segunda-feira, março 13, 2023

Cultura estatizada

 Na semana passada, a propósito de um parecer do Instituto do Património Cultural (IPC) sobre um projecto de lei na assembleia nacional a classificar a língua portuguesa como património nacional, o país, estupefacto, passou a saber que afinal nem os deputados nacionais nem a assembleia nacional têm competência para isso.Segundo o ministro, a iniciativa só pode partir do ministério da cultura e do IPC. Não se sabe é onde fica o princípio de que o parlamento pode legislar sobre toda e qualquer matéria, exceptuando o que é de reserva exclusiva do governo, e que no processo pode revogar qualquer dispositivo legal contrário, designadamente o que eventualmente se encontrar nos estatutos do IPC. Um outro aspecto que não se compreende é qual a razão para o alvoroço sobre considerar a língua portuguesa como património quando a na lei de bases do Património Cultural nº 102/III/1990, em que o decreto regulamentar nº 3/2020 de 17 Janeiro que cria o actual IPC, se enquadra explicitamente inclui “a língua nacional e a oficial” entre os bens imateriais que devem ser preservados, defendidos e valorizados (artigo 3º, alínea d).

É ainda curioso que três meses depois, em Abril de 2020, através da lei da A.N. 85/IX/2020 que aprova o Regime Jurídico de Protecção e Valorização do Património Cultural, finalmente se revogou a lei de bases de 1990 com o argumento, entre outros, de no articulado estar plasmado o “carácter estatizante da cultura”, ou seja, de na prática se governamentalizar a cultura. Passados quase três anos parece que não se sentiu a necessidade de mudar os estatutos do IPC para “desgovernamentalizar” e adequar-se à nova lei e o resultado é a interpretação que que só o IPC pode identificar, documentar, inventariar a classificação de bens a património imaterial, com exclusão até da própria Assembleia Nacional. Nem se conseguiu flexibilizar essa postura rígida com a abertura já presente na nova lei (artigo 17º) de o processo de classificação de bens culturais também poder ser desencadeado “pelas administrações locais ou por qualquer pessoa singular ou colectiva”, cabendo ao ministério prestar o apoio técnico requerido.

A estatização da cultura nacional pela via da monopolização governamental do que deve ser considerada cultura cabo-verdiana, história de Cabo Verde e património é uma realidade incontornável que a lei referida de Abril de 2020 pretende inflectir. Os seus efeitos notam-se, por exemplo, na insipiência no ensino da história do país, que é feito à mistura com a cultura cabo-verdiana a todos os níveis do sistema do ensino e também na ausência de departamentos e cursos de história nas universidades. Nas duas últimas décadas a estatização ganhou um outro ímpeto com a criação do Instituto de Investigação e Património Cultural, em 2004, e depois do IPC, em 2014, com atribuições na investigação nos domínios da história, sociologia, antropologia, linguística e arqueologia com vista à promoção e divulgação do que nos estatutos referiam-se como a “própria História da Nação” e “estabelecer cientificamente os verdadeiros contornos da antropologia cabo-verdiana”.

Ou seja, estudos que normalmente deviam ser feitos em meios académicos com autonomia própria das universidades e liberdade intelectual eram entregues a instituições governamentais com o objectivo de posterior divulgação junto dos canais tradicionais como escolas e comunicação social e eventual condicionamento de agentes e eventos culturais. Não estranha que com esse tipo de dirigismo do Estado em matéria de investigação histórica e cultural, contrariando o princípio constitucional de que o Estado não “programa a educação e o ensino segundo directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”, se esteja a cavalgar ondas identitárias polarizadoras da sociedade a partir das quais se quer ver relações de dominador e dominado e se promove o sentimento de vitimização. O conflito aberto entre o crioulo e o português é uma manifestação clara disso.

Muito dessas dinâmicas polarizadoras não deveriam ser esperadas em Cabo Verde, um arquipélago onde vários séculos antes da independência desenvolveu consciência de nação e não tem divisões de natureza rácica, étnica ou linguística. De facto, no quadro democrático actual, globalmente ninguém é preterido no acesso a cargos políticos e outros cargos públicos por razões de tonalidade da pele, religião ou origem social e ninguém duvida que oportunidades de carreira profissional ou empresariais estão abertos a todos sem discriminação. A dificuldade que, porém, persiste e que é fracturante foi introduzida no acto da proclamação da independência com a afirmação que no âmbito do projecto do PAIGC da Unidade Guiné/ Cabo Verde se escolheu o destino africano para o povo as ilhas.

Em consequência, como o professor doutor Gabriel Fernandes explica no seu livro “Em busca da Nação” pag. 202: No novo contexto, em que a política, mais do que a cultura, é o que passa a nortear sua luta emancipatória, os cabo-verdianos não se concebem a partir de dentro, da sua peculiaridade cultural, mas sim de fora, da sua compartilhada situação de africanos e dominados”. E continua, “…os actores políticos cabo-verdianos acabaram por exacerbar as diferenças internas abrindo um fosso entre os próprios cabo-verdianos, doravante percebidos, não em termos culturais-unitários, como parte integrante de uma entidade peculiar, mas sim político-dualísticos, sob o rótulo de anticolonialista ou de colaboracionista”. Hoje, já se sabe que que o projecto da unidade tinha ficado completamente comprometida com a morte de Amilcar Cabral e prisão dos cabo-verdianos em Conacri, mas como esse facto, de acordo com as declarações, em 1990, na ilha do Sal, de um alto dirigente do PAICV, foi ocultado aos cabo-verdianos o seu impacto devastador na sociedade cabo-verdiana continua a fazer-se sentir até hoje.

Toda a política cultural estatizante ou governamentalizada e a apetência para a doutrinação em particular de crianças e jovens via o sistema de ensino, a comunicação social pública, instituições do Estado e até aulas magnas proferidas por actores políticos continuam. O que se pode chamar de uma idolatria do Amilcar Cabral e da luta de libertação acompanhado de fervor na “reafricanização dos espíritos” prossegue com os sucessivos governos independentemente da cor partidária sem que se tenha em conta os seus efeitos perniciosos de polarização da sociedade, de restrição da liberdade intelectual e do despojar do país da plenitude da sua história.

A esperança que o 13 de Janeiro poderia corrigir o grave desvio verificado em 1975 não se concretizou. Parte das razões da população para a rejeição da ditadura de partido único perdeu-se pelo caminho. O episódio inusitado à volta da classificação da língua portuguesa confrontando governo e deputados é o exemplo de como se pode ficar refém do passado e condenar-se a um círculo vicioso onde se alimentam mitos, dificuldades reais acumulam-se e problemas tornam-se progressivamente intratáveis. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1110 de 8 de Março de 2023.

Desafiar mitos para se chegar a um futuro democrático

 

O confronto sobre as políticas de transporte seja marítimo, seja aéreo tem aumentado de intensidade e de virulência à medida que os problemas vão se agravando e possibilidades de resolução à altura das expectativas criadas se tornam cada vez mais remotas.E é assim porque, como não se consegue discutir o presente e o futuro, vasculha-se o passado da governação dos dois partidos do arco do poder enquanto as perdas se acumulam tornando os problemas praticamente intratáveis. Hoje são os transportes e também a habitação e o programa Casa para Todos que têm ocupado muito do debate político nas últimas sessões do parlamento. Amanhã e depois chegará a vez de outros sectores como a agricultura, a pesca, a energia, segurança, educação, saúde etc. a serem submetidos ao mesmo tipo de discurso crispado e estéril que simplesmente vai adiando a abordagem séria dos problemas e a discussão de eventuais soluções.

Varrer problemas para debaixo do proverbial tapete sem o conhecimento prévio das suas causas e sem ponderar devidamente sobre as consequências de não acção ou de abordagem não suportada por uma visão estratégica torna-os a prazo extremamente difícil de tratar e resolver. Sem uma cultura de se apoiar nos factos para fazer a análise da realidade do país e para se debater perspectivas plurais de como estrategicamente agir para alterar o estado de coisas, corre-se o risco de se ter uma democracia em que a imagem do político cada vez mais se aproxima da do “vendedor de ilusões”. Vários factores, incluindo tabus em relação ao conhecimento do passado, reminiscências de ideologias de há muito datadas e partidarização fracturante do próprio regime político, não permitem que a democracia enquanto conjunto de procedimentos se revele como a via para se chegar à verdade partindo do princípio que ninguém a detém em exclusivo. Em tais circunstâncias verdade é conveniência de cada um e fica impossível seguir o conselho do historiador e autor do livro “Sobre a Tirania”, Timothy Snyder, que “é preciso aprender a história, desafiar os mitos para se chegar a um futuro democrático”.

O facto da intratabilidade de muitos problemas com que o país se confronta estar a se revelar com maior acuidade nos últimos anos que também têm sido de policrise torna ainda mais urgente que o país arrepie caminho do que tem sido a sua forma de fazer política. De facto, a sequência de três anos de uma crise pandémica, alta inflação e guerra na Ucrânia devia ter tido o efeito transformativo na forma de actuar da liderança do país e da sua classe política. Infelizmente, o que se notou foi o acentuar dos aspectos performativos da actuação dos titulares dos órgãos de soberania, em detrimento de substância, amplificados por uma presença não poucas vezes excessiva dos próprios nas redes sociais.

As consequências vêem-se na crispação política a exacerbar-se ainda mais, na crise institucional que já quase paralisa os dois maiores municípios do país, no baixar do nível dos trabalhos parlamentares e nas crescentes fricções com o presidente da república. Também se manifestam na dificuldade em confrontar as fortes limitações de país arquipélago, a perder população, com uma reduzida estrutura produtiva e uma história de precariedade que a dependência do turismo em 25% do PIB só realça. Querer resolver problemas do transporte aéreo ou marítimo sem ter presente estas realidades é o que de há muito vem sendo feito nas múltiplas tentativas de reorganização do sector e o resultado vê-se nas dívidas acumuladas e na dificuldade até em garantir o mínimo. Algo similar, mas menos visível, talvez não por muito tempo, acontece noutros sectores como se pressente nas recentes críticas dirigidas aos sectores da segurança, saúde e educação.

O que não parece afectado pelo estado da política no país é o optimismo que emana de certos sectores da governação que põe como objectivo mobilizar 5 mil milhões de euros, duas vezes e meia o valor do PIB, junto de parceiros públicos e privados até 2030 e que para isso organiza-se uma conferência de parceiros na ilha da Boa Vista em finais de Abril, como já se tinha feito em Paris, em 2018, e outras vezes na ilha do Sal. De acordo com o vice-primeiro-ministro e ministro de finanças a transição energética, climática, a economia circular são temas que, no fundo, acabam por ‘facilmente’ convencer parceiros a injectarem recursos para que sejam concretizados.

O problema com esses expedientes, que já tiveram exemplos similares no passado movidos com agendas da altura, é que no fundo muito pouco acaba por se realizar: elefantes brancos proliferam; a dívida pública aumenta e qualquer choque externo põe a nu as vulnerabilidades do país e a precariedade das populações. Viu-se isso recentemente com a crise provocada pela seca a partir de 2017 que deixou claro o fraco retorno dos enormes investimentos que tinham sido feitos a partir de 2008 em estradas, barragens e Casa para Todos. Com o fim do período de carência em 2022 aumentou em cerca de 9 milhões de contos o serviço da dívida contraída.

