terça-feira, fevereiro 21, 2012

Valorizar o Parlamento



Nº 534 • 21 de Fevereiro de 2012
Editorial: Valorizar o Parlamento
O Governador do Banco de Cabo Verde ainda está para ser ouvido na Assembleia Nacional pela comissão especializada competente. A audição, pedida pela Oposição, tinha como objecto fazer conhecer ao parlamento e à nação o estado actual do sistema financeiro e também avaliar o eventual impacto que as averiguações em curso à volta do tráfico de drogas e da lavagem de capitais poderão ter sobre o sector. A recusa do Paicv, escudada em interpretações procedimentais que mais parecem de conveniência diminui o parlamento como órgão de soberania fiscalizador do Governo e da Administração Pública. A “beleza” da democracia reside precisamente em ser um sistema de pesos e contrapesos, “checks and balances” em que o poder nunca é exercido exclusivamente a partir de um centro, ficando todos sujeitos à arbitrariedade e à discricionariedade de quem pode mais. Os direitos fundamentais defendem o indivíduo perante eventuais prepotências do Estado e os direitos das minorias garantem que a regra democrática do poder da maioria não evolua para uma tirania da maioria. Em Cabo Verde parece que ainda custa compreender que a democracia liberal e constitucional define-se melhor não como poder da maioria, mas sim como sistema de governo limitado. A Assembleia Nacional, como órgão representativo de todos os caboverdianos no seu pluralismo e na diversidade dos seus interesses, é central para o funcionamento da democracia. Como órgão plural assegura que a actividade do governo fique sujeita a permanente escrutínio e que perspectivas alternativas do interesse público sejam apresentadas e discutidas. O parlamento é mais eficaz quando, através dele, a nação, de forma compreensiva, acompanha a governação do país, sempre consciente de que em relação ao rumo traçado há outras visões, opções e prioridades possíveis. Desbarata o seu capital de confiança quando se mostra inoperativo e servil aos gostos, ditames e conveniências da maioria. Acontecimentos recentes lançaram uma névoa sobre o sistema financeiro que importa clarear o mais rapidamente possível. Nesse sentido, a audição do Banco de Cabo Verde é algo de maior urgência porque, enquanto entidade supervisão do sector, saberá certamente transmitir a dimensão dos estragos e aconselhar em como contê-los. Em Novembro último já se fazia necessário uma audição parlamentar do Banco Central para uma avaliação do impacto da crise internacional sobre a economia caboverdiana. A resposta azeda do governo às declarações do Governador do Banco de Cabo Verde sobre medidas que urgiam ser tomadas no momento, teria porém funcionado como dissuasor de diligências nesse sentido. No caso presente, é o Primeiro-ministro que, num pronunciamento pouco curial, porque se trata de competência de outro órgão de soberania, diz concordar com a audição ao Governador do BCV. Na prática, porém, nota-se que três semanas depois do pedido de audição formulado, nada acontece devido a diferenças aparentemente inultrapassáveis de interpretação do Regimento da Assembleia Nacional. De facto, é negado o poder potestativo que nos parlamentos democráticos se dá aos deputados minoritários de provocar a audição de entidades públicas sem necessidade de acordo da maioria. Esvaziar o poder de fiscalização da Assembleia Nacional diminui aos olhos do público a instituição central da República e desequilibra o sistema democrático. Muitas das críticas dirigidas ao parlamento e aos deputados provém de uma percepção popular de que a sua função no sistema não anda a ser exercida de forma plena. Pode mostrar-se vantajoso para quem no momento governa ter um parlamento fragilizado, mas a realidade é que, a prazo, todos sofrem porque o cidadão comum fica sem protecção perante o Estado: o pluralismo a todos os níveis é restringido e alternativas não são construídas. Valorizar o parlamento, particularmente na sua vertente fiscalizadora, é essencial, nos tempos de hoje, para a sua legitimação, aos olhos de todos, como órgão de soberania.

