domingo, maio 24, 2009

Malefícios da gratidão política

John Adams, o 2º presidente dos Estados Unidos e um dos pais fundadores da república, em 1787-88, avisou num dos seus escritos que gritos de gratidão têm enlouquecido mais homens e estabelecido mais despotismos no mundo do que todas as outras causas possíveis. Mais avisou que líderes políticos a declararem-se despidos de interesses pessoais e motivados somente pelo amor pelo povo não constituem garantia de liberdade.

A Africa está repleto de exemplos de como a utilização da política de gratidão pelos protagonistas da independência tem sido desastrosa. Exigir gratidão foi a via encontrada para se arrogar o direito ao exercício do Poder com exclusão de todos. Com isso dividiu-se a sociedade e legitimaram-se tácticas políticas de exploração de diferenças étnicas, linguísticas e religiosas. Construíram-se cumplicidades continentais para garantir o reconhecimento do direito dos heróis da luta anti colonial ao Poder nos seus países.

Subsequentemente o controle dos recursos naturais e da ajuda externa serviu para perpetuar a exploração do sentimento de gratidão das populações. No sistema rentista instituído, governar passou a significar dar prendas às pessoas, realizar sonhos das populações, e contemplar grupos seleccionados com acesso a recursos ou a oportunidades. Actos do governo transformaram-se em rituais diários de demonstração da generosidade dos governantes e de manifestações de gratidão das populações,   altamente mediatizados via comunicação social, em especial a televisão.

As consequências vêem-se na história pós independência da generalidade dos países africanos: Guerra civil, golpes de Estado e atraso económico indiscutível, particularmente quando comparados com a Coreia do Sul e Singapura, países que nos primórdios da independência, tinham o mesmo rendimento per capita do Gana e da Nigéria. Onde, então, houve luta armada anti colonial a política de gratidão resultou, quase sempre, em guerra civil. Zimbabwe, Moçambique e Angola são casos paradigmátios.

A turbulência política na Guiné Bissau é o exemplo mais recente e notório da verdade nas palavras de John Adams. Trava-se aí uma variante da guerra civil. De uma primeira fase de eliminação de potenciais ou imaginários adversários com o massacre dos antigos comandos africanos e outras figuras guineenses, o PAIGC entrou em intermináveis conflitos internos que dilaceraram o país. O culto de gratidão pelos combatentes da independência pôs o destino da Guiné nas mãos deles e tem justificado a sua permanência no Poder, não obstante a desgovernação de décadas a que sujeitaram o País. O resultado é que hoje, segundo Aristides Gomes, antigo primeiro-ministro, citado pelo Público de 9/6/2009, “os políticos dependem de tal forma do apoio de facções poderosas nas forças armadas que o país se tornou impossível de governar. As forças armadas não são mais um exército no verdadeiro sentido do termo, mas uma mescla de várias milícias”.

Nelson Mandela destaca-se de todas as manifestações despudoradas de ganância de Poder em Africa. Figura central da luta anti-apartheid na Africa do Sul não se candidatou para mais um mandato após realizar o seu desígnio de construção de uma democracia multi-étnica, multiracial e multicultural. O seu gesto teve significado similar ao do general George Washington que se retirou para a vida civil logo que terminou a guerra da independência. O mesmo George Washington que, mais tarde, chamado a servir a jovem república como presidente, retirou-se ao fim do segundo mandato, para que a voz do povo nas urnas tivesse expressão mais distinta e clara, criando o precedente de dois mandatos universalmente referenciado.

Robert Mugabe, pelo contrário, é o exemplo acabado de como um herói da guerra da independência se sente no direito de até destruir o país, se o seu poder for questionado. Logo após a independência, procedeu ao aniquilamento de rivais do ZAPU, também combatentes da independência. Posteriormente desferiu ataques contra a minoria branca destruindo a economia do país no processo. O espectáculo do Zimbabwe, um país outrora dos mais prósperos na região, a ser engolido pela hiperinflação, é elucidativo do que acontece quando reina o despotismo de quem reivindica eterna gratidão pelos seus feitos no passado.

O mais complicado é a complacência generalizada em relação aos actos destrutivos de Mugabe. Demonstra o quão muitos se revêem na política de gratidão. E como as narrativas de vitimação, do esclavagismo e do colonialismo são instrumentais para a manutenção do Poder em Africa.

Cumplicidades extraordinárias são forjadas no esforço permanente de controlo da memória pública dos acontecimentos históricos. A exaltação da luta pela independência e dos seus protagonistas ou heróis caminha lado com uma leitura oficial e unidimensional da história que a justifica. Por isso, gera permanentes divisões na sociedade e insiste que o presente seja sempre visto com os olhos do passado. O País vê-se roubado de coesão social, capacidade de governança e perspectiva do presente e futuro para que se eternize o poder dos que se fazem proclamar “melhores filhos”.

Causa alguma estranheza a cumplicidade das antigas potenciais coloniais na manutenção de narrativas independentistas. E a deferência demonstrada em relação aos seus protagonistas oficiais. Talvez resultado de interesses económicos, de complexos de culpa ou, ainda, de resquícios de paternalismo. Em todos os casos, só os ajudam no controlo da memória pública e, por essa via, a munirem-se dos meios de manutenção no governo ou de regresso ao Poder.

Mesmo em situações extremas como as da Guiné-Bissau, em que se assiste à implosão progressiva do país e a sua transformação num Estado falhado, não se vai ao fundo do problema. Deixa-se ficar pelas recomendações de sempre: eleições urgentes e criação de forças de interposição. Insiste-se mesmo que eleições presidenciais continuem marcadas para o dia 28 de Junho, não obstante o assassinato recente de um candidato presidencial e de um deputado proeminente. Espera-se que a realização das eleições restaure a ordem constitucional. Como se isso fosse possível, tendo em conta a ausência do controlo civil das forças armadas e de garantias de segurança e, também, a falta do esclarecimento completo dos assassinatos do Presidente da República e do Chefe de Estado Maior.

O PAIGC tem mais de dois terços dos deputados desde das eleições de Novembro de 2008. Vê-se que o país continua nas suas mãos, mas a Guiné continua sem segurança, sem governo e sem perspectivas de desenvolvimento. O Presidente Obama no seu discurso de Cairo de 4 de Junho deixou claro que “só eleições não fazem uma democracia de verdade”. É preciso, segundo ele, “manter o poder por meio de consentimento, não de coerção; é preciso respeitar os direitos das minorias e participar com espírito de tolerância e compromisso; é preciso colocar os interesses do povo e os trabalhos legítimos do processo político acima do partido”.

Em Cabo Verde, os acontecimentos na Guiné são vistos num misto de pena e ansiedade. Pena porque se trata de destruição progressiva de um país próximo, que em muitos caboverdianos, por uma razão ou outra, traz boas recordações. Ansiedade porque sempre que a Guiné está na berlinda  põe-se o problema da real herança histórica do PAIGC. Do que ele foi, o que fez e em quê se transformou. E assim é, porque, também em Cabo Verde, há uma pressão constante no sentido do controlo da memória pública.

Não houve luta armada em Cabo Verde mas instalou-se um regime de partido único na base de uma legitimidade, adquirida na guerra na Guiné. Os líderes sentiam-se justificados na gratidão que o povo lhes devia pela independência alcançada e por terem vertido sangue e demonstrado livre de interesses próprios. O problema nesta construção ideológica é que se tratava de história contada, não de história vivida nas ilhas. O controlo dos elementos da narrativa teria que ser o mais estrito possível para evitar contradições, incoerências e revelações demolidoras. Daí a “dança” com a Guiné.

É ali que tudo se tinha passado. Dali é que vinha a legitimidade, mas também podia vir elementos destrutivos. Manteve-se durante cinco anos a ilusão da Unidade Guiné-Cabo Verde contra toda a evidência da violenta interna do PAIGC, demonstrada na morte de Cabral. Convinha aos desígnios do Poder em Cabo Verde. Hoje esforça-se por determinar uma data para o descalabro da Guiné, para evitar que a verdade contamine quem ainda reivindica o legado da luta de libertação. Por isso, uns dizem que foi depois do golpe contra Nino, outros garantem que foi com o Nino, outros ainda vão ao tempo do Luís Cabral e às valas comuns. A realidade é que conflitos dentro do PAIGC e as formas sumárias de os resolver vêm de longe, do Congresso de Cassacá em 1964, como testemunha Amílcar Cabral na obra “Palavras de Ordem”. Depois da independência, essa cultura política foi simplesmente extrapolada para o país todo, no quadro do partido-estado.  

A preocupação com o controlo da memória pública, após quase duas décadas de democracia e de legitimação do exercício do Poder pelo voto livremente expresso, demonstra que políticas de gratidão estão vivas e activas na sociedade caboverdiana. Há, certamente, quem quer alavancar as suas chances políticas, cobrando dívidas de gratidão por factos passados, favores prestados e benesses dispensadas.

Não é estranho a isso a insistência num nacionalismo que se sustenta mais de lutas de fora do que de vivências de dentro, que vive mais do passado do que dos desafios do presente e que mais desune do que une. Também não é estranho que se inculque um sistema de referência onde governos são valorizados pelo volume de ajuda angariada, a governação fica, muitas vezes, por grandes gestos sem consequência e a dependência das pessoas é activamente alimentada pelo Estado. Como também não é estranho que se mantenha o timbre fortemente partidarizado da acção do Estado, a comunicação social pública dentro da narrativa libertária e a Educação sob controlo ideológico, actualmente até com inputs directos do Primeiro Ministro para crianças e adolescentes, em aulas especialmente fabricadas.

Rejeitar a cultura política que elege dívidas de gratidão como sustentáculo da actividade política é fundamental para a Liberdade, para a contínua institucionalização do país em direcção ao ideal da boa governança e para que Cabo Verde deixe de se mirar no passado e projecte o futuro, realçando os valores do mérito, da criatividade e da capacidade de execução e inovação.   

