
A resistência surpreendente que a nação ucraniana, as forças armadas e o presidente Volodymyr Zelensky vêm oferecendo à agressão das tropas russas tem galvanizado a opinião pública internacional com efeito directo no posicionamento dos estados democráticos em reacção à violação da integridade territorial da Ucrânia.
As sanções económicas e financeiras que já tinham sido estabelecidas ou aventadas pela União Europeia, os Estados Unidos da América, o Japão e outros países foram radicalmente agravadas. A ajuda militar de armamento avançado e outros equipamentos aumentou extraordinariamente com a contribuição de vários países. Rapidamente se pôs de pé a logística necessária para acolher e apoiar refugiados ucranianos, na maioria mulheres e crianças. Como consequência da resistência ucraniana e do esforço concertado dos países democráticos e de organizações internacionais em fazer da Rússia um país pária, em quase uma semana depois da invasão, já se tem como certo que Putin falhou nos seus cálculos.
É verdade que a guerra vai continuar e provavelmente vai-se tornar mais brutal, mas dificilmente se irá ver uma Ucrânia ocupada, submissa e alinhada com os interesses do governo autocrático russo nos moldes do que já acontece com a Bielorrússia. Em vez de estados tampões como almofadas de segurança à boa maneira dos arranjos geopolíticos do passado, a Rússia autocrática presidida por Putin vai ter que se preocupar com uma NATO talvez nunca antes tão unida e tão predisposta a assumir-se como força dissuasora de agressões contra os seus membros.
Um sinal claro de que mudaram os tempos foi a decisão da Alemanha tomada no domingo de fazer uma reviravolta na política externa e de defesa que vinha desde o fim da segunda guerra mundial. Além de suspender o gasoduto Nord Stream 2 que deveria fornecer gás russo à Europa e de dar o seu acordo para impor restrições de acesso ao SWIFT a bancos russos, decidiu modernizar as suas forças armadas com um fundo de 100 mil milhões de euros e aumentar de forma permanente as suas despesas militares para mais de 2% do PIB. De imediato prometeu enviar material militar letal para a Ucrânia.
Os cálculos do presidente russo parecem também ter falhado em relação às sanções. Pensou que as podia contornar, mas quando os bancos centrais da América e da Europa e de outros países moveram-se para limitar o acesso às suas reservas externas em dólares, euros e iene a queda do rublo russo foi imediata. Na sequência tem-se visto escassez de bens e alta de preços afectando directamente os consumidores, quebra na actividade económica e constrangimentos sérios no acesso à tecnologia, bens de luxo e produtos essenciais para produção, manutenção e renovação de equipamentos vitais em sectores-chave.
Um outro aspecto em que o cálculo de Putin poderá não bater certo é no tempo previsto para conseguir submeter a Ucrânia. Se deixa arrastar a operação militar com o seu cortejo de mortes e destruição num quadro de crescente isolamento do país, instabilidade monetária e escassez de tudo poderá ser obrigado a enfrentar as consequências da erosão do apoio das elites, de segmentos da população e das próprias forças armadas que nem sempre são fáceis de controlar. As incertezas daí advenientes não prognosticam nada de bom para os próximos tempos. A guerra pode intensificar e alargar-se para outros teatros e eventual confronto com a NATO ou acabar na sequência de uma reviravolta de políticas no Kremlin. Uma outra hipótese, talvez de menos custos, seria encontrar uma solução que, a exemplo do que aconteceu na Crise de Mísseis de Cuba em 1963, pudesse dar a todas as partes a possibilidade de salvar a face.
Desde os primórdios da segunda guerra mundial nos anos trinta do século passado que um regime autocrático não tinha recorrido à agressão militar para tentar neutralizar e submeter um país democrático. O choque sentido em todas as democracias tem a ver em grande parte com o facto de que não passava pela cabeça de ninguém que nos tempos actuais se fizesse uma tentativa violenta de atropelar os direitos fundamentais dos cidadãos e pôr em causa o Estado de Direito e a possibilidade dos povos escolherem livremente os seus governantes. A invasão da Ucrânia serviu de toque de despertar. A indignação sentida por todos vem do facto de abertamente e sem rebuços se estar a atacar a democracia no seu núcleo essencial.
A democracia é tida pela generalidade das pessoas como um dado adquirido da vida em sociedade. Por isso, é que não causa muita preocupação que não poucas vezes ela seja mais criticada nas suas insuficiências do que reafirmada nos seus fundamentos e procedimentos. Nos tempos de hoje considerados por alguns estudiosos de recessão da democracia até se assiste em certos momentos a acções sistemáticas de descredibilização das instituições vindas dos extremos do espectro político, mas também da classe política governante sem que sejam compreendidas como tais e contrapostas por ideias e práticas que renovam o consenso essencial à volta dos seus princípios e valores.
A complacência generalizada com os inimigos da democracia poderá talvez diminuir agora que se vê até onde pode ir a hostilidade em relação aos países democráticos. Já se sabia antes de casos em que houve financiamento de forças descontentes com a democracia, outros de interferências nas eleições e até de ataques cibernéticos para criar instabilidade política e social. Com a agressão militar à Ucrânia, constata-se que pode subir para um outro patamar e que nem o desenvolvimento de relação económicas internacionais de interdependência como forma de engajamento parece atenuar a antipatia e servir de dissuasor de actos hostis. O despertar das pessoas para essa realidade e o exemplo da resistência do povo ucraniano contra a tentativa de lhes roubar a liberdade e a democracia talvez agora mobilize vontades para contrariar a actual deriva das democracias para o populismo e para os ideais iliberais que minam o exercício da cidadania plena e alimentam a desconfiança e o ressentimento.
O ano de 2022 que se iniciou prenhe de incertezas e a meio de mais uma onda do coronavírus na variante Ómicron ficou ainda mais complicado com o conflito na Europa. O mais natural é que todos os constrangimentos tanto ao nível da inflação, como de escassez de bens alimentares e outros produtos, aumentos de custos de energia sejam maiores do que os previstos inicialmente. A acrescentar a isso é expectável que venha a diminuir os montantes para ajuda ao desenvolvimento no momento em que mais recursos poderão ir para o sector de defesa e que contribuições no âmbito da solidariedade internacional com os refugiados da Ucrânia e a reconstrução do país terão de ser feitas.
Para Cabo Verde provavelmente tudo isso poderá constituir mais um choque externo a acrescentar à pandemia da covid-19 e à seca que há quatro anos vem assolando o país. Mais uma razão para que o país face às incertezas procurar cada vez mais ganhos de eficiência na sua economia adoptando uma atitude de austeridade e solidariedade e uma cultura de resultados. O exemplo da luta do povo da Ucrânia pela liberdade e democracia perante perigos extremos deve reforçar em todos a importância de preservar o respeito pela dignidade humana em todas as circunstâncias. É a base para se almejar uma vida de paz, justiça e prosperidade.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1057 de 2 de Março de 2022.