quarta-feira, fevereiro 15, 2012

SIR: sucesso depende de fiscalização



Nº 533 • 15 de Fevereiro de 2012
Editorial:
Finalmente o Governo resolveu falar no Sistema de Informações da República. Em Nota de Imprensa, o Gabinete do Primeiro Ministro procurou justificar-se por factos trazidos a público duas semanas atrás por este jornal: a falta de fiscalização parlamentar da actividade dos serviços secretos e falta de controlo dos dados desses serviços por magistrados do Ministério Público como manda a lei. Na mesma nota, o governo também quis negar que fontes do SIR tinham passado informações ao jornal Asemana mesmo em face das declarações de deputados da comissão parlamentar de fiscalização confirmando a fuga de informações. Desde de Fevereiro de 2010 a Assembleia Nacional votou uma Comissão de Fiscalização constituída por três deputados para acompanhar os trabalhos do SIR. Não se compreende que, nestes dois anos, só tenham realizado dois encontros e que o primeiro dos relatórios trimestrais obrigatórios fosse entregue apenas há poucos dias. Também foge à compreensão saber que, apesar de o Director do SIR ter sido nomeado a 27 de Janeiro de 2010, que só “neste preciso momento é que a estrutura física da base de dados está a ser montada”. E que, por isso, os magistrados do ministério público nomeados para controlar a legalidade dos dados colhidos nada fiscalizaram até hoje. A clara falta de sinceridade nas informações trazidas a público é realmente preocupante. Os serviços de Informação servem ao Estado e não qualquer elite governante. A actividade de recolha e tratamento de informações é matéria necessária, mas é delicada porque pode pôr em perigo os direitos e liberdades dos cidadãos. Por outro lado a “inteligência” produzida pelos serviços só é útil se não se subordina aos ditames da política e, pelo contrário, ilumina, informa e complexifica a feitura de políticas públicas em particular nos domínios da segurança, da defesa e das relações externas. Para que o SIR cumpra com a sua missão é indispensável que a sua fiscalização pelos órgãos de soberania, Assembleia Nacional e Presidente da República, e também pelo Ministério Público, o órgão de defesa da legalidade, seja efectiva e permanente. Mesmo nas democracias mais consolidadas, constatam-se desvios politicamente motivados dos serviços de informações. A guerra no Iraque por, exemplo, foi justificada com informações fabricadas pela CIA sobre a existência de armas de destruição massiva. Em Portugal, recentemente, o parlamento esteve a averiguar denúncias de funcionamento impróprio dos serviços secretos. Também na Alemanha, em fins de Janeiro último, os serviços de informação chamados de “Protecção da Constituição” foram acusados de espionar membros de partidos da oposição. Estes e muitos outros exemplos demonstram que não se pode ser complacente com estes serviços. A possibilidade de abuso existe e só a fiscalização estrita por entidades independentes pode dar alguma garantia. A instituição do SIR em Cabo Verde já demonstrou padecer de problemas sérios. O SIR foi criado por lei em 2005, mas a regulamentação da lei só veio a se verificar em Dezembro de 2009. Em Janeiro de 2010, o governo nomeou o Director Geral mas dados vindos a público demonstram que dois anos antes já era interlocutor de serviços similares estrangeiros e dirigia a instalação dos serviços. Todo este trabalho na sombra não traz tranquilidade aos caboverdianos. Há uma experiência de décadas com a polícia política: primeiro a PIDE/DGS do regime salazarista e depois a Segurança do regime de partido único que ninguém quer ver repetida. É fundamental que o SIR seja instituído com todas as salvaguardas necessárias, em particular sob o controlo do Parlamento e que Governo dê provas que irá dirigir todo o processo com a necessária honestidade, competência e respeito pelos direitos dos cidadãos.