A repetição periódica dessas situações incluindo prejuízos sucessivos e cumulativos de natureza económica e social indiciam que algo está errado na abordagem das questões de desenvolvimento e que provavelmente há uma desconformidade entre a realidade perspectivada por políticos e governantes e os dados concretos do país. Cabo Verde, sequestrado que foi por circunstâncias históricas que acompanharam o desmantelamento do império colonial português, parece estar enredado em contos, mitos e narrativas que não deixam o país revelar-se na plenitude da sua história e do processo secular de construção de uma identidade própria.

Sem conhecimento integral da real história do país, recursos que podiam ser capitalizados para o desenvolvimento não são reconhecidos, alertas quanto aos percalços de desenvolvimento num país pequeno e arquipelágico não são escutados e conflitos artificiais podem ser criados. Neste particular, o conflito que se instalou entre o crioulo e a língua portuguesa é o exemplo de como às enormes dificuldades de um país como Cabo Verde se pode somar artificialmente mais um entrave ao seu desenvolvimento. Todos os cabo-verdianos falam o crioulo e pelo seu uso em cerimónias oficiais e momentos solenes pelo presidente da república, pelo governo e pelos deputados vê-se que não é ameaçada nem ostracizada.

A cabo-verdianidade, porém, não é expressa somente em crioulo como comprova todo o espólio literário que foi instrumental para a emergência da consciência da nação e que na sua quase totalidade resulta do uso criativo do português. Se conflito existencial entre as duas línguas não se verificava antes, não se compreende que quase cinquenta anos depois e com toda a gente a falar crioulo o presidente da república se sinta na necessidade de declarar que “N ta ben sta na linha di frénti di konbáti pa ofisializason plénu di nos Kriolu”. O posicionamento do PR levanta uma série de questões. Para começar no sistema constitucional cabo-verdiano só os deputados têm iniciativa em matéria de revisão constitucional. Sendo representante da unidade da nação e guardião da Constituição vigente não se vê como é que o PR vai ser parte no debate público e proceder para influenciar deputados que também representam os partidos no parlamento. Por outro lado, se houver revisão constitucional e qualquer que for a direcção tomada pelo legislador constituinte o PR não pode recusar a promulgação das leis de revisão (Artº 291 da CRCV).

De facto, nas circunstâncias e nos termos em que se referiu, o posicionamento do PR foi desnecessário: o crioulo só ainda não é oficial porque não se consensualizou uma versão estandardizada e escrita e desde de 1999 que há um comando constitucional a obrigar o Estado a criar as condições nesse sentido. Também foi pernicioso porque, pela linguagem utilizada, alimenta-se a conflitualidade linguística com consequência para disposição dos alunos em aprender o português e serem proficientes na língua oficial do país enquanto cidadãos plenos. Uma conflitualidade que não se pode negar considerando a hostilidade dirigida por certos sectores contra a Escola Portuguesa de Cabo Verde porque procura fazer o óbvio que é criar um meio imersivo para mais rápida aprendizagem da língua e suprir o facto que praticamente fora da escola só se fala o crioulo.

Neste início do segundo ano da guerra na Ucrânia, em que incertezas e imprevistos toldam a imagem do que pode vir à frente, o foco devia estar em conduzir o país com base segura, sem realidades ficcionadas, e pôr a democracia a funcionar de forma a encontrar soluções duradoiras para os problemas de desenvolvimento. Humildade, competência e procura da verdade deviam caracterizar a actuação dos actores de forma a se diminuir os conflitos e, com confiança e solidariedade se enfrentar os grandes desafios que o país tem para frente. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1109 de 1 de Março de 2023.

segunda-feira, fevereiro 06, 2023

Casa comum

 As últimas previsões de crescimento económico mundial do FMI para 2023 melhoraram, mas continuam aquém do que seria o normal desejável. O ano continua nebuloso com várias incertezas designadamente quanto ao impacto da guerra na Ucrânia, ao comportamento da inflação e aos efeitos da pandemia da covid-19 na China. O fim da política da covid zero na China, o inverno menos rigoroso na Europa com impacto nos preços de energia e os estímulos à economia verde nos Estados Unidos terão contribuído para a melhoria registada acima do previsto em Outubro. Não obstante, os especialistas não excluem a possibilidade de uma recessão mundial provocada pelo recrudescimento e alastramento da guerra na Europa ou então induzida pelas tentativas dos bancos centrais de controlar a inflação com altas na taxa de juro ou mesmo resultando de mais um surto epidémico.

Para Cabo Verde, entretanto, a previsão que a Europa poderá evitar a recessão já é boa notícia no que pode sinalizar do aumento do fluxo turístico e das exportações de bens e serviços. No mesmo sentido irá a baixa de inflação esperada, considerando que no país a inflação é essencialmente importada e naturalmente dependente da taxa que prevalece no seu principal parceiro económico que é a União Europeia. O FMI no relatório sobre Cabo Verde publicado a 24 de Janeiro prevê crescimento de 10.9% para 2022 e 4,4% para 2023. É provável que com os novos dados de actividade mais vigorosa na Europa se venha a ter melhores resultados.

O país sofreu uma forte contracção da sua economia em 2020 e, segundo o FMI no relatório referido, só era expectável que atingisse o PIB de 2019 nos finais de 2022 e que ultrapassasse as receitas do turismo do mesmo ano em 2025. As taxas elevadas do PIB (7% em 2021, 10,5% em 2022) sob estímulo da procura turística devem-se, como bem apontou o Governador do BCV, na entrevista a este jornal, ao facto de o país estar em fase de recuperação da profunda recessão de 2020 e de só agora estar a aproximar-se do seu potencial de crescimento. A baixa na taxa de crescimento que se vai seguir nos próximos anos só pode ser combatida por esforços conjugados para aumentar o potencial com investimentos, designadamente em capital humano e reformas que diminuam os custos de contexto em particular os de factores (electricidade e água).

A compreensão deste facto é fundamental para se evitar que se fique simplesmente pelo “foguetório” das taxas do PIB mais altas de sempre que tem a sua contraparte na reivindicação de aumento geral de salários cuja consequência poderia ser de piorar a situação, abrindo caminho para uma espiral inflacionária com impacto maior nas pessoas com menos rendimentos e nas mais vulneráveis. De facto, o país tem que procurar recuperar os anos perdidos com a pandemia, seja em termos de produção de riqueza, seja na forma de dívida pública e privada acumulada que terá que pagar. Isso não poderá ser feita se não houver uma consciência global da necessidade de solidariedade, da importância de poupar e investir com qualidade e de agir com competência, responsabilidade e transparência para mitigar as dificuldades existentes derivadas da pandemia e das outras que vão surgindo com as crises sucessivas.

Infelizmente não é o que sobressai dos confrontos no espaço público. Aí na maioria dos casos assiste-se ao enumerar de coisas feitas sem que se perceba uma grande preocupação com a demonstração dos resultados que depois são contrapostas por críticas e reivindicações que também não têm em devida conta os recursos existentes e as implicações futuras para o país e para as populações. Sobressai o efeito de espectáculo, a oportunidade para protagonismo e a resistência ao diálogo construtivo e até racional. Disso tudo depois sobram os problemas concretos, por exemplo, de decidir como ajudar efectivamente as pessoas face aos aumentos de alimentos básicos, como incentivar as estruturas públicas e privadas a fazer a transição energética para diminuir os custos da electricidade e água e como mobilizar a sociedade para o esforço urgente e imperativo de elevar o nível do capital humano.

A actual policrise pelas urgências que cria deveria levar a uma outra forma de enfrentar os problemas do país. Como diz a economista Mariana Mazzucato, em artigo recente publicado no Project Syndicate, na governação não se deve ficar só pelo fornecimento de bens públicos, mas ir mais além para a ideia do bem comum que requer o estabelecimento juntos do objectivo e o alinhar dos riscos e ganhos. Na nova abordagem ao “o que fazer” deve-se adicionar “como fazer” e cada passo do processo deve ser quase tão importante como o resultado final. O Papa Francisco na sua encíclica Laudato Si: uma Casa comum aconselha que se vá no mesmo sentido quando se refere à necessidade de partilhar objectivos e de trabalhar em conjunto para os realizar.

De outra forma, pode-se acabar por ficar com um país em que, perante a constatação de que recursos são escassos e há muitas incertezas pelo meio, todos se empurram para chegar à frente e chegando lá apoderar-se do que conseguirem arrebatar. Daí que proliferem acusações de corrupção, nepotismo e clientelismo de vários tipos. Publicação de relatórios internacionais com indicadores de corrupção, transparência e nível de governança são momentos de grande disputa e pretexto para cada uma das partes provar o que tem denunciado do outro. Com todos esses exercícios mina-se a confiança cívica e nas instituições e descredibiliza-se a política. Com uma maior consciência da Casa Comum é possível inflectir a actual tendência.

Ainda que bem mesmo com todas essas deficiências a democracia em Cabo Verde tem dado provas de resiliência em situações de crise pandémica, económica e social como ficou provado no último ciclo eleitoral de 2020-21. Três eleições foram organizadas, os resultados aceites e a transferência de poder realizou-se impecavelmente. E isso acaba por calibrar as coisas quanto à percepção que se tem do país. Sem deixar de apontar problemas vários no funcionamento do sistema político, a maioria dos rankings internacionais da democracia dão conta desse nível de realização da democracia cabo-verdiana que coloca o país entre os países mais livres.

O que faz falta é potenciar esse ambiente democrático, que a maioria da população em inquéritos sucessivos de opinião diz preferir, para conseguir desenvolver o nível de diálogo e de partilha de objectivos que efectivamente faça do país a casa comum que todos no fundo reconhecem e em que ninguém será excluído e todos terão a oportunidade de se realizarem e prosperar.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1105 de 1 de Fevereiro de 2023.

segunda-feira, janeiro 30, 2023

Culto de personalidade não tem lugar em democracias

 

​O que através de várias intervenções públicas de titulares de órgãos de soberania e de outras entidades, ao longo de meses, já se tinha tornado previsível acabou por se confirmar na semana passada com as comemorações do quinquagésimo aniversário de Amílcar Cabral. O Estado de Cabo Verde parece já ter assumido o culto de Cabral, o culto da personalidade do líder do PAIGC assassinado na Guiné-Conacri pelos próprios companheiros de partido a 20 de Janeiro de 1973. Um culto que, à semelhança de outros cultos de personalidade, em particular nos séculos XX e XXI, caracteriza-se, segundo o sociólogo Adrian Popon, por demonstrações públicas, quantitativamente exageradas e qualitativamente extravagantes, de louvor ao líder.

Foi o que se assistiu nestes últimos dias de frenesim à volta de Cabral que se viu coroado no discurso do presidente da república que o homenageia entre muitas outras coisas como visionário, pedagogo, estudioso, cientista social, especialista, formador, humanista, pensador, diplomata, soldado das causas da ONU, teórico e prático, político pragmático, defensor da igualdade de género, defensor do direito internacional e militante contra a pobreza. Para uma outra ocasião terão ainda ficado as qualidades de estratego militar e de poeta. Com os olhos postos no centésimo aniversário do nascimento de Cabral em Setembro de 2024 já foi logo anunciado que todo o período até lá vai ser marcado por múltiplas e variadas iniciativas de homenagem ao herói.