  Publicado pelo jornal A Semana de 22 de Maio de 2009

sexta-feira, maio 08, 2009

Emprego, o mercado e o futuro

O Governo, em matéria de emprego, parece ter deixado cair a toalha ao chão. Solicitou um debate parlamentar sobre emprego e formação profissional. Já praticamente a fim do seu mandato e sem ter cumprido o objectivo da legislatura de baixar o desemprego a níveis inferiores a 10%, o convite à Oposição só pode significar que se esgotou em termos de soluções próprias.

E isso não se esconde com o frenesim habitual de membros do Governo a se espalharem pelas ilhas a falar de formação profissional e empreendedorismo e a prometer a construção de centros de formação. Formação profissional é útil para responder ás necessidades do mercado em trabalhadores qualificados. Por si mesmo não cria emprego. Pode tornar as pessoas empregáveis. Mas isso, se houver procura, ou seja, se houver crescimento da economia, se os mercados estiverem organizados e se o exercício da profissão for regulado de modo a evitar informalidade no acesso ao trabalho.

Crescimento económico não aconteceu nas taxas que podiam contribuir para debelar significativamente o desemprego. Com a crise, o investimento público, focalizado em infraestruturas, não se tem revelado capaz de arrastar o resto da economia e manter o ritmo de crescimento. Consequências disso são visíveis ao nível do emprego e do rendimento das pessoas mas também das receitas do Estado, como bem disse a Sra. Ministra das Finanças.

A unificação do mercado nacional que, num país arquipélago e de pequena população, poderia trazer um factor de escala para alguma produção nacional não atingiu níveis desejados. S. Antão continua cortada do resto do país por causa dos milpés, Brava e Maio estão praticamente isoladas e as comunicações entre as outras ilhas sofrem os efeitos da precariedade das ligações, inadequação dos barcos e constrangimentos vários ao nível dos portos e serviços neles prestados. O Governo insistiu na construção de rede de estradas nas ilhas e descurou as “auto-estradas” entre as ilhas, as linhas marítimas. Sem movimento garantido inter ilhas fica-se muito aquém de retirar os benefícios possíveis da construção das estradas. A estrada Porto Novo Janela, por exemplo,  compreende-se em grande parte se houver um esforço redobrado de unificação económica de S.Vicente e S Antão que gere mais circulação de pessoas e bens.

A organização do mercado pressupõe que se reconheça, designadamente, onde é capaz de funcionar em pleno, onde é imperfeito, onde se deve condicionar a entrada de operadores e onde não é possível substituir a presença do Estado. E, também, que se aja em consequência.

As ligações marítimas inter ilhas são claramente um sector que não pode ser deixado unicamente nas mãos do sector privado. A exemplos de outros espaços arquipelágicos como os Açores onde se subsidia o transporte marítimo, o Governo de Cabo Verde deve ter respostas à altura. Subsídio, concessões, licenças ou intervenção directa, devem ser considerados com vista à unificação do mercado interno como forma de potenciar a produção nacional .

Subsídios têm sido estigmatizados, muitas vezes sob pressão do FMI, devido a  preocupações legítimas com o possível impacto orçamental no presente e no futuro. Não se tem, talvez, em devida conta os ganhos derivados do efeito multiplicador na economia que, a verificarem-se, diminuem o risco orçamental.

O resultado é que ligações como as que ligam Praia ao Maio e Brava ao Fogo não gozam de um contrato próprio incluindo subsídios. Contrato esse que ao estabelecer frequência certa do barco, ou seja criar previsibilidade na ligação, abre o caminho para o crescimento progressivo do movimento de carga e passageiros nos dois sentidos e consequente aumento do emprego e produção na ilha. O subsídio inicial para cobrir a diferença entre o custos e as receitas derivadas de carga e passageiros, tende a diminuir com o crescimento do tráfico. E, a prazo, a terminar mesmo, com a viabilização da rota. Mais arriscado parece é a insistência do Governo em soluções que comprometem o Estado com subsídios sem serviço imediato, Cartas de Conforto na emissão de obrigações, sem o aparente suporte de activos, e presença problemática do Primeiro Ministro em OPOs (Oferta Pública de Obrigações) de empresas privadas.

A ajuntar-se à falta de visão na organização do mercado nacional, vêm as omissões na regulação. Um dos exemplos mais gritantes é a produção e distribuição do grogue. Mesmo os efeitos desastrosos do elevado alcoolismo em todo o País, particularmente no mundo rural e entre os jovens não levam as autoridades a ter uma posição forte e corajosa.

O País não tem cana sacarina suficiente para produzir os muitos hectolitros de grogue  consumidos anualmente. A diferença entre a oferta e a procura é coberta por mistelas diversas destiladas livremente, sem obviamente qualquer controle de qualidade e de nível de toxicidade. O resultado é que o “mau” grogue acaba por deslocar o “bom” grogue de cana, deprimindo os preços, arruinando os proprietários de cana ou forçando-os a juntarem-se à produção ilegal. A desconfiança generalizada em relação ao Grogue faz o produto perder mercado tanto no país, entre as classes mais abastadas e no mercado do turismo, como não consegue atingir o seu potencial enquanto produto de exportação para o mercado étnico das comunidades na América e na Europa. Perdem os proprietários, perde o Estado com a produção ilegal, não tributada, e perdem os exportadores.

A distribuição não regulada, por outro lado, tem consequências sociais graves pelo impacto directo nas famílias, na produtividade do trabalho, nos custos das estruturas de saúde e nas demandas feitas ao sistema de segurança para pôr cobro aos tumultos causados pelo uso excessivo do álcool. Fica evidente que aceitar-se que se venda, em todo o lado, cálices de grogue por 10 escudos, ou que se deixe generalizar misturas adocicadas para disfarçar o mau gosto do grogue e atrair jovens mulheres a bebidas fortes, não traz quaisquer ganhos ao País. Em vez de criar trabalho e gerar divisas com exportações, a produção do Grogue destrói pessoas, compromete a produtividade nacional e onera o Estado. É tempo de se agir inteligentemente, mas resolutamente, para regular o sector e pôr cobro ao problema.

A intervenção qualificada do Estado num economia pequena e insular como a caboverdiana pode ser um factor importante de crescimento. Desde logo pelo facto da própria presença do Estado através dos salários pagos, serviços prestados, bens e serviços comprados, fluxo de pessoas induzidos e eventos criados afectar tudo à sua volta. Modular o impacto do Estado de forma a que, designadamente, favoreça a concorrência entre empresas, contribua para uma maior qualidade nos produtos e serviços prestados, e incentive a emergência e desenvolvimento de novos mercados deve constituir uma parte importante das medidas de política económica do Estado. As opções de descentralização, o modelo de aprovisionamento de bens e serviços, as formas adoptadas na prestação dos serviços do Estado e mesmo a organizações de eventos públicos devem ter em devida consideração o peso e a influência que a acção do Estado poderá ter nas pequenas economias das ilhas, para melhor as potenciar.  

O sector energético é um sector a pedir uma intervenção qualificada do Estado. Uma intervenção que vá além da simples procura de financiamento para formas convencionais de produção de energia e água. Ou fique por acções, também financiadas do exterior, como é caso das entregas mediatizadas de lâmpadas de baixo consumo.

Onde estão as outras medidas de promoção da poupança nos consumidores? Se a tendência do futuro – futuro que já foi o presente poucos meses atrás no preço de petróleo a 145 dólares - é do aumento do preço dos combustíveis fósseis sob o impulso da procura, como ficar pela actual política de preços de combustível? O objectivo parece ser, tão somente, proteger o orçamento do Estado de choques futuros. Quando o que importa, agora e no futuro, é modelar comportamentos dos consumidores, consentâneos com a inevitabilidade do aumento dos combustíveis, logo que a economia mundial saia da recessão actual.  

Por outro lado, como não criar possibilidades de emprego com novos mercados criados pela regulação do sector energético. Uma decisão, por exemplo, de favorecimento de colectores solares térmicos para a produção de água quente para hotéis, blocos de apartamentos e outros edifícios em detrimento de termoacumuladores eléctricos criaria espaço para o surgimento de empresas de montagem, instalação e manutenção dos colectores. Ganhar-se ia em novos empregos e na poupança de energia com proveito directo para os consumidores, para os fornecedores de energia e para a balança de pagamentos do País. No mesmo sentido ir-se ia com acções de política dirigidas para instituir a certificação energética dos edifícios.

A grande oportunidade que poderá abrir-se ao País está num comprometimento forte, sério e abrangente no domínio dos biocombustíveis, particularmente do biodiesel a partir da purgueira. A purgueira, jatropha curcas, é uma planta decididamente adaptada em Cabo Verde cujo óleo já fez parte da economia das ilhas como produto de consumo local e de exportação. Das plantas oleaginosas é a que mais se pode retirar óleo: até 40% da sua massa. Depois de um processo de refinação que é fundamentalmente de transesterificação, o óleo resulta em biodiesel e glicerina. O biodiesel pode ser misturado com o diesel num blend a diferentes percentagens. Na Nova Zelândia, em Fevereio deste ano,  fez-se mesmo a experiência de misturar 50-50 o biodiesel da purgueira com o Jet Fuel para operar um dos reatores de um Boeing 747-400.

Com uma capacidade de produção por colheita e por hectare de cerca de 1800 litros de óleo, a purgueira a pode ser a cash crop que o mundo rural caboverdiano, há muito tempo, procura. Dá-se muito bem em zonas semi-áridas e de terrenos marginais e não compete com as plantas alimentares. Importa neste momento é que se crie um mercado para o óleo da purgueira.

 E isso faz-se definindo por lei a percentagem do diesel em Cabo Verde que deverá ser biodiesel. A exemplo da Directiva da União Europeia de 2003 que aponta para uma percentagem de biodiesel de 5.75 % na Europa até 2010 e de leis noutros países que estipulam percentagens muito mais elevadas de 20%. Com isso, grandes ganhos podem ser vislumbrados: ganho para os agricultores e para a população rural; ganho para o país porque haveria menos importações de combustíveis fósseis; ganho para o ambiente com um combustível menos poluente. Ganhos futuros em vendas de crédito de carbono.

Acordos público-privado do género do que foi assinado na semana passada com a GeoCapital  denota o interesse dos poderes públicos. Mas há que agir de forma decidida para criar espaço para o biodiesel,  a partir do óleo da purgueira, no mercado global do diesel em Cabo Verde, avaliado em mais de 96 mil toneladas e um total de 11 milhões de contos.

