segunda-feira, março 07, 2022

Solidariedade com a Ucrânia

 

A Rússia invadiu a Ucrânia na quinta-feira, dia 24 de Fevereiro. O que já se vinha esperando há algum tempo, mas com esperança que não acontecesse acabou mesmo por se verificar. O choque foi geral com manifestações de repúdio e consternação em todo o mundo, incluindo na própria Rússia.

A resistência surpreendente que a nação ucraniana, as forças armadas e o presidente Volodymyr Zelensky vêm oferecendo à agressão das tropas russas tem galvanizado a opinião pública internacional com efeito directo no posicionamento dos estados democráticos em reacção à violação da integridade territorial da Ucrânia.

As sanções económicas e financeiras que já tinham sido estabelecidas ou aventadas pela União Europeia, os Estados Unidos da América, o Japão e outros países foram radicalmente agravadas. A ajuda militar de armamento avançado e outros equipamentos aumentou extraordinariamente com a contribuição de vários países. Rapidamente se pôs de pé a logística necessária para acolher e apoiar refugiados ucranianos, na maioria mulheres e crianças. Como consequência da resistência ucraniana e do esforço concertado dos países democráticos e de organizações internacionais em fazer da Rússia um país pária, em quase uma semana depois da invasão, já se tem como certo que Putin falhou nos seus cálculos.

É verdade que a guerra vai continuar e provavelmente vai-se tornar mais brutal, mas dificilmente se irá ver uma Ucrânia ocupada, submissa e alinhada com os interesses do governo autocrático russo nos moldes do que já acontece com a Bielorrússia. Em vez de estados tampões como almofadas de segurança à boa maneira dos arranjos geopolíticos do passado, a Rússia autocrática presidida por Putin vai ter que se preocupar com uma NATO talvez nunca antes tão unida e tão predisposta a assumir-se como força dissuasora de agressões contra os seus membros.

Um sinal claro de que mudaram os tempos foi a decisão da Alemanha tomada no domingo de fazer uma reviravolta na política externa e de defesa que vinha desde o fim da segunda guerra mundial. Além de suspender o gasoduto Nord Stream 2 que deveria fornecer gás russo à Europa e de dar o seu acordo para impor restrições de acesso ao SWIFT a bancos russos, decidiu modernizar as suas forças armadas com um fundo de 100 mil milhões de euros e aumentar de forma permanente as suas despesas militares para mais de 2% do PIB. De imediato prometeu enviar material militar letal para a Ucrânia.

Os cálculos do presidente russo parecem também ter falhado em relação às sanções. Pensou que as podia contornar, mas quando os bancos centrais da América e da Europa e de outros países moveram-se para limitar o acesso às suas reservas externas em dólares, euros e iene a queda do rublo russo foi imediata. Na sequência tem-se visto escassez de bens e alta de preços afectando directamente os consumidores, quebra na actividade económica e constrangimentos sérios no acesso à tecnologia, bens de luxo e produtos essenciais para produção, manutenção e renovação de equipamentos vitais em sectores-chave.

Um outro aspecto em que o cálculo de Putin poderá não bater certo é no tempo previsto para conseguir submeter a Ucrânia. Se deixa arrastar a operação militar com o seu cortejo de mortes e destruição num quadro de crescente isolamento do país, instabilidade monetária e escassez de tudo poderá ser obrigado a enfrentar as consequências da erosão do apoio das elites, de segmentos da população e das próprias forças armadas que nem sempre são fáceis de controlar. As incertezas daí advenientes não prognosticam nada de bom para os próximos tempos. A guerra pode intensificar e alargar-se para outros teatros e eventual confronto com a NATO ou acabar na sequência de uma reviravolta de políticas no Kremlin. Uma outra hipótese, talvez de menos custos, seria encontrar uma solução que, a exemplo do que aconteceu na Crise de Mísseis de Cuba em 1963, pudesse dar a todas as partes a possibilidade de salvar a face.

Desde os primórdios da segunda guerra mundial nos anos trinta do século passado que um regime autocrático não tinha recorrido à agressão militar para tentar neutralizar e submeter um país democrático. O choque sentido em todas as democracias tem a ver em grande parte com o facto de que não passava pela cabeça de ninguém que nos tempos actuais se fizesse uma tentativa violenta de atropelar os direitos fundamentais dos cidadãos e pôr em causa o Estado de Direito e a possibilidade dos povos escolherem livremente os seus governantes. A invasão da Ucrânia serviu de toque de despertar. A indignação sentida por todos vem do facto de abertamente e sem rebuços se estar a atacar a democracia no seu núcleo essencial.

A democracia é tida pela generalidade das pessoas como um dado adquirido da vida em sociedade. Por isso, é que não causa muita preocupação que não poucas vezes ela seja mais criticada nas suas insuficiências do que reafirmada nos seus fundamentos e procedimentos. Nos tempos de hoje considerados por alguns estudiosos de recessão da democracia até se assiste em certos momentos a acções sistemáticas de descredibilização das instituições vindas dos extremos do espectro político, mas também da classe política governante sem que sejam compreendidas como tais e contrapostas por ideias e práticas que renovam o consenso essencial à volta dos seus princípios e valores.

A complacência generalizada com os inimigos da democracia poderá talvez diminuir agora que se vê até onde pode ir a hostilidade em relação aos países democráticos. Já se sabia antes de casos em que houve financiamento de forças descontentes com a democracia, outros de interferências nas eleições e até de ataques cibernéticos para criar instabilidade política e social. Com a agressão militar à Ucrânia, constata-se que pode subir para um outro patamar e que nem o desenvolvimento de relação económicas internacionais de interdependência como forma de engajamento parece atenuar a antipatia e servir de dissuasor de actos hostis. O despertar das pessoas para essa realidade e o exemplo da resistência do povo ucraniano contra a tentativa de lhes roubar a liberdade e a democracia talvez agora mobilize vontades para contrariar a actual deriva das democracias para o populismo e para os ideais iliberais que minam o exercício da cidadania plena e alimentam a desconfiança e o ressentimento.

O ano de 2022 que se iniciou prenhe de incertezas e a meio de mais uma onda do coronavírus na variante Ómicron ficou ainda mais complicado com o conflito na Europa. O mais natural é que todos os constrangimentos tanto ao nível da inflação, como de escassez de bens alimentares e outros produtos, aumentos de custos de energia sejam maiores do que os previstos inicialmente. A acrescentar a isso é expectável que venha a diminuir os montantes para ajuda ao desenvolvimento no momento em que mais recursos poderão ir para o sector de defesa e que contribuições no âmbito da solidariedade internacional com os refugiados da Ucrânia e a reconstrução do país terão de ser feitas.

Para Cabo Verde provavelmente tudo isso poderá constituir mais um choque externo a acrescentar à pandemia da covid-19 e à seca que há quatro anos vem assolando o país. Mais uma razão para que o país face às incertezas procurar cada vez mais ganhos de eficiência na sua economia adoptando uma atitude de austeridade e solidariedade e uma cultura de resultados. O exemplo da luta do povo da Ucrânia pela liberdade e democracia perante perigos extremos deve reforçar em todos a importância de preservar o respeito pela dignidade humana em todas as circunstâncias. É a base para se almejar uma vida de paz, justiça e prosperidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1057 de 2 de Março de 2022.

segunda-feira, fevereiro 28, 2022

Nem quebrando tabus se ganha em clarividência

 

Denúncias de fome em Cabo Verde vêm sendo ouvidas num crescendo de há algum tempo para cá. Primeiro surgiram pontual e timidamente em embates políticos e sindicais de pouca monta, depois mais abertas e ousadamente nas redes sociais e mais tarde guindaram-se para a imprensa formal.

Agora parece que finalmente já estão no ponto de serem adoptadas como arma de arremesso político. Como é habitual na política cabo-verdiana quando questões de fundo e de importância são colocadas elas não são realmente discutidas com a seriedade que o respeito pelos factos, a busca da verdade e o foco no interesse geral exigiria. Na maioria dos casos passam simplesmente a integrar o arsenal que se utiliza nos infindáveis confrontos políticos. Exemplo disso é a questão da TACV e dos transportes aéreos que na sessão da Assembleia Nacional desta semana vai ser objecto de mais um inquérito parlamentar dos muitos que quando chega ao fim é como se não fosse e imediatamente se volta ao ponto de partida.

Falar da Fome em Cabo Verde sempre foi um tabu. Como ameaça existencial traduzida nos milhares de mortes que se seguiam às estiagens permaneceu bem viva na memória colectiva da nação. O tabu é não permitir que se confunda com qualquer situação de carestia e dificuldades da vida que conjunturalmente possam existir. Como hoje se reconhece em todo o mundo as fomes na história são feitas pelo homem. Ou seja, em geral não resultam de secas, mas sim de falhas de mercado ou da incapacidade ou falta de vontade dos governos em resolver a situação. Um exemplo disso é que aconteceu em Cabo Verde depois da fome de 1947. A atitude das autoridades mudou no sentido de garantir segurança alimentar e como resultado nunca mais houve fomes apesar das secas que se sucederam até agora.

Insuficiências alimentares em maior ou menor grau existiram e ainda existem em vários segmentos da população que se encontram em situação de pobreza ou de extrema pobreza. Agravam-se com as secas particularmente nas zonas rurais e devem merecer uma resposta compreensiva do governo no que respeita à garantia de rendimentos mínimos, acesso a alimentos e cuidados especiais dirigidos à população mais vulnerável. Num país com défice de produção alimentar e constrangimentos vários devido à insularidade e à pequenez da população, a intervenção do Estado é fundamental para fazer face às imperfeições e falhas de mercado não se excluindo à partida a subsidiação de bens básicos e de certos factores de produção, particularmente quando em presença de choques externos. De facto, nem sempre o mercado é resposta aos problemas e, além de se garantir acesso a alimentos a todos com tais medidas, há que acautelar outras consequências que sendo transversais podem fazer o país entrar numa espiral de alta de preços e salários, incomportáveis a prazo e prejudiciais para a competitividade do país.

A tentação de fazer aproveitamento político da memória das fomes em Cabo Verde é sempre presente. Antes a denúncia de fomes passadas serviu para o PAIGC se reivindicar como único representante das ilhas. Após a independência procurou-se legitimar o regime imposto, atribuindo-lhe o mérito de ter erradicado a fome quando, de facto, se deu a continuidade a medidas para garantir segurança alimentar com o apoio da ajuda internacional. Que tais argumentos já não tinham o peso de outrora viu-se quando nos anos noventa o então presidente da câmara de S. Vicente denunciou fome na ilha e foi tomada como mais uma excentricidade do político do que uma realidade que a ilha estaria a enfrentar. As pessoas sabem o que realmente significa declarar que há fome nas ilhas e a desesperança que tal perspectiva acarreta.

Não é à toa que só ultimamente é que se ousou trazer a questão para o espaço político. Percebe-se a tentação de aproveitar para ganhos políticos a fragilidade criada pela pandemia do coronavírus, ela própria uma ameaça existencial, que provocou uma contracção brusca da economia em cerca de 15% e expôs a precariedade e a vulnerabilidade da população. Ainda por cima nas condições actuais de incertezas de vária ordem e de constrangimentos diversos e de tensões geopolíticas graves em que as pessoas tendem a ficar mais ansiosas e frustradas na expectativa de uma retoma que por ora parece mais distante e menos linear. A verdade é que com isso não se vai conseguir pôr em causa a legitimidade de quem governa, mas vai-se adiar outra vez o debate crucial para o país. E devia ser de interesse de todos saber o porquê da persistência das vulnerabilidades na população, apesar dos milhões de dólares gastos em programas de luta contra a pobreza, e o que impede que se faça as reformas e os investimentos necessários para o país crescer mais e debelar o desemprego.