A questão que se coloca é se esse tipo de homenagem que passa por projectar a imagem idealizada e quase messiânica de uma personalidade política é própria de um Estado de Direito Democrático assente nos princípios da soberania popular e no pluralismo de expressão. De facto, uma operação do género só pode ser mantida pela via da propaganda e exposição mediática, onde não é significativa qualquer dissenso e onde há sistemática falsificação da história e da cultura de uma sociedade. Só dessa forma é que se consegue manter viva uma perspectiva história linear que inexoravelmente desemboca no líder e que permite que se proclame que “renascemos com Cabral enquanto comunidade política” e que ele seja ainda a “fonte de inspiração para enfrentarmos os desafios do nosso tempo”. Não se pode deixar de notar o tom quase religioso dos cultos de personalidade que, embora seculares, vão se socorrer de uma espécie de messianismo para justificar a intemporalidade do pensamento e da acção do líder.

No século passado, depois de Mussolini na Itália, Hitler na Alemanha, Estaline na União Soviética, Tito na Jugoslávia, Mao Tsé-Tung na China, Péron na Argentina, os cultos de personalidade proliferaram-se por vários outros países com regimes autoritários, totalitários e de partido único. Actualmente só subsistem em alguns deles e tendem a renascer em regimes progressivamente autocráticos ou em derivas iliberais pronunciadas. Cabo Verde poderá querer definir para onde quer ir com o ressuscitar de práticas e ideologias que frontalmente colidem com o sistema de princípios e valores instituídos na Constituição. Também quererá saber das implicações de insistir num culto de Cabral quando a Guiné-Bissau, de onde advêm todas as referências, de há muito que vem atenuando o impacto político e ideológico da luta pela independência e, significativamente, na semana passada, aboliu o feriado nacional de 23 de Janeiro, dedicado ao dia do início da luta de libertação.

Cinquenta anos depois da morte de Cabral e de tudo o que na Guiné e em Cabo Verde se passou, devia-se estar em condições de ver com objectividade o que realmente aí aconteceu. Opta-se por utilizar a efeméride para reviver o culto, não se sabe com que fins para além dos alimentados pelos que, ainda vivos, banham na sua glória. E isso à custa de tudo e de todos. De facto, o que se pode ver hoje em retrospectiva é que nessa fatídica noite foi desferido um golpe fatal ao projecto da Unidade Guiné-Cabo Verde engendrado por Amílcar Cabral. A simultânea prisão de todos os cabo-verdiano em Conacri numa operação conduzida por combatentes guineenses com a cumplicidade que quase todos os outros guerrilheiros aí estacionados deixou isso bem claro.

A gravidade do golpe foi obscurecida no esforço subsequente para conter os estragos no PAIGC e convencer os cabo-verdianos a ficar. Foi posta a circular a mensagem que a morte de Cabral resultou de “Três tiros da PIDE” e elegeu-se um cabo-verdiano, o Aristides Pereira, como substituto de Cabral para dirigir o movimento de libertação. Tudo indica que no momento tal arranjo convinha a todos, seja ao regime do Sekou Touré, seja aos guineenses que deixaram cair a pretensão de Nino Vieira de substituir Cabral e aos cabo-verdianos que não desistiram do projecto. O PAIGC não se resumia à uma futura unidade Guiné-Cabo Verde, era também a reivindicação da representatividade dos povos dos dois territórios com exclusão de quaisquer outros grupos políticos e a exigência da independência sob a direcção única do partido. Para muitos deles muita coisa estava em jogo.

Uma espécie de casamento de conveniência motivado pela ideia de conquista do poder terá selado o compromisso que só viria a terminar com o golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980 na Guiné. Nessa data, finalmente, reconheceu-se que o projecto da unidade Guiné-Cabo Verde afinal tinha sido morto no dia 20 de Janeiro apesar da propaganda em sentido contrário feita junto dos povos dos dois países. O custo de tudo isso em termos de liberdade, justiça e oportunidades perdidas foi suportado pelos povos que nos 15 anos seguintes viveram em regime de partido único. Cabo Verde com a democracia após o 13 de Janeiro conseguiu prosperar e abrir outras possibilidades de vida aos seus cidadãos. A Guiné com muita instabilidade e a meio de golpes e contragolpes já por várias vezes esteve perto de ser considerado um Estado falhado. Ao longo de décadas por causa de ressentimentos e desconfianças mútuas a relação entre os dois Estados não ganhou a normalidade que seria de esperar nem se conseguiu explorar o potencial que uma maior proximidade no comércio e noutros sectores poderia propiciar.

A grande questão que se coloca é como pode ser relevante para esta fase do país com outro sistema de valores procurar inspiração nos protagonistas de um projecto político que nas suas várias componentes fracassou de forma tão trágica. Intenções iniciais tidas como boas não podem justificar violências indescritíveis, décadas de guerra civil e atraso brutal no desenvolvimento no pós-independência. A democracia pela sua própria natureza reclama uma ética de responsabilidade em que governantes periodicamente submetidos a voto popular livre e plural prestam contas e responsabilizam-se pelas políticas implementadas e pelas decisões tomadas.

Pôr o país em rota de colisão com esses valores cria bloqueios que aumentam a polarização e a crispação política, diminui a capacidade nacional de enfrentar os seus cada vez mais complexos problemas socioeconómicos e agudiza a situação de dependência das pessoas em relação ao Estado. Uma evolução que por sua vez aumentaria os riscos de agravamento das desigualdades e também da pobreza e marginalidade, ao mesmo tempo que acelera a emigração e as migrações entre as ilhas. Não é o momento para isso.

Em S. Vicente, na Cimeira dos Oceanos, ficou claro que não vai ser fácil conseguir o apoio desejável para enfrentar os grandes desafios representados pelas alterações climáticas, pela transição energética e pela adopção do digital. É por isso fundamental que toda a energia e atenção da nação se focalize em fazer o melhor do que for mobilizado e disponibilizado. Mas tal não será possível fazer se se deixar agravar a tendência notada no inquérito do Afrobarómetro no que indicia da percepção das pessoas quanto à corrupção, da descrença nas instituições e do sentimento de insegurança.

Inflectir a situação existente não passa pela renovação de mitos e instituição do culto de personalidade. O país já sabe de experiência própria que não resulta. A via para se ultrapassar o cinismo e a desconfiança passa sim pelo exercício da cidadania plena e por se ter uma sociedade civil autónoma e interventiva.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1104 de 25 de Janeiro de 2023.

segunda-feira, janeiro 23, 2023

Ficar livre para compreender o passado e construir o futuro

 Por altura das comemorações do 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia ouviram-se reclamações e queixas quanto ao funcionamento da democracia em Cabo Verde vindas da generalidade dos actores políticos e particularmente do Presidente da República no seu discurso na Sessão Solene da Assembleia Nacional. Tirando de lado a constatação de que eleições periódicas são realizadas de forma livre e justa e os resultados são aceites pelas partes acompanhados da transferência pacífica do poder para o partido vencedor e que estabilidade política reina no país normalmente governado por maiorias absolutas que se alternam, tanto ao nível nacional como autárquico, tudo o resto parece não andar bem. Fala-se da dificuldade em conseguir consensos, da necessidade de dissipar o clima de crispação e de contribuir para o diálogo e da importância do respeito pelos adversários e pelas minorias conjunturais. Em resumo, apela-se para uma cultura democrática que permita que se possa divergir com elegância, respeito e consideração.

Também para a sociedade civil propõe-se mais vigor e autonomia, evitar a censura e autocensura e fazer mais debates construtivos com participação activa de individualidades, das classes profissionais e das universidades cabendo à academia um papel especial nos estudos e na investigação para responder aos problemas do país. Sem isso, é convicção geral que a democracia, a prazo, fica mais frágil e sujeita a tentações de vária ordem que podem configurar derivas iliberais e autocráticas. E entrementes, por falta de debate democrático vivo e construtivo, de condições para credibilização progressiva das instituições e de um ambiente de confiança indispensável, o país fica ainda mais vulnerável face à situação de policrise que o mundo atravessa em que múltiplas crises interagem de forma complexa e imprevista, não deixando muito espaço e tempo para uma reacção efectiva.

Apesar dos alertas e dos apelos não parece, porém, que o ambiente sociopolítico do país vá mudar. Nos anos anteriores, na celebração dos dias nacionais, mensagens similares foram passadas, mas os comportamentos não se alteraram. Veio a pandemia da covid-19 e depois a inflação e a invasão da Ucrânia e a atitude em geral, seja dos actores política, seja dos vários elementos da sociedade civil continuou na mesma senda. De diferente nota-se a degradação do discurso político e o resvalar para o subjectivismo no argumento que impede que se tenham factos em conta e que a procura da verdade seja um objectivo central e consensual nas democracias. Na sociedade, a percepção é que aumenta o sentimento de insegurança, normalizam-se certos tipos de violência e o tecido social é fragilizado com a multiplicidade de problemas que afectam as famílias, incluindo rendimentos, habitação e o cuidar dos filhos. Acrescenta-se a isso o aumento da percepção da corrupção no inquérito do Afrobarómetro 2019-2022 hoje trazido a público.

Face ao deteriorar das condições existentes e à aparente incapacidade de as contornar, mesmo em situação crítica de múltiplas crises, só se pode concluir que as causas serão de natureza profundamente estrutural. Curiosamente tem-se falado repetidamente nos últimos tempos da chamada autocensura da comunicação social e dos jornalistas. Tomada como consequência da partidarização da comunicação social ou da governamentalização da rádio e da televisão pública é, de facto, como mostram os relatórios anuais dos Repórteres sem Fronteiras, um fenómeno presente durante os sucessivos governos independentemente da cor partidária. Parece mais ser um sintoma de algum bloqueio na sociedade cabo-verdiana que tira fulgor e dinâmica ao processo democrático dificultando o diálogo, o escrutínio das políticas e a responsabilização dos actores políticos.

Um outro sintoma é a percepção da fraca participação das universidades, dos professores e investigadores e das classes profissionais na discussão e procura de soluções para os problemas do arquipélago. Para o país que apregoa que tem cerca de dez universidades, várias centenas de mestres e doutores e milhares de alunos nos diferentes níveis do ensino superior é demasiado ténue a presença na esfera pública de personalidades com formação científica e académica. O resultado é que o debate das políticas é prejudicado porque limitado ao discurso raso e conveniente dos partidos e actores políticos. Aliás, o apelo do presidente da república na sua mensagem de fim de ano para que as universidades como centros de saber estabeleçam uma relação de proximidade com as comunidades e ajudem na resolução dos problemas vai no sentido de se inflectir a situação actual. De facto, não é claramente perceptível o retorno em termos de conhecimento que o país está a receber do enorme investimento feito no ensino superior pelo Estado, pelas famílias e pelos jovens estudantes.

A autocensura dos jornalistas e dos órgãos de comunicação social e o fraco impacto das universidades e seus agentes na sociedade poderão estar a traduzir o sentimento geral em Cabo Verde de que ao expressar ideias no espaço público está-se a tomar partido. Ou então a correr o risco de ser identificado com um dos partidos dentro do quadro bipolar que tem caracterizado a democracia cabo-verdiana. A falta de um consenso profundo quanto ao sistema de valores que está na base da Constituição de 1992 cria um antagonismo insanável entre os dois partidos que é particularmente visível nas intervenções dos partidos nas comemorações dos dias nacionais. E é esse tipo de confronto que alimenta a crispação política e limita efectivamente, em termos de expressão de ideias e de liberdade intelectual, quem não esteja já directamente envolvido em actividades político-partidárias.