No mundo globalizado de hoje ganhos importantes vão para quem consegue ver as tendências a emergir e posicionar-se para as explorar. Os empregos novos assim criados têm maior possibilidade de sustentabilidade a prazo. Para o País, saber antever o futuro e adaptar-se rapidamente ás suas exigências pode ser a fórmula ganhadora. Nessa perspectiva, mais do que talvez a formação profissional , uma grande qualidade no ensino das ciências, da matemática e das línguas no nível básico e secundário parece mais vantajoso. Uma base sólida permite que rapidamente as pessoas adquirem novas qualificações e mudem de profissão, conforme a dinâmica do mercado.

É matéria para se continuar a reflectir.

         Publicado pelo jornal A Semana de 8 de Maio de 2009 

domingo, abril 26, 2009

A importância da diferença

Em Cabo Verde já se vive um ambiente político pré eleitoral. Não obstante o facto de se estar a mais de dezoito meses das eleições legislativas, previstas para Janeiro de 2011.

A crise mundial pôs um fim prematuro a qualquer esperança que a actual governação do País seria capaz de cumprir os dois grandes objectivos da legislatura: o crescimento de economia a mais de 10% e o debelar do desemprego para níveis abaixo dos 10%. Não o fez no tempo das vacas gordas do crédito fácil, de expansão rápida do comércio internacional e de forte crescimento mundial. Ninguém espera que o faça no momento actual que já é chamado de Grande Recessão, para caracterizar a maior contracção da economia mundial desde da Grande Depressão de 1929.  

A crise, constituindo o fim de um ciclo e muito provavelmente de um modelo de  crescimento, impõe reflexões profundas e urgentes. De como as diferentes economias foram, por ela, apanhadas, como acabaram por ficar afectadas e que perspectivas têm de minorar o impacto e adaptarem-se às novas relações económicas que irão emergir. A preocupação com o futuro é mais premente em países como Cabo Verde que ficaram muito aquém de retirar o proveito possível, quando as condições eram mais favoráveis. 

Há a consciência que já é o futuro em discussão. Porque só políticas novas e uma renovada legitimidade irão dar tempo e energia á governação. Nessa perspectiva já se assiste o governo e o partido que o suporta a lançarem-se na ofensiva para se manterem no Poder. E a Oposição a ser espicaçada para se revelar como uma verdadeira alternativa.

Cabo Verde vive um momento de verdade. Tem que se confrontar com o facto de não obstante os níveis de crescimento atingidos não conseguiu, em mais de oito anos, baixar o desemprego para valores iguais, e muito menos inferiores, aos do ano 2000. Também tem que encarar o facto de não ter conseguido alargar a base da sua economia, deixando-a perigosamente a suportar-se sobre o turismo, como bem alertou o FMI no seu relatório de Julho de 2008. E ainda com o facto de hoje ser classificado como País de Rendimento Médio e ver progressivamente diminuir ajudas e empréstimos concessionais.   

Respostas adequadas devem ser encontradas:
  • Para questões sobre a natureza e a qualidade dos investimentos que até podem mexer com os números no PIB mas falham em alargar a estrutura produtiva e em criar empregos sustentáveis;
  • Para se saber  porque o País ainda não se mobilizou para adquirir uma cultura de serviços e desenvolver nas pessoas um espírito cosmopolita  traduzido, designadamente, na atitude certa para com o mundo e em competência linguística relevante;
  • Para se determinar o papel que o Estado deverá ter na economia nacional, o peso limite permitido na absorção dos recursos nacionais, o impacto que a descentralização, ou não, das suas estruturas poderá ter sobre a economia local das ilhas;
  • E, também, de como fazer para se passar da actual situação de dependência do Estado para uma outra de autonomia do indivíduo em que o exercício pleno dos direitos se conjuga com o sentido de responsabilidade e de pertença.

Respostas só podem ser encontradas no exercício do contraditório, em ambiente de liberdade e com elevado sentido de justiça. Pressupõem a existência de diferenças, o respeito pela diferença e a condenação da arrogância totalitária, patrioteira e moralista que insiste na inutilidade da diferença.

A democracia liberal tem nos seus fundamentos o exercício das liberdades, particularmente a rainha das liberdades, a liberdade de expressão e de informação. Ou seja, a democracia liberal não só pressupõe a diferença como vive das suas múltiplas manifestações e interacções. Compreende-se, assim, porque não há democracia sem partidos políticos e como é importante mantê-los não obstante as suas notórias insuficiências e imperfeições.

Em momentos críticos, como o actualmente vivido em Cabo Verde, é de suprema importância que os partidos sejam chamados a exercer em pleno o seu papel. Têm a responsabilidade de criar soluções de governo e devem colocar-se à altura. Ou seja, devem dizer quem são, o que representam e que políticas propõem. Com isso dinamizar o debate nacional, fazendo com a sociedade tenha uma ideia dos desafios existentes e das possíveis vias para os enfrentar e vencer. O espectáculo do exercício da democracia na América, que produziu Barak Obama, deve ser fonte de inspiração, para se discutir e encontrar soluções de políticas e de liderança para o País, na encruzilhada em que também se encontra.

O período pré eleitoral actual não deve focalizar-se unicamente nas personalidades pretendentes a líderes e nos relatos de intrigas palacianas, que acompanham a expressão das ambições. Mais do que nunca urge discutir o País. Para isso é fundamental que os partidos se dêem a conhecer, afirmem as diferenças e confrontem políticas nos diferentes sectores de governação.

O MpD e o PAICV são os dois partidos da área de governação. Como tal têm responsabilidades acrescidas. Não devem deixar deslizar-se para posturas de simples protesto ou de contra poder. Uma tentação que não é simplesmente de quem, conjunturalmente, está na oposição. Também quem governa, no alto da sua arrogância pode reagir às tentativas de fiscalização e de limitação da governação com protestos que o escusam de prestar contas e mostrar-se responsável. E pode agir como contra poder quando nega à oposição os poderes de check and balance que a Constituição lhe confere. 

Os dois partidos pilares do sistema político caboverdiano surgiram em momentos diferentes da História do País. A matriz ideológica diferenciada e a cultura política que a acompanha são tributárias das respectivas trajectórias.

O PAICV, o velho partido único, evoluiu para o campo socialista do tipo europeu. Em consonância com os tempos e no governo após 2001, a exemplo de partidos socialistas na Europa, aproximou-se mais do centro político e tornou-se, na prática, herdeiro de políticas iniciadas pelo MpD nos anos noventa. A defesa do Acordo Cambial, a implementação das reformas fiscais e o desenvolvimento do sector financeiro e de regulação ilustram isso.

O MpD, inicialmente  um movimento anti - partido único, define-se pelas tarefas que se impôs após a vitória de 13 de Janeiro de 1991. Tarefas essas em consonância com o mundo saído da queda do comunismo e do fim da Guerra Fria: a construção das instituições democráticas, a começar pela Constituição da República, e a reestruturação da economia caboverdiana, visando construir uma economia de base privada, inserida na economia mundial, a partir de uma economia estatizada, essencialmente autárcica.

No essencial ao longo dos quase quinze anos de vigência democrática os dois partidos mantiveram os elementos essenciais da sua matriz ideológica. O PAICV dá a aparência de suavizar os seus contornos, pressionado pelas instituições e procedimentos democráticos. O MpD sofreu dissensões internas em 1993 e 1998, ano do Acordo Cambial, em reacção às reformas económicas em curso, mas manteve o rumo. Na prática, tirando as nuances e focalizando no essencial, pode-se ver que o PAICV procura apresentar-se como o partido do Estado, o partido social e o partido das questões identitárias. O MpD mostra-se como o partido da Constituição e das liberdades, o partido da descentralização e o partido da iniciativa privada e da autonomia do indivíduo e da sociedade civil.  

As políticas do PAICV convergem no reforço do Estado na relação com os indivíduos, a sociedade e a economia. Resultam no elevar do nível de centralização do País e de aumento da dependência das pessoas. O partido alimenta-se de questões identitárias (nacionalismo, africanização, género, língua, etc.) aproveitando-se da motivação e forte sentimento de pertença que assola os indivíduos quando se posicionam em campos antagónicos. Sociologicamente o PAICV aparenta ser o partido da elite urbana que gravita á volta do Estado seja na Administração Pública, seja nas empresas, outrora públicas e hoje privatizadas. Compreende-se pois que insista sempre que o critério para avaliação do Governo seja o de capacidade de captação de ajuda e de outros fluxos externos. Na cadeia alimentar sustentada por esses fluxos ganha quem está no topo, ou seja quem está com o Estado.  

Em contrapartida o MpD aparenta ser o que alguém, uma vez, chamou o partido de bóias frias, o partido dos mais pobres, dos menos escolarizados e dos mais velhos. Em Cabo Verde os partidos políticos, grosso modo, não reflectem a base social que normalmente estão associados a partidos de direita e de esquerda. A razão para isso está no facto do sistema económico do País, alimentado de fora desde da sua fundação, desenvolveu um sistema rentista em que os privilegiados estão no Estado. Nas populações chega um fiozinho das ajudas, ficando a parte de leão nas elites, sob várias formas. O chamado desemprego estrutural é, em grande parte, consequência do modelo que privilegia captação de ajudas sobre a produção e a exportação de bens e serviços. A persistência do nível de desemprego a mais de 20% da população, não obstante os avultados investimentos feitos e os anúncios de entrada de milhões em investimento directo estrangeiro, é a demonstração completa do fracasso do modelo.

O que faz do MpD um partido popular e de multidões é a esperança que os deserdados do regime rentista de captação de ajudas têm de ver nascer no país uma economia nacional, inserida no mundo, capaz de assegurar empregos sustentáveis e de proporcionar rendimentos crescentes e maior qualidade de vida ás pessoas. Isso naturalmente colide com os interesses de quem beneficia da aproximação do sistema rentista. E não só. Também colide com medos atávicos em boa parte da sociedade caboverdiana, que ainda vê no Estado a salvação em caso de crises profundas. Medos esses que estão sempre debaixo da superfície e, às vezes, ardilosamente reavivados.

