A Moção de Censura como era de esperar não passou. Apesar de ter unido toda a oposição na votação final não havia sinais de que o governo tivesse perdido a sua maioria de apoio no parlamento. Enquanto instituto parlamentar para responsabilizar governos pelas suas políticas, a moção de censura foi vista neste caso fundamentalmente como um expediente para continuar o confronto político dos últimos dois meses tendo como pano de fundo acontecimentos recentes designadamente os relatórios do fundo do turismo e do fundo do ambiente. Não trouxe nova matéria para discussão, nem foi oportunidade para o maior partido da oposição apresentar-se como alternativa de governação na eventualidade da moção passar.
Claramente que o país precisa de um sério e aprofundado debate sobre o seu futuro. Um sinal disso é a procura sem precedentes de vistos e as pressões sobre os serviços consulares responsáveis ventiladas pela comunicação social durante semanas seguidas. Indicia que para muita gente e em particular para os mais jovens há uma preocupação genuína sobre o que será o amanhã. De facto, percebe-se que há uma vontade crescente de emigrar que provavelmente não é de agora como se pode ver pelos dados do INE de Abril de 2022 que revelaram, para espanto geral, que o país perdeu população ao invés do aumento esperado. Aparentemente, só para a classe política é que ainda não chegou o momento para enfrentar com desassombro e clareza a questão como se pôde constatar no que afinal se mostrou o último desperdício de tempo parlamentar que foi a discussão da moção de censura. Provavelmente acontecerá o mesmo no debate sobre o estado da Nação na próxima semana.
Um dado novo, entretanto, surgiu que talvez ajude a focar melhor a atenção sobre a problemática de desenvolvimento de Cabo Verde. Um memorando económico do Banco Mundial de 14 de Julho veio com uma clareza fora de comum lembrar que “o modelo económico de Cabo Verde tem dado sinais de cansaço desde a crise financeira mundial de 2008”; que a taxa de crescimento anual caiu de uma média de 10,1% na década de 1990 para 7,2% na década 2000 e para 1,2% na década de 2010, excluindo o ano 2020; que o potencial de crescimento da economia caiu de 6% na década de 1990 para 3,5% por cento após 2010. A queda no potencial de crescimento, segundo o memorando do Banco Mundial, deve-se ao facto da produtividade (PTF) que, devido às reformas estruturais dos anos noventa, tinha uma contribuição de 51% no crescimento ter passado a uma contribuição só de 1% na década de 2010-2019 atribuída à rigidez estrutural.
Comparando Cabo Verde com outros pequenos países insulares com características económicas e dotações semelhantes, o memorando do BM, que os distingue entre os pares estruturais (Samoa, São Tomé e Príncipe e Vanuatu), e os pares aspiracionais (Maurícias, Seicheles, Nevis e Santa Lúcia), considera que a produtividade do trabalhador cabo-verdiano só é superior ao de São Tomé e Príncipe. Acrescenta ainda que a produtividade do trabalho em Cabo Verde, que em 2009 correspondia a 42% do nível dos seus pares, passou para 39%, o que evidencia que o país não só não consegue alcançar os pares mais avançados como está, de facto, atrasado. O fraco crescimento da produtividade no sector dos serviços, que constitui a maior parte da economia cabo-verdiana, na ordem dos 0.70% evidentemente que acaba por condicionar a produção, o emprego e os salários, com impacto directo na vida das pessoas e nas suas expectativas em relação ao futuro e também na capacidade do país de responder a choques económicos externos e aos efeitos das alterações climáticas.
Reconhece-se no memorando que o turismo contribui directamente para 25% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, que cria cerca de 45% do emprego formal, representa 55% das receitas de exportação e que indirectamente a sua contribuição atinge os 44% do PIB. O mais natural é que uma maior atenção fosse dedicada ao sector e se verificasse o engajamento de todos no país e na sociedade por forma a potenciar no máximo o impacto do fluxo turístico sobre toda a actividade económica do país. Pelo que é explicitado no memorando, fica claro que se está muito aquém de fazer o aproveitamento adequado desse efeito de arrastamento da economia. Como ainda 80% dos produtos alimentares e bebidas consumidos nos hotéis são importados, existe uma grande margem para aumento da produção nacional. Também pode-se diminuir as rejeições de produtos de ordem dos trinta por cento por falta de qualidade e perdas também de 30% por razões de transporte inadequado de produtos.
Por isso, recomenda-se que o foco deva estar na construção da logística necessária para ligar as ilhas produtoras de bens agrícolas e industriais aos mercados de consumo nas ilhas do Sal e da Boa Vista de forma a conseguir ganhos de escala e responder às exigências de qualidade dos produtos, certificação e fiabilidade das cadeias de abastecimento. No processo eliminavam-se ineficiências várias nas transacções e diminuíam-se custos nos transportes e na utilização das infraestruturas portuárias. Uma parte do esforço no desenvolvimento do sector privado e da estrutura produtiva capaz de criar riqueza de forma sustentável e empregos estáveis poderia beneficiar de investimentos dirigidos para suprir as insuficiências e também de perseverança para ultrapassar as naturais dificuldades de um país arquipélago e com um mercado fragmentado.
Infelizmente não é essa a atitude que tende a prevalecer. Mais facilmente se vai atrás de políticas que estão em voga e que vêm juntos com promessas de milhões do que procurar potenciar o que na prática existe e pode-se aprofundar e até desenvolver estrategicamente. Ou então, fica-se por confrontos que tendem a fazer da política exclusivamente um jogo para chegar ao poder e não fundamentalmente o processo para uma sociedade plural e democrática encontrar vias e soluções para os desafios do presente e futuro e até rectificar opções passadas. Uma outra tentação é ir atrás de objectivos que só ideologicamente se justificam como o de se aproximar da África sem que se tenha descortinado, ao longo de quase 50 anos de independência, que utilidade as ilhas poderão ter para o continente, desperdiçando tempo, recursos e oportunidades outras.
A percepção de que o modelo actual de desenvolvimento poderá estar a esgotar-se devia ser um alerta forte para um país que já ocupa a 9ª posição mais alta nas taxas de emigração mundial e que em média, de acordo com o Memorando do BM, perde 1% da população por ano. A aumentar essa sangria, como parecem sinalizar as pressões para conseguir vistos, é também mão-de-obra que se perde trazendo constrangimentos graves ao investimento directo estrangeiro e comprometendo ainda mais o futuro do país. É, de facto, mais do que tempo para se mudar de rumo.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1129 de 19 de Julho de 2023.