O PAICV, não obstante ter ganho três eleições legislativas e várias outras municipais, afirmando-se como um dos dois grandes partidos do regime democrático cabo-verdiano, sente-se por alguma razão obrigado a defender valores, instituições e narrativas do regime de partido único. No novo paradigma representado pela Constituição de 1992, essa tomada de posição resultaria necessariamente em choques e incompatibilidades com consequências para o processo de consolidação democrática. O consenso dos partidos à volta da Constituição é essencial para o florescer das democracias como historicamente se viu em Portugal no eixo PSD/PS, em Espanha no eixo PP/PSOE, em França no eixo RPR/PS ou na Itália no eixo DC/PS. Quando o consenso é posto em causa como aconteceu recentemente na América de Trump ou no Brasil de Bolsonaro a crispação sobe de tom, a polarização é radical e o diálogo público, a expressão de ideias e a liberdade intelectual, acabam por ser altamente prejudicados.

Cabo Verde com o mundo rodeado de incertezas e a lidar com as suas fragilidades não pode quedar-se num estado de permanente choque de paradigmas. Por seis vezes através do voto livre e plural já reconfirmou a sua opção pelo sistema de valores existente na Constituição de 1992. Em completa liberdade deve poder investigar e conhecer o seu passado de mais de cinco séculos, afirmar a sua especificidade enquanto nação e traçar as linhas do seu futuro sem ser sobrecarregado por narrativas de um período de menos de vinte anos produzidas num outro país, a Guiné-Bissau, e que serviram de justificação a um poder totalitário. Para que finalmente os seus filhos parem de fazer autocensura, deixem as suas ideias desabrochar e potenciem, na construção do futuro, a força e criatividade da vivência resiliente nas ilhas. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1103 de 18 de Janeiro de 2023.

segunda-feira, janeiro 16, 2023

Em defesa da democracia, celebrar o 13 de Janeiro

 

O ano 2022 trouxe boas notícias para a democracia com a contenção pela via eleitoral de movimentos populistas em vários países com destaque para a França, Estados Unidos e Brasil. A democracia liberal ganhou também um grande alento com a solidariedade mundial demonstrada ao povo ucraniano pela coragem na luta pela sua liberdade, integridade territorial e autonomia na escolha do seu futuro. Já o ano 2023, logo no seu início com os acontecimentos de Brasília do dia 8 de Janeiro, veio relembrar com particular estridência que a democracia ainda tem muitos inimigos e que o descontentamento que grassa em franjas significativas da população em relação ao funcionamento das instituições e a actuação da classe política pode ser utilizado para a enfraquecer ou mesmo destruir.

A dois dias de celebração do 13 de Janeiro, “Dia da Liberdade e da Democracia”, é fundamental que se tenha presente a importância de se salvaguardar a democracia e o seu sistema de valores. Isso é particularmente urgente quando sistemas rivais e diametralmente opostos em matéria de respeito pela dignidade humana, pluralismo, separação dos poderes e o primado da lei ainda são brandidos como recomendáveis ou mesmo superiores. O desafio nos tempos actuais feito à democracia liberal não se limita às criticas dos descontentes que sempre teve ao nível nacional. Vai mais longe com ataques às instituições-chave do Estado de Direito democrático, como se viu agora no Brasil e há dois anos atrás nos Estados Unidos da América, e com ramificações incluindo financiamentos e outros apoios internacionais num quadro que estará a desenhar-se de rivalidade entre as democracias e as autocracias.

Hoje é facto assente que Winston Churchill tinha razão quando disse que “a democracia é pior forma de governo à excepção de todos os outros experimentados ao longo da história”. Para os cabo-verdianos que iniciaram da sua livre vontade, bem expressa nas urnas há 32 anos atrás a experiência com a democracia, a frase de Churchill confirma-se plenamente. Apesar das suas insuficiências, é facto que a prosperidade acompanhada de liberdade e de autoestima que se ganhou com a democracia e a transição para a economia de mercado não tem paralelo com o cinzentismo da vida no regime de partido único e o crescimento raso do PIB que caracterizou os seus derradeiros anos.

Historicamente as democracias têm provado que são mais capazes de potenciar os recursos naturais e humanos do país para criar riqueza e fazer uma redistribuição mais equitativa. Na África, por exemplo o Botswana, com os seus diamantes e a sua democracia, destacou-se sempre nas melhores posições em todos os rankings enquanto outros países com grandes recursos minerais e petrolíferos sobre endividam-se, apresentam grandes desigualdades sociais e níveis elevados de corrupção. Já na maioria esmagadora dos países que adoptaram regimes autocráticos não se verificou o desenvolvimento desejável ou expectável.

Só aconteceu em alguns países como Singapura e China que sustentaram durante décadas taxas de crescimento próximo de dois dígitos e agora parece que Ruanda e o Vietname estarão a ir pelo mesmo caminho. São casos raros em que de alguma forma os regimes viram o crescimento acelerado como factor de legitimação do regime. Em Cabo Verde, a autocracia também não funcionou talvez porque a base de legitimidade era outra e durou até quando o povo teve oportunidade de livremente fazer a escolha dos seus governantes.

Estão, pois, muito equivocados os renascentes saudosistas do regime de partido único que pretendem hoje resolver os problemas económicos do país, designadamente dos transportes, abastecimento e energia recorrendo às fórmulas estatizadas do antigamente que já na época eram ineficientes e no contexto actual não têm qualquer cabimento. Do mesmo modo se enganam os que parecem sugerir que a existência de milícias e tribunais de zona, órgãos revolucionários de base local próprios do regime anterior, poderia prevenir problemas de violência e criminalidade nas comunidades. A verdade é que não se pode avançar construtivamente no debate sobre a economia nacional contrapondo sistematicamente fórmulas antigas de governação e pretensos resultados obtidos à realidade presente.

Também no plano social não se consegue encarar devidamente o impacto negativo no tecido social do país de décadas de políticas que levaram à atomização da sociedade, ao aumento da dependência das pessoas em relação ao Estado, à perda da confiança interpessoal e a correspondente diminuição do capital social e do civismo. E sem isso pode-se alocar mais e mais recursos, mas é mais provável que os resultados fiquem aquém do desejado como tem acontecido. O mais complicado é que nem mesmo o espectáculo de, na sequência de megaoperações policiais, se ver milhares de armas brancas confiscadas em particular aos jovens, de se constatar a posse ilegal de centenas de armas de fogo em buscas e de se descobrir nas pequenas encomendas mais de oito mil balas que seriam para venda ilegal parece despertar para um diálogo mais profundo sobre o que claramente são as causas do problema e encontrar a abordagem mais compreensiva e eficaz para os resolver. Ilusões sobre o passado não podem constituir-se em obstáculo para o debate que deve ser feito.

A democracia tem os seus problemas e as suas imperfeições e nem sempre parece estar à altura das suas promessas, em particular quando se trata de levar prosperidade a todos. Apesar de tudo, como se pôde constatar durante a pandemia da Covid-19, é o regime que, quando enfrenta desafios da mais variada ordem e gravidade, permite mais criatividade e inovação na procura de soluções e o que mais fácil permite identificar erros cometidos e mudar para políticas que funcionam. Para que possa revelar todas suas virtualidades e estar à altura do que todos esperam do sistema democrático é fundamental que o seu núcleo central constituído por instituições, normas e regras procedimentais seja respeitado, protegido e seguido por todos, especialmente pelos seus titulares.

O choque sentido mundialmente aquando dos acontecimentos de Brasília traduz o sentimento de profunda inquietação que se seguiria ao desmoronar das instituições que todos têm por asseguradas. Esquece-se demasiadas vezes que para evitar isso é fundamental que todos cumpram com as suas competências, com a integridade e carácter de quem serve o público e não se serve das suas funções para ganho pessoal. Do Brasil ainda vieram outros avisos. Um deles que corrobora o que já se tinha verificado nos Estados Unidos quanto à importância do sistema judicial na protecção da democracia nos momentos críticos. Um outro também fundamental é papel das forças armadas nas democracias. Não são nem anteriores ao Estado, nem estão acima do Estado, ou tutelam a democracia. São defensoras da ordem constitucional vigente e subordinam-se ao poder civil e como tal devem ser imunes aos apelos de grupos extremistas, saudosistas ou revisionistas nos embates contra a democracia.

Ainda uma questão importante é o papel do presidente da república. Órgão singular, o PR é eleito directamente pelo povo, como bem diz António Barreto num artigo do jornal Público de 7 de Janeiro “para acrescentar legitimidade e solidez ao edifício do Estado democrático. Não para vigiar, sabotar, contrapesar ou fiscalizar”. Nestes momentos de crise da democracia, em que para além dos descontentes há que ter em conta inimigos, não há talvez nada mais fundamental do que essa função de manter a integridade do Estado de Direito Democrático.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1102 de 11 de Janeiro  de 2023.

segunda-feira, janeiro 02, 2023

Em 2022 o mundo mudou

 

É hoje ponto geralmente assente que o mundo mudou em 2022. Ao longo da década passada grandes mudanças já se vinham verificando a todos os níveis designadamente políticos, económicos, sociais e culturais. É hoje ponto geralmente assente que o mundo mudou em 2022. Ao longo da década passada grandes mudanças já se vinham verificando a todos os níveis designadamente políticos, económicos, sociais e culturais. À semelhança dos movimentos tectónicos, durantes anos essas mudanças passaram quase despercebidas para subitamente se manifestarem em terramotos a criar novas realidades geopolíticas e geoeconómicas e em tsunamis a deixar um rasto de destruição e pobreza após a sua passagem. A pandemia da Covid-19 intensificou o processo, mas foi a invasão da Ucrânia pela Rússia e a guerra subsequente que provocou a ruptura no mundo, interrompendo a globalização que se tinha tornado galopante no pós-Guerra Fria e queda do Muro de Berlim.

A guerra e as sanções dos Estados Unidos, da Europa e seus aliados sobre a Rússia que se seguiram, abrangendo em particular os sectores comercial, financeiro e tecnológico, forçaram um realinhamento global. Alguns países pretenderam mostrar-se neutros (África), outros aproveitaram para fazer negócios de oportunidade com a Rússia (Índia) e uns poucos sinalizaram disponibilidade para contornar sanções e fornecer material de guerra (Irão, Coreia do Norte). A reacção da Rússia às sanções, pela via de instrumentalização do fornecimento de petróleo e gás e pelo bloqueio das exportações de cereais e outros produtos da Ucrânia, fez disparar o preço dos combustíveis e dos alimentos a nível mundial contribuindo grandemente para o aumento geral da inflação.

O que normalmente seria um factor que poderia indispor uma parte importante da comunidade das nações contra a Rússia acabou por revelar-se mais uma fractura no apoio que o Ocidente esperava contar. De facto, os preços elevados de energia serviram para aproximar da Rússia os principais países produtores de gás e petróleo (Médio Oriente), todos interessados na bonança da alta de combustíveis. Para justificar a escalada de preços nos produtos alimentares e a escassez de fertilizantes, o esforço de culpabilização dos Estados Unidos e da Europa feito em certos sectores de opinião conseguiu afastar uma condenação explícita da agressão russa por vários países do Sul de entre os mais atingidos pela carestia de cereais.

A China, por seu lado, num momento que culminou em Outubro último de reafirmação de um terceiro mandato do presidente Xi Jingping, vê-se num período de competição com os Estados Unidos marcado pela rivalidade estratégica. Um período claramente mais tenso até porque a questão de Taiwan passou a ser vista numa outra luz na sequência da invasão da Ucrânia e das sanções que foram aplicadas. Mas, apesar de a China se encontrar numa espécie de aliança com a Rússia para contrabalançar o peso da Europa e dos Estados Unidos, trata a guerra na Ucrânia com ambiguidade suficiente que lhe permite apoiar a Rússia sem lhe fornecer armas e materiais estratégicos ao mesmo tempo que reitera o seu suporte pelo princípio do respeito pela integridade territorial dos estados soberanos.