Mover o país para frente e colocá-lo na posição de criar trabalho para todos, e assim efectivamente combater a pobreza, deve ser o ponto focal do debate para as eleições legislativas. Questões relacionadas, como sejam o papel do Estado, a descentralização, a eficácia de justiça, a segurança, a educação e a saúde deverão ser equacionadas.
Os partidos políticos têm a responsabilidade de condução do processo. Que o debate se inicie. E que, para cada caboverdiano, fique claro qual é afinal a distinção entre um e outro partido e as opções de desenvolvimento propostas. 

    Publicado pelo Jornal A Semana de 26 de Abril de 2009

sexta-feira, abril 10, 2009

Oficializar o crioulo? Porquê a pressa

A questão de oficializar ou não o crioulo ganhou uma outra dinâmica com a apresentação do projecto de revisão constitucional, apresentado por um grupo de deputados do PAICV. Anteriormente a questão, ciclicamente, recebia impulsos políticos de diferentes quadrantes. Momentos houve, no passado recente em que Ministros, Primeiro-Ministro e o próprio Presidente da República se desdobraram em declarações, pontuadas por elementos de retórica nacionalista, clamando pela sua oficialização.

A pressão pela oficialização do crioulo tem um conteúdo essencialmente ideológico.
 No projecto de revisão constitucional, o PAICV quer “dignificar” o crioulo face ao português. Assim propõe que o nº 1 do artigo 9º da Constituição passe a ter o seguinte texto: 1. São línguas oficiais da República o Cabo-verdiano, língua materna, e o Português. Com isso pretende retirar o crioulo de algum suposto estatuto inferior e finalmente libertá-lo da opressão da língua portuguesa. O facto porém é que, em Cabo Verde, diferentemente de outros países onde se procura oficializar línguas maternas, não há discriminação do crioulo.  

Fala-se crioulo no Parlamento, o Presidente da República, o Primeiro-Ministro e os Ministros falam crioulo com o País através dos órgãos de comunicação social, nenhum cidadão está impedido de fazer declarações nos Tribunais em crioulo e a Administração Pública responde a solicitações colocadas oralmente pelos utentes. No País, não há uma elite que só fala a língua do colonizador, como acontece em outras sociedades racialmente mistas, designadamente nas Caraíbas. Também não se acusa de elitismo os escritores, intelectuais e políticos que, no dia a dia, só falam português. Não se pode, pois, seriamente, erigir o crioulo como uma putativa língua de resistência em confronto com o português. Só se for para atiçar chamas nacionalistas em proveito próprio.

O crioulo parece ter emergido do estado de isolamento, abandono e pobreza extrema vivido nas ilhas que não permitiu a subsistência de uma comunidade metropolitana homogénea capaz de impor a sua língua ao resto da população. Como aconteceu, por exemplo, no Brasil, mas também, na generalidade das colónias europeias nas Américas.

Procurando a origem dos crioulos, Derek Bickerton, um linguista norte-americano da Universidade de Hawai e autor do livro “Dinâmica das Línguas Crioulas”, diz que o estudo do crioulo do Hawai demonstra que o processo inicia-se, em ambientes poliglotas forçados, com uma linguagem de recurso, o chamado pidgin, caracterizado por variações, de pessoa para pessoa, consoante a sua origem étnico-linguística. E que na sequência disso as crianças nascidas em tal ambiente apropriam-se do pidgin dos pais e vizinhos, imprimem-lhe uma estrutura, padronizam o seu uso e fazem a língua aceitável para gerações sucessivas de crianças.

Um fenómeno que parece indiciar a existência de uma gramática universal inata, como defende Noam Chomski, o linguista do MIT. Bickerton concorda com o modelo gramatical inato mas diz que só não é suprimido nas comunidades onde a língua de comunicação é o pidgin, ou seja, em comunidades sem uma língua estruturada preponderante. Para ele, a língua crioula nasce quando essa estrutura gramatical inata absorve e modela os vocábulos já disponíveis.

Steven Pinker, professor de ciências cognitivas no MIT relata um caso no seu livro The Language Instint que parece confirmar esse processo. Nas primeiras escolas de surdos- mudos na Nicarágua as crianças reunidas pela primeira vez desenvolveram a partir dos gestos de comunicação que traziam de casa um conjunto de sinais com as características e as limitações de expressão de um pidgin. A leva seguinte de alunos mais novos aprenderam esse pidgin e, ainda, segundo Pinker, reinventaram a linguagem, agora já com gramática, uma maior versatilidade e outra capacidade expressiva. E a gramática revelou-se similar à dos crioulos falados.  

Os estudos referidos mostram-se pertinentes em vários aspectos. Põem de lado a ideia de que o crioulo teria importado a sua gramática de alguma língua africana que, até agora,  ninguém parece ter identificado. Por outro lado, ao ressaltarem o carácter inato das estruturas gramaticais, ajudam a compreender a resistência que as crianças manifestam em abandoná-las. E levam a considerar as possíveis implicações no ensino e na aprendizagem da segunda língua.

Do efeito surpreendentemente resistente do crioulo caboverdiano fala Baltazar Lopes da Silva no seu livro Dialecto Crioulo: “Bem cedo o crioulo das ilhas deve ter disposto de uma estrutura coerente e de um vocabulário bastante para as necessidades; e, assim, bem cedo, ao que me parece, o homem crioulo se sentiu idiomaticamente auto-suficiente. Acrescentou ainda que a aproximação [do português] tem balizas nítidas que a contem dentro de limites naturais. E os limites são, na essência, o sistema morfológico, definitivamente simplificado e fixado há séculos e o  agenciamento sintáctico do discurso”.

A resistência do crioulo é também visível no facto de, em matéria de uso da língua, Cabo Verde ir à contra corrente do que se passa na generalidade dos países africanos, designadamente dos PALOP. Nesses países, as línguas europeias dos colonizadores tornaram-se línguas oficiais e continuam a ganhar terreno, suportando-se na crescente urbanização e escolarização. Em Cabo Verde, apesar dos altos níveis de educação e de urbanização, o crioulo continua inabalável na sua condição de língua materna.

A ansiedade, com a imaginada perda de terreno do crioulo em relação ao português, só existe nos círculos que procuram tirar proveitos políticos de conflitos identitários exacerbados. Para o cidadão comum não há crise. E nem há para os escritores, músicos e artistas diversos que têm conseguido passar com sucesso para o mundo inteiro a alma e a arte caboverdianas, sem quaisquer constrangimentos.

A Constituição estabelece no nº2 do artigo 9º que o Estado deve promover  as condições  para  a  oficialização  da   língua  materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa. Uma dessas condições seria a estandardização da escrita do crioulo, com impacto em duas áreas: a comunicação escrita do/e com o Estado e a língua de ensino.

Em termos de comunicação a oficialização obrigaria a que todos os documentos do Estado fossem disponibilizados em crioulo para quem quisesse acede-los nessa língua. A Administração Pública teria que se tornar apta a responder a solicitações escritas dos cidadãos, sem equívocos provocados pelo desconhecimento de uma escrita padronizada. Os custos que tudo isso acarretaria poderão não se justificar. Corre-se o risco de subutilização ou por falta de alfabetização generalizada no crioulo ou por falta de interesse.

No ensino, a somar aos custos de produção e publicação de manuais juntar-se-ia, a exemplo do que se passou noutras paragens, designadamente Aruba e Curação, a reacção dos pais. Uns a querer a educação só em português para os filhos em escolas privadas e outros a resignarem-se e a ficar por escolas públicas onde se ensina em crioulo. Em África, a grande maioria dos países tem uma única língua oficial, que também é língua do ensino, a todos os níveis. Poucos se aventuraram em levar as línguas maternas para o sistema de ensino

O argumento de uso do crioulo para facilitar os alunos nos primeiros anos só parece ter sentido porque o Estado falha em propiciar às crianças o acesso ao português desde da tenra idade. A consagração constitucional da língua portuguesa como língua oficial obriga o Estado a agir no sentido, por exemplo, de redefinir todo o pré-escolar como o centro focal do esforço nacional em tornar verdadeiramente bilingue o caboverdiano. O caboverdiano não é bilingue por deficiência do seu crioulo, mas sim por falhas no domínio do português. E é isso que urge remediar.

O Governo com o decreto-lei nº8/2009 aprovou um alfabeto para a escrita caboverdiana, o chamado ALUPEC. Não ficou definido uma forma padronizada de escrita. Simplesmente fez-se uma opção de como escrever o crioulo nas suas diferentes variantes. E, provavelmente, não foi boa opção ter seleccionado o alfabeto fonético – fonológico, em detrimento do alfabeto etimológico. 

O próprio preâmbulo da lei dá conta do uso generalizado do alfabeto etimológico nas publicações dos escritores, poetas e ensaístas caboverdianos nos séculos dezanove e vinte. Assim fala de Adolfo Coelho, Cónego Teixeira, Napoleão Fernandes, Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Baltasar Lopes, Dulce Almada, B.Leza, Sergi Fruzoni, Luís Romano, Jorge Pedro Barbosa, Ovídio Martins, Kaoberdiano Dambará, Kwame Kondé, Emanuel Braga Tavares, Ano Nobo, Manuel d´Novas e muitos outros. A experiência no uso do alfabeto fonético – fonológico, para além do caso do António Paula Brito no século dezanove, só a registar trabalhos na recolha e transcrição de tradições orais, obras do doutor Manuel Veiga, actual Ministro da Cultura, e algumas traduções de clássicos portugueses feitos por José Luís Tavares. 

O alfabeto etimológico aparenta ter uma outra vantagem, para além do seu uso abrangente por vários autores ao longo de mais de um século. O crioulo é classificado como uma língua neolatina. Quase a totalidade do seu léxico deriva de línguas latinas. Num ambiente em que, em simultâneo, se aprende duas línguas, português e crioulo, ou mais de duas línguas (português, crioulo, francês e mesmo inglês), obrigar as crianças caboverdianas a escrever palavras com a mesma origem etimológica, usando alfabetos diferentes, causa a maior apreensão. O nível actual de rigor ortográfico dos alunos no ensino primário e secundário já traz sérias preocupações a pais e professores. Imagina-se a evolução dos alunos com a generalização do uso do ALUPEC .