sexta-feira, fevereiro 10, 2012

Urge mudar e agir

A conquista do terceiro mandato do dr. José Maria Neves foi há um ano. Hoje já quase nada resta da euforia que essa vitória gerou nos seus eleitores e apoiantes. O governo com alguns sinais de cansaço, aparenta ter onze anos de existência e não mostra o vigor desejável num primeiro ano de um mandato de cinco anos. Percalços vários contribuíram para isso.
Logo no início, encalhou nos problemas de energia e água, deixando no ar a ideia que afinal não tinha as soluções para os problemas urgentes do país. Depois veio o processo eleitoral para as presidenciais que durante vários meses quase que paralisou o governo e a administração pública, enquanto forças no interior do partido no governo se digladiavam a favor do respectivo candidato. Posteriormente, a credibilidade do governo sofreu um revés importante quando ficou claro que as promessas de campanha reiteradas em ambiente de vitória não seriam cumpridas.
O governo tem-se agarrado na imagem externa favorável para fechar os olhos à realidade das múltiplas deficiências com que o país se depara. Até quer que a sociedade e as forças políticas da oposição se convençam que o Cabo Verde real é tal qual o apresentado nos relatórios dos organismos internacionais. Por isso, mostra dificuldade em mudar o discurso, abandonar certas práticas e adoptar outra abordagem na relação com a sociedade e com outras instituições do Estado .
Ilustrativo disso são certos actos duvidosos, como a inauguração pelo Primeiro Ministro de casas de banho num bairro da cidade da Praia, construídas por uma associação comunitária, presidida por um deputado da situação, que conseguiu financiamento da Direcção Geral do Ambiente. No mesmo sentido vão as tomadas de posições apressadas como a de baptizar o aeroporto da Praia com o nome de Nelson Mandela, sem a devida ponderação e sem consultas abrangentes da sociedade e de outras forças políticas. O desnorte do governo nota-se ainda na forma como confronta o problema da violência e da criminalidade, hora proclamando que Cabo Verde é um país de paz, hora mostrando-se resignado perante uma suposta condição que aflige o povo caboverdiano desde dos primórdios do povoamento das ilhas.
A derrota do candidato presidencial apoiado pelo Governo, para além das causas internas, foi provavelmente um sinal de que o povo já não estaria tão confiante que fez a escolha certa nas legislativas de Fevereiro de 2011. As dificuldades sentidas hoje pela população, seja quanto aos níveis de desemprego como das perspectivas de crescimento a prazo, resultam da abordagem deficiente e apoiada em ilusões que o governo vem insistindo em dar à crise internacional. Isso agora é confirmado pelo FMI que vem dizer, designadamente, que o Governo reagiu tarde, que os investimentos feitos não se traduziram em crescimento com emprego e que reformas estruturais em vários domínios ficaram por fazer, por falta de empenho político.
O contexto internacional mostra-se cada vez mais complicado. A crise da zona euro aprofunda-se e há a possibilidade real de aumentos substanciais dos preços do petróleo nos próximos meses por causa das sanções aplicada ao Irão e de uma eventual guerra contra esse país. É fundamental que o Governo no ambiente adverso que se avizinha finalmente, confronte devidamente os problemas do país. E que activamente procure mobilizar todas as energias e abrir o caminho para uma real cooperação e solidariedade entre todos. Tranquilidade, segurança e confiança resultarão desse esforço e são ingredientes essenciais para se ultrapassar os múltiplos problemas que actualmente se colocam à sociedade caboverdiana.
Editorial do Jornal “Expresso das Ilhas” de 8 de Fevereiro de 2012

quinta-feira, fevereiro 02, 2012

A realidade impõe-se

O FMI finalmente fez ouvir a sua voz. Tarde, segundo alguns observadores. No comunicado de imprensa o Fundo aconselhou contenção orçamental para salvaguardar o acordo cambial com o euro e para precaver contra choques externos. Curiosamente, o FMI refere-se ao elevado desemprego, algo raro nos seus comunicados. Reformas para aumentar a competitividade, diversificar a economia e melhorar o funcionamento do mercado de trabalho juntamente como um esforço maior em reestruturar empresas estatais como os TACV foram algumas das medidas achadas essenciais para criar emprego.
Claro que os conselhos dados pelo FMI não constituem novidade para o Governo. Há vários anos que os vem ouvindo das forças da oposição e de muitas outras vozes da sociedade caboverdiana. Mas sempre se fechou na sua "bolha", blindada contra a crise.