Na prática, todas essas dinâmicas levam à coalescência de países em grupos de geometria variável devido à sobreposição de valores e interesses que certamente os líderes tentarão estabilizar. Para isso, vão invocar a comunidade de valores ou proclamar a necessidade urgente de estabelecimento de cadeias de fornecimento seguras e resilientes no âmbito do já chamado friend shoring. O processo de desglobalização que isso vai implicar poderá ficar ainda mais complexa com a reorganização do comércio internacional que será preciso fazer para efectivar o chamado decoupling, ou desengajamento das economias dos Estados Unidos e da China. É algo que já está em movimento e que certamente nos próximos anos irá afectar a todos de forma nem sempre previsível e vantajosa até se verificar uma estabilização. Outrossim, situações como a guerra na Ucrânia, pelos seus múltiplos impactos, mas também o posicionamento em particular dos países e economias de maior peso, irão determinar que direcção e a que ponto se poderá chegar na reversão da globalização que levou décadas a ser construída.

No entrementes, o mundo tem um outro grande desafio a enfrentar que é a inflação. Tida por temporária no ano passado pela generalidade dos especialistas e por instituições credíveis como o FMI e os bancos centrais, porque se supôs que era devida fundamentalmente ao excesso de liquidez acumulada durante a pandemia da Covid-19 e aos constrangimentos das cadeias de abastecimento, a inflação veio a revelar-se afinal persistente, prolongada e afectando o mundo inteiro. Os constrangimentos criados pela guerra na Ucrânia só a agravou. As suas causas mais profundas têm que ser combatidas e as medidas de política que vêm sendo aplicadas, designadamente o aumento da taxa de juros tornam maior o risco para o próximo ano de uma recessão mundial com consequências devastadoras principalmente para os países mais pobres.

Para além do problema de domar a inflação é facto geralmente assente que o tempo de dinheiro barato terminou e que uma nova era de custos mais elevados de financiamento vai se impor. E isso vai acontecer precisamente quando muitos países lidam com dívida pública acumulada devida à pandemia e exigências postas pela transição energética, pelas alterações climáticas e a adopção generalizada do digital irão implicar financiamentos avultados. Não serão fáceis os próximos tempos com as grandes incertezas a impactar o grau de cooperação internacional que será possível mobilizar e os constrangimentos que o ambiente actual colocam à actuação das instituições multilaterais. Também há que ter em conta os imprevistos derivados do alastramento da guerra na Ucrânia, surgimentos de outros focos de conflito aberto e manifestações climáticas extremas que afectam a produção e distribuição de bens alimentares.

A boa notícia em todo este cenário preocupante e de grande complexidade é que a democracia e os valores liberais que pareciam estar em queda livre numa crise que já vem de vários anos deram um sinal forte de recuperação em várias eleições na Europa, no Brasil e nos Estados Unidos e ganharam grande visibilidade com o espectáculo da Ucrânia a resistir e a vencer na guerra contra a Rússia autocrática com a ajuda dos países democráticos. E as democracias já demonstraram que são mais eficazes do que as autocracias em combater pandemias, em fazer desenvolvimentos científicos e tecnológicos cruciais para a prosperidade e sobrevivência da humanidade e em manter o espírito de resiliência perante a adversidade como bem prova a situação da Ucrânia. O que pode vir a revelar-se uma má notícia é a tentação de governos em vários países de continuar com a mesma atitude e a fazer o mesmo num mundo que pode estar em acelerada mudança em direcção a novos equilíbrios.

É evidente, pelos parcos resultados conseguidos na luta contra pobreza, no desenvolvimento de um sector privado robusto e de uma sociedade civil autónoma em relação ao Estado que não tem sido a melhor a exploração das linhas de cooperação e financiamento que são disponibilizados em quadros multilaterais. Com investimentos cruciais por fazer para o futuro do planeta, para se combater as desigualdades locais e globais e manter a esperança num futuro melhor de muitos milhões de seres humanos, é fundamental uma mudança de fundo na forma como todos esses recursos são geridos tanto pelas organizações internacionais como pelas elites governantes locais. O desperdício de recursos não deve continuar quando há tanta coisa em jogo. A passagem de um tempo de abundância para um outro de escassez num ambiente de tantas incertezas devia ser motivação forte para se operar uma mudança de paradigma que realmente traga resultados que sejam sustentáveis e inclusivos.

Para um pequeno país arquipélago de diminuta população e parcos recursos naturais como Cabo Verde a atitude adequada talvez seja similar a de um surfista que quer chegar a bom porto. Sabe que não pode criar ondas, mas pode aproveitar as que surgem no horizonte, cavalgá-las enquanto for possível e passar para outras antes que morram na praia. Com sabedoria, perseverança e desejo de vencer essa é a postura a adoptar para se enfrentar o ano novo que desponta principalmente quando já se sabe que o mundo mudou.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1100 de 28 de Dezembro de 2022.

segunda-feira, dezembro 26, 2022

Para um Natal de paz e esperança

 

Nas últimas semanas a questão da segurança capturou mais uma vez a atenção das pessoas e da comunicação social na sequência de vários assassinatos verificados na capital do país. Os relatos de violência grotesca que vinha acontecendo já tinham despertado a sociedade para o que já se tornou na habitual onda de crimes que recorrentemente atravessa a urbe. Em Outubro de 2021, quando algo similar aconteceu, o departamento de estado americano classificou de crítica a situação da criminalidade em Cabo Verde e desaconselhou viagens para o país. Na passada segunda-feira, o presidente da república veio alertar para o facto de “a criminalidade na Cidade da Praia está a atingir níveis dramáticos e que a situação é extremamente preocupante”.

A reacção da polícia nacional foi accionar o seu costumeiro plano de prevenção no período de Natal e de Fim do Ano ao mesmo tempo que reiterava a intenção de continuar a fazer a sua parte, mas não sem apontar a omissão dos pais no controlo e educação dos filhos. Para o governo e os partidos políticos na última sessão plenária deste ano foi mais uma oportunidade para as habituais escaramuças no parlamento que terminam sem assunção de responsabilidades e sem soluções, mas a lembrar como, nas sucessivas governações, recursos e meios têm sido “despejados” sobre os problemas de segurança. O presidente da república ainda veio apelar no sentido de se mobilizar todos os esforços do governo, das autarquias locais, das empresas, das organizações não governamentais e das igrejas para se criar uma cultura da paz e da não-violência.

O mais normal é que se fique por essas reacções já elas próprias habituais e esperar que a onda passe. “Varrer os problemas para debaixo do tapete” é uma prática estabelecida que nem situações de crise das mais graves como a da pandemia da Covid-19, acompanhada de uma profunda recessão económica, conseguiu abalar. E as consequências já se fazem sentir nos mais diferentes sectores da vida do país, umas mais visíveis e outras a despontar. Em matéria de segurança, num relatório de 25 de Outubro de 2021, as autoridades americanas alertaram para o facto de o crime na cidade da Praia estar a tornar-se mais violento e que por causa disso as ruas ficam desertas de gente logo após o escurecer. Também apontaram que o número de armas de fogo no mercado tinha aumentado e o seu uso no cometimento de crimes que antes era raro tinha-se tornado prevalecente.

Um ano depois, a percepção geral é que os crimes são mais violentos e as armas mais abundantes. A própria polícia diz, de acordo com o despacho da Inforpress de 15 de Dezembro, que em 2021 apreenderam um total de 355 armas de fogo e que neste ano de 2022 já iam em 523, um aumento de 47%. Nas apreensões de armas brancas, segundo o porta-voz da PN, passaram de 1.820 unidades, em 2021, para 2.751 neste ano, numa escalada de 51%. Num ambiente que é claramente de violência crescente, compreende-se o apelo do presidente da república para uma cultura de paz e de não-violência. Só que, perante a incapacidade evidente das instituições, apanhadas como estão em lutas político-partidárias, em lidar com o problema, o aparente desconhecimento das suas causas que nem a proliferação de estudos sociais e teses universitárias parece elucidar e o falhanço em mobilizar a sociedade com a promoção de civismo e reconstituição do capital social, não se vislumbra como se pode inflectir a tendência actual e repor a tranquilidade pública com diminuição significativa do sentimento de insegurança.

Há muito tempo que Cabo Verde, o país da Morabeza, devia ter tomada a questão da segurança como estratégica para o seu desenvolvimento. Nenhuma mancha devia ofuscar a imagem de país seguro a projectar para atrair turistas, visitantes, investidores e residentes. Sendo o país que, como bem refere o referido relatório das autoridades americanas, não tem os problemas habitualmente fracturantes de natureza étnica, linguística e religiosa, nem tem exemplos de violência política, deveria ser capaz de ultrapassar com relativa facilidade conflitos de origem sócio-económico que eventualmente surgissem.

Uma via possível talvez passasse por um forte engajamento de toda a colectividade nacional no desenvolvimento do país com ênfase posto na solidariedade e inclusão. Talvez não deixando instalar a cultura de dependência, mas trabalhando para resultados e investindo no capital humano, se pudesse combater as desigualdades e manter a confiança num contrato social (win-win) em que todos ganhariam e a prosperidade estaria ao alcance de todos. Infelizmente, o caminho tem sido outro e nestes tempos de crise a corrida aos recursos, particularmente os públicos por uma via ou outra, acabou por se tornar marcante. O resultado viu-se no aumento das desigualdades, na atitude de secundarizar resultados e de varrer problemas para debaixo do tapete a favor dos “ganhos à cabeça” e ainda em maior dependência do Estado.

A oportunidade que as crises poderiam oferecer para se reverter a tendência com espírito de solidariedade e maior sentido do bem comum não tem sido aproveitada. Pelo contrário, a situação actual cuja gravidade é sentida por todos, tem levado ao recrudescer dessa corrida por uma via que tende a configurar um jogo de soma nula. Um jogo terrível que, ao terminar com uns poucos ganhadores, gera em contrapartida muitos perdedores devido às ineficiências criadas a todos os níveis, à destruição de uma cultura de cooperação essencial para se ter estruturas produtivas e criar riqueza e ao desenvolvimento de um sentimento de injustiça que mina a comunidade. A perspectiva de mais um ano difícil e cheio de incertezas, em 2023, não augura uma melhoria neste quadro. O que já claramente se constata em matéria de segurança pode bem vir a revelar-se noutros sectores com problemas por resolver ou que sofrem a erosão provocada por esse mal-estar que afecta de uma maneira ou outra as instituições e a sociedade em geral.

Seria da maior importância que houvesse uma forte liderança nos diferentes níveis e sectores do país no sentido de se reverter as tendências negativas nas instituições e na sociedade cabo-verdiana. Paradoxalmente, o que se nota é a tentação de se fazer o aproveitamento da situação de crise para que, ao chegar ao seu término – não se sabe quando e como – alguns indivíduos e grupos estejam melhor posicionados em termos políticos, político-eleitorais, económicos, sociais, etc. Também não ajuda nestes tempos difíceis esse avivar do saudosismo do regime de partido único sob disfarce do culto de Cabral que estranhamente é patrocinado por diversas entidades do Estado quando o sistema de valores da Constituição da República é-lhe completamente oposto. Mantém acesa uma guerra cultural que só fragiliza a unidade do país.