Quanto á variante do crioulo a adoptar na padronização necessária para a oficialização do crioulo, isso não parece fácil, nem despido de controvérsias. Baltazar Lopes dizia que “Era preciso que já existisse uma literatura, um passado literário escrito para nós podermos escolher um crioulo padrão” . E advertiu, “não confundamos viabilidade da língua escrita com a da língua oral. O uso oral do português data do século V ou VI… mas o português [escrito] só no século XIII”.

Em Cabo Verde, a abertura constitucional para a oficialização do crioulo existe mas as condições adequadas terão que ser criadas. As autoridades devem ser pacientes e resistir à tentação de usar uma questão tão séria, e com implicações múltiplas e complexas, para o presente e futuro do País, como elemento de agendas político-partidárias, ou outras.

       Publicado pelo Jornal A Semana de 10 de Abril de 2009 

sábado, março 28, 2009

Custos e Benefícios

Na semana passada, o Presidente de Portugal, professor Cavaco Silva, alertou para a necessidade de não se confundir custos com benefícios. “Uma estrada é toda ela custos. O benefício é o trânsito que passará nela. Se não houver trânsito, não há benefício, é zero. O investimento de um empresário é custo, o benefício é a sua produção. Se não produzir nada, não ganha”.Cavaco Silva acrescentou, ainda, que “isto não quer dizer que alguns não ganhem”. Por exemplo, “se uma estrada não tiver trânsito, há um que ganha, o empreiteiro, e há um que perde, o [contribuinte] que paga impostos”.

De facto, investimentos públicos justificam-se pelo seu impacto sobre o rendimento e qualidade de vida das pessoas e pelo efeito de arrastamento que demonstrarem ter sobre a economia nacional. Espera-se dos investimentos, realizados pelo Estado, que promovam o surgimento de empregos permanentes, directos e indirectos. Que aumentem a competitividade geral das empresas e do país, via diminuição dos custos de factores e a valorização do capital humano. E que, conjuntamente com outras despesas públicas, contribuam para o desenvolvimento e sofisticação de mercados no plano interno, traduzido em novas oportunidades de negócio e no fomento das exportações.

Por isso investimentos públicos devem ser concebidos e realizados de modo a que os seus efeitos sejam profundos, complexos e duradoiros. Não podem ficar por objectivos de curto prazo. Muito menos, serem feitos, simplesmente, para satisfazer interesses pontuais e partidários do Governo.

Mesmo hoje, em tempo de crise, em que um papel central é atribuído ao investimento público para sacudir muitos países do torpor da recessão económica, não se perde de vista o alcance e a consequência estrutural, que deverá ter no médio e longo prazo. E compreende-se. Recursos para os investimentos públicos ou resultam da captação da poupança interna, reduzindo a disponibilidade para o investimento privado e para o consumo, ou, então, da mobilização de fluxos externos. Em qualquer dos casos, muito provavelmente, o País endivida-se ainda mais.

Face à perspectiva da dívida, interna ou externa, importa, seguramente, que as decisões tomadas sejam ponderadas quanto aos custos e benefícios. E cuidem para que os efeitos multiplicadores esperados na economia resultem em crescimento e aumento de rendimentos. Com isso se expande a base futura de receitas do Estado e evita-se que o serviço da dívida provoque desequilíbrios orçamentais, perturbadores da estabilidade macroeconómica, a médio prazo, e em sobrecargas para as gerações futuras.

Para a realização dos seus objectivos amplos, é fundamental que o processo decisório relativamente aos investimentos públicos seja seguido, devidamente. À partida respeitando os princípios constitucionais que devem reger as operações do Estado designadamente justiça, transparência, boa fé e imparcialidade. Mas também, tendo em  consideração, os efeitos no ambiente económico a curto, a médio e a longo prazo.

Isso quer dizer que o Estado, por opção do Governo, não deve se colocar na posição de escolher ganhadores no processo económico. Por via de favores, de acessos especiais e de condicionamento de outros não deve eliminar a concorrência e possibilitar, a alguns, lucros fabulosos. Nem deve permitir extracção de rendas á custa do erário público, da criação de monopólios privados ou da extorsão dos consumidores.

Nessa perspectiva o Governo falhou ao permitir a especulação nos terrenos de Cabo Verde. Fez a ganância de alguns subir a níveis elevados, encareceu o investimento no país com a proliferação de intermediários e acabou por inviabilizar muitos projectos nos braços de força que se envolveu por razões partidárias. Não serviu aí o interesse público.

Também não serviu o interesse público quando não soube pôr de pé uma politica energética coerente. Foi incapaz de encontrar um novo parceiro estratégico para substituir a EDP na Electra e optou por recorrer a privados, seleccionados a dedo, para lhes entregar áreas de produção com consumo certo, pago e crescente. Está a acontecer nas ilhas do Sal, S. Antão e Boavista. Já se tinha verificado na ilha de Santiago com os chamados produtores independentes na venda de electricidade, em momento de carestia grave de energia na Capital.

Irá acontecer em breve na produção de água para os municípios do interior de Santiago entregue por 35 anos a uma empresa que, pelas informações por ela disponibilizadas na Net, parece mais um start-up à volta de uma universidade italiana. Um acordo feito e anunciado em 2007, um ano antes de se aprovar e publicar o decreto-lei (Novembro de de 2008) que o poderia enquadrar. 

Em todos esses casos não se vislumbra ganhos para os consumidores, nem a melhoria da competividade da ilha e, muito menos, estímulos a empresários nacionais, seja para expandir os negócios, seja para aproveitar as oportunidades emergentes. Mesmo assim, o governo justifica-se dizendo que a situação, no momento, assim o exige. Mas não explicita a que custo, presente e futuro, e as razões porque aí se chegou.

No processo de decisão não se pode perder de vista o impacto que os investimentos irão ter na economia local. Isso quer dizer, por exemplo, que não pode ser indiferente ao Estado se o investimento público emprega, ou não, caboverdianos. Se os trabalhos são, ou não, feitos por empresas caboverdianas. Se no fim do programa de investimentos as empresas nacionais estão mais, ou menos, preparadas para competir no mercado internacional ou se tornaram capazes de desenvolver um sector de exportação. E se a carteira de trabalhos do Estado criou oportunidades para o surgimento de novas empresas.

Por isso é de se perguntar ao Governo: Após os 46 milhões de contos, mais de 400 milhões de euros,  de investimento em obras públicas, como estão as empresas caboverdianas de construção civil? Sólidas, mais produtivas? Passaram a ter maior capacidade de realizar obras nacionais em competição com empresas estrangeiras? Quais são as perspectivas de internacionalização?

É de perguntar também, depois dos milhões investidos no governçaõ electrónica, quantos empregos foram gerados no sector das tecnologias de informação e comunicação, quantas empresas foram criadas e quais as perspectivas de Cabo Verde vir a exportar serviços nesse sector.

É ainda de perguntar: Face á emergência energética que se vive no mundo em geral, com particular acuidade em Cabo Verde, como é que os investimentos do Estado nesse sector tem servido para dar maior autonomia energética ao país, criar oportunidades para o aparecimento de empresas, num sector que é claramente de futuro garantido, e desenvolver uma cultura e uma expertise nacional em eficiência no uso da energia e água.

Definitivamente é de perguntar se é necessário que o executivo da FAO em Cabo Verde fale da “ falta de informação sobre os volumes de produção, os preços, as necessidades de cada ilha” e do facto de “como não foi feito esse diagnóstico parece mais fácil importar frutas e verduras de outros países” para se ver o óbvio. Para se ver que investimentos em barragens, prospecção de água, sistemas de regas e outras obras no  mundo rural só têm sentido se se conseguir extrair benefícios. E benefício significa produção, significa acesso a mercados, significa vendas. 

Investir em S. Antão e manter o embargo dos produtos agrícolas é arcar com custos sem praticamente quaisquer benefícios. Os persistentes índices de pobreza da ilha são elucidativos a esse respeito. Também, investir e não desenvolver circuitos de comercialização, que faça do País todo, e particularmente as cidades e os centros turísticos, um mercado potencial para a produção de cada localidade de Cabo Verde, só tem o efeito de aprofundar o desânimo das populações. É mais uma esperança gorada acompanhada dos custos inerentes: custos pessoais, materiais e de fibra de uma sociedade.  

Um outro custo que sistematicamente vem se confundindo com benefício é a formação profissional. Para o Governo formação profissional é a bengala de que se socorre para dizer que está a fazer algo para diminuir drasticamente o desemprego. Só que raramente  se disponibiliza para dizer quantos formandos realmente conseguiram emprego. Ou como é que a produtividade do trabalho se alterou com entrada de pessoas formadas no mercado. E como é que, com a regulação da entrada nas profissões, se diminuiu o informal, se melhorou a qualidade e se fez os salários evoluírem de acordo com a produtividade.

Ouve-se que está a montar mais cursos. Fica-se com a impressão de que algo não vai bem quando se publicita outros projectos para microfinanciar os formandos. Aparentemente, não conseguiram emprego e o Estado procura  transforma-los em empresários. Ou seja, os custos de formação não resultaram em benefícios significativos para as pessoas nem para a economia. Face a isso a resposta do Estado é mais custos, mas agora em forma de crédito. É a vitória do surrealismo, mas há quem ganhe no processo, na sua montagem.

Por tudo isso é evidente que, para manter em perspectiva a complexidade de objectivos pretendidos nos investimentos públicos e evitar desperdícios e desvios do interesse público, deve-se garantir a transparência do processo. O parlamento e os partidos de Oposição têm um papel central em assegurar-se de que o governo é, a todo instante, accountable pelos actos que pratica.

A tão propalada credibilidade do País depende essencialmente da percepção no exterior e nas organizações internacionais de como o Poder é controlado. De como o processo decisório está constrangido a seguir a legalidade e está sujeito à sindicância permanente da oposição e da sociedade.

Por isso, trabalha contra a credibilidade externa de Cabo Verde não é quem questiona e fiscaliza os actos do Governo. E não interessa muito como nos específicos apresenta o seu caso. Interessa essencialmente que o pode fazer, e sem restrições. A forma e a efectividade das acções são internamente avaliadas pelo eleitorado.

