O Banco de Cabo Verde (BCV) na publicação de Outubro do seu relatório de política monetária anunciou a subida das taxas de juro de referência. As razões apresentadas foram de reduzir o diferencial entre as taxas de juro no País e no estrangeiro, em particular na Europa. Para combater a inflação, os países europeus e os Estados Unidos vêm aumentando a taxa de juros, o que tem pelo menos duas consequências importantes. Tende a arrefecer a economia desses países e atrair fluxos financeiros do resto do mundo. O impacto, porém, não fica por aí.
Para Cabo Verde, cuja moeda está ligada por um peg fixo ao euro, uma europa menos dinâmica pode significar baixa procura das suas exportações e menor fluxo turístico com consequência negativa na entrada de divisas. Também, pode significar saída de capitais do país e menos depósitos dos emigrantes à cata de uma melhor remuneração no mercado financeiro europeu. Daí a necessidade do BCV de pôr um travão à diminuição das reservas monetárias pela via de uma alta de juros que vai dissuadir esse movimento de capitais para fora. Juros altos que internamente vão tornar mais caro o crédito para o investimento e para o consumo, afectando o crescimento económico, criação de empregos e rendimentos.
Cabo Verde tem uma economia aberta e desde de Junho de 2018 permite a livre circulação de capitais. A decisão tomada pelo governo através do decreto legislativo nº3/2018 foi antecedida de algum debate público onde benefícios e riscos da medida de política foram considerados. Num seminário proferido pelo economista António Portugal Duarte, por ocasião das comemorações do vigésimo aniversário do Acordo Cambial, ele concluiu que a liberalização dos movimentos de capitais pode apresentar-se como grande oportunidade mas também pode levantar importantes desafios e acarretar grandes prejuízos para uma pequena economia. As eventuais vantagens na atracção de investimentos tinham que ser contrabalançadas com as desvantagens que saídas abruptas de capitais, “caprichos” do mercado internacional e situações externas adversas poderiam representar.
Aparentemente vive-se uma dessas situações adversas e, daí, justificar-se que o BCV, no relatório publicado, possa considerar como um sinal de alerta a “canalização de divisas adquiridas junto do banco central para investimentos no exterior” e “o risco de aquisição de divisas por parte dos bancos comerciais nacionais (…) para rentabilização nos mercados financeiros internacionais”. Um outro factor de risco que identifica seria a “saída de depósitos e/ou na redução da capacidade de atracção de novas operações” dos emigrantes. Também já constata que se vive com uma realidade de baixa, ainda confortável, de reservas externas que em 2022 era correspondente a 6 meses de importações e para 2023 e 2024 prevê-se 5,8 e 5,6 meses respectivamente.
A questão que se coloca é se só com mecanismos de mercado de alteração de taxas de juro se vai conter uma eventual drenagem de recursos. O FMI, na última missão a Cabo Verde, em Novembro, acolheu bem a decisão do BCV de aumentar as taxas directoras para diminuir o diferencial com a zona euro e para proteger as reservas cambiais. Entretanto, sabe-se que as projecções para a economia mundial apontam para uma nova era de juros altos. Na eventualidade do país acompanhar essas taxas altas por tempo prolongado, que opções existem para evitar o travão na economia que o crédito caro pode representar para o investimento e para o consumo.
O país tem um peg unilateral no euro e, em consequência, por um lado, não tem grande espaço de manobra em matéria de política monetária. Por outro, não beneficia de outras formas de apoio que poderiam vir da euroização na forma de transferências similares às do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) feitas para os países da União Europeia. Tem que encontrar outras formas de estimular a sua economia enquanto limita o diferencial nas taxas de juro e, provavelmente, não deverá pôr de parte a possibilidade de usar outros mecanismos de controlo de capitais. Outros países já o fazem para evitar os efeitos negativos do hot money e a própria legislação cabo-verdiana o permite em certas circunstâncias.
A verdade é que o mundo de hoje não é o de 2018 quando se liberalizou a circulação de capitais, ponderando os riscos, nem o de 2009 quando se aderiu à Organização Mundial de Comércio (OMC) cumprindo, logo à partida, todos os requisitos de liberalização quando não era necessário enquanto país menos desenvolvido (PMD). Eram os tempos de se mostrar, como “bom aluno”, de acordo com as linhas do chamado Washington Consensus, mesmo que depois os resultados dos financiamentos ficassem aquém do prometido e o crescimento não atingisse as taxas esperadas. Depois da Covid-19, da guerra da Ucrânia e, agora, do conflito potencialmente explosivo no Médio Oriente, a abordagem da problemática de desenvolvimento, na generalidade dos países, é outra, particularmente quando o mundo se vê a braços com uma inflação alta e na perspectiva de crescimento rasteiro em cima de tensões geopolíticas emergentes.
Cabo Verde não deve ser excepção. Nos Estados Unidos, na Europa e noutros países desenvolvidos abundam debates, designadamente, sobre “política industrial” para reconstruir a estrutura produtiva e traçar linhas de orientação para inovação tecnológica, sobre proteccionismo e sobre medidas para evitar os efeitos nocivos da excessiva desregulação financeira. Também se discute como renovar o contrato social de forma a diminuir as desigualdades sociais e incentivar a criação de empregos de qualidade e bem pagos. O tempo do chamado neoliberalismo parece ter ficado para trás quando se vê a globalização a recuar, um mundo multipolar a emergir e um Sul Global a querer afirmar-se.
Importante se torna debater na nova conjuntura qual deve ser o papel do Estado na promoção do desenvolvimento económico e em manter o contrato social em que há oportunidades para todos visto que ficaram evidentes os limites do que o mercado sozinho pode engendrar e propiciar. No meio-termo, como lembra David Pilling num artigo recente do jornal Financial Time focado na África, não convém que se caia na tentação de apostar no micro empresário, no pequeno agricultor e no vendedor de rua como via para resolver o problema da economia. É uma aposta que, segundo ele, condena as pessoas à pobreza porque, citando o economista Paul Collier, só com “ganhos de escala e de especialização” das empresas e não com o microfinanciamento é que se pode construir o edifício da economia moderna. Já sentindo em força os efeitos da mudança, como bem vem relembrar o relatório do BCV, não há tempo a perder para se iniciar o debate.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1145 de 8 de Novembro de 2023.