Com o ano de 2023 a despontar e a guerra na Ucrânia sem um fim à vista e cheio de incertezas um sentido de urgência devia impor-se para se deixar de “fazer o mesmo” favorecendo alguns. Já provou que não funciona e mantém o país vulnerável e num círculo vicioso cada vez mais difícil de romper. Tomando de exemplo os ucranianos que lutam e morrem pelo mesmo sistema de valores do Cabo Verde moderno e que inclui liberdade, pluralismo, justiça e solidariedade, o foco deve estar na realização do potencial do país e das suas gentes com ganhos para todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1099 de 21 de Dezembro de 2022.

segunda-feira, dezembro 19, 2022

Fugir das armadilhas

 

A problemática dos transportes em Cabo Verde, em particular dos transportes aéreos, tem sido matéria quase permanente de discussão pública, de debates parlamentares e arma de arremesso que as forças políticas atiram umas contra as outras. É verdade que a questão é de maior importância, senão vital para o país, e compreende-se que focalize muita atenção não só da classe política como de toda a sociedade. Mas difícil de entender é que, iniciada a discussão, a tendência é para todos se distraírem do que é essencial para se se transformar num misto de jogo de culpas e de promessas muitas vezes irrazoáveis.

Até agora o embate de posições do como fazer para enfrentar a situação é que não tem sido muito produtivo e as soluções já tentadas pelos diferentes governos em boa medida só prestaram para acumular ainda mais a dívida pública. Também com a destruição de valor, perda de oportunidades provavelmente irrepetíveis e pesados custos de estrutura vê-se que se vai tornando cada vez mais remota a possibilidade de o sector aéreo vir a cumprir as expectativas estratégicas para o desenvolvimento do país que todos parecem acreditar que possui. No processo de discussão não ajuda que não se tenha como pano de fundo uma visão realista do que podem ser os custos dos transportes num país insular, arquipelágico, população diminuta, mercado restrito e relativamente remoto dos espaços continentais. E muito menos como assumi-los considerando que Cabo Verde não beneficia dos subsídios e transferências públicas com que os restantes arquipélagos da Macaronésia são privilegiados no quadro das regiões ultraperiféricas.

Às dificuldades mais evidentes em conduzir um debate mais frutífero em matéria dos transportes no país, junta-se uma aparente insensibilidade em procurar compreender por que iniciativas empresariais no sector têm dificuldades e até acabam por descontinuar, como aconteceu com o Icelandair e a Binter, ou já mostram dificuldades em expandir os negócios como a Bestfly. No caso desta companhia de aviação, que tem todo o tráfico doméstico do arquipélago, o mais normal seria que no último debate na Assembleia Nacional fosse questionado o governo pelas razões por que a empresa ainda não avançou com os seus planos de expansão. No mês de Junho trouxe um avião Embraer que se veio juntar aos dois ATRs que já operam supostamente para entrar em operação com conexões para Europa, África Ocidental e os Açores. Recebido com pompa e circunstância e presença de três ministros, o avião até agora continua sem voar, porque não certificado e os Twin Otters, que deviam seguir-se para aumentar a frota, parece que foram adiados.

Em entrevista a este jornal, na edição de 7 de Dezembro, o Director-geral da Companhia explicou que para essa expansão “primeiro de tudo, tínhamos de aumentar o fluxo de tráfego e era aqui que entrava o Embraer”. Como não foi certificado, tiveram de cancelar o projecto Embraer. Acabaram por não desistir e agora estavam a avaliar o retorno do projecto Embraer e que o plano B, provavelmente para contornar o ambiente pouco facilitador, seria de registá-lo noutro sítio. Nas entrelinhas percebe-se a dificuldade em operar em Cabo Verde com rotas ineficientes para os aparelhos ATR e com os altos custos dos bilhetes e a impossibilidade de aumentar frequências que afectam a procura e a que vem somar o ambiente de negócios um tanto rígido.

Ou seja, promove-se o investimento e depois não se faz o seguimento da implementação de modo a assegurar que bloqueios diversos, designadamente de regulação, de práticas monopolistas ou de concorrência informal, sejam com segurança ultrapassados e que se desenvolvam sinergias e criadas cadeias de fornecedores e de outros operadores conexos. Sem isso, tanto os objectivos directos pretendidos com a iniciativa empresarial como os indirectos, através do arrastamento do resto da economia, não se materializam. Para garantir que se vai no sentido desejado, é fundamental que o Estado assuma na plenitude o seu papel em todas as suas capacidades, designadamente de promotor, facilitador, regulador e de garante da segurança jurídica da propriedade e dos contratos.

Do governo que orienta e dirige o Estado não se pode esperar que tenha uma postura passiva quando dele se espera uma abordagem compreensiva, coordenada e dirigida para resultados, num quadro da legalidade vigente. De outro modo arrisca-se a que eventualmente se ficar na posição de não ter disponíveis certos bens e serviços públicos essenciais como recentemente se vislumbrou em mais de que uma situação com a quase paralisação dos voos internos. Também, para se ter crescimento sustentável e inclusive, há que qualificar a intervenção estatal de forma a abranger – como diria a economista Mariana Mazucatto na defesa do seu conceito de Estado empreendedor – doações, créditos, benefícios fiscais e aprovisionamento público. A perspectiva é que com essas medidas de política e em combinação com o sector privado, e a partilhar tanto nos ganhos como nos riscos dos investimentos na inovação e crescimento, é possível maximizar o valor público dos mesmos.

A dificuldade em se mover pela via óbvia de procura de resultados que é deixada transparecer nas discussões estéreis, onde não se identificam as causas dos problemas e não se fazem correcções, pode ser sintoma de uma armadilha (trap) em que o país foi apanhado e que pode estar a se revelar no maior entrave ao seu desenvolvimento. São famosas as várias armadilhas que se podem apresentar no processo de desenvolvimento. Há países onde se fala, por exemplo, de “middle income trap” que não deixa países de rendimento médio dar o salto para o desenvolvimento, ou de “resources curse” que lança países ricos em recursos naturais numa espiral de endividamento e empobrecimento acompanhada de grandes desigualdades sociais. Nem os países mais desenvolvidos estão livres de armadilhas como o Japão bem o provou nos anos noventa com a “liquidity trap” que deixou o país mais de uma década na quase estagnação económica.

Saber identificar a armadilhas que ameaçam o país é fundamental para se pôr cobro ao que vai ficando claro a todos. Despeja-se dinheiro na educação, na segurança, na saúde, na justiça, nos transportes, mas não se está a conseguir inverter a percepção de que os serviços estão a se deteriorar e as instituições a se mostrarem cada vez mais frágeis. Criam-se ecossistemas, mobilizam-se linhas de crédito de milhões, formam-se empreendedores em todos os cantos do país e descobrem-se talentos aos magotes, mas os resultados não se notam na actividade empresarial, na criação de empregos e na criação de riqueza. A economia continua fortemente atracada às vicissitudes de um turismo que tarda em crescer para os números que eram expectáveis, a população diminui com a emigração e a confiança no futuro revela-se precária. Orientar-se para resultados com base no aumento da competitividade e da produtividade deve ser o caminho para se libertar da armadilha (trap). Há que, com visão e liderança realista, pragmática e competente mobilizar energia e vontade para isso. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1098 de 14 de Dezembro de 2022.

segunda-feira, dezembro 12, 2022

Por um regular funcionamento das instituições

 

Por decreto presidencial publicado no B.O. de 1 de Dezembro renovou-se o mandato do presidente do Conselho Superior da Magistratura (CSM). Foi nomeado para o cargo o juiz de Direito Bernardino Delgado sob proposta dos membros do CSM.A nomeação do presidente não foi, porém, precedida da completa renovação do órgão de autogoverno da magistratura judicial como seria de esperar. Apesar da assembleia dos juízes ter eleito os representantes no conselho e do presidente da república ter nomeado um juiz para o integrar não foi possível ter os quatro eleitos da Assembleia Nacional para substituir os que de há muito terminaram o mandato ou exerceram mandatos consecutivos, em alguns casos desde 2011 e outros desde 2015.

Como a composição do conselho com juízes e não juízes na actual proporção de 5-4 não é algo indiferente e, muito pelo contrário, é essencial para se contrabalançar tentações corporativistas, faria todo o sentido que se esperasse a renovação dos conselheiros não juízes para se escolher o presidente. Num momento em que a situação da justiça é uma preocupação central da sociedade, como ficou evidente nas intervenções do arranque do ano judicial, devia ser de todo interesse que houvesse a percepção de um regular funcionamento das instituições no sector. Deu-se recentemente o exemplo com a normalização do funcionamento do Supremo Tribunal de Justiça, após a saída, há quase dois anos, dos juízes conselheiros jubilados, e espera-se ver mais nesse mesmo sentido proximamente com uma inspecção judicial efectiva.

De facto, não se tem procurado assegurar o regular funcionamento das instituições com suficiente vigor e perseverança. E é pena porque revela-se essencial para melhor credibilizar a democracia e as regras do jogo democrático e plural e também garantir a liberdade e a segurança a todos níveis. O que se viu por exemplo na Assembleia Nacional em Outubro a propósito da eleição dos novos membros para o conselho superior da magistratura é paradigmático dessa atitude de descaso. Tudo serviu para não se avançar com um acordo que devia ser para renovação do CSM: desde disputas interpretativas quanto aos procedimentos a seguir, como se fosse a primeira eleição para os órgãos externos por lista plurinominal exigindo maioria de dois terços que se estava a fazer, até o interesse em manter candidatos que não era razoável propor, em primeiro lugar porque há muito que já tinham completado um tempo superior a dois mandatos.

Num ano que foi de muita contestação e crítica dirigida ao sector da justiça, o parlamento perdeu a oportunidade de enviar um sinal de que com a eleição de novos representantes querer imprimir uma outra dinâmica e uma outra sensibilidade e capacidade de gestão ao órgão para, entre outros objectivos, responder aos problemas da morosidade e às acusações de denegação de justiça. A aparente precipitação em se avançar com a proposta e a nomeação do presidente do CSM pelo presidente da república, num quadro em que quase 45% dos proponentes ultrapassaram o seu tempo ou estão de saída, certamente que não qualifica de melhor forma o sinal a enviar para a sociedade. A compor e a melhorar ainda mais o sinal podia-se eleger um vice-presidente não magistrado estatutariamente previsto para coadjuvar o presidente do CSM. Até agora não foi possível ir por esse caminho apesar de o Tribunal Constitucional (TC) num acórdão de 2016 ter unanimemente estabelecido que não tinha razão quem tinha questionado a constitucionalidade da norma que estabelece que o vice-presidente deve ser escolhido entre um dos não-magistrados.

Determinar o nível óptimo de representatividade dos membros não magistrados nos órgãos de autogoverno das magistraturas não tem sido matéria pacífica em Cabo Verde como aliás também não é noutras paragens. Há quem considere que os juízes devem ter a maioria e há quem ache que para se conseguir conter o espírito corporativista há que coloca-los em minoria. Todos, porém, parecem estar de acordo que a presidência deve ficar com o presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), mas cedendo a maioria no conselho aos não-juízes. Em Cabo Verde, na última revisão constitucional datada de Maio de 2010, foi-se por uma solução sui generis do presidente do STJ não ser também presidente do CSM podendo sê-lo porém qualquer magistrado eleito pelos seus pares ou nomeado pelo presidente da república para integrar o órgão. Na mesma revisão inverteu-se ainda a tendência que tinha sido vincada na revisão constitucional anterior de 1999 e afirmou-se em seu lugar uma maioria dos magistrados no CSM. O lugar de vice-presidente que devia traduzir-se em algum reequilíbrio foi contestado e mesmo com o acórdão favorável do TC não foi preenchido nos seis anos que se seguiram.