Varrer problemas para debaixo do tapete e concentrar-se no arremesso político parece ser o desporto nacional favorito. É o que se assistiu mais uma vez nesta semana da Língua Materna. Não há proposta de avanço que se faça para ampliar o conhecimento do crioulo que não é posto no contexto de uma luta identitária contra os que supostamente albergam algum “preconceito linguístico”. A eventual introdução do estudo da língua no 10º ano é por alguns visto logo como oportunidade “para ter um conjunto de alunos do 10º ano que são defensores acérrimos do crioulo e que irão defender o crioulo com unhas e dentes”. Ou seja, quer-se fazer de alunos previamente doutrinados combatentes de uma causa que provavelmente nem é de se ter nas escolas uma disciplina da língua materna, mas de fazer do crioulo a língua de ensino.

Está a ficar cada vez mais evidente que com a insistência na oficialização do crioulo o que realmente se pretende é sua introdução como língua de ensino. Diz-se que a maioria das competências técnicas do país em matéria linguística converge nesse objectivo e só se está à espera que os políticos o aceitem e ajam nesse sentido. De fora parece ficar o sentimento dos pais que todos os anos têm que se preocupar com a qualidade do ensino que os filhos vão receber nas escolas e também a expectativa da sociedade quanto ao retorno que o país vai ter do enorme investimento feito no sector crucial para competitividade e produtividade do país.

A urgência que se quer pôr nesta mudança sem cuidado aparente com o que se iria exigir em termos de preparação dos professores e manuais e outros recursos didácticos para ter resultados e qualidade no ensino ministrado mostra o quanto questões de qualidade e eficácia são sacrificadas em lutas identitárias que depois de uma forma ou outra têm tradução política. Também esbarra com a realidade inultrapassável de se ter o português como língua oficial. Ao roubar às crianças e jovens cabo-verdianas o único espaço, a escola, onde podem ter uma imersão completa na língua portuguesa, porque os professores falam crioulo e várias disciplinas são ministradas também em crioulo, limita-se efectivamente a possibilidade de ganharem o nível desejável de proficiência no uso do português. Certamente que os pais e de entre eles muitos dos “experts” vão querer arranjar alternativas em escolas privadas para os seus filhos como de há muito vem acontecendo. Prejudicados na carreira e na participação cidadã, ficam os que não têm nem meios nem contactos para isso.

Entretanto o país vai caminhando crispado com os confrontos políticos estéreis e sem ser demovido desse caminho já claramente desastroso nem por secas, pandemias ou quaisquer outras ameaças existenciais. Evocar o espectro da fome nestas circunstâncias é mais um fait divers que não altera praticamente nada. Quebra-se o tabu, mas não se ganha em clarividência e vontade para fazer das fomes, insuficiência alimentar e pobreza uma memória longínqua. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1056 de 23 de Fevereiro de 2022.

segunda-feira, fevereiro 21, 2022

O país precisa sair do círculo vicioso

 

Os primeiros 100 dias do presidente da república José Maria Neves têm sido intensos, divididos entre audiências, visitas e encontros para além dos actos oficiais.

Eleito a 17 de Outubro – já antes da investidura a 9 de Novembro, o novo PR com várias iniciativas e em particular com a visita ao Gana para convidar pessoalmente o presidente desse país e presidente em exercício da CEDEAO – começou a sinalizar a pró-actividade que aparentemente vai caracterizar a sua presidência. Originário de um sector político diferente daquele que suporta o governo, vai ser interessante observar como o anunciado activismo presidencial irá funcionar num quadro de um governo de maioria absoluta de forma a que sua magistratura de influência seja vista com efectiva. É a segunda vez que JMN participa num exercício de “coabitação”. A diferença é que desta vez os papéis estão trocados e o seu papel já não é de chefiar o governo do país, mas sim de árbitro e moderador do sistema político.

Diz-se muitas vezes que o poder de influência do presidente da república em sistemas de governo como o de Cabo Verde ou de Portugal é de geometria variável. No dia da vitória do Partido Socialista com maioria absoluta, quando questionado sobre as linhas vermelhas no exercício do poder, o primeiro ministro português António Costa traduziu essa ideia respondendo que “o primeiro garante de que não pisaremos o risco sou eu próprio”. Antes tinha dito que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa não permitiria que o PS pisasse o risco. Quando governos são minoritários ou suportam-se em coligações frágeis, o PR tem campo para um activismo mais pronunciado. Há mais contenção nos casos onde existem maiorias sólidas.

Em Cabo Verde, durante os trinta anos de democracia, só pontualmente as maiorias na governação se mostraram frágeis e, quando aconteceu, viu-se o activismo do presidente mas nem sempre de forma positiva. Curiosamente, o actual governo, apesar de ser expressão de uma maioria absoluta saída das últimas eleições legislativas, deixa por vezes passar a ideia de que não está seguro do seu suporte em momentos cruciais da vida parlamentar. Aconteceu na aprovação da moção de confiança que se seguiu à apresentação do programa do governo e voltou a verificar-se nos dias que antecederam a discussão parlamentar da proposta do Orçamento do Estado. No primeiro caso, a UCID, como que a querer reforçar a maioria necessária para viabilizar o governo, apareceu a oferecer apoio à moção de confiança. No segundo caso, foi a vez do presidente da república, depois do acto inédito do primeiro-ministro e dois ministros irem ao palácio apresentar-lhe o OE, a convocar partidos políticos no que se presumiu ser busca de consensos para garantir a aprovação da lei na sessão parlamentar imediatamente a seguir.

Situações como as verificadas na semana passada no parlamento, a começar pela aprovação da ordem do dia, continuam a dar sinais de fragilidades diversas e de falta de coesão da maioria parlamentar. Existindo já uma intenção de uma presidência mais activa na sua magistratura de influência e num contexto em que o governo na relação com a sua maioria parlamentar deixa passar uma imagem de fragilidade, a questão a saber é se, por um lado, não se está a abrir excessivamente as portas a uma intervenção mais musculada do presidente e se, por outro, não se está a aumentar para além do razoável as expectativas das pessoas quanto ao que o PR pode, de facto, fazer. A verdade é que o presidente não governa, e enverando por caminhos de maior intervencionismo, pode prejudicar no processo a sua credibilidade e a sua função essencial que é de ser árbitro e moderador do sistema político e de ser visto como figura suprapartidária sempre focado no interesse geral e não em interesses particulares.

Estes primeiros 100 dias da presidência decorreram num ambiente político e sócio-económico extremamente desafiante. Viu-se de tudo, desde um surto grave de coronavírus na variante Ómicron, estrangulamentos nas cadeias de abastecimento com impacto nos stocks e preços dos produtos, inflação crescente em todo mundo e já com impacto em Cabo Verde e ainda tensões geopolíticas graves, em particular na Europa, a tornar mais imprevisível o futuro próximo. Com o país na expectativa de retoma económica, mas com a dura realidade da dívida pública e da perda de receitas e com muitas incertezas pelo meio a tarefa que se põe ao conjunto do país não se afigura nada fácil. É da maior importância que se possa contar com a contribuição do conjunto da classe política para que, sem prejuízo da democracia e do pluralismo, se trabalhe para manter os equilíbrios, a credibilidade e sustentabilidade das instituições, cultivar a serenidade perante dificuldades incontornáveis e focar o país no que deve ser realmente prioritário.

O facto de o novo ciclo eleitoral estar ainda relativamente distante podia ser útil para no entrementes se dar passos decisivos na consolidação de uma cultura democrática em que no debate político a utilidade do dissenso não é posta em causa pela necessidade de consensos em questões essenciais. Pelo caracter singular da sua função, o PR pode desempenhar um papel fundamental nesse processo, construindo pontes, como se propôs fazer e tem feito, ouvindo pessoas, recebendo organizações e visitando instituições numa autêntica roda-viva nos últimos 100 dias. Um outro papel seria de contribuir para a contenção da chamada crise das democracias e para pôr um travão a tentações populistas, reafirmando os direitos fundamentais dos cidadãos e sendo frontal e directo na defesa da independência dos tribunais, da autonomia do ministério público e do princípio da subordinação do poder militar ao poder civil constitucionalmente legitimado.

Essencial ainda será manter o ambiente adequado para o diálogo aberto entre as partes, sejam elas correntes de opinião políticas ou filosóficas, ideológicas ou expressões estéticas e culturais. Sendo o PR o representante da república, ou seja, o presidente de todos os cabo-verdianos não faz muito sentido que se torne promotor e mentor principal de partes num debate ainda em aberto. Aliás, a Constituição (art. 50º-2/c) explicitamente proíbe dirigismo estatal do ponto de vista filosófico, ideológico ou estético no sistema educativo. É por isso contranatura o patrocínio que se solicita ao PR para causas que relembram o culto de personalidade próprio de regimes totalitários como é o caso do culto de Cabral que se instila nas crianças e jovens em todos os níveis do sistema de ensino em Cabo Verde.

Causas divisivas da Nação não deviam merecer qualquer tipo de preferência de quem é o representante da unidade nacional. A democracia cabo-verdiana ainda é nova e precisa resgatar-se dos condicionamentos impostos à nação nos anos da ideologia do partido único. Liberdade intelectual e diálogo de ideias sem interferências e preferências do Estado é fundamental para que isso aconteça na tranquilidade e com ganhos para todos. Num mundo em que a capacidade de criar e de inovar é fundamental para a criação de riqueza e para o desenvolvimento não se pode manter a reprodução de ideologias bolorentas cerceadoras do espírito de iniciativa e autonomia e também da assunção de riscos.

Na condição actual não estranha que Cabo Verde, segundo o último índex da democracia, continue a ser uma democracia imperfeita (37º lugar). Falha precisamente na participação onde só pode dar o salto com uma sociedade civil autónoma, liberdade intelectual e sem dirigismo ideológico do Estado. O país precisa sair do círculo vicioso que o limita nas suas liberdades, esvazia o debate e constitui um entrave ao seu desenvolvimento. Cabo Verde agradeceria se, passados os 100 dias, o resto do mandato do PR fosse nesse sentido.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1055 de 16 de Fevereiro de 2022.

segunda-feira, fevereiro 14, 2022

Dignidade, solidariedade e confiança

 A última vaga do coronavírus em Cabo Verde protagonizada pela variante Ómicron parece estar a perder impulso há algumas semanas e o número de novos casos de infecção tem diminuído consideravelmente. O mesmo vem acontecendo em vários países e nos diferentes continentes.

Passado o momento de grande mobilização e também de ansiedade para responder à ofensiva do que veio a revelar-se uma variante do Sars-cov2 muito contagiosa, mas menos letal, já há países que a exemplo da Dinamarca diminuíram extraordinariamente as restrições impostas e sinalizaram que a partir de agora vão entrar num quadro de normalidade de convivência com o vírus. Um quadro que não será muito diferente do que existe para a gripe com a sua sazonalidade, com o risco acrescido de doenças respiratórias e a preocupação especial com os mais idosos.