Observadores no exterior não entram na política local. Avaliam o grau de fiabilidade do País a partir da forma como o Poder lida com os limites instituídos. È como se fizessem uso de um velho adágio, glosado: diz-me como tratas as minorias e a oposição e dir-te-ei quem és.

De todo esse exercício o fundamental é que o País ganhe. Que não fique sobrecarregado com dividas internas e externas. Nem se coloque eternamente na dependência da generosidade, duvidosa às vezes, dos outros. Pelo contrário, que crie condições para a prosperidade de todos.

sexta-feira, março 13, 2009

A crise: oportunidade, também, a perder?

Da passagem da torrente de personalidades e empresários com o Primeiro Ministro de Portugal, José Sócrates, oito ministros e sete secretários de Estado à frente e do frenesim, criado na sua esteira, ficou no ar uma questão: Mas tudo isso era acerca de quê?

Uma pergunta que o próprio PM português procurou responder em entrevista citada pela TSF. Sócrates disse que inicialmente o objectivo era dar um novo fôlego à agenda de cooperação. Mas foi-se além: a dado momento, a agenda de cooperação deixou os temas do passado para acabar por se centrar nas novas tecnologias de informação e comunicação, nas energias renováveis e no conhecimento. O destaque, porém, era homenagear o grande sucesso de Cabo Verde. Uma homenagem dirigida, de facto, ao Primeiro-Ministro caboverdiano, José Maria Neves, que também respondeu na mesma medida.

Elogiou o Governo de Sócrates com expressões como ousadia, espírito empreendedor, capacidade de liderança e de transformar, expressões que gosta de ver coladas ao seu próprio governo. Cortesias que podiam simplesmente significar o elevado grau de relações entre Cabo Verde e Portugal. Mas considerando o momento escolhido para a visita terão provavelmente algo mais.

Os dois chefes de governo são líderes de partidos da mesma família, a Internacional Socialista, e preparam-se para eleições. Sócrates tem três eleições para enfrentar este ano. José Maria Neves, depois da derrota nas eleições autárquicas, ainda está a consolidar as “tropas” para o embate de 2010/2011. E a calar as críticas internas, feito que, em Dezembro passado, já tinha realizado em grande medida mas que prejudicou com a sua declaração pouco cuidada a propósito da candidatura de Aristides Lima. Declaração que já lhe custou uma carta anónima, vinda, tudo leva a crer, do interior do seu próprio partido. Nestas condições toda a solidariedade é pouca.

A solidariedade devida não apaga porém interesses mais mundanos. Como o PM português bem sublinhou, o relacionamento com Cabo Verde representa uma relação comercial de maior importância para Portugal.  Portugal, segundo ele, exporta todos os anos para Cabo Verde 250 milhões de euros. Nesse quadro, compreende-se perfeitamente que os objectivos principais da visita a Cabo Verde sejam manter e expandir o mercado caboverdiano para as exportações portuguesas.

Nos tempos difíceis de hoje, de notória contracção da procura global e de reaparecimento do monstro do proteccionismo, mostra-se perfeitamente lógico que países engendrem formas inovadoras para manter cativos os mercados. Particulamente, quando as suas exportações são pouco competitivas no mercado aberto. Sem a possibilidade de desvalorizar as suas moedas para se tornarem mais competitivas  recorrem à criação de facilidades de crédito para assegurar mercado.

Portugal assinou vários acordos com o Governo de Cabo Verde que criam novas linhas de crédito ou ampliam as já existentes. Assim ampliou uma linha de crédito da Caixa Geral de Depósito de 100 milhões para 200 milhões de euros para a construção de infraestruturas portuárias. Passou um empréstimo directo do Estado português de 40 milhões para 100 milhões de euros para a construção de novas estradas. Criou uma nova linha de crédito de 100 milhões de euros para as energias renováveis, salientando o facto de ter a quarta empresa mundial nesse sector, a EDP, mas evitando pronunciar o nome dessa empresa para não relembrar o governo caboverdiano da  forma como tratou o assunto da Electra.  Uma outra linha de crédito, ainda de 7 milhões deverá ir para o que convencionaram chamar de Cluster do Atlântico para as TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação).

Segundo o Secretário de Estado do Tesouro e Finanças português, a assinatura desses acordos potenciam as exportações e a internacionalização das empresas portuguesas. Adiantou ainda que os acordos têm como condição que os projectos sejam desenvolvidos por empresas portuguesas.

É, assim, que finalmente se compreende a razão porque todos esses anúncios nos jornais de concursos públicos do Estado de Cabo Verde para a construção e fiscalização de obras são dirigidos a empresas portuguesas. Recentemente as empresas caboverdianas foram aceites, mas em consórcio com empresas portuguesas e com o entendimento que o consórcio deve ser liderado pela entidade portuguesa.

Naturalmente que o condicionante imposto no uso do dinheiro dos empréstimos, que certamente Cabo Verde irá pagar na íntegra, não se limita às empresas construtoras das infraestruturas. Como a linha de crédito visa potenciar as exportações é natural que também se faça uso dela na compra de bens e serviços exclusivamente portugueses. É evidente que isso ficará caro a Cabo Verde, considerando a fraca competitividade dos produtos portugueses e, em consequência, o seu preço mais elevado relativamente a produtos similares, oferecidos no mercado internacional.   

A questão que se coloca é porque que o Governo de Cabo Verde aceita um negócio desses. Vasco Pulido Valente, numa crónica no jornal Público de 15 de Março foi claro quanto à relação de muitos governos com as infra estruturas: (…) “política do betão”é fácil de explicar. Para começar, não implica um pensamento político, não exige mais do que uma velha tecnologia, usa sobretudo mão--de-obra não qualificada, abre largamente a porta à corrupção, o resultado fica bem à vista e o país julga que se “modernizou”. (…) Claro que uma auto-estrada pouco ou nada contribui para o desenvolvimento e a produtividade(…).. Só ajuda a fingir que [se] progride e isso basta. Ainda, no mesmo tom e a respeito do Magalhães, disse que esse portátil (…) tinha a mesma vantagem de uma auto-estrada - não pedia, em princípio, nenhum esforço de inteligência, imaginação ou conhecimento. Bastava encomendar a coisa, pagar a coisa e distribuir a coisa.

Os entendimentos feitos com o Governo português no domínio da sociedade de informação incluem a manifestação de interesse do executivo caboverdiano em adquirir 150 mil computadores portáteis para o sistema escolar. A concretizar-se com o Magalhães, ou comum seu clone próximo, estar-se-ia a falar de valores de mais de 49 milhões de euros, partindo do preço unitário do Magalhães de 329 euros. Uma excelente venda para Portugal!

É interessante ver a abordagem de Moçambique na realização desse desiderato de massificação do acesso a computadores. Para abastecer o mercado, o Ministério da Ciência e Tecnologia desse país fez uma parceria com a empresa sul africana Sahara para instalação de uma linha de montagem de computadores que poderá a chegar a 19 mil computadores por ano, quando em velocidade de cruzeiro. Ou seja, fez-se aí uma opção em construir uma capacidade interna abrangente no domínio das TIC que certamente não fica limitada às fórmulas, produtos e serviços que a Cooperação permite comprar. Tal aposta pressupõe desenvolvimento de capacidades endógenas em institutos tecnológicos e centros de formação profissional. Sem esquecer o incentivo ao empreendorismo, dinamicamente conectado com centros de aprendizagem e de investigação, na perspectiva de venda de serviços no mercado local e internacional.   

Hoje é ponto assente que a crise actual marca o fim de uma era. Um mundo novo irá emergir em que muitas das facilidades e oportunidades anteriores deixarão de existir. Para Cabo Verde, que deixou de beneficiar da condição de país menos desenvolvido para ser encarado hoje como um país de rendimento médio, insistir na lógica do curto prazo, do ganho político imediato e do “parecer” em vez de “ser” pode vir a revelar-se desastroso.

A pequenez da economia caboverdiana alimenta a crença que a transferência de fundos de outras paragens, via as mais diferentes formas de cooperação, não deixará de manter o país a andar. Tal crença desvia o foco da governação. O governo, em vez de se centrar em resultados, nomeadamente, aumento do emprego, exportações e  melhoria da competitividade global do país, fixa-se na captação de fundos. Em vez de desenvolver projectos com vista a garantir sustentabilidade e retorno dos investimentos feitos ocupa-se essencialmente da montagem dos mesmos, esquecendo-se das outras fases. Em vez de publicitar o efeito dos investimentos na qualidade de vida das pessoas, na capacitação do País em atrair investimento e na criação de mercados para bens e serviços nacionais, quase que transforma a governação num desfile incessante de anúncios e inaugurações.

Esta crise não tem que ser mais uma oportunidade a perder. Para evitar que assim seja, as energias da nação têm que ser mobilizadas. E certamente que não é com a cooperação internacional que isso será feito. Mesmo que venha vestido de outras roupagens e envolta numa linguagem moderna salpicada de TICs e clusters.

A Irlanda ou a Índia atraíram capitais e exportaram bens e serviços designadamente através do outsourcing e offshoring porque souberam construir capacidade endógena. Formação e qualificação da mão de obra foram elevados ao nível de prioridade máxima. Com isso mobilizou-se a vontade dessas nações, exigiu-se maior responsabilidade das famílias e os indivíduos sentiram-se motivados num ambiente que recompensa trabalho árduo, o mérito e a criatividade. O resultado viu-se no alto nível de ensino das ciências e engenharias, no desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação e na aquisição de competências linguísticas de importância e valor no mercado global.

È um caminho similar que Cabo Verde deve seguir para que a frustração dos últimos anos não persista. O País tem que acreditar que é capaz de baixar significativamente o desemprego e crescer. Crescimento que aumente significativamente o rendimento e a qualidade de vida das pessoas e diminua a dependência da generosidade dos outros. O momento para isso é agora. Não deve ser desperdiçado. E cantos desviantes de sereia não devem ser ouvidos.
                
