Por altura das comemorações do 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia ouviram-se reclamações e queixas quanto ao funcionamento da democracia em Cabo Verde vindas da generalidade dos actores políticos e particularmente do Presidente da República no seu discurso na Sessão Solene da Assembleia Nacional. Tirando de lado a constatação de que eleições periódicas são realizadas de forma livre e justa e os resultados são aceites pelas partes acompanhados da transferência pacífica do poder para o partido vencedor e que estabilidade política reina no país normalmente governado por maiorias absolutas que se alternam, tanto ao nível nacional como autárquico, tudo o resto parece não andar bem. Fala-se da dificuldade em conseguir consensos, da necessidade de dissipar o clima de crispação e de contribuir para o diálogo e da importância do respeito pelos adversários e pelas minorias conjunturais. Em resumo, apela-se para uma cultura democrática que permita que se possa divergir com elegância, respeito e consideração.
Também para a sociedade civil propõe-se mais vigor e autonomia, evitar a censura e autocensura e fazer mais debates construtivos com participação activa de individualidades, das classes profissionais e das universidades cabendo à academia um papel especial nos estudos e na investigação para responder aos problemas do país. Sem isso, é convicção geral que a democracia, a prazo, fica mais frágil e sujeita a tentações de vária ordem que podem configurar derivas iliberais e autocráticas. E entrementes, por falta de debate democrático vivo e construtivo, de condições para credibilização progressiva das instituições e de um ambiente de confiança indispensável, o país fica ainda mais vulnerável face à situação de policrise que o mundo atravessa em que múltiplas crises interagem de forma complexa e imprevista, não deixando muito espaço e tempo para uma reacção efectiva.
Apesar dos alertas e dos apelos não parece, porém, que o ambiente sociopolítico do país vá mudar. Nos anos anteriores, na celebração dos dias nacionais, mensagens similares foram passadas, mas os comportamentos não se alteraram. Veio a pandemia da covid-19 e depois a inflação e a invasão da Ucrânia e a atitude em geral, seja dos actores política, seja dos vários elementos da sociedade civil continuou na mesma senda. De diferente nota-se a degradação do discurso político e o resvalar para o subjectivismo no argumento que impede que se tenham factos em conta e que a procura da verdade seja um objectivo central e consensual nas democracias. Na sociedade, a percepção é que aumenta o sentimento de insegurança, normalizam-se certos tipos de violência e o tecido social é fragilizado com a multiplicidade de problemas que afectam as famílias, incluindo rendimentos, habitação e o cuidar dos filhos. Acrescenta-se a isso o aumento da percepção da corrupção no inquérito do Afrobarómetro 2019-2022 hoje trazido a público.
Face ao deteriorar das condições existentes e à aparente incapacidade de as contornar, mesmo em situação crítica de múltiplas crises, só se pode concluir que as causas serão de natureza profundamente estrutural. Curiosamente tem-se falado repetidamente nos últimos tempos da chamada autocensura da comunicação social e dos jornalistas. Tomada como consequência da partidarização da comunicação social ou da governamentalização da rádio e da televisão pública é, de facto, como mostram os relatórios anuais dos Repórteres sem Fronteiras, um fenómeno presente durante os sucessivos governos independentemente da cor partidária. Parece mais ser um sintoma de algum bloqueio na sociedade cabo-verdiana que tira fulgor e dinâmica ao processo democrático dificultando o diálogo, o escrutínio das políticas e a responsabilização dos actores políticos.
Um outro sintoma é a percepção da fraca participação das universidades, dos professores e investigadores e das classes profissionais na discussão e procura de soluções para os problemas do arquipélago. Para o país que apregoa que tem cerca de dez universidades, várias centenas de mestres e doutores e milhares de alunos nos diferentes níveis do ensino superior é demasiado ténue a presença na esfera pública de personalidades com formação científica e académica. O resultado é que o debate das políticas é prejudicado porque limitado ao discurso raso e conveniente dos partidos e actores políticos. Aliás, o apelo do presidente da república na sua mensagem de fim de ano para que as universidades como centros de saber estabeleçam uma relação de proximidade com as comunidades e ajudem na resolução dos problemas vai no sentido de se inflectir a situação actual. De facto, não é claramente perceptível o retorno em termos de conhecimento que o país está a receber do enorme investimento feito no ensino superior pelo Estado, pelas famílias e pelos jovens estudantes.
A autocensura dos jornalistas e dos órgãos de comunicação social e o fraco impacto das universidades e seus agentes na sociedade poderão estar a traduzir o sentimento geral em Cabo Verde de que ao expressar ideias no espaço público está-se a tomar partido. Ou então a correr o risco de ser identificado com um dos partidos dentro do quadro bipolar que tem caracterizado a democracia cabo-verdiana. A falta de um consenso profundo quanto ao sistema de valores que está na base da Constituição de 1992 cria um antagonismo insanável entre os dois partidos que é particularmente visível nas intervenções dos partidos nas comemorações dos dias nacionais. E é esse tipo de confronto que alimenta a crispação política e limita efectivamente, em termos de expressão de ideias e de liberdade intelectual, quem não esteja já directamente envolvido em actividades político-partidárias.
O PAICV, não obstante ter ganho três eleições legislativas e várias outras municipais, afirmando-se como um dos dois grandes partidos do regime democrático cabo-verdiano, sente-se por alguma razão obrigado a defender valores, instituições e narrativas do regime de partido único. No novo paradigma representado pela Constituição de 1992, essa tomada de posição resultaria necessariamente em choques e incompatibilidades com consequências para o processo de consolidação democrática. O consenso dos partidos à volta da Constituição é essencial para o florescer das democracias como historicamente se viu em Portugal no eixo PSD/PS, em Espanha no eixo PP/PSOE, em França no eixo RPR/PS ou na Itália no eixo DC/PS. Quando o consenso é posto em causa como aconteceu recentemente na América de Trump ou no Brasil de Bolsonaro a crispação sobe de tom, a polarização é radical e o diálogo público, a expressão de ideias e a liberdade intelectual, acabam por ser altamente prejudicados.
Cabo Verde com o mundo rodeado de incertezas e a lidar com as suas fragilidades não pode quedar-se num estado de permanente choque de paradigmas. Por seis vezes através do voto livre e plural já reconfirmou a sua opção pelo sistema de valores existente na Constituição de 1992. Em completa liberdade deve poder investigar e conhecer o seu passado de mais de cinco séculos, afirmar a sua especificidade enquanto nação e traçar as linhas do seu futuro sem ser sobrecarregado por narrativas de um período de menos de vinte anos produzidas num outro país, a Guiné-Bissau, e que serviram de justificação a um poder totalitário. Para que finalmente os seus filhos parem de fazer autocensura, deixem as suas ideias desabrochar e potenciem, na construção do futuro, a força e criatividade da vivência resiliente nas ilhas.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1103 de 18 de Janeiro de 2023.