Acredita-se que é possível ir por essa via porque hoje com as taxas elevadas de vacinação acompanhadas de “boosters” anuais, a disponibilidade de remédios capazes de atenuar os efeitos dos sintomas e de combater complicações da covid-19 e também com a instalação de sistemas de detecção e de resposta rápida a surtos já é possível enfrentar com sucesso qualquer eventualidade. Um senão poderá vir do aparecimento de mais uma variante que se mostre igual ou mais contagiosa que a Ómicron e ao mesmo tempo mais letal. Um outro senão viria do caso de persistir resistências à vacinação no país e de no resto do mundo por escassez de vacinas ou por deficiências diversas o coronavírus continuar a ter na população não vacinada a possibilidade de fazer mutações que lhe permitiriam provocar novos surtos de reinfecções.

Em qualquer dos casos uma resposta rápida e vigorosa das autoridades e da sociedade e das pessoas será fundamental para se evitar o regresso aos confinamentos, lockdowns e outras medidas que tão profundamente têm prejudicado a economia, as relações sociais, a vida cultural e mesmo a saúde mental de muita gente em todo o mundo. O problema é saber quais é que seriam os contornos certos de uma eventual resposta a mais uma emergência pandémica. A experiência dos diferentes países nestes dois anos de pandemia enfrentando vagas sucessivas de variantes Alfa, Delta e Ómicron sugere que aparentemente ninguém tem a fórmula certa.

Acontece muitas vezes que se é-se bem-sucedido no combate a uma vaga, já na vaga seguinte não se consegue conter o aumento de casos e mitigar os efeitos da pandemia apesar dos avanços feitos na prevenção, nos testes e nos cuidados médicos. O maior exemplo da complexidade do problema é o que se passa nos Estado Unidos da América, o país cujos indicadores de segurança sanitária colocavam em primeiro lugar no mundo para responder a uma ameaça global do tipo que se verificou com o Sars-cov2. Paradoxalmente tem sido o país onde aconteceram mais casos de contágio e mais mortes devido à covid-19. Importa, pois, saber com mais alguma certeza o que fazer para além de aconselhar o uso de máscaras, promover vacinas, determinar confinamentos e tomar outras medidas para que com alguma eficácia se enfrentar epidemias futuras.

Um estudo publicado na revista científica The Lancet referenciado num artigo do jornal New York Times de 6 de Fevereiro procura elucidar as razões por detrás dos resultados do combate ao coronavírus tão díspares entre os diferentes países. Ajustando os dados de infecções e de mortes recebidos, considerando várias variáveis como estrutura etária, PIB per capita, densidade populacional, obesidade, existência de um serviço nacional de saúde, número de camas, infecções anteriores de coronavírus, verificou-se que embora haja uma correlação clara entre a taxa de letalidade entre os infectados (IFR) e a idade da população, em relação às outras variáveis não se nota impacto significativo nem no número de infecções, nem na taxa de letalidade. Curiosamente, os resultados do estudo apontam que o que parece ter realmente impacto na capacidade de controlo da pandemia e mitigação dos seus efeitos é a confiança no governo e confiança interpessoal. Para vários autores e comentadores a tragédia da covid-19 na América é o exemplo paradigmático do que acontece quando há disfunções na governação e perda de confiança nas instituições.

Ainda segundo esse estudo publicado na revista The Lancet “para promover a resiliência na resposta e recuperação de desastres, deve-se aprofundar “a confiança dentro e entre as comunidades, desde os desfavorecidos económica e socialmente até aqueles em posição de autoridade”. Essa é uma recomendação com uma pertinência muito especial para Cabo Verde. A pandemia deixou o país extremamente endividado, com uma população cada vez mais dependente do Estado, empresas fragilizadas e perspectivas de retoma sem muitas certezas considerando as dificuldades do sector do turismo, a fraca diversificação da economia e conjuntura internacional marcada pela inflação e pelas perturbações nas cadeias de abastecimento. Entretanto a crise sanitária ainda não terminou e, por razões várias de desconfiança natural ou induzida o ímpeto das vacinações tem diminuído em particular para a terceira dose que ainda só chegou aos 10%, não obstante a disponibilidade de vacinas. Com uma parcela significativa da população ainda por vacinar aumentam as incertezas porque fica sempre o perigo de reinfecções e no caso de surtos pode haver medidas de contenção que acabam por ter impacto na actividade económica.

Como o estudo referido aponta, é fundamental o investimento no capital social para se construir a confiança nas instituições e crucialmente também para gerar a confiança interpessoal e enfrentar a situação extraordinária que o país vive actualmente. De facto, sem isso não se tem a solidariedade necessária para se pôr de lado tacticismos político-partidários, protagonismos pessoais, interesses corporativos e de grupos que levam a polarizações excessivas e tornam legítima as pretensões de todos e cada um de procurar tirar a sua parte sem preocupação com o bem comum. E sem espírito solidário não é possível focar no essencial que neste momento é vencer a crise sanitária e económica e social, definir prioridades para o futuro, fazer o melhor dos recursos existentes e lançar o país num outro caminho que privilegie o conhecimento, o empreendedorismo e um engajamento com o mundo que contribua para a criação de riqueza no país e para a prosperidade de todos.

Infelizmente vários sinais no país sugerem que se está a ir na contramão. Há que arrepiar caminho e não permitir que descontentamentos, frustrações e ressentimentos das pessoas levem à descredibilização das instituições. Uma especial responsabilidade cabe aos dirigentes das instituições que não poucas vezes contribuem com omissões e protagonismos para esse processo de descrédito. Fazer da “dignidade a pedra angular do nosso compromisso, de nossa paixão cívica”, como disse o presidente italiano Mattarella no seu discurso recente de tomada de posse, pode ser a via a trilhar para construir confiança nas instituições e nas relações interpessoais, indispensável para se combater a crise da democracia e a crise social e ainda reacender a esperança no futuro.

Humberto Cardoso 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1054 de 9 de Fevereiro de 2022.

segunda-feira, fevereiro 07, 2022

Omissões criam desconfiança

 

Notícias recentes que jornalistas e jornais foram constituídos arguidos num caso de violação do segredo de justiça têm sido motivo de apreensão de vários segmentos da população.

Pelos órgãos de comunicação social, pelas redes sociais e nos encontros informais multiplicam-se debates de peritos e conversas simples de pessoas sobre como entre outros aspectos conciliar o direito de informação com o respeito pelo segredo de justiça. A atenção do público que a questão vem merecendo não se deve simplesmente ao facto o de se estar ou não a atentar contra a liberdade de imprensa. A razão principal é que parece dar corpo à suspeição de que se quer tirar o foco de um assunto candente e sensível para o colocar numa outra questão que é importante, mas acessória.

A alegada violação do segredo de justiça pelos jornalistas consistiria no facto de se ter avançado elementos tirados de um processo de investigação judicial em curso lançando uma nova luz sobre a morte violenta de uma pessoa há sete anos atrás no âmbito de uma operação policial. Até à publicação dos relatos na imprensa, de acordo com comunicado do Ministério Público ninguém tinha sido constituído arguido e aparentemente nem chamado a testemunhar. Naturalmente que a generalidade das pessoas fica perplexa ao verificar que o MP, que não se ouviu durante vários anos em que ponto se encontrava a investigação do caso da morte do indivíduo, agora se mostra muito activo em descobrir como se processou a fuga de informações. Mais perplexas ainda ficam quando se deixa passar a impressão que o foco estaria nos jornalistas e não em quem seria óbvio, ou seja, nos envolventes na investigação e na instrução do processo.

A verdade é que o que aconteceu há sete anos atrás precisa ser esclarecido de uma vez por todas. Acusações directas publicamente feitas contra um membro do governo durante anos seguidos nas redes sociais e em artigos de jornais não podem deixar de ser investigadas e clarificadas, particularmente quando vêm de personalidades que ocuparam altos cargos na polícia. Mais urgente se torna esclarecê-las se são aventadas em sede de debate parlamentar e suscitando suspeições de todo o tipo acabam por contribuir para a degradação do discurso político e a descredibilização das instituições. Um maior protagonismo do MP se esperaria na linha do que em 2017 o então presidente da república Jorge Carlos Fonseca disse na tomada de posse do novo PGR: o Ministério Público “está colocado no vértice da pirâmide de fiscalização da legalidade”, e espera-se “coragem de poder desagradar e causar incómodos, (…) mesmo em relação àqueles que pensam estar acima dela, julgando que as suas acções não estão submetidas à sindicância”.

Infelizmente não é esse o sentimento que muitos têm em relação ao funcionamento global da justiça em Cabo Verde. Não se vê que ela seja suficientemente eficaz para em tempo útil clarificar situações, dirimir conflitos e proteger direitos fundamentais. As deficiências e omissões são geralmente maiores quando se trata de acusações de abusos de autoridade, de violência policial e de mortes em encontros com a polícia. Demasiados casos ficam por esclarecer, não se vê investigação de falhas que depois leve à introdução de boas práticas, nota-se excesso de corporativismo que impede transparência na relação com o público e sente-se que a falta de cooperação entre as forças, apesar de identificada há muito, ainda não foi ultrapassada prejudicando a eficácia da investigação criminal. Aliás, os últimos acontecimentos que levaram à constituição de profissionais da PJ como arguidos e que deixam entender que há tensões entre os diferentes órgãos da polícia criminal não augura nada de bom para o sistema.

Por isso focar nos jornalistas e no eventual papel que tiveram na violação do segredo de justiça quando há tanta coisa urgente a rever e a resolver não pode deixar de causar mal-estar na sociedade. Em todo o mundo democrático depara-se com situações em que se confrontam a liberdade de imprensa com outros direitos como o direito à honra e à imagem e também com a necessidade de se salvaguardar o segredo de justiça para assegurar investigação e instrução criminal. Um outro confronto é com o segredo do Estado em que é preciso ponderar o direito de informar e de ser informado com questões de segurança do Estado. Mesmo em países onde há um forte balanceamento em direcção à protecção do direito de informar como nos Estados Unidos na América acções judiciais são dirigidos contra jornais e jornalistas como no célebre caso dos “Papéis do Pentágono” em que se procurava evitar a sua publicação no Washington Post e no New York Times.

Em qualquer das circunstâncias são sempre os tribunais a decidir caso a caso qual dos direitos deve prevalecer, sendo certo que a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa em geral acabam quase sempre por prevalecer, como se verificou no caso referido. Quando, porém, se deixa instalar um clima de desconfiança em que as pessoas se sentem compelidas a ver em certas decisões “vingança dos magistrados ou do sistema de justiça”, tudo fica mais complicado. Casos que podiam ser com tranquilidade dirimidos pelos tribunais são exacerbados, dão origem a denúncias internacionais e as pessoas alvo dessas acções judiciais sentem-se genuinamente intimidadas pessoalmente e no exercício da sua profissão, o que não devia acontecer num Estado de Direito democrático.

A experiência dos últimos tempos que muitos consideram de crise das democracias tem mostrado que o mesmo tipo de desconfiança e de descredibilização das instituições que para gáudio de alguns se vê afectar os partidos políticos, o parlamento e a classe política em geral, nem sempre fica por aí. Já há vários exemplos que tendem avançar e atingir o sistema de justiça ameaçando destabilizar os alicerces do Estado de Direito democrático. Quem também não fica incólume neste processo de perda de confiança nas instituições é a imprensa. Como se viu claramente de casos como o da presidência de Trump e de Bolsonaro a liberdade de imprensa é um dos alvos a abater escolhidos por todos os aspirantes a autocratas que cavalgam as ondas de desconfiança e de cinismo que têm levado ao enfraquecimento da democracia.