                    Publicado pelo jornal A Semana de 13 de Março de 2009 

sábado, fevereiro 28, 2009

Segurança: o debate necessário

                                  

Cinco anos atrás a intervenção rápida da comunidade internacional impediu uma crise em Cabo Verde, escreveu António Maria Costa, o Director do Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime no jornal Washington Post de 29 de Julho de 2008. E acrescentou, os cartéis [da droga] simplesmente desviaram as suas operações para a Guiné-Bissau.

 O aproveitamento de Cabo Verde para ponto de trânsito do tráfico global de estupefacientes e, particularmente da cocaína sul americana, deve levar os governantes, e também toda a sociedade caboverdiana, a reflectir sobre a segurança do País e sobre as ameaças, presentes e reais, que hoje se colocam. O que se passa actualmente na Guiné Bissau ilustra bem as consequências de não se lidar efectivamente com o crime transnacional altamente sofisticado. Na Guiné contribuiu para inoperacionalidade do Estado e para a fragmentação das forças armadas em facções, cada uma servindo interesses específicos e envolvendo-se em rivalidades mortíferas.

 Segundo António Maria da Costa, no artigo citado, Cabo Verde, mercê dos esforços feitos, designadamente na cooperação entre policia, alfandega e agentes nos portos e aeroportos, é hoje menos atractivo para o tráfico. Mas as ameaças persistem e a região onde se insere o País está no corredor de movimentação de um negócio que, por ser altamente lucrativo, leva os seus agentes a uma procura incessante de fraquezas no sistema, passíveis de serem exploradas.

 A percepção desse facto obriga a que, no que respeita à segurança, se repense tudo, designadamente a natureza das ameaças emergentes, a estratégia para a defesa e segurança do País no actual contexto e a estrutura das forças para a sua implementação. E o ponto de partida seria a avaliação do pensamento actual sobre essa matéria e o nível de adequação das forças para fazer face às ameaças.  

 A crise referida, evitada há cinco anos atrás, derivou, antes de mais nada, do facto de Cabo Verde, um País arquipélago, não ter um controlo mínimo das suas praias, costas e mares. Tornou-se atractivo enquanto hub para operações de tráfico. E não tem esse controlo porque foi incapaz de desenvolver e reorganizar as suas Forças Armadas (FA) tendo como seu núcleo central uma unidade aero-naval.

 Cabo Verde é um País arquipélago com dez ilhas e vários ilhéus e com uma linha de costa de cerca de 1000 KM. O mais lógico é que colocasse suficiente esforço na criação e desenvolvimento de uma guarda costeira efectiva. Tem uma vasta zona económica exclusiva por fiscalizar e responsabilidades de busca e salvamento nesta região, enquanto gestor de FIR atlântica. E, certamente, que as populações costeiras e, particularmente os pescadores, esperam que o Estado, num País de história e vivência marítima profunda, dedicasse especial atenção à segurança dos que no mar procuram o sustento e dos que asseguram o tráfico de bens e pessoas entre as ilhas, indispensável para o desenvolvimento global do País.

 Paradoxalmente isso não aconteceu. O governo durante todo o regime de partido único insistiu no exército. Ao lado manteve uma marinha incipiente. A preocupação central de então era a segurança interna, a defesa do regime. A ideia da Guarda Costeira só desabrocharia com o governo democrático. Mas o seu enquadramento nas Forças Armadas, por várias razões, designadamente constrangimentos constitucionais quanto à assunção plena do policiamento dos mares e costas e luta contra actividades ilícitas, dificultou a sua afirmação institucional. A Constituição no seu artigo 244º nº2 alínea b) diz que missões outras que não a defesa militar da República, designadamente protecção do meio ambiente e do património arqueológico submarino, prevenção e repressão da poluição marítima, do tráfico de estupefacientes e armas, do contrabando e outras formas de criminalidade organizada devem ser feitas em colaboração com as autoridades policiais e outras competentes e sob a responsabilidade destas.

 Naturalmente que isso inibe o desenvolvimento de uma força especialmente dirigida para prevenção e combate ao crime que acontece nos mares e costas do País. O papel que a Constituição parece estabelecer para às Forças Armadas, enquanto Guarda Costeira, é de apoio logístico e suporte em caso de combate mais violento. Diz claramente que só deve agir em colaboração e sob a responsabilidade das autoridades policiais. Isso retira iniciativa e, em consequência, o incentivo para o desenvolvimento organizacional que resultaria de uma capacidade operacional própria e autónoma de prevenção e combate ao crime.

 Uma outra consequência disso é ter-se um maior número de interlocutores nacionais na relação com a cooperação externa. Um exemplo recente é a entrega pela Espanha de duas lanchas rápidas à Polícia Marítima no dia 15 de Janeiro último. Segundo a Inforpress, citando fonte policial, as lanchas irão servir na fiscalização dos mares e na intercepção e abordagem de embarcações que entrem nos mares de Cabo Verde de forma ilegal. O despacho da Inforpress acrescenta ainda que para operar as lanchas, Espanha vai formar agentes da Polícia Marítima, estando já no País técnicos espanhóis que vão dar formação de pilotagem. 

 Onde, nisto tudo, pára a Guarda Costeira?

  O grande problema é que a Constituição faz uma diferença muito clara entre Defesa e Segurança Interna. Entrega às Forças Armadas a responsabilidade pela defesa militar da República e à polícia a missão de velar pela ordem e tranquilidade pública e de luta contra a criminalidade. Recentemente, o Governo do PAICV tem forçado a intromissão das FA na segurança interna, valendo-se de uma interpretação da Constituição. Conjuga o que está estabelecido no artigo 244º nº2 alínea b) da CR, dirigido especificamente para operações no mar, com a alínea f) do mesmo artigo que se refere genericamente a desempenho de outras missões de interesse público.

 Para o Governo isso significa que as Forças Armadas podem ser estruturadas numa Guarda Nacional, constituída por um corpo da Polícia Militar cuja missão principal seria o apoio à Polícia Nacional na manutenção da ordem pública, e de uma Guarda Costeira, apoiado por corpo de fuzileiros para o policiamento dos mares e costas. O Governo justifica ainda este enviesamento da Constituição com a natureza das ameaças actuais.

 As ameaças são de facto de natureza criminal e transnacional, altamente organizada, rica em recursos e sofisticada nos meios utilizados. Isso porém não significa que as FA, suportadas pelo serviço militar obrigatório, sejam a resposta adequada a elas. Mesmo que se force a interpretação da Constituição e se vá além dos constrangimentos que põe à intervenção na segurança interna, da responsabilidade exclusiva da polícia (artigo 240º).

 È interessante notar que na actuação do Governo parecem coexistir duas interpretações sobre esta matéria. Nas discussões havidas em 2005 na Assembleia Nacional a propósito da criação da Polícia Nacional (PN) e da Lei das FA ficou evidente que não havia uma preocupação de complementaridade. Por um lado, forçava-se as FA na segurança interna e, por outro, alargava-se a POP para absorver a Guarda Fiscal e a Polícia Marítima. Faltou a apresentação de uma visão conjunta da estrutura de forças.

 O resultado é o que se vê: A PN recebe lanchas rápidas para patrulhar os mares. Com isso sugere que não está disposta a ceder, para a Guarda Costeira, área da sua competência. Desenvolve a sua cooperação internacional à parte e consegue os meios, mesmo que não esteja devidamente preparada para deles fazer uso.

 O imbróglio que parece aqui existir resolveu-se noutras paragens com a criação de forças de segurança de natureza militar, chamadas ás vezes de paramilitares para as diferenciar das forças armadas. Essas forças de segurança vão de encontro à  necessidade de resposta à luta contra a criminalidade de uma forma mais robusta, de defesa da legalidade em sectores específicos mais exigentes em termos logísticos, de perícia e de disciplina, como é o controlo dos mares, costas e portos, e ainda de manutenção da ordem em áreas dispersamente povoadas. Assim, Portugal tem a sua Guarda Nacional Republicana, a Espanha a sua Guarda Civil e a França, Itália e Holanda também instituíram forças similares, Gendarmerie, Caribinieri e Marechaussee, respectivamente.

 A opção de agregar à Polícia de Ordem Pública, sem uma visão e uma estratégia que tal justificasse, a Guarda Fiscal e a Polícia Marítima, forças de segurança com uma cultura e história próprias e regimes salariais e de carreira diferenciados, foi de encontro á tentação de intrometer as forças armadas na segurança interna, desviando-as da sua missão primeira de defesa nacional. Na intercessão dessas duas opções ficou um vazio que devia ser preenchido por uma força segurança militar a exemplo de muitos outros Países. Á volta, ficaram sobreposições de competências, a ineficácia na cooperação, as dificuldades em criar capacidade própria para fiscalizar o mares, combater o crime, que usa o País como um hub, estar em posição de organizar busca e salvamento efectivo e garantir protecção civil num País arquipélago.

 Uma outra questão que esse arranjo levanta é se as FA estão essencialmente viradas para a segurança interna o que fazer do serviço militar obrigatório, estabelecido no artigo 245º da Constituição. Será que se pode obrigar cidadãos, chamados em nome do dever de fidelidade à Pátria e de participação na sua defesa (artigo 84º, alínea a), a fazer, de forma sistemática, missões de natureza policial? Entre outras questões pode-se ainda perguntar: como estender protecção, para além do período da sua incorporação de 18 meses, aos jovens rapazes, que no quadro da PM são envolvidos em operações perigosas e que, por causa delas, podem vir a ser sujeitos a retaliação?

 A questão da PM nas ruas tem levantado muita controvérsia. Muitos que se mostram a favor, provavelmente, não viram esse aspecto do problema. Talvez, porque não lhes toca directamente. Os filhos não fazem o serviço militar obrigatório. O serviço militar obrigatório não cobre todos os mancebos elegíveis. Só uma minoria e proveniente, essencialmente, de famílias de fracos recursos e de zonas rurais ou periferia das cidades é que cumpre.