Uma dinâmica dessas que passa por as instituições não funcionarem regularmente como planeadas e desenhadas não deixa de indiciar eventuais interesses que muitos consideram de corporativistas e que levam à protecção da classe face aos críticos que clamam por uma justiça mais célere, de maior qualidade e com maior eficácia. Numa democracia em que todos os órgãos de soberania estão vinculados pelo princípio da separação e interdependência é fundamental que haja o regular funcionamento das instituições para que o sistema de peso e contrapesos (checks and balance) se faça sentir e o equilíbrio político, económico e social seja mantido. Nos tempos actuais, em que certo tipo de activismo político se torna cada vez mais atractivo para ganho pessoal ou de grupo, fazer as instituições sair de práticas já consolidadas e ignorar interpretações de procedimentos de há muito assentes com argumentos disruptivos, é fundamental seguir-se por caminhos que privilegiem conhecimento, maturidade e memória institucional.

Já se viu recentemente o ridículo das acusações de “golpes e contragolpes” que se seguiram ao fracasso do parlamento em eleger personalidades para o órgão de governo da magistratura no momento de maior tensão social dos últimos tempos e em que a justiça é visada. Também não se deixou de notar as várias tentativas de bloquear a competência da comissão permanente de exercer os poderes da assembleia nacional relativamente aos mandatos dos deputados como manda a Constituição, o regimento e os estatutos dos deputados e tem sido a prática estabelecida ao longo dos trinta anos de democracia constitucional. A impressão que se fica é que se quer passar tudo para o Plenário de forma a propiciar espectáculos potencialmente descredibilizadores da instituição.

Práticas similares que mexem com o regular funcionamento das instituições já se notam com maior ou menor gravidade em várias actuações de actores políticos. Na Câmara da Praia e de S. Vicente já levaram à quase paralisação da vida político-institucional desses municípios. Outros alvos poderão estar em mira, mas não se pode esquecer que para o populismo e outras derivas iliberais o principal objectivo é descredibilizar o parlamento e a justiça. Por aí é que se procura ferir de morte a democracia. Fazer cumprir as regras democráticas e assegurar o regular funcionamento das instituições é a via para se manter o sistema de liberdade e pluralismo a funcionar de forma a conservar sempre viva a esperança de uma vida de paz, justiça e prosperidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1097 de 7 de Dezembro de 2022.

segunda-feira, dezembro 05, 2022

Corrida ao voto não deve prevalecer

 

Segundo os dados do Instituto Nacional de Estatísticas divulgados ontem, dia 29 de Novembro, o indicador de confiança no consumidor continuou a cair no terceiro trimestre. Inquiridas, as famílias cabo-verdianas fazem uma apreciação negativa do que para os próximos 12 meses será tanto a sua situação financeira como a situação económica do país. A esmagadora maioria confessa incapacidade de fazer qualquer poupança e o número dos já poucos que podiam pensar em comprar carro, ou construir casa, diminui. As incertezas para o ano 2023 são muitas. Está-se perante múltiplas crises e é natural que haja alguma cautela ou mesmo pessimismo em relação ao futuro próximo considerando que ninguém realmente sabe como irá terminar a guerra na Ucrânia e como se irá resolver a crise energética e diminuir a pressão inflacionista que tem prejudicado toda a gente em todo o mundo.

É um sentimento que de certa forma também é partilhado por instituições como o BCV no seu relatório de política monetária e de parceiros como o GAO no seu último comunicado de 18 de Novembro e também patente nas últimas recomendações do FMI. Demonstram sobriedade nas suas projecções e estimam o crescimento económico de Cabo Verde para o ano 2023 à volta de 8,3% e 8%. Do lado do governo, quase com euforia deixa-se passar a ideia que o país poderá crescer dois dígitos. Também dessas instituições ouvem-se recomendações para se conter o défice orçamental e a dívida pública, para se apoiar quem realmente precisa e durante o tempo estritamente necessário e para se investir na competitividade, produtividade e diversificação da economia. Do governo fala-se em alargar o Estado social, eliminar a pobreza extrema e diminuir a pobreza, mas não fica claro que isso só é sustentável com criação de riqueza nacional. De outra forma, terminados os projectos de ajuda externa, na primeira crise revelam-se as vulnerabilidades anteriores e fica claro para todos a precariedade das populações.

Curiosamente, quem em contraste com o sentimento generalizado das pessoas parece compartilhar o aparente optimismo que emana dos lados do governo é a oposição, mas por razões diferentes. O governo ao projectar optimismo quer destacar o sucesso da governação. A oposição aproveita-se da perspectiva rósea do país para reivindicações que embaraçam quem governa e a deixam de bem com sectores da sociedade que poderiam beneficiar da iniciativa. Um resultado de todo esse jogo em nome da caça ao voto é a impressão de que a classe política está algo desfasada do que se passa no país e a projectar e a discutir o futuro económico e social numa perspectiva que nem é comungada pelas instituições mais sóbrias (BCV, FMI, GAO) na apreciação do contexto nacional e internacional, nem pela esmagadora maioria da população do país, como se pode depreender do inquérito do INE.

Compreende-se assim porque da discussão da proposta do Orçamento do Estado, na semana passada, a oposição saiu a acusar que nenhuma das suas propostas foi absorvida e em resposta o primeiro-ministro na comunicação da segunda-feira veio notar que na discussão do Orçamento do Estado “as propostas da oposição são mais para criar problemas do que para resolver problemas”. Acrescentou ainda que são despidas de racionalidade porque “pedem para reduzir o peso da dívida pública e depois vêm com propostas que aumentam a despesa”. Mas governar é priorizar e não é expectável que a oposição e o governo comunguem das mesmas prioridades particularmente quando não há incentivo de nenhuma das partes para se chegar a acordos.

É facto que em Cabo Verde os governos têm sido de maioria absoluta, e como não precisam dos votos dos outros partidos para passar o Orçamento do Estado, não se sentem na necessidade de negociar qualquer proposta vinda das outras bancadas. Aliás, quando pedem à oposição para votar favoravelmente é só para depois a acusar de não querer ou de não se prestar a servir o interesse nacional. Orçamentos do Estado reflectem as opções de política de cada partido e só em situações excepcionais seria expectável que poderiam disponibilizar-se para chegar a algum tipo de compromisso. Como em geral não reconhecem situações excepcionais, ninguém, e em particular os partidos na oposição, se arriscam a perder negociando com o governo.

Curiosamente, neste tipo de arranjos, em que a corrida ao voto parece ser o móbil principal e razão de discórdia, há questões aparentemente tabu. Num momento de maior rigor na definição das prioridades ninguém parece contestar as centenas de milhares de contos gastos em campos relvados por todo o país, ou, num Estado supostamente laico, os investimentos também em centenas de milhares de contos nas igrejas em nome da salvaguarda do património religioso para servir um turismo diversificado. Prefere-se ficar pelo que dá dividendos políticos rápidos porque traz à tona sentimentos como ganância, inveja e ressentimento como são os cargos, as viagens e os carros. Outros projectos que deviam ser estranhos a um Estado sujeito a comando constitucional que o impede de impor ideologias, expressões estéticas e filosóficas aos cidadãos e à sociedade também parecem não merecer escrutínio mais apertado de todos.

É o caso da promessa feita, esta terça-feira, pelo governo de “tudo fazer” para apoiar o projecto da Fundação Amilcar Cabral que, segundo uma nota de imprensa, “decorre da necessidade de os principais protagonistas dessa história narrarem em primeira pessoa a gesta heroica e libertadora de seus povos, visando repor a verdade histórica, a qual vem sendo deliberadamente adulterada nos últimos tempos”. Ninguém compreende como um Estado liberal e democrático como o de Cabo Verde pode querer apoiar ou financiar um projecto dos antigos dirigentes do partido único, que nos moldes descritos mais parece uma acção de Agitação e Propaganda (agitprop), para salvaguardar a memória da luta de libertação que legitimou esses regimes, do que escrever História. Até parece que o surrealismo impera com a maior complacência de todos quando tal não devia ser, considerando os tempos críticos vividos actualmente e as reais prioridades às quais se tem de dar uma resposta eficaz e tempestiva.

As crises múltiplas que afligem o mundo poderiam ser uma oportunidade para, em algumas questões essenciais, se transcender legislatura e agendas partidárias. Mas, sem acordo sobre a situação real do país e em dissintonia com o sentir das populações tudo leva a crer que não vai acontecer. É mais provável que o jogo de quem dá ou promete mais continue. Dizer um basta a isso é fundamental para se evitar o resvalar para as imperfeições de uma democracia simplesmente eleitoral. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1096 de 30 de Novembro de 2022.

segunda-feira, novembro 28, 2022

Quer-se debate construtivo e voltado para o futuro

 

​Nas vésperas da discussão na especialidade do Orçamento do Estado para o ano 2023 vai-se mais uma vez a debate com o Primeiro-Ministro na Assembleia Nacional com o tema “A Transparência como factor de desenvolvimento”.

No ano passado tinha sido o mesmo tema e, recorrentemente, volta-se às questões de governança e de acountability sem que, pelo tom e substância de debates subsequentes no parlamento, se perceba que houve algum progresso no sentido supostamente desejado. Os argumentos continuam primários, não são avançadas soluções e não se vê vontade para fazer reformas, presos como todos parecem estar aos cálculos eleitorais, independentemente da distância que no momento se está das eleições. Os debates acabam por traduzir-se em simples oportunidades para acusações mútuas, para suspeições de favoritismos e até de corrupção e para denúncias de partidarização da administração do Estado. 

Dificilmente no debate de hoje, dia 23 de Novembro, será muito diferente. E é pena porque os tempos actuais de grandes incertezas exigem que se renove e se consolide confiança na democracia. Para isso, porém, é fundamental que, como alguém bem disse, sejam disponibilizados “instrumentos que poderão permitir uma maior transparência, verdade e clareza na defesa de uma sociedade aberta, na qual as políticas públicas resultem de opções realmente partilhadas por todos e adequadamente sujeitas ao controlo efectivo dos cidadãos”. Num ambiente em que se privilegie mais os supostos ganhos de deixar mal o outro, como se todos estivessem envolvidos num jogo de soma zero, não há muito espaço para se chegar a acordo sobre como afinar esses instrumentos. Nem mesmo para reconhecer o caminho em termos institucionais que já se percorreu nas três décadas da democracia para se combater a opacidade do Estado e fazer da transparência e da accountability um princípio fundamental do Estado de Direito democrático. 

De facto, apesar das querelas constantes avançou-se e muito nestes trinta anos. Não é à toa a posição actual de Cabo Verde nos ranking de governação (51) e de corrupção (39). Poderia ser melhor se houvesse um comprometimento para que certas reformas chaves na administração do Estado tivessem continuidade para além das legislaturas. Diferentemente de países tão diferentes como as Maurícias e Botswana que, mesmo com alternância no governo, conseguiram manter uma orientação estratégica consistente e que lhes proporcionou crescimento e prosperidade e os colocou entre os primeiros de África, Cabo Verde deixou-se tolher no seu desenvolvimento pela crispação política. Com isso, quebrou-se o ritmo de reformas e alimentaram-se resistências às mesmas, enquanto o discurso político degradava-se e fixava-se completamente fora de contexto no passado das realizações no governo de cada partido. Depois perguntava-se porque não tiveram continuidade. 

