Na sessão da Assembleia Nacional que começa hoje, dia 12 de Abril, vai-se avançar com a proposta de eleição dos quatro membros do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) para completar o que deveria ser a total renovação do órgão de gestão da magistratura judicial. Em Novembro último, os juízes tinham eleito os seus quatro representantes e logo no início de Dezembro o presidente da república nomeou um juiz para completar o número de cinco magistrados judiciais entre os nove membros do CSMJ.
A Assembleia Nacional falhara em eleger os seus representantes e, apesar de não se ter verificado a renovação completa do órgão. optou-se por ir à frente com a eleição do seu presidente. Agora, ao mesmo tempo que se procura colmatar a deficiência com a nova eleição na Assembleia Nacional dos restantes quatro membros não magistrados, está-se a avançar com uma proposta de lei de alteração da orgânica do CSMJ que curiosamente vai alterar as regras do seu funcionamento num sentido no mínimo desconcertante.
A actual lei orgânica prevê um cargo de vice-presidente do CSMJ que coadjuva o presidente e que deve ser ocupado por um membro não magistrado eleito pelo órgão. Algo similar acontece no conselho superior da magistratura da Itália, que é considerado por vários autores como o modelo desses órgãos de gestão da magistratura judicial, com o objectivo de garantir ao público transparência, accountability e prestação de contas. O cargo faz, pois, todo o sentido, mas até os dias de hoje, mais de dez anos depois de a lei ter sido publicada, não foi preenchido. Nem mesmo depois do recurso feito para contornar essa norma ter sido considerado improcedente pelo Tribunal Constitucional. Um acórdão datado de 2016 do TC considerou unanimemente que não tinha razão quem questionou a constitucionalidade da norma que estabeleceu que o vice-presidente deve ser escolhido de entre os membros não-magistrados.
Causa, pois, alguma estranheza que numa mudança de 180º e aparentemente em resposta ao acórdão do TC, a proposta de lei que está para discussão e aprovação na Assembleia Nacional, vá determinar que o vice-presidente seja magistrado judicial. Mais, para além de essa alteração aumentar o peso e a influência dos magistrados no conselho também constituirá um reforço do presidente do CSMJ que não só passará a propor para eleição o candidato a vice-presidente como também poderá pedir sua destituição a todo o tempo (nº 4 do artigo 28º da proposta de lei). A discussão sobre o relativo peso dos magistrados e não-magistrados nos conselhos superiores da magistratura não é coisa inócua ou sem importância. A composição diversa desses órgãos é uma questão central para se garantir, por um lado, a autonomia e a independência dos juízes e, por outro, segundo os constitucionalistas, “se atenuar a ausência de legitimação democrática dos juízes enquanto titulares de órgãos de soberania”.
Como essa diversidade se deverá manifestar para o órgão e em que proporção se elege ou se nomeia os seus membros varia com as diferentes soluções encontradas nas democracias. Mesmo no seio de cada uma delas, a configuração tende a evoluir com o tempo. Em Cabo Verde também houve evolução quanto à maioria numérica no CSMJ. Inicialmente, na Constituição de 1992, os indicados pelos órgãos do poder político (três eleitos pela assembleia nacional e os dois nomeados pelo presidente da república) eram maioritários em relação aos magistrados judiciais (2 eleitos pelos juízes: o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e o Inspector Superior Judicial). Na prática a opção do PR em nomear dois juízes restituía a maioria aos magistrados. Na revisão constitucional de 1999 clarificou-se a intenção do legislador constituinte e estabeleceu-se que os dois membros de nomeação presidencial não podiam ser magistrados ou advogados. Na última revisão de 2010 outra vez, desta feita formalmente, foi invertida a maioria passando a ser 5-4 a favor dos magistrados.
Parafraseando o dito que pessoas investidas com cargos tendem a apegar-se como tenazes ao poder e que esse apego as faz estender o seu poder, aumentar seus direitos e ampliar a esfera da sua própria autoridade, o mais natural é que não se fique por aí. Com as alterações na orgânica do CSMJ apresentadas para discussão e aprovação no parlamento, a proposta de lei em vários artigos dá sinal que se vai no sentido de menor influência dos membros não-magistrados e de maior poder do presidente que também passa a ter voto de qualidade (nº 3 do artigo 34º da proposta de lei).
A questão que se coloca é por que então elegê-los se a capacidade de influenciação na gestão da magistratura judicial é reduzida ao mínimo. Diversidade devia ser a chave para legitimação democrática e contenção de tendências corporativas. O sector da justiça em particular tem estado sob escrutínio mais apertado dos cidadãos e todos querem ver resultados da renovação dos seus órgãos de autogoverno. Se os efeitos não se fazem sentir por limitações várias, podia-se poupar nos custos e evitar os efeitos de fachada que alimentam o cinismo do público em relação às instituições.
Cabo Verde tem várias entidades administrativas independentes, umas nomeadas pelo governo depois de audição parlamentar e outras eleitas pela Assembleia Nacional por maiorias qualificadas de dois terços dos deputados enquanto órgãos externos. O parlamento na sessão a iniciar esta quarta-feira vai eleger candidatos a alguns cargos exteriores e espera-se que renove o mais cedo possível todos os que estão com mandato há muito terminado. O objectivo desejado é que no quadro institucional autónomo e acima das disputas políticas se assegure um ambiente salutar para todo o sistema político que prime pelo cumprimento das regras e por uma cultura de transparência, responsabilização e prestação de contas. Também que salvaguarde os direitos dos indivíduos e os direitos dos consumidores e mantenha funcional uma ordem económica e social facilitadora da iniciativa e da inovação e potenciadora da energia e perseverança de indivíduos e empresas.
São entidades que, pela sua natureza, devem ser competentes, eficazes e afirmativas da sua autonomia em relação aos outros poderes, em particular os económicos e os políticos. Todo o processo de escolha e nomeação dos seus titulares deveria ter isso em devida consideração. Também pela sua natureza e exigências de funcionamento representam custos significativos e na sociedade há a expectativa de um retorno adequado desse investimento. Por isso, não podem ser simplesmente cargos de predilecção de quem só quer privilégios especiais ou moeda de troca de quem quer dispensar favores pessoais ou partidários, nem tão pouco serem escamoteados nos propósitos por que foram criados.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1115 de 12 de Abril de 2023.