 Decisões sobre as forças armadas e sobre a sua utilização estão constitucionalmente submetidas a um processo complexo. Processo que envolve o Presidente da República, o Parlamento, o Governo e órgãos consultivos como o Conselho Superior de Defesa  precisamente porque a actuação das FA resulta do esforço de cidadãos ligados pelo dever de defesa da pátria. Esforço esse que pode ir até à cedência do bem maior que é vida. Para garantir o crivo da opinião pública sobre todo o sistema o serviço militar obrigatório deve ter um carácter universal. Ou seja, as decisões devem afectar todos. Não existindo condições para isso, ele deve ser repensado

 A revisão constitucional, já em movimento, permite que as discussões, verificadas no parlamento no quadro da aprovação das leis das forças armadas e outras leis da segurança interna, sejam retomadas. Pode-se chegar a uma solução que resolva as questões de competência em matéria de segurança interna e prepare o País para enfrentar as ameaças actuais com forças dedicadas, motivadas e especialmente preparadas. 

                                                                                                   Humberto Cardoso

Publicado pelo jornal A Semana de 21 de Fevereiro de 2009

sexta-feira, fevereiro 06, 2009

Debate já a enviesar-se?

O debate nacional dos três projectos de revisão constitucional parece já estar comprometido. E nem se iniciaram os trabalhos preparatórios da comissão eventual.

O risco de constrangimento do debate emerge, particularmente, da tendência em se encaminhar para a polarização de posições com base partidária. E sabe-se que esta é a fórmula certa para inibir consideravelmente a participação de muitos.

Extradição, por exemplo, tem sido matéria para os partidos se degladiarem em sucessivos encontros na comunicação social e para pronunciamentos calorosos de líderes partidários. Curiosamente nem é tema central do projecto de revisão de deputados do PAICV, nem consta do projecto dos 18 deputados do MpD. Mas tem como subtexto, ou narrativas associadas, matéria que no passado recente serviu para suportar acusações irresponsáveis de relacionamento da classe política com o mundo do tráfico de drogas e do branqueamento de capitais. O que desvirtua o debate e dá à participação do MpD um carácter quase masoquista. Particularmente, quando o que, de facto, se trata é de ganhar flexibilidade constitucional para que Cabo Verde seja parte da cooperação jurídica internacional de luta contra o terrorismo e o crime organizado transnacional. A exemplo do que muitos estados democráticos como Portugal, Alemanha e França fizeram, ao alterar normas constitucionais sem pôr em causa os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

O escopo do debate também diminuiu quando a reforma da Justiça deixou de ser prioritária. A reforma foi a razão principal para se despoletar o processo de revisão da Constituição. Mas a designação política dos juízes do Supremo Tribunal de Justiça, com base no artigo 290º das disposições transitórias da Constituição, alterou tudo. O mandato de cinco anos, estabelecido pelo n.1 desse artigo, retirou urgência à reforma da Justiça nos moldes preconizados.

O novo modelo de Justiça devia iniciar-se com o fim da interferência política no Poder Judicial, o que não aconteceu. Pelo contrário, a interferência renovou-se.  

A agravar a situação está-se a prever, ainda, uma outra interferência: a possibilidade de interromper o mandato dos actuais juízes, em sede de revisão constitucional. Entre as várias consequências de se tornar transitório o mandato, é de perguntar se, não cumprindo os cinco anos estabelecidos, os juízes do STJ poderão vir a beneficiar do n.6 do artigo 8º dos Estatutos dos Magistrados que os coloca no topo da carreira da respectiva magistratura, findo o mandato.

Nada ficou firmado no sentido da transitoriedade do mandato. Vai depender de entendimentos que eventualmente os partidos poderão chegar, tendo sempre presente a oposição de círculos próximos do Presidente da República.

Entretanto, a contestação do juiz conselheiro Raul Varela, vinda dos mesmos quadrantes de sempre, persiste. A iniciativa do Procurador Geral da República, que seguramente nada tem a ver com isso, introduziu um quê de controverso ao novo STJ, ao qual  importa ao órgão superar rapidamente com uma decisão tempestiva quanto à constitucionalidade ou legalidade da nomeação do juiz Varela. De qualquer forma, prevê-se que os sobressaltos no STJ vão continuar. Se a contestação, nas suas diferentes formas, levar ao fim prematuro do mandato do Juiz abrir-se-á uma nova frente de disputa entre os partidos para se saber quem deve propor o novo juiz e como garantir a maioria de dois terços dos deputados para a sua eleição.  

Com os novos desenvolvimentos há quem diga que a revisão constitucional não irá à frente. Nota-se, entretanto, que, no ambiente distorcido criado, outras matérias constantes dos projectos de revisão constitucional e de importância para o funcionamento do sistema político já se vêem secundarizadas. Nomeadamente, as que resultam de convivência prática e diária entre órgãos de soberania e que dão soluções para se ultrapassar tensões derivadas dessa interacção. 

Tensões na relação entre orgãos de soberania existem e manifestam-se particularmente na operacionalização do princípio fundamental de separação e interdependência dos poderes. Algumas competências sobrepõem-se ou são concorrentes A tendência natural, especialmente do governo, é subtrair-se à fiscalização do parlamento.

Um caso actual revelador dessa tendência e das tensões, que gera, é a taxa rodoviária.

O caboverdiano tem hoje alguns dos seus custos agravados devido à criação dessa taxa, por decreto do Governo. É uma taxa controversa porque, entre outras razões, é tida como um verdadeiro imposto e, portanto, fora da alçada do governo. Mas não pode ser suspensa. A única saída deixada à oposição foi pedir a fiscalização abstracta e sucessiva do decreto-lei ao Tribunal Constitucional. O que aconteceu há mais de dois meses. E o que já tinha acontecido anteriormente em relação a outros decretos do governo, designadamente o decreto-lei que alterava a base de incidência do IVA. Esse decreto-lei só foi revogado pelo Tribunal Constitucional mais de dois anos depois do requerimento feito. Entretanto, todos suportaram os prejuízos e nunca foram realmente compensados pelo que pagaram a mais.

A Constituição caboverdiana, diferentemente da constituição de vários países com sistemas políticos parlamentares, não permite que o Parlamento chama a si o decreto do Governo para ratificação, com a consequente suspensão temporária dos seus efeitos. O resultado é que, se o Presidente da República não formular um pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade do decreto-lei, para que o Tribunal Constitucional reaja em vinte dias, os indivíduos as famílias e as empresas poderão ficar sujeitas a custos acrescidos, com consequências gravosas para toda a economia.

Recentemente, no âmbito de um pedido de fiscalização preventiva, a taxa de iluminação foi considerada um imposto e dada como inconstitucional a forma como criada. O mesmo devia acontecer com a taxa rodoviária, visto que, aparentemente, padecem dos mesmos males. Mas como se trata de fiscalização abstracta e sucessiva, sem prazos estabelecidos, leva-se tempo a decidir, talvez sem a devida conta pelas consequências disso nas instituições, na economia e na sociedade.    

Propostas contidas nos dois projectos de revisão de deputados do MpD vêm, em diferentes graus, restaurar a primazia da Assembleia Nacional enquanto órgão legislativo, ao alargar o poder de ratificação (artigo 182º da CRCV) de decretos legislativos para os decreto-leis, no 1º projecto, e para decretos de desenvolvimento no outro projecto de revisão. Em conformidade, aliás, com o carácter parlamentar do regime político caboverdiano e em coerência com posições assumidas politicamente e levadas à apreciação do Tribunal Constitucional, em várias ocasiões.

O projecto de revisão de deputados do PAICV tem uma outra abordagem em relação a essa matéria. Propõe alteração da maioria de votos necessária para a aprovação de leis sobre impostos e o sistema fiscal (artigos 159º, 160º e 175º). Quer passar dos dois terços de deputados, actualmente exigidos, para a maioria absoluta dos deputados. Nesse caso, a responsabilidade completa para o lançamento de impostos ficaria essencialmente com o Governo e a sua maioria parlamentar.

Há quem dispute da bondade da solução, introduzida na revisão de 1999, que obrigou a maioria a conseguir o apoio da oposição para criar impostos e alterar taxas e bases de incidência dos impostos. Hoje sabe-se que a alteração constitucional serviu bem para conter a tentação de aumentar impostos. Mas tinha um outro lado. Obrigava a oposição, em certas situações, a ser co-responsável  por medidas do governo, medidas intrinsecamente controversas porque derivadas de opções de governação.

Um aspecto globalmente positivo do regime apertado, criado com a revisão de 99, foi de instilar na sociedade caboverdiana a importância de se baixar a carga fiscal. Tanto na perspectiva de forçar uma maior racionalidade e eficácia nas despesas como de contribuir para a competitividade das empresas caboverdianas. Hoje, esse sentimento é generalizado e é reforçado pelo acordo cambial. O acordo limita o governo em matéria de política monetária e exige, para a manutenção da paridade da moeda caboverdiana ao euro, uma política fiscal que favoreça a competitividade geral do País.

Relaxar ou manter rígido o sistema é tema para discussão profunda. De ambos lados há argumentos fortes. O tempo de crise que se vive actualmente irá necessariamente condimentar o debate, alterando alguns dos seus pressupostos. Muitos que já vinham cedendo à possibilidade de flexibilização das exigências constitucionais na aprovação de matéria fiscal já podem estar a rever as suas posições.

De facto, está-se a passar de um período conservador em matéria de política fiscal para um período em que défices orçamentais são aceitáveis para financiar a economia, evitar a recessão e criar emprego urgente. Porém, nestas mudanças de ideias todo o cuidado é pouco para não se passar de um extremo ao outro. E com isso levar o Estado a incorrer em custos que poderão vir a constituir sobrecargas para governos e gerações futuros.

Provavelmente não é este o melhor momento para a alteração preconizada. Entendimentos alargados entre os partidos talvez se mostrem ainda necessários para não se hipotecar o futuro com políticas fiscais desabridas. Mas o debate deve continuar. Assim como deve continuar para outras matérias constantes dos três projectos de revisão constitucional.

Melhorar o funcionamento do sistema político, adequar o País na sua globalidade a relacionar-se consigo próprio e com o mundo e daí extrair a dinâmica para sustentar crescente prosperidade para todos são objectivos que devem nortear todo o processo de discussão da revisão constitucional. Para isso é fundamental que não se deixe o debate enviesar-se. É de evitar particularmente o monopólio da discussão pelos partidos e excessivas manifestações de interesses puramente conjunturais ou politiqueiros. 

      Publicado pelo jornal A Semana de 7 de Fevereiro de 2009