Para os media chamados de “fake news” por esses autocratas na tentativa de as denegrir é importante perceberem também o papel que têm desempenhado em alimentar essa desconfiança e o cinismo das pessoas. Há talvez na sua actividade que ir além das razões de audiência e de outros interesses para se poder ultrapassar o estado actual de falta de confiança. Nesse sentido é preciso garantir a todos e a todo momento o direito de informar, de se informar e de ser informado. O comprometimento com uma cidadania plena que se realiza num ambiente sócio-político suportado por instituições sólidas e credíveis é fundamental para se evitar a erosão das liberdades. Mesmo nos piores momentos das democracias, este não é combate que se deve abandonar. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1053 de 2 de Fevereiro de 2022.

sexta-feira, janeiro 28, 2022

País refém de uma história contada

 

A propósito das controvérsias que sempre aparecem na chamada Semana da República entre os dias 13 e 20 de Janeiro, o Presidente da República, José Maria Neves, disse que “não temos cumprido uma grande promessa da democracia que é a educação para a cidadania”. Acrescenta ainda que “quem quer ser cidadão tem de procurar conhecer a história, sobretudo, a contemporânea do seu país”. A falha detectada pelo PR tem pelo menos duas causas mais visíveis.

A primeira é que o Estado não se esforça o suficiente para passar para as pessoas, para a sociedade e em particular para as novas gerações os princípios e valores universais a começar pelo respeito pela dignidade humana e o direito à liberdade, que estão plasmados na Constituição de 1992, nem a importância do pluralismo, do princípio da separação de poderes e da independência dos tribunais no funcionamento pleno da democracia. Em consequência, fica por desenvolver adequadamente a vontade de participação, autonomia de pensamento e acção, auto-responsabilidade e o espírito de pertença à comunidade que se espera de cidadãos plenos. Pelo contrário, põe-se demasiado ênfase em alegados actos libertadores e heróicos de indivíduos e grupos, revoltas e ressentimentos do passado e manifestações de um paternalismo “salvítico” que deixa todos gratos e dependentes do Estado e na condição de cidadãos menores. 

A outra causa tem a ver com a disputa permanente no país entre a “história contada” e a “história vivida”, entre factos e mitos, entre a procura da verdade e as tentativas de mascarar a realidade fazendo apelo a sentimentos, a lealdades antigas e a demonização do outro. De facto, a única história que realmente se é permitido conhecer não é a que aconteceu nas ilhas, mas a que supostamente teria passado nas matas da Guiné e em Conakry. Uma história perpassada por narrativas carregadas de heroísmo, de generosidade e de boas intenções que depois com as independências e o poder conquistado não se viu correspondência com a realidade dos regimes implantados tanto na Guiné como em Cabo Verde. Os seus protagonistas surpreenderam toda a gente com a perda da liberdade, a arrogância de “melhores filhos” no exercício do poder e a visão curta de quem sempre que foi dado a escolher entre desenvolvimento das pessoas e do país e o seu regime político ditatorial invariavelmente optava pela manutenção do poder. A outra história, aquela vivida nas ilhas e que foi da ditadura, de oportunidades perdidas e de vidas amarfanhadas pela falta de liberdade, pela inibição de iniciativa individual e pela sujeição a ideologias simplistas e ultrapassadas, essa durou quinze anos, mas é como se não tivesse acontecido. 

É uma história praticamente ignorada pelas instituições, pelas escolas, pela comunicação social pública e até pelos estudiosos e académicos. Só se estudam acontecimentos até à independência e depois da chamada abertura política em Fevereiro de 1990. São os momentos em que os “heróis” entram em cena, num caso para dar ao povo a independência e noutro para, em mais um acto de generosidade, oferecer liberdade e democracia. No meio fica um hiato que ninguém quer transpor com receio de ferir as susceptibilidades dos auto-indigitados “Comandantes” (ver decreto-lei nº 8/75 e decreto nº 18/80) que ocuparam os lugares-chave do poder durante a ditadura. Mesmo assim, nunca estão satisfeitos e todos os anos pelo 5 de Julho e pelo 20 de Janeiro repetem que a história da luta não é estudada suficientemente nas escolas e que os ensinamentos da Cabral não estão a ser seguidos. É uma pressão que vai continuar mesmo que hipoteticamente um número de pessoas próximo, dos 100% se submetesse à narrativa heróica, declarando “estar em paz com a história”. 

Com esse tipo de pressão, feita com o beneplácito do Estado e das suas instituições, dificilmente vai-se ter o cidadão pleno que o PR diz que precisa conhecer a história contemporânea do seu país. Não se ajuda, porém, nesse conhecimento quando se procura transpor o hiato dos quinze anos, durante os quais a aplicação dos ensinamentos de Cabral pela organização por ele criado, o PAIGC, e por dirigentes por ele formados resultou em sucessivas tragédias na Guiné-Bissau e em um Cabo Verde sem liberdade e economicamente estagnado, e se propõe elegê-lo “como o símbolo maior dessa luta pela liberdade e dignidade da pessoa humana e pela igualdade”. Aí Pedro Pires tem mais razão ao apresentá-lo como personalidade que “deu tudo o que tinha a favor da libertação do país”. E é libertação porque liberdade e dignidade individual, que certamente não é reconhecida quando em vez de pessoas se vêem massas populares e se define a pertença à comunidade política com base em concepções do tipo o povo é quem está com o partido, são princípios e valores que só seriam conquistados 15 anos depois pelos homens e mulheres das ilhas. 

Pelas reacções de diferentes personalidades durante a chamada Semana da República vê-se claramente que mais de trinta anos depois da instalação da democracia a “história contada” ainda se sobrepõe à “história vivida” mesmo quando colide frontalmente com os princípios e valores constitucionais. Instrumental nisso tudo tem sido precisamente as instituições do Estado e particularmente os órgãos de soberania. Resistências várias impediram durante 17 anos que o 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia, fosse comemorado pela Assembleia Nacional, a casa da pluralismo e a sede do contraditório na democracia. Agora já há quem queira comemorar o 20 de Janeiro com uma sessão especial da Assembleia Nacional quando se sabe pela experiência de outras democracias que comemorações da independência, da república e da memória, porque momentos de unidade e exaltação nacional, normalmente são presididas pelo presidente da república. A guerrilha continua como que para demonstrar o quanto a iniciativa da semana da república é um fiasco na tentativa de reconciliação à volta das datas históricas. 

Nos últimos dias a colisão de narrativas históricas com a Constituição centrou-se sobre o que devem ser as comemorações do Dia das Forças Armadas (FA). O Governo na pessoa da Ministra da Defesa, em linha com os ditames da Constituição de 1992, realçou a função constitucional das forças armadas de assegurar a defesa nacional, a sua subordinação ao poder civil, o seu serviço à nação e o seu apartidarismo e neutralidade política. Os “comandantes” vieram à liça reivindicar a reposição da história das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP) e o papel que teriam tido na sua origem. 

O problema é que as FARP que sempre foram concebidas como braço armado do partido, como está explícito no texto da proclamação da Independência e confirmado pela voz autorizada de Aristides Pereira em 1985 ao dizer que “a acção política e ideológica constitui uma componente essencial no trabalho das forças de defesa” e ter-se referido ao facto de as FARP, serem integradas, não por militares, mas por militantes armados”, deixaram de existir com a entrada em vigor da Constituição a 25 de Setembro de 1992 dando lugar às FA. Não faz, portanto, qualquer sentido referir-se a papéis ou missões passadas que conflituam directamente com as funções constitucionais actuais. 

Mesmo na questão do Dia das Forças Armadas nota-se a conveniência e o desejo de auto glorificação. Até 1987 o dia das FARP comemorava-se a 16 de Novembro em referência à origem das forças em 1964 na sequência do Congresso de Cassacá, assim como é ainda comemorado pelas FARP na Guiné-Bissau. O objectivo então era identificarem-se com a luta na Guiné. Em 1988, oito anos depois do golpe na Guiné e com o poder seguro em Cabo Verde acharam que podiam fazer das suas pessoas a referência do braço armado do partido. Com um simples decreto (decreto nº 5/88) criaram um novo Dia das FARP (15 de Janeiro de 1987). Agora acham que as FA não podem ter outra referência mais consentânea com a sua função actual. É mesmo patético. 

É evidente que o país não deve continuar refém de uma narrativa que glorifica pessoas responsáveis por um regime ditatorial, que promove o culto de personalidade em plena democracia e que pode causar instabilidade institucional pelos seus persistentes conflitos com os princípios e valores constitucionalmente estabelecidos. Os titulares dos órgãos de soberania devem lembrar-se todos do seu juramento de respeitar e cumprir a Constituição da República. Estar ao serviço do povo e não de quais outros interesses é a via certa para a construção de uma vida de liberdade, paz e prosperidade para todos.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1051 de 19 de Janeiro de 2022.

segunda-feira, janeiro 24, 2022

Diversificar não é disparar para todos os lados

 

​O Banco Mundial no relatório sobre a Situação e Perspectivas Económicas Mundiais previu para Cabo Verde um crescimento económico de 4% do PIB para 2021 e 5,2% e 6,1 % para respectivamente 2022 e 2023.Se se considerar que em 2020, no ano de pandemia, houve uma recessão de 14,8 % deve-se imaginar que ainda vai levar algum tempo para o país se recuperar da violenta contracção da economia e retomar a partir do que já tinha atingido em 2019.

Qualquer previsão está condicionada por incertezas várias que incluem as resultantes de tensões internacionais, estrangulamentos nas cadeias de abastecimento e o ressurgimento da inflação. Outrossim, a dependência actual do turismo enquanto motor da economia torna uma retoma económica do país mais complicada. É o sector mais afectado pelas incertezas derivadas da pandemia e condiciona directamente os sectores de viagens e de hotelaria que comandam milhares de postos de trabalho e têm um forte efeito de arrastamento de outros sectores importantes da economia nacional.

Essa situação já de si mesma preocupante é agravada pelos condicionalismos macroeconómicos e macro fiscais colocados pela dívida pública de 160,9% do PIB segundo o BCV e pelos défices orçamentais impostos pelas despesas extraordinárias necessárias para financiar o sistema de saúde e conter o impacto da pandemia da covid-19 no rendimento das pessoas e na actividade das empresas. Sem o turismo e sem o crescimento de uma procura externa de bens e serviços fica difícil gerar um fluxo de receitas suficiente para fazer face ao serviço da dívida externa e realizar os investimentos que vão sendo necessários para combater o vírus e os investimentos indispensáveis para a retoma.

A tentação de aumentar os impostos também não é o melhor caminho mesmo que traga algum alívio para o Estado. No fim do dia, sempre acaba por prejudicar as empresas e também os consumidores. Um esforço maior podia ser posto na atracção do investimento externo, mas tirando o sector do turismo à base de sol e mar aparentemente o país não tem muito a oferecer. Não melhorou como devia a sua competitividade, não valorizou adequadamente o seu capital humano e não fez as reformas da administração pública que seriam necessárias para o Estado ser visto como facilitador da actividade económica e não como um factor de ineficiência contribuindo significativamente para os custos de contexto.

Na encruzilhada difícil que se vive não faltam vozes nacionais, internacionais e institucionais que clamam pela diversificação da economia como solução para os males do país. Aparentemente esquece-se que esse clamor vem de longe e no passado recente tomou várias formas em projectos de milhões que propuseram clusters, hubs e plataformas em vários sectores designadamente financeiro, transportes aéreos, transbordo, agronegócios, energias renováveis e tecnologias de informação e comunicação.