Quando se institui essa forma de fazer política corre-se o risco do país paulatinamente deixar de contar com visões de desenvolvimento dos diferentes partidos porque, de facto, da forma como politicamente se engajam já não estão virados para o futuro. 

A democracia perde porque não apresenta à sociedade reais alternativas mas sim versões “do mais do mesmo”. Por outro lado, toda a acção política passa a configurar no que já foi chamado de técnicas de poder, de como ocupar e usar o Estado para dominar a sociedade e a economia. O calculismo eleitoral acaba por se impor e toda a oportunidade é tida como boa para ganhar pontos sobre o adversário. A tentação maior será de transformar o adversário no “outro” que, conforme as circunstâncias, se pode apresentar como não defensor dos interesses do país, de profeta de desgraças e até de anti-patriota. A democracia, porque baseada no respeito pela dignidade da pessoa humana, reconhece que os indivíduos e cidadãos são livres e têm interesses e que esses interesses são diversos. O facto de se suportar no pluralismo e na tolerância assumidos por todos como princípios permite que da interacção desses interesses resulte o interesse geral. Ninguém, seja ele indivíduo ou grupo, detém o monopólio da verdade ou encarna sozinho o interesse público. Da organização política social e económica que resultam dos princípios democráticos e do Estado de Direito espera-se que emerjam as mais ricas expressões de criatividade, de capacidade inovadora e de energia e vontade para correr riscos e criar o novo. E isso é provado historicamente pelas democracias a todos os níveis, designadamente de crescimento económico, de qualidade de vida, dos avanços científicos e tecnológicos e de expressão artística, quando comparadas com formas de poder autocrático, sejam eles autoritários ou totalitários. Empobrecese, pois, a democracia e o país quando se deixa instituir uma forma de fazer política que exclui e toma o adversário como inimigo e não representativo de interesses legítimos dentro da comunidade, os quais, pela sua expressão contribuem para se definir o interesse nacional. 

Em Cabo Verde, nota-se ainda hoje resistências ao pluralismo e à expressão da diversidade de interesses. Sente-se na hostilidade aos partidos e ao multipartidarismo em certos círculos que, curiosamente, logo nos primórdios da democracia já denunciavam os males do bipartidarismo. Vê-se também na desconfiança como certos sectores da sociedade encaram a iniciativa privada e actividade empresarial e seu impacto nos rendimentos e bem-estar dos indivíduos que são bem sucedidos. Ainda tributários da ideia de que o Estado é o principal provedor de recursos no país não interiorizam como realmente se cria riqueza e como se pode organizar para garantir rendimentos e combater a pobreza de forma sustentada por outras vias que não a da mobilização de recursos externos. A relutância sentida à volta dessas questões não é de estranhar considerando a trajectória histórico- político do arquipélago ao longo da qual se cultivou o igualitarismo, se entregou a política a um grupo supostamente impoluto, porque na “luta” se suicidou como classe social, e se combateu a iniciativa e expressão individual enquanto se procurava enquadrar as pessoas em organizações de massa. 

A política no presente ainda é marcada por confrontos que nos debates trazem ao de cima todo esse legado. Com certo tipo de acusações procura-se excluir o adversário e retirar qualquer legitimidade ou credibilidade aos seus argumentos. Com as suspeições cria-se o ambiente adequado para desconfiança em relação às intenções. Claramente que debates que tem como foco escrutinar a actividade estatal e do governo são os mais propícios para esse tipo de exercício. Em nome da transparência, em vez de procurar consolidar as instituições de controlo e aprimorar o sistema de pesos e contrapesos de forma a se exigir uma prestação de contas atempada e responsável e cada vez mais rigorosa e intransigente, opta-se por repisar velhos argumentos, repetir escaramuças antigas e sair de mãos a abanar depois de mais um debate. 

Há que abandonar essa forma de actuação que não é salutar para a democracia e não ajuda o país e as suas gentes. Se não for agora, que o mundo e também Cabo Verde enfrentam crises múltiplas e sem precedentes, quando será?

Humberto Cardoso

Texto publicado originalmente na edição nº1095 do Expresso das Ilhas de 23 de Novembro

segunda-feira, novembro 21, 2022

Câmaras e populismo: Reforçar pesos e contrapesos

 Com os resultados surpreendentes das eleições brasileiras no dia 30 de Outubro, seguidas das americanas a 9 de Novembro, ouviu-se, no entender de muitos observadores, o quebrar da onda de populismo que há anos tem posto em causa os valores liberais e até ameaçado de morte as democracias.

Bolsonaro e Trump são as duas personalidades cujas vitórias eleitorais em países com peso e influência global tinham tornado plausível a ideia de inverter o curso das democracias e caminhar para autocracias eleitorais. As derrotas por eles sofridas nas eleições referidas necessariamente irão levar a rever o quão longe poderão ir outros movimentos de inspiração populista que vem tendo algum grau de sucesso em países como Hungria, Itália, Polónia e Israel. A verdade é que o ambiente propício para essa forma de entender e fazer política vai continuar a existir e para as democracias particularmente as mais recentes ou ainda pouco consolidadas a questão que se coloca é como atenuar ou neutralizar os seus componentes e, quando isso não for possível, como sobreviver às investidas.

Da experiência do populismo neste século, e em particular nos últimos dez anos, se pode provavelmente dizer que já se viu o “filme” completo: de como se mobilizam paixões no eleitorado servindo-se do nacionalismo, do medo e do ressentimento para chegar ao poder e, como a partir de lá, se move decididamente para fragilizar as instituições, descredibilizar os médias e o sistema judicial, ao mesmo tempo que é afirmado o poder autocrático do líder. Ao longo de todo o processo o “chefe” aparenta ter impunidade perante tudo e todos. Procura mostrar que pode sobrepor-se à lei e às normas estabelecidas, menorizar o papel tradicional dos partidos e do parlamento e, como se viu nas eleições americanas, até proclamar que não aceita o resultado eleitoral se não lhe for favorável. E essa percepção de impunidade tende a consolidar o suporte dos seus seguidores mesmo quando sinais graves de incompetência na governação com resultados às vezes catastróficos, como aconteceu durante a pandemia da Covid-19 nos Estados Unidos com Trump e no Brasil com Bolsonaro. A pouca diferença nas eleições, apesar de desfavorável para os populistas, dá conta de como a sociedade fica polarizada e o quanto se desviou dos padrões da racionalidade, da civilidade e do diálogo político suportado nos factos.

Nenhuma democracia está livre de derivas populistas, especialmente agora que se vive uma época que alguns já chamam de “policrise” em que as crises se sucedem umas às outras e os seus efeitos, interagindo de forma complexa, criam imprevistos e incertezas. E certamente que Cabo Verde não é excepção. A tentação populista existe e é visível a todos os níveis de governação e do exercício do poder. Poderá ganhar força se, perante a incapacidade de se estabelecer um forte sentido de solidariedade nacional em situação de precariedade geral, for desencadeada uma corrida aos recursos do país em particular os públicos. Quando é assim, tudo, designadamente sentimentos de abandono, ressentimentos anti-elites e frustrações de diversa ordem, pode servir para inflamar paixões e abrir caminho à ascensão de pequenos e grandes autocratas. Mas, como bem demonstram as experiências referidas de populismo, o que finalmente põe algum travão à deriva e evita que desemboque na autocracia é a insistência na aplicação nas regras do jogo democrático, no uso dos pesos e contrapesos do sistema político e na afirmação a todo o tempo do primado da lei.

Mais uma razão para uma acção concertada dos vários actores políticos para se pôr cobro à crise político-institucional existente nos municípios da Praia e de São Vicente. Tanto um como o outro tem câmara municipal com composição plural mas as forças políticas não conseguem entender-se quanto ás regras do jogo democrático quando elas deviam ser claras e suportadas por trinta anos de experiência de poder local democrático no país. Não é à toa que só uma única vez, no ano de 1995 em São Vicente, foram realizadas eleições intercalares para se ultrapassar bloqueios nos órgãos municipais. O sistema de governo local é estável apesar do que comparativamente se pode considerar de poderes excessivos atribuídos ao presidente da câmara e que podem deixar espaço para derivas populistas e autocráticas. De facto, a colegialidade da câmara tende a ser sacrificada a favor do poder do presidente e com ela o equilíbrio de poderes no município. De acordo com a Constituição, artº 234, é a câmara, enquanto órgão executivo colegial, que é responsável perante a Assembleia Municipal.

A Constituição, ao estabelecer no artº 121 que os órgãos de poder político colegiais só deliberam com a presença da maioria dos seus membros reforça a natureza colegial e obriga os membros a um diálogo para garantir que o órgão seja efectivo e representativo dos seus eleitores. Parece daí lógico que o que realmente não se pode ter sob pena de desvirtuar toda a razão de ser do sistema é a deliberação de um único eleito ou de uma minoria de eleitos sobre matérias que são da competência da câmara municipal. No caso do imbróglio à volta do orçamento apresentado à assembleia municipal da Praia é evidente que devia resultar de uma deliberação da câmara, da mesma forma que a proposta de orçamento do Estado só vai para discussão e aprovação no parlamento depois de aprovada no conselho de ministros que é o órgão colegial do governo. A proposta do OE não é do primeiro-ministro nem do ministro de finanças, que o elabora, mas sim do governo. E certamente que não seria pela via de uma lei de finanças locais, como se vem sugerindo, que o legislador iria alterar as competências de um órgão de poder político como é a câmara municipal.

Aliás, não é esse o entendimento que todos os órgãos municipais do país, ao longo das três décadas, têm dos procedimentos a seguir na aprovação dos instrumentos fundamentais do município que são o plano de actividades e o orçamento. Insistir em ir por procedimento que não é usual e aceite configura muito do que se tornou prática entre os populistas nas suas investidas contra as instituições. Em São Vicente e na Praia o conflito com o presidente da câmara aparentemente bloqueou o órgão executivo colegial com uma diferença entre os dois casos. Em São Vicente o presidente não ganhou com uma maioria de vereadores e, in extremis, os outros vereadores podem provocar a perda de quórum do órgão e forçar eleições intercalares para reconfigurar a câmara municipal. Na Praia foi o próprio presidente, aparentemente por falta de diálogo, que acabou com a maioria recebida nas últimas eleições e agora procura esvaziar a câmara das suas competências.

Claro que isso só aconteceria com a conivência da mesa da assembleia municipal e da sua maioria de eleitos e com isso efectivamente colocando todos os poderes no município nas mãos do presidente da câmara. Esse é um resultado que não pode ser visto com complacência por parte de todos os outros poderes que garantem que a constituição é cumprida, as regras do jogo democrático são seguidas e que a legalidade no exercício do poder é respeitada. Se faz escola ao nível local essas acções ostensivas para esvaziar de competências os órgãos eleitos, não dura muito tempo que práticas similares sejam tentadas noutras sedes do poder político.

A dificuldade em reverter situações de atropelo às democracias e suas instituições que as últimas eleições brasileiras e americanas revelaram devia um ser aviso a todos os actores políticos para que, seja na sua actuação directa, seja no processo de nomeação de titulares de cargos públicos, tenham presente a importância crucial para a democracia de se ter funcional e efectivo o sistema de pesos e contrapesos previsto na constituição e nas leis.

Humberto Cardoso

Texto publicado originalmente na edição nº1094 do Expresso das Ilhas de 16 de Novembro