O governo sempre quis dar a impressão de que poderia sobreviver a quaisquer intempéries desde que se apegasse aos seus pergaminhos da "boa governação". Quando se lhe apon-tava que tinha falhado nas promessas eleitorais de desemprego a um dígito e de crescimento a dois dígitos contrapunha que exportava "credibilidade" . E exibia os comunicados do FMI como prova de que trilhava o caminho certo.

Com a crise internacional a bater à porta, afirmou e reafirmou que tinha criado espaço fiscal e almofadas para choques externos. Acabou por cometer o erro de muitos que vivem pela propaganda. Acreditou no seu próprio discurso e não agiu à altura dos desafios reais.
Manteve a ilusão de crescimento à custa do endividamento externo supostamente concessional, mas com muitos custos escondidos. A s opções na aplicação dos créditos eram limitadas, materiais só podiam ser importados de Portugal e a classe empresarial nacional ficaria nas margens das grandes obras só acedendo a contratos menores.
Investimento privado não se seguiu ao investimento público e, em consequência, Cabo Verde em mais um ano consecutivo irá crescer no intervalo 4-5 %, abaixo da média africana de 6%.
O alerta do Banco Central veio em Novembro, mas foi recebido com hostilidade e arrogância pelo Governo. Mesmo com a realidade a bater à porta teimava-se em seguir o mesmo caminho. Uma semana antes da discussão parlamentar do orçamento do Estado, o Sr. Primeiro Ministro anunciou 100 medidas que mais pareciam cosmética e relações públicas. Não tinham tradução orçamental compreensiva como se viu quando nenhuma alteração substantiva se fez à proposta de orçamento.
Parece que não havia ainda consciência de que a blindagem imaginária fora furada . Talvez se esperava alguma mão salvadora vinda dos lados do Millenium Challenge Corporation. O problema é que só se conseguiu praticamente a metade do primeiro compacto muito abaixo dos 200 milhões que um ano antes se almejava obter dos americanos.
Com a crise europeia a aprofundar-se, secando as fontes tradicionais de donativos e de fundos concessionais, poucas alternativas ficam. Agora com a posição sem ambiguidades do FMI parece que não há como fugir à realidade dos factos.
Vamos ver se haverá acção consequente para se criar condições para o crescimento e emprego ou se volta a acenar a sociedade com miragens.