Alguns não resultaram, outros ficaram aquém dos objectivos traçados, mas todos contribuíram para aumentar a dívida externa e deixaram na sua esteira frustrações e ressentimentos. O estranho é que sem se deter para uma análise compreensiva do que correu mal nas tentativas anteriores ainda se quer continuar a fazer as mesmas apostas. A diferença é que aparecem com outros invólucros como economia azul e economia verde e no quadro de políticas de contenção dos efeitos das alterações climáticas e de aumento da capacidade de resiliências a choques externos. É aí que estão agora os milhões.

Duvidoso é se desta vez, a incorrer em custos como os de 20 mil contos em cursos de coding com a duração de 14 semanas para 22 jovens (post no facebook do Vice PM) se vai conseguir que o digital chegue a 25% do PIB como prometeu o Primeiro-Ministro em discurso recente. Os falhanços anteriores com muitos outros projectos deviam convidar a uma serenidade e ponderação no que se deveria fazer para não repetir erros do passado e para aumentar as chances de sucesso de forma a assegurar sustentabilidade dos projectos para além do seu tempo de implementação. O que se vê mais nessa procura de diversificar a economia parece mais um exercício de “disparar para todos os lados” sem uma definição de prioridades, sem o encadeamento das acções, sem a mobilização e adequação do capital humano e sem uma preocupação central em identificar nichos de mercado, avaliar o seu potencial e traçar estratégias de exploração e desenvolvimento.

Quer-se, por exemplo, que a produção nacional capture uma fatia significativa do que em produtos agropecuários se consomem nos hotéis nas ilhas turísticas do Sal e da Boa Vista. É de se perguntar se durante o período de crise pandémica se investiu para qualificar potenciais fornecedores de acordo com os standards de qualidade exigidos. Se quem já investiu nisso, como incentivo, foi ressarcido do que já gastou, no que se pode considerar uma actividade de exportação. Aliás, nessa linha de ideias devia haver um pacote de incentivos para exportar “cá dentro” considerando que a procura é realmente externa, tende a expandir-se, criando mais emprego local, e resulta num saldo positivo de divisas. Diversificar a economia devia passar por criar linhas de conexão entre várias actividades empresariais num esforço de estruturação da economia nacional, de unificação de mercado e de identificação e atracção de investimento externo que, para além de capital e know how, também trouxesse mercado.

Como as duas últimas décadas demonstram, não é indo atrás de projectos propostos por outros ou de financiamentos aparentemente concessionais que se vai conseguir diversificar a economia e tornar o país sustentável e mais resiliente aos choques externos. O que se vê hoje, na dependência excessiva do turismo, nas persistentes vulnerabilidades das populações e no peso crescente da dívida pública, é o resultado do país não encarar devidamente os seus problemas fundamentais, não debater democraticamente soluções apresentadas e não mobilizar as vontades para dar os passos difíceis, mas essenciais para se construir a prosperidade. Prefere-se ir atrás dos projectos e dos milhões anunciados quase todos os dias na rádio e na televisão. Dão para anunciar com pompa e circunstância, mas não parece que o aproveitamento que deles foi feito tenha trazido maiores certezas para o futuro. Qualquer ilusão a esse respeito foi desfeita pela pandemia.

Governar não deve significar alimentar ilusões mesmo que tragam milhões. Nem também reproduzir mitos de salvação do povo que andam à volta da chuva, da emigração ou mesmo do dinheiro de Angola da canção “Oi Teresinha”. Pior ainda, induzir sentimentos de vitimização a partir de afirmações como “a escravatura é vivência fundante dos cabo-verdianos” que se supõe só podem servir para tentar conseguir alguns milhões de compensação por atrocidades passadas. Governar para se chegar à diversificação da economia que o país precisa deve, pelo contrário, primar-se pelo realismo que descarta mitos e ideologias ultrapassadas, pelo pragmatismo que funciona com resultados concretos e sustentáveis e pela procura do interesse colectivo que reforça o sentido da cidadania, a auto-estima e a confiança no futuro. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1051 de 19 de Janeiro de 2022.

sexta-feira, janeiro 14, 2022

Relembrar o 13 de Janeiro em tempos de crise da democracia

 

Ontem foi o trigésimo primeiro aniversário do 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia. Uma data simbólica que representa na mente de todos os caboverdianos o momento da rejeição efectiva do regime de partido único implantado após a independência nacional, 15 anos atrás.

Nas primeiras eleições livres e plurais realizadas no Cabo Verde independente não ficou margem para dúvida qual era a escolha do povo. Com uma maioria de mais de dois terços dos votos, a opção pela liberdade e a democracia foi a tal ponto clara e expressiva que o governo que vinha do outro regime prontamente admitiu os resultados e, em consequência, demitiu-se logo no dia seguinte.

Cabo Verde nesse dia juntou-se a vários outros países nos diferentes continentes que, desde há alguns dois ou três anos atrás e, em particular, desde a queda do Muro de Berlim, em Novembro de 1989, vinham-se libertando da tirania nas suas roupagens autoritárias e totalitárias. Nesses anos de euforia democrática multiplicavam-se quase todos os dias o número de países e povos que, como Cabo Verde, a 13 de Janeiro de 1991, abraçavam os princípios e valores universais de respeito pela dignidade humana e de reconhecimento da inviolabilidade e inalienabilidade dos direitos humanos como fundamento de toda a comunidade humana, da paz e da justiça. Hoje Cabo Verde é referenciado mundialmente como uma democracia plena. O trabalho realizado na construção das instituições democráticas e do estado de direito democrático é real e digno de apreço.

Não se pode é deixar de chamar a atenção para as insuficiências ainda existentes seja no funcionamento defectivo de algumas instituições que estão muito aquém da assunção efectiva das suas funções e competências no quadro do sistema democrático; seja, também, nas ineficiências que o Estado se mostra incapaz de ultrapassar aumentando os custos de contexto e gerando desperdícios de recursos físicos e humanos; seja, ainda, nas dificuldade encontradas em se afirmar uma sociedade civil autónoma em relação ao Estado e em conseguir a diminuição de vulnerabilidades das populações deixando-as expostas a esquemas de dependência estatal. É um facto que hoje, mais de trinta anos depois da queda do muro de Berlim e do 13 de Janeiro, as democracias no mundo inteiro estão a expor as suas fragilidades e não são poucos os casos em que se vem notando uma regressão.

Em alguns países o definhamento político é consequência de derivas populistas. Em outros, resulta de opção por práticas da chamada democracia iliberal. Noutros ainda vem na esteira do desafio aberto de potências autocráticas regionais hostis à existência de democracias funcionais nas suas imediações. Independentemente das razões, é de suma importância compreender que as democracias estão em crise e que precisam de um novo vigor no seu núcleo essencial de princípios e valores para que o que se conquistou a grande preço há trinta anos atrás não se perca em mais uma miragem que só pode acabar por desembocar em menos liberdade, menos justiça e menos prosperidade. Também é preciso compreender que hoje ninguém está imune aos fenómenos que já se sabe de experiência que podem conduzir à morte das democracias. Há dias, 6 de Janeiro, completou um ano que a democracia americana esteve sob assalto no ataque violento de populares ao Capitólio, em Washington, para impedir a pacífica transferência de poderes presidenciais com incitamento e conivência do então presidente dos Estados Unidos e candidato vencido nas eleições.

Em Cabo Verde, como em outras paragens, vários factores trabalham para enfraquecer a democracia, descredibilizar as suas instituições e instigar o cinismo em relação à vida pública que enfraquece a confiança nos seus princípios e valores. Para além dos “culpados do costume” designadamente as redes sociais, os populistas assumidos e os políticos anti-sistema, quem paradoxalmente tem um papel neste estado de coisas é a própria classe política pertencente ao chamado arco do poder ou da governação. Pela forma como demonizam o outro para impedir debate político, fogem à responsabilidade quando chamados a prestar contas e condicionam a sua actividade política a impactos eleitoralistas mesmo que as eleições estejam a léguas de distância, alienam as pessoas da política. No processo causam frustração e ressentimentos e acabam por entregar as pessoas, que não se sentem representadas e com voz nos assuntos do país, nas mãos de populistas e de políticos sem escrúpulos e de fortes tendências autocráticas.

Acontecimentos recentes ilustram bem qual é a forma de actuação da classe política caboverdiana e das instituições e como a insistência em certas práticas fragilizam a democracia. O grave problema da dívida pública é tomado como mais um campo de batalha, onde todas as tácticas são legítimas e o que interessa é identificar “o outro” e demonizá-lo para melhor ser ouvido e possivelmente conseguir novos apoiantes ou fazer soar com mais estrondo a claque da bancada respectiva. Há problemas reais de receitas limitadas, despesas rígidas, ineficiências custosas e investimentos aquém do desejável que só podem ser resolvidos via negociações envolvendo os dois grandes partidos.

É facto que depois de 2001 nenhum deles sozinho no governo e com maioria absoluta conseguiu levar adiante reformas essenciais do Estado e conter interesses corporativos e outros que com as suas reivindicações tendem a onerar o Estado sem que se notem ganho ou retorno apreciáveis e sustentáveis. Potencial para acordos ou pactos existem como em várias ocasiões se provou e recentemente se viu na elevação do nível da dívida interna. Facilmente, porém, se esquecem desses momentos para voltar à crispação habitual e em troca obter ganhos tácticos. Pena que a mensagem do Presidente da República sobre o OE 2022 não tenha sido tomada como um convite para uma actuação conjunta multipartidária para se proceder a uma reestruturação do Estado de modo a deixá-lo mais bem preparado para enfrentar o défice orçamental e a dívida pública e com meios disponíveis para fazer os investimentos que se impõem no combate contra a pandemia e na preparação do futuro pós- pandemia.

Um outro ponto de divergência grave foi à volta das suspeições lançadas contra o ministro de Administração Interna. O assunto que há anos anda nas redes sociais e tem sido pontualmente ventilado em artigos de jornal e até em intervenções parlamentares foi catapultado para o centro da atenção pública na sequência do comunicado do Ministério Público (MP). Querendo anunciar abertura de instrução criminal por indícios de crime de violação do segredo de justiça logo após a publicação de uma notícia no Santiago Magazine, o MP acabou por confirmar um auto de instrução aberto sete anos atrás na sequência da morte de um indivíduo no âmbito de uma operação policial. O comunicado acrescentava ainda que não tem ninguém constituído arguido, nem foi convocado o actual ministro para fazer declarações. Como era de prever, o assunto chegou imediatamente ao Parlamento via uma declaração política do PAICV.

Ao longo dos trabalhos, nada ficou esclarecido e os partidos envolveram-se no tipo de troca de argumentos que bloqueiam qualquer debate sério e reafirmam o princípio de que em vez da busca da verdade deve-se ficar pela conveniência de cada um, sem preocupação com a realidade e os factos. Nem a existência de indícios de que por detrás dessas fugas de informação poderão estar a degladiar-se interesses no interior de instituições vitais para o país como as da polícia criminal conseguiu baixar os ânimos no parlamento e abrir caminho para um debate mais sereno e profícuo. O Governo, no seu comunicado posterior, limitou-se a apoiar o ministro e as instituições envolvidas, mas nada esclareceu quanto ao alcance e o impacto das tensões institucionais mesmo sabendo que o PGR já tinha manifestado publicamente a sua preocupação com a regressão na qualidade da investigação criminal devido à falta de cooperação entre as polícias.

O 13 de Janeiro de 1991 aconteceu porque os caboverdianos queriam viver num país em que ninguém está acima da lei, o poder é exercido no quadro da lei e a responsabilização política dos governantes é real e efectiva. Sem isso sabem de experiência dolorosa que não há liberdade, não há segurança e não há justiça. Neste ano, em que também se assinala os trinta anos da Constituição de 1992 que consolidou as conquistas do 13 de Janeiro, é fundamental que não se perca o sentido das motivações que levaram os caboverdianos a rejeitar um regime político e a depositar as suas esperanças num outro de liberdade, de democracia e de justiça para todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1050 de 12 de Janeiro de 2022.

segunda-feira, janeiro 10, 2022

Ganhar a crise

 

A decisão do governo anunciada, ontem dia 28 de Dezembro, de passar o país do estado de alerta para o estado de contingência veio relembrar a todos que a crise pandémica continua.

Se a euforia normal neste período do ano tinha feito esquecer essa dura realidade ou se a diminuição progressiva de casos nos últimos meses tinha desenvolvido alguma complacência no uso de máscaras, na higienização das mãos e no distanciamento social, o rápido crescimento de casos de covid-19 na última semana constituiu um acordar brusco. Não é que se estivesse a ignorar o que se estava a passar na Europa, na América e em outras partes do mundo, mas aparentemente para a generalidade das pessoas, já cansadas de tantas restrições, convinha pensar que era tudo muito longe.

Não tendo o país ainda desenvolvido capacidade para sequenciar o vírus e melhorar a sua vigilância epidemiológica com informação em tempo útil, as incertezas quanto ao “quando” e ao “como” reagir tendem a aumentar ficando às vezes a dúvida se se está a precipitar nas medidas duras de contenção ou se já são tardias. De qualquer forma, com a chamada à realidade e com a evidência de que a variante Ómicron é muito mais contagiosa ainda que menos agressiva, resta é ajustar-se aos novos constrangimentos e manter viva a esperança de que talvez no próximo ano a pandemia ceda e a covid-19 se torne uma doença quase comum como a gripe. O ano 2021 iniciou-se sob a ameaça da variante Delta que se revelou muito contagiosa e bastante letal em toda a parte e também em Cabo Verde. Hoje, a Ómicron está a substitui-la como variante predominante e num quadro em que há um número crescente de pessoas vacinadas. Se se conseguir diminuir as probabilidades de surgimento de variantes com um esforço global de vacinação talvez 2022 venha a se revelar o ano do fim da pandemia. É o que o mundo anseia e o que Cabo Verde precisa urgentemente.

Ninguém duvida que a resposta à crise pandémica e às suas consequências, em particular na vida económica e social, tem custado imenso ao país. Vê-se designadamente na perda de rendimentos das pessoas, na estagnação de sectores-chave da economia, na perda de receitas fiscais e consequente deficit orçamental e no aumento explosivo da dívida pública. Também é facto que, se as incertezas quanto à evolução da pandemia e quanto ao impacto que poderá ter na vida das pessoas e na economia continuarem, os custos nos próximos tempos serão cada vez mais difíceis de suportar. A percepção nos primeiros meses do ano de 2021, em cima das eleições legislativas, das dificuldades que iriam ser encontradas na gestão da crise terá contribuído para se manter o mesmo governo da legislatura anterior na expectativa provavelmente de que a continuidade seria preferível à uma alternativa traduzida em medidas políticas potencialmente disruptivas de um outro partido. Opções similares foram feitas em várias outras democracias. Há, pois, um dever de corresponder às expectativas e cumprir.

Quem ganha nessas circunstâncias fica com a responsabilidade acrescida de manter a nação mobilizada e focada para ultrapassar as extraordinárias dificuldades da conjuntura actual. O país terá que confrontar as vulnerabilidades reveladas pela crise, reconhecer os limites do modelo de desenvolvimento seguido, corrigir as ineficiências e manter uma dinâmica criadora e inovadora para contornar obstáculos, aproveitar oportunidades e potenciar no máximo os seus recursos. Mais do que nunca a construção do futuro não deve ser prejudicada com divisões ideológicas que impedem qualquer debate construtivo sobre a realidade e os desafios que se colocam ao país. O foco em resultados tangíveis que trazem ganhos para todos deve substituir confrontos que só têm sentido no quadro de uma guerra cultural interminável que deixa o país exangue e sem capacidade de se mover para a frente.

Questões fundamentais como a da conectividade envolvendo os transportes aéreos e marítimos num país arquipélago e relativamente remoto devem merecer um tratamento ponderado e realista que não pode ficar por grandes gestos que depois se vem saber dos custos enormes que incorrem. O caso da TACV é paradigmático. Desperta paixões, cria expectativas exageradas e demasiadas vezes desemboca em frustrações enquanto a dívida associada aumenta. Nesta semana iniciaram voos para Lisboa que pouco tempo antes tinham sido previstos para o primeiro trimestre de 2022 no quadro da reestruturação da empresa. Augura-se o melhor para a iniciativa, mas infelizmente faz lembrar decisões anteriores complicadas e custosas, cujos últimos episódios foi a vinda do avião de Miami em Abril deste ano, uma tentativa de reinício de voos em Junho seguido de arresto do avião e finalmente a renacionalização da empresa.

As incertezas quanto à duração da crise pandémica, se termina no ano de 2022 ou se vai continuar ainda por mais algum tempo, põem urgência no tratamento das questões essenciais e obriga que se tenha uma maior preocupação com os custos particularmente quando se trata de ajuda externa. A resposta global à crise tem posto pressão sobre os recursos que são disponibilizados no quadro da cooperação internacional e em certos casos já se nota algum cansaço dos doadores, muitos deles também pressionados pela gestão doméstica da pandemia. Em Cabo Verde é notório a diminuição em 64,5% dos donativos até Setembro em termos homólogos, como assinala o BCV no seu último relatório económico. É verdade que Luxemburgo continua com financiamentos de vários milhões de dólares para projectos de desenvolvimento, mas notícias recentes de ajuda orçamental de Portugal de quantias como 100 mil euros anuais e de Espanha de 600 mil euros por três anos podem deixar transparecer uma tendência de decréscimo que não se pode ignorar.

É evidente que Cabo Verde deve procurar ir por outros caminhos que não o de ajuda. Como bastas vezes foi repetido, as crises não trazem só desafios, mas também oportunidades. Nas crises podem-se observar fragilidades e vulnerabilidades que não estariam tão expostas em situações normais. Também por causa de situações extremas que transversalmente a sociedade é obrigada a enfrentar há a possibilidade de mobilizar a solidariedade numa escala sem precedentes para combater desigualdades sociais, proporcionar igualdade de oportunidade e garantir a inclusão. Desperdiçá-las, não fazendo as reformas que noutra situação dificilmente poderiam ser feitas, é imperdoável. Vários países do mundo, entre os quais os Estado Unidos com o seu projecto de infra-estruturas e de apoios sociais de mais de dois trilhões de dólares, a Europa com o plano de muitos biliões de euros de financiamento inovador chamado de bazuca financeira, mas também a China e outros países grandes e pequenos estão-se a preparar para o mundo que vai sair da crise. Um pequeno e frágil país como Cabo Verde tem que também fazer algo construtivo da experiência e dificuldade vividas com a pandemia. Para o ano de 2022 há que reunir coragem, visão e capacidade colectiva de diálogo para ganhar a crise. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1048 de 29 de Dezembro de 2021.

segunda-feira, dezembro 27, 2021

Enfrentar o novo normal

 

Nas vésperas do Natal e quase no fim do ano de 2021 a variante Ómicron do vírus SARS-CoV-2, identificada em primeiro lugar na África do Sul avança vertiginosamente pela Europa e pelos Estados Unidos da América tornando-se já em muitos lugares mais de 70% dos novos casos da infecção da covid-19.

 A rapidez com que tudo está a acontecer vem contrariar as expectativas de que pelo fim do Verão e último trimestres de 2021 o pior da pandemia teria sido ultrapassado. A aplicação massiva de vacinas a partir dos primeiros meses do ano parecia justificar esta crença, mas o caracter desigual da operação, as resistências encontradas e as dificuldades logísticas particularmente nos países menos desenvolvidos vieram revelar-se como factores propícios para o surgimento de variantes do vírus e no caso do Ómicron de uma variante mais infecciosa ainda que talvez menos virulenta. Naturalmente que as pessoas ficaram confusas e não espante que por vários países a confiança tenha diminuído e que situações de choque com as autoridades se tenham multiplicado.

O próximo ano de 2022 não dá sinais que vai ser muito melhor. Incertezas quanto ao futuro vão continuar e talvez seja esse estado de coisas o novo normal. Para a revista Economist em editorial desta semana é a era da imprevisibilidade previsível que desponta e que poderá prolongar-se por vários anos ao longo desta década. A corroborar a ideia parece ir o director da Riu Palace na entrevista de domingo à TCV quando alertou que para o próximo ano vai-se trabalhar no curto prazo porque trabalhar no longo prazo é impossível com as incertezas na Europa. Na nova era, assumir que é com um elevado grau de imprevisibilidade que se vai governar, trabalhar e viver será fundamental para se adoptar a melhor atitude na busca do bem geral, ser mais estratégico nas abordagens e dar mais atenção aos resultados.

Para isso, deve estar implícito que em certos sectores ou actividades não se poderá retomar do ponto onde se ficou no início da pandemia. Que em determinados empreendimentos vão-se ver inovações, quanto a produtos e processos afectando profundamente relações de trabalho e relações sociais nem sempre fáceis de antecipar. Que a reestruturação de cadeias globais de valor e de abastecimento irá eventualmente destruir oportunidades de negócios existentes e criar outras, as quais nem sempre passíveis de aproveitamento considerando as valências existentes no país. E que incertezas de outra natureza derivadas de tensões latentes entre potências económicas e militares conjugadas com os desafios constituídos pelas alterações climáticas e pela urgência em se proceder à transição energética poderão tornar mais complexas e sensíveis as relações internacionais de cooperação. Sem essa compreensão de um mundo a entrar numa nova era, a tentação vai ser a de continuar a fazer mais do mesmo, manter o modelo de gestão de “empurrar com a barriga” e deixar-se guiar exclusivamente pelo eleitoralismo na condução dos assuntos públicos.

Não passando para as pessoas a noção de que se está a viver num mundo mais complexo de imprevisibilidade previsível, fica difícil justificar por que a retoma do turismo pode não acontecer nos mesmos moldes do antigamente. Também não se explica por que aumentam os preços dos combustíveis e de energia e por que há deterioração do poder de compra e da qualidade de vida em consequência da inflação importada, dos custos mais altos dos transportes e dos estrangulamentos na distribuição global dos produtos. Sem um entendimento das dificuldades do momento, das suas causas e de como agir para as ultrapassar, para além da proverbial “mão estendida”, fica difícil apelar à contenção nas reivindicações, incentivar a cooperação para se ser mais produtivo e mobilizar o espírito de solidariedade com os mais afectados pela crise pandémica. O sucesso no engajamento das pessoas é essencial para se poder enfrentar as dificuldades actuais com o país altamente endividado e vivendo uma conjuntura rodeada de incertezas.

É evidente que uma mudança de postura do governo e de toda a classe política facilitaria todo o esforço de enfrentar as imprevisibilidades futuras. Mais do que nunca as pessoas precisam saber que se está a agir efectivamente para conter os custos, construir competências e para prestar serviços com qualidade. Aumentar a confiança nas instituições e diminuir o cinismo como são encaradas muitas das acções dos governantes é essencial. Também essencial é dar um enérgico basta ao jogo de apontar culpas em que se transformam todos os debates sobre os problemas do país. As questões ficam por ser esclarecidas, não se criam bases para acordos e compromissos e nas entrelinhas cria-se espaço para que outros interesses se sobreponham ao interesse público.

O arrastar por muitos anos por esse tipo de impasse provoca um mal-estar que para além das disfunções que provoca nas instituições, tem um efeito erosivo nas pessoas e no tecido social manifestando-se em comportamentos anti-sociais. Muito do alcoolismo, uso de drogas, violência contra pessoas e criminalidade estará provavelmente associado de uma forma ou de outra a esse mal-estar. E sem uma resposta compreensiva da governação do país, as reacções ficam pelas denúncias e pelas manifestações de indignação que depois com o passar do tempo e ausência de progresso na resolução dos problemas acabam por desembocar em frustrações e ressentimentos. Em ambiente de pandemia, de incertezas e de vulnerabilidades reveladas, o passo a seguir é para esses sentimentos já exacerbados serem condutas para mais violência como se está a verificar em todo o país.

Pôr um travão a isso passa por uma liderança que não deixe que o país se perca em discussões do passado e se vire decisivamente para confrontar o futuro prenhe de incertezas. Uma liderança que também se distinga pela coragem e realismo, competência pragmática e crença efectiva num futuro de prosperidade para todos. Não há maior prova de liderança do que demonstrar ser capaz de mobilizar a nação para a realização de tal desígnio. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1047 de 22 de Dezembro de 2021.

segunda-feira, dezembro 20, 2021

Elevar o poder local para outro patamar

 

No passado dia 15 de Dezembro, completaram-se trinta anos de poder local democrático em Cabo Verde.As primeiras eleições autárquicas realizadas em finais de 1991 aconteceram quase um ano depois que as eleições multipartidárias de 13 de Janeiro inauguraram uma nova era de liberdade e democracia no país. Com a criação de um regime democrático, o mais natural é que se procedesse rapidamente à restauração do poder municipal, agora dotado de órgãos eleitos pelo voto popular. O princípio da autonomia local, baseado no reconhecimento que comunidades locais têm interesses específicos em relação aos quais devem ter meios e órgãos próprios para os gerir, está intimamente ligado à democracia e à ideia de um Estado descentralizado. Nem se esperou pela adopção da nova Constituição, que iria acontecer em 1992, para se avançar com o processo eleitoral para as câmaras municipais.

O regime de partido único tinha posto fim às câmaras municipais e em sua substituição tinha instalado um secretariado administrativo dirigido por um delegado de governo coadjuvado por um conselho deliberativo, todos nomeados pelo governo central. Já o regime salazarista tinha limitado a autonomia das câmaras municipais com as nomeações dos titulares pelo governo. Com as eleições de 15 de Dezembro iniciou-se, de facto, uma nova era do poder local mas não sem que ficassem pendurados alguns resquícios dos regimes anteriores. Um deles tem a ver com os poderes do presidente da câmara municipal. Tido como órgão executivo singular e com poderes próprios tende a dominar o órgão colegial eleito, a Câmara Municipal, e a apoderar-se dos seus poderes adoptando uma postura de cacique local. O exemplo acabado disso é o que se passa actualmente no município da Praia em que o projecto de orçamento municipal que se vai discutir e aprovar na assembleia municipal não é o projecto da câmara municipal, mas sim do presidente.

De facto, o enquadramento legal das primeiras eleições autárquicas na falta de uma constituição ficou limitado e acabou condicionado pela legislação pré-existente de 1989. A Constituição de 1992 e depois o Estatuto dos Municípios de 1995 vieram mais tarde clarificar as atribuições e competências dos órgãos autárquicos, mas permitiu-se que continuasse a constar da lei um órgão executivo singular com poderes próprios apesar do texto constitucional só prever dois órgãos colegiais. O facto das decisões tomadas pelo presidente da câmara no exercício de poderes próprios não prever recurso para a câmara municipal tornou a tendência para o presidencialismo do presidente da câmara ainda mais pronunciado. Ultrapassa o que existe por exemplo em Portugal com um modelo autárquico similar em que poderes da câmara tacitamente exercidos pelo presidente têm recurso para o colectivo da câmara e não só para os tribunais como acontece em Cabo Verde.

O poder local em Cabo Verde começou nos 14 municípios então reconhecidos e hoje existe em 22 municípios depois da criação de S. Domingos, Mosteiros e São Miguel nos anos noventa e de mais um total de cinco nas ilhas de Santiago (3), Fogo (1) e S. Nicolau (1) em 2005. É reconhecido por todos o extraordinário efeito que a criação dos municípios tem tido nos diferentes pontos do território nacional e nas respectivas comunidades locais. Ganhou-se muito nomeadamente com os investimentos feitos, com a maior proximidade na prestação de vários serviços, com o reconhecimento do carácter específico dos problemas e interesses locais, um maior sentido de pertença e uma voz distinta ao nível nacional. Podia-se provavelmente ter ganho mais. O que se conseguiu até agora tem ficado aquém das expectativas que acompanharam a instalação do poder local democrático.

Em termos de descentralização depois da instalação dos órgãos municipais não se viu um esforço de aprofundamento com experiências inframunicipais para as quais havia e há abertura constitucional. Preferiu-se aumentar o número de municípios não dando a devida atenção à sustentabilidade dos mesmos. A oportunidade de se criar uma administração municipal com uma cultura de relação com os utentes menos centralizadora, menos burocrática e mais atenta às necessidades das pessoas foi em grande parte desperdiçada. Da mesma forma foi perdida a oportunidade de se instituir nas novas administrações municipais uma cultura de mais isenção e imparcialidade na relação com os munícipes e de menos partidarismo nas nomeações das chefias e cargos técnicos. Com tais opções perderam-se muitos dos ganhos de eficiência e eficácia pretendidos com a instituição dos municípios, ficando demasiadas matérias dependentes de decisão do presidente da câmara, cada vez mais centralizador, e de alguns dos seus vereadores mais próximos.

A proximidade das pessoas e dos problemas propiciada pelo poder local devia ser uma base forte para a construção de um espírito democrático, o desenvolvimento do civismo e uma cultura de participação. Não é líquido que se tenha tido muito sucesso nessas frentes fundamentais para uma cidadania consciente e actuante. A política local sofre com a crispação político-partidária e a possibilidade de participação de grupos de cidadãos nos órgãos autárquicos não a atenuou o suficiente para ajudar a focar a atenção na resolução dos problemas comuns com negociações, acordos e compromissos firmados. Também não se vê engajamento suficiente das autarquias na luta contra as incivilidades que se impunha para que houvesse menos lixo, menos ruas sujas, menos violência e se vivesse num ambiente menos confrangedor. Em vez de participação cívica, nota-se o crescer da cultura de dependência numa relação directa com a tentação de caciquismo que desde o início se manifestou.

Um outro factor importante que também é prejudicado é o sentido de pertença enquanto munícipes, ou seja, residentes num território bem delimitado. Trata-se de algo que devia ser central na identificação dos interesses próprios e constituir a base para se encontrar soluções e exigir responsabilidades dos órgãos eleitores. Mas é muitas vezes escamoteado com apelos identitários vindos dos actores políticos que deliberadamente confundem o munícipe com o nascido no território. No processo são largos segmentos da população que são deixados de lado e quase se consideram expatriados no lugar onde residem, fazem a sua vida e vêem os filhos crescer. Para esse estado de coisas também contribui o facto de os municípios não dependerem suficientemente dos impostos dos seus membros e de nem fazerem o esforço para fazer a colecta de impostos que lhes cabe por lei.

A falta de sustentabilidade própria dos municípios leva a uma excessiva dependência do Estado central. Esta relação por sua vez alimenta a tendência para o caciquismo dos dirigentes ao mesmo tempo que enfraquece a ligação dos cidadãos com os seus municípios. Tudo isso acaba por prejudicar o funcionamento da democracia local, impedir que os recursos postos à disposição sejam usados de forma eficiente e eficaz e também que a população local, não ultrapassando as suas divisões e querelas, não se engaje como devia na resolução dos problemas da comunidade. Ao fim de trinta anos com altos e baixos, aspectos positivos e negativos impõe-se que se dê um outro impulso ao poder local. Há que o colocar na posição de cumprir com as promessas implícitas na sua criação nomeadamente a descentralização, autonomia e mais prosperidade e qualidade de vida em qualquer parte do território nacional que as pessoas escolherem para viver. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1046 de 15 de Dezembro de 2021.

segunda-feira, dezembro 13, 2021

Democracia e eficiência

 

Finalmente tomou posse esta segunda-feira o novo ministro do Mar depois de mais de um mês que formalmente o Primeiro-ministro tomou conhecimento do pedido de demissão do cargo apresentado por Paulo Veiga.

Na primeira reacção, o PM disse que a nomeação do novo titular ficaria para depois do empossamento do Presidente da República que estava marcado para 9 de Novembro. Nada o obrigava a esperar, considerando que o então PR estava em plena posse dos seus poderes. Se ainda levou mais de três semanas para propor, outras razões terão pesado na decisão, ou indecisão, conforme as interpretações, considerando que acabou simplesmente por entregar a pasta da Economia do Mar ao ministro da Cultura.

O país não ficou realmente surpreso com a solução encontrada porque tem sido a forma standard de operar do actual primeiro-ministro. Não é dado a reais remodelações do governo nem com a mudança de legislatura e nem até agora com a crise pandémica, não obstante o seu impacto sem precedentes ao nível económico e social. Quando surgem vagas no governo por razões de demissão, desaparecimento físico ou desgaste político de vária ordem tende a entregar a pasta a um outro ministro ou faz acréscimos pontuais. Não estranha que a discussão sobre a funcionalidade do governo fique sobre se é “gordo ou magro” visto da perspectiva de quanto o número de titulares do momento estará a pesar nas despesas do Estado. Deixar sem titular durante mais de um mês um sector-chave da economia nacional e depois ir para o que até prova contrária poderá passar a imagem de ser uma solução de recurso alimenta esse tipo de debate porque fica-se sem saber que objectivos são prioritários e qual é a estratégia que se está a seguir para os atingir.

Com o turismo ainda longe de reocupar o seu papel na dinamização da vida nacional, a que se acrescentam as múltiplas incertezas provocadas por surtos de variantes do sars-cov-2 e outros constrangimentos da economia mundial, é cada vez mais clara a necessidade de se proceder à diversificação da economia. O sector da economia do mar é fulcral nesse sentido. Entre as suas várias contribuições permite explorar recursos naturais através da actividade piscatória e aquacultura, aproveitar a geo-localização do país para prestar um leque importante de serviços e via investimentos já feitos na investigação científica, ensino superior e formação profissional capacitar mão-de-obra especializada para demandas nacionais e estrangeiras em vários domínios. Em simultâneo, é também fundamental na criação de condições para se manter a ligação entre as ilhas, unificar o mercado nacional e permitir a certas actividades agro-pecuárias e industriais beneficiar de economias de escala que de outra forma não seriam possíveis. Não é, pois, um sector que em algum momento ou em qualquer questão concreta se queira passar qualquer sinal de descaso, indecisão ou fragilidade.

Particularmente em tempos de crise devia-se procurar transmitir com maior vigor uma imagem de firmeza institucional, de comprometimento com os objectivos definidos e de sentido de Estado e de defesa do bem público. Também devia-se evitar tacticismos político-partidários que só levam a bloqueios e a degradação do discurso político. De outra forma começam a proliferar comportamentos e iniciativas fora do quadro procedimental já estabelecido dos quais ninguém acaba por ganhar, só se criam tensões desnecessárias no sistema político e dá-se azo para futuros conflitos de competências.

Há duas semanas atrás aconteceu que o PM foi com uma delegação de dois ministros apresentar a proposta de orçamento do estado ao PR. Na sequência, o PR fez uma série de contactos junto dos partidos políticos com assento parlamentar, câmaras de comércio e sindicatos ficando a impressão no público que poderia haver dificuldades em passar o OE. Tudo afinal não passou de falso alarme como foi comprovado na sessão do parlamento em que para apoiar a proposta do governo esteve uma maioria sólida. Ninguém beneficiou com os equívocos criados e as iniciativas que bem podiam ser mais úteis noutros momentos, mas no ar e provavelmente na mente de alguns o governo ao longo do processo deixou passar um quê de fragilidade.

Esta segunda-feira, foi a vez do presidente da Assembleia Nacional a encontrar-se com o presidente da república para apresentar a agenda parlamentar. Segundo as declarações do PAN à imprensa foram abordadas várias questões entre as quais a eleição dos órgãos externos à Assembleia Nacional, a questão da segurança do parlamento e “a revisão da Assembleia Nacional para suprir as lacunas, acabar com os excessos que temos no regimento, para que o parlamento possa imprimir maior eficiência e eficácia no seu desempenho”. Tudo isso é no mínimo surpreendente não só pelo insólito como também por não se imaginar que papel o presidente da república poderia ter nessas matérias que são da competência exclusiva do parlamento, um órgão de soberania plural eleito directamente pelo povo. Em Outubro último o parlamento elegeu com a maioria de dois terços dos deputados presentes os membros do Conselho Superior de Defesa Nacional e os membros da comissão de fiscalização dos Serviços de Informação da República. Há, portanto, disponibilidade para colaboração dos grupos parlamentares e nada aparentemente impede que essa vontade que já se manifestou também se estenda para a eleição dos órgãos externos. Certamente que o presidente da Assembleia Nacional pode sozinho pressionar para que isso aconteça o mais cedo possível.

O ambiente de “competências pouco definidas” ou “fluídicas” que parece querer instalar-se nos últimos tempos já se faz sentir também ao nível do poder local. Na Câmara da Praia o presidente num conflito aberto com a maioria dos vereadores entre os quais alguns pertencente à sua lista dá sinal de querer assenhorear-se das competências do órgão executivo colegial, nomeadamente a aprovação da proposta do orçamento municipal a apresentar à assembleia municipal, como estabelece o estatuto dos municípios. Está-se supostamente a contrapor à lei de organização e funcionamento dos municípios a lei das finanças locais que diz que a proposta do orçamento elaborada pelo presidente é submetida à apreciação da Câmara até dia 15 de Setembro numa interpretação que esvazia de qualquer importância um órgão político colegial directamente eleito, anulando efectivamente o mandato dos eleitos que no caso até representam diferentes partidos.

A última reunião da assembleia municipal que devia ser de discussão e aprovação dessa proposta não se realizou com esse ponto na agenda porque continua o braço de ferro. Aparentemente a AM está a hesitar em seguir o procedimento adoptado durante os trinta anos de poder local democrático em todos os municípios do país que é de se discutir e aprovar o orçamento do município depois de a câmara ter aprovado o projecto de orçamento municipal (art. 92º nº 2, alínea r). Com essa falha procedimental põe-se em causa os equilíbrios do sistema de poder local ao provocar a deslocação excessiva de poder para o presidente da câmara em detrimento dos outros órgãos eleitos e incorre-se no risco de perda de eficácia na actuação pública municipal e de com isso defraudar os eleitores.

A realidade tem demonstrado que cair na tentação de seguir a via do voluntarismo, da discricionariedade e da unicidade de poder só porque parece dar respostas rápidas e fortes traz custos que todos acabam por pagar e constituiu um lastro que impede o desenvolvimento. Há, pois, que manter a aposta no aprofundamento da democracia que implica respeito pela separação de poderes e competências, pluralismo nas deliberações e responsabilização permanente. É ainda o melhor caminho para maior eficiência e eficácia do Estado na vida pública e para se conseguir o almejado desenvolvimento inclusivo. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1045 de 8 de Dezembro de 2021

segunda-feira, dezembro 06, 2021

Precaver incertezas futuras

 Nos últimos dias o mundo passou a estar outra vez em sobressalto com o aparecimento de mais uma variante do vírus Sars-cov-2. O novo espécime detectado na África do Sul, e já declarado variante de preocupação pela Organização Mundial de Saúde (OMS), apresenta mais de 30 mutações em relação ao vírus original.

São mutações que, segundo os cientistas, podem vir a revelar-se facilitadores de contágio e indutores de mais casos de hospitalização e mortes por Covid-19. A rapidez com que se propagou em algumas zonas da África do Sul e o facto de já ter sido detectado em vários países e continentes sugere logo à partida alta transmissibilidade. Quanto à letalidade provavelmente vai-se ter que esperar umas semanas para conseguir dados suficientes para a aferir adequadamente. Preocupante é o facto de, aparentemente, estar a levar a taxas elevadas de hospitalização de crianças com menos de dois anos, o que a distingue de outras variantes que têm, em grande medida, poupado as crianças.

As reacções ao aparecimento da variante têm sido bastante fortes e até desproporcionais ao ponto de o presidente americano Joe Biden relembrar que foi classificada pela OMS como variante de preocupação mas não de pânico. A verdade é que um número significativo de países, particularmente países desenvolvidos da Europa, Ásia e América trataram de cortar viagens para um conjunto de países da África Austral logo que a informação sobre a variante foi facultada, sem se cuidar dos enormes prejuízos que estariam a causar a esses países. Uma reacção considerada por muitos como excessiva e que nem os ganhos discutíveis que podiam advir de um suposto isolamento das origens do novo surto da coronavírus justificavam.

De facto, não se está no mesmo ponto de há um ano atrás no que respeita à preparação para enfrentar surtos de coronavírus. Na época ainda não se tinha conhecimento profundo do vírus, não havia vacinas disponíveis e não se podia contar com antivirais (molnupiravir and Paxlovid) em forma de comprimidos bastante efectivos no combate aos sintomas mais graves da covid-19 a poucos dias ou semanas de serem autorizados pelas reguladoras do sector da saúde na América e na Europa. Ainda bem que, de alguma forma, depois desse passo em falso se está a procurar compensar esses países africanos com gestos de solidariedade que incluem grandes ofertas de vacinas e outros produtos necessários para um combate efectivo contra a pandemia.

Devia ser fácil para todos compreender que o que a humanidade enfrenta é uma pandemia e que a resposta efectiva à ameaça não pode ser pelo isolamento. Tem que ser simultaneamente local e global. De outra maneira, deixando milhares e milhões de pessoas por vacinar, sem ser testadas e não praticando adequadamente as regras de distanciamento social e de utilização de máscaras, só se está a disponibilizar viveiros selectos e diversificados para o vírus produzir mutações que depois partindo de um ponto de origem, não interessa onde no mundo, acaba por chegar em pouco tempo a qualquer outro lugar da face da Terra.

A falta de racionalidade no combate global à pandemia tem a sua contraparte ao nível nacional na resistência à vacinação e na desvalorização que certos grupos e personalidades fazem das vacinas, das medidas de distanciamento global e do uso de máscaras nas ruas, em recintos fechados e em encontros massivos das pessoas. A tensão polarizante criada por esse tipo de atitude diminui consideravelmente a eficácia das medidas tomadas porque na prática deixa sempre uma parte da população desprotegida no seio da qual o vírus pode fazer mutações, desenvolver estratégias para ser mais eficiente na infecção dos humanos e preparar o caminho para surtos sucessivos de covid-19. O mesmo acontece quando largas camadas da população do globo ficam sem vacinas e sem os cuidados que devem ser dispensados aos que são imunodeprimidos ou foram submetidas a reinfecções sucessivas da coronavírus por causa de tratamento inadequado.

O resultado desse tipo de comportamento em termos de variantes potencialmente mais perigosas e de sucessivos surtos da covid-19, aumentando incertezas e provocando disrupções sucessivas da vida das pessoas a todos os níveis, devia ser óbvio para todos e forçar mudanças sérias de atitude, mas não é. Pelo contrário depara-se é com esforços de alguns, em geral os mais afortunados, em procurar açambarcar vacinas, controlar patentes para maximizar lucros e sempre que confrontados com a realidade de novos surtos de covid-19 recorrer a medidas de isolamento. Com isso, aumentam extraordinariamente as incertezas nos países pobres, na prática alimentando o círculo vicioso que tende a perpetuar o problema e a reproduzir as condições que vão quase por certo garantir surtos sucessivos do vírus num futuro não muito longínquo.

Um dos grandes enigmas do nosso tempo é o facto de perante uma ameaça global com a magnitude da covid-19 não se ver crescer uma onda de solidariedade que fosse a expressão forte e sem ambiguidade da consciência de uma humanidade comum. Obras de ficção na literatura e no cinema têm repetidamente debruçado sobre esse momento em que, face à ameaça ou choque externo de contornos planetários, toda a humanidade se unia no esforço para o combater. A verdade é que pelo menos até agora a pandemia da covid-19 ainda não despertou esse sentimento de união e a outra grande emergência planetária, que são as alterações climáticas, tem ficado muito aquém do que seria desejável, como se viu semanas atrás no encontro da COP26 na Escócia.

Essa falta de sentido de urgência manifesta-se também ao nível das políticas nacionais de vários países em que muitas vezes a tendência é continuar na mesma toada de sempre mas com os olhos postos nas novas linhas de financiamentos. Há casos em que se aproveita facilidades de crédito – como por exemplo, a chamada bazuca financeira da União Europeia ou outros fundos facultados por organizações multilaterais criadas para responder às alterações climáticas e às necessidades da transição energética e da transição digital – para fazer mais do mesmo. Raros são os casos, como na Itália de Mario Draghi onde se vai conseguindo reunir vontades para fazer as reformas que se impõem neste momento charneira da vida da humanidade, provando mais uma vez a importância de se ter lideranças visionárias, competentes e comprometidas com o bem público.

Em Cabo Verde o peso da dívida pública, as limitações orçamentais de um país que sofreu das piores contracções da sua economia durante a pandemia e as incertezas quanto a uma retoma sustentada como vem assinalando o BCV não parecem ser razão suficiente para se ultrapassar a rigidez do discurso e do debate político e encontrar compromissos necessários para avançar. A forma como vem sendo tratada a questão da elevação do tecto da dívida interna e do aumento proposto dos impostos é prova de como questiúnculas partidárias tomam precedência sobre tudo o resto deixando o país sem a possibilidade do diálogo necessário para encontrar saídas para os graves problemas existentes. O quase pânico gerado pelo repentino surgimento da variante ómicron da Sars-Cov-2 e as incertezas para as viagens e para o turismo que criou devia ser mais um aviso de como a crise pandémica ainda não terminou e que a retoma da normalidade anterior não é para tão cedo como muitas vezes os governantes se mostram ávidos de proclamar.

Necessário se torna ir além dos discursos repetitivos e presos no passado de governação dos partidos do arco de poder para se focar na procura de soluções para os graves problemas que se colocam agora e também para enfrentar o próximo ano de 2022 que, segundo alguns observadores, estará a perfilar-se como uma espécie de annus horrible com muitas incertezas. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1044 de 1 de Dezembro de 2021.