Catorze dias pós a invasão da Rússia, parece não haver qualquer dúvida que se está a presenciar a emergência de uma nova ordem mundial. Pôs-se em movimento algo cujas consequências provavelmente não se tinha previsto, mas que não vai parar.
E é assim porque a Ucrânia invadida tem resistido heroicamente e 143 entre 190 países nas Nações Unidas já condenaram a agressão. Sanções económicas e financeiras nunca antes implementadas foram montadas para forçar a retirada das tropas russas. Países como a Alemanha, a Suécia e a Finlândia mudaram política externa e de defesa e pela primeira vez a própria Suíça não ficou neutra. Manifestações contra a guerra acompanhado de gestos de solidariedade têm sucedido por quase todo o mundo.
Nunca antes se viu tal convergência de vontades em condenar o que claramente é um ataque gratuito, não provocado de um país a outro e, pior, sem que se descortine qual seria o real objectivo. Em consequência, assiste-se a um processo de isolamento da Rússia à medida que é cortada das redes financeiras e bloqueada nas importações e exportações, impedida no acesso a bens de capital, bens intermédios e matérias-primas e ainda boicotada nos negócios por uma multitude de empresas e nas vendas por consumidores indignados. A persistir por mais dias e meses não será certamente algo fácil de inverter. Pelo contrário, será de o aprofundar até porque não se consegue descortinar qual seria uma estratégia de saída que, adoptada, salvasse a face do regime autocrático da Rússia.
Nesse sentido, ao procurar subtrair-se ao isolamento, poderá ter a tentação de se aliar a países com interesses comuns nas disputas com os países democráticos do Ocidente e acelerar a tendência de compartimentação nas relações de comércio internacional com blocos de interesses distintos e antagónicos análogos aos existentes no passado com o primeiro, o segundo e o terceiro mundo. A acontecer seria uma mudança de 180 graus no processo de globalização que depois do fim do comunismo e da derrocada do império soviético acelerou e integrou a China e outros países antes à margem da economia mundial, criou cadeias de valor globais e facilitou a movimentação livre de capitais. Sinais de recuo na globalização já vinham de antes e é natural que com o choque aberto entre os países democráticos do Ocidente e os países autocráticos se note uma aceleração do processo.
Vários factores têm contribuído nestes últimos anos para esse repensar da globalização entre os quais as desigualdades sociais reveladas pela crise financeira de 2008, as rivalidades entre países intensificadas com a ascensão da China à posição de segunda maior economia do mundo e mais recentemente o ressurgimento do proteccionismo devido à pandemia do Sars-cov-2. Em consequência de há algum tempo para cá que em alguns países se nota pressão para se “reindustrializar”, aumentar tarifas e proteger indústrias nacionais. A pandemia com os confinamentos, o fechar de fronteiras e açambarcamento de produtos essenciais exacerbou essas tendências. A guerra na Ucrânia, ao deitar abaixo a crença de que, com interdependência económica e vantagem mútua em manter cadeias de valor globais, países com regimes políticos diferentes poderiam resolver as suas diferenças e rivalidades sem recorrer à agressão militar, deu-lhes um impulso maior.
O mais natural é que o processo de “decoupling”, ou dissociação das economias de várias países e regiões do mundo, venha ser acelerado à medida que cadeias de abastecimentos sejam revistas, certas indústrias sejam repatriadas e a procura de independência energética obrigue a apostas em fontes seguras. Imagine-se o efeito que todo esse reconstruir das relações económicas irá ter sobre vários países, muitos deles pobres e sem possibilidade de acesso directo aos grandes mercados e que por isso têm procurado integrar cadeias de valor globais para se desenvolverem. Se se acrescentar ainda uma possível diminuição na disponibilidade de ajuda externa com os esperados aumentos nos orçamentos de defesa e nas despesas extraordinárias para se fazer face aos estragos resultantes da guerra particularmente na Europa, o grande desafio dos países menos desenvolvidos será saber como se reposicionar para continuar a ser útil e beneficiar de vendas de bens e serviços na nova ordem internacional.
O FMI já veio dizer em comunicado da semana passada que a guerra na Ucrânia e as sanções impostas à Rússia vão ter um forte impacto na economia mundial. Acrescenta também que o choque nos preços irá afectar especialmente os pobres para quem alimentos e energia constitui a fracção maior das despesas. O FMI aconselha ainda que via política orçamental se procure apoiar os mais vulneráveis e amortecer o aumento do custo de vida. Em Cabo Verde os alertas do FMI vêm em boa hora porque, de facto, o momento exige outras ponderações na definição das prioridades nacionais e não é muito visível pelos discursos dos diferentes actores políticos, ainda dominados por reivindicações de uns e promessas de outros, que o país tenha realmente consciência dos extraordinários desafios que se colocam actualmente.
Secas repetidas e subsequente revelação da precariedade e vulnerabilidade das pessoas em particular nas zonas rurais não foram suficientes para mudar a atitude e enfrentar os problemas do país de uma outra forma. Veio a pandemia e, não obstante todas as dificuldades, a contracção violenta da economia e as incertezas quanto à retoma, a abordagem dos problemas do país continua basicamente a ser a mesma. Agora há um terceiro choque com a guerra na Ucrânia e as suas consequências e não se nota ainda disponibilidade para realmente se pensar o país de uma outra forma. Aparentemente não se vê que se está a viver o fim de uma ordem internacional e o emergir de uma outra cujos os contornos ainda não se consegue discernir completamente.
Momentos como os actualmente vividos são propícios para o surgimento ou a revelação de lideranças inesperadas como já se constata em alguns países nas viragens políticas surpreendentes verificadas nos últimos dias. A mais extraordinária de todos é a do presidente Zelensky da Ucrânia que com bravura e tenacidade tem inspirado o seu povo e conquistado a admiração do mundo. É de se augurar que também em Cabo Verde se se liberte do estilo de liderança do “mais do mesmo” para que o país possa ser conduzido a um bom porto neste momento charneira do mundo em que uma ordem mundial liberal cede lugar a uma nova com todos os desafios, dificuldades e oportunidades que pode vir a representar.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1058 de 9 de Março de 2022.