Editorial do Jornal “Expresso das Ilhas” de 1 de Fevereiro de 2012

terça-feira, janeiro 31, 2012

País real, país virtual

Na terça-feira, no pequeno-almoço com jornalistas, o Primeiro-ministro apelou para que se acredite que há plena liberdade de imprensa no país. O “desconfiómetro” parece não funcionar, mesmo quando o Estado é o maior empregador de jornalistas na rádio e na televisão, precisamente os meios de comunicação de maior influência; quando denúncias de vários quadrantes apontam para um ambiente político pontuado por compra de consciências e intimidações partidárias movidas pelo partido no governo contra adversários internos e externos ao partido; quando o Estado em orçamentos passados disponibilizou mais trinta e três mil contos (quase o montante de promoção na Cabo Verde Investimento) para fazer propaganda. O ambiente que precedeu as eleições presidenciais de Agosto do ano passado tira qualquer ilusão a quem ainda acredita que a democracia em Cabo Verde não tem sérios problemas. Todos se lembram como o Governo entrou numa campanha presidencial suprapartidária colocando todos seus recursos ao serviço da candidatura preferida pelo presidente do Paicv e primeiro-ministro. Ficou gravada na memória a ferocidade como foram atacados os militantes do PAICV apoiantes da candidatura de Aristides Lima. As denúncias de compra de consciência e de ameaça de perda de emprego relembraram tácticas utilizadas normalmente contra a oposição em outras eleições. Fundos foram encaminhados para as câmaras municipais, associações comunitárias e ONGs nas vésperas das eleições e em violação da lei eleitoral com o fito de arrebanhar votantes. Viveu-se, de facto, uma situação grave onde se utilizaram tácticas terríveis para cercear e desmoralizar adversários políticos. O exagero no envolvimento de membros do governo nas campanhas levou a incidentes desprestigiantes com efeitos nalgumas instituições. O pedido de demissão do Chefe de Estado Maior das Forças Armadas em pleno período eleitoral não é alheio a isso. Fingir que nada aconteceu, ou o que se viveu então foi algo excepcional e não repetível, é esquecer como actos provocatórios e várias formas de fraude se tornaram corriqueiros nas eleições em Cabo Verde. E não é a vitória de Jorge Carlos Fonseca sobre o candidato do PM que deixa tudo limpo e a brilhar. A malícia no ataque ao Presidente da República acusando-o de chefe da oposição, revela que os métodos de ontem podem a qualquer momento ressurgir com toda a violência. Está-se, portanto, longe da democracia propalada nos relatórios. Claramente o governo e o partido que o suporta insistem em manter a sociedade num bipartidarismo crispado que desincentiva a participação política, cala vozes diferentes e neutraliza qualquer busca de autonomia, seja ela pessoal, social, intelectual ou académica. Aliás, a actual operação de forçar os caboverdianos a tomar o país virtual dos relatórios pelo país real, reflecte perfeitamente a atitude esperada de quem fundamentalmente escolheu governar servindo-se da propaganda. Procura subjugar, alienar e humilhar obrigando as pessoas a repetir o que sabem não ser a verdade.

segunda-feira, janeiro 30, 2012

Informalidade , conflito de interesses, crime

Dias atrás, Hernando de Soto, o economista peruano escrevendo no Financial Times, ressaltou a importância do conhecimento no capitalismo a par com factores como o capital e o crédito. Por conhecimento ele quis dizer toda a informação certificada sobre activos e passivos dos operadores económicos, a malha legal indispensável para garantir previsibilidade e confiança nas transacções e instituições para regular e dirimir conflitos. Com tal conhecimento, qualquer operador pode “localizar fornecedores, inferir valor, correr riscos” no processo de produção e distribuição de qualquer produto. Para Hernando de Soto, a crise actual é primeiramente uma crise do conhecimento. Começou quando se mostrou impossível saber o valor real de vários produtos financeiros detidos pelos bancos e dúvidas surgiram sobre a solvência dos mesmos. Seguiram-se a perda de liquidez, o aperto no crédito e os efeitos negativos de uma actividade económica mais restrita e básica e posteriormente a crise da dívida soberana em consequência das medidas para evitar uma grande depressão. Em países como Cabo Verde, as deficiências no factor conhecimento sentem-se no ambiente de negócios pouco propício a iniciativas empresariais e inibidor da actividade económica criadora de emprego. Manifesta-se também no espaço livre que deixa ao sector informal e também na marca de informalidade que imprime a certas interacções entre actores económicos e sociais e o sector público. Conflitos de interesse, por exemplo, parece que não existem. Os casos descritos na imprensa envolvendo a Bolsa de Valores são paradigmáticos a esse respeito. Alegadamente, o presidente da BVC fazia de consultor de empresas interessadas em lançar obrigações na bolsa e de promotor, logo a seguir à emissão das mesmas, junto de potenciais clientes. Quando é assim, facilmente se pode tornar um alvo de outros que vêm no circuito ou esquema estabelecido oportunidade para usar como veículo de transacções ilegais. Assim aconteceu com muitos rabidantes virados correios da droga, com funcionários dos TACV, em part time fornecedores de produtos de boutiques, aliciados para o tráfico e com elementos das autoridades nas fronteiras habituados ao pequeno contrabando que são envolvidos em corrupção já mais graúda. Pelo que foi dito, é evidente que para se conter a avalanche de crimes que ameaça o país há que dar à volta à cultura que desvaloriza regras e instituições, romantiza a actividade informal e o rabidante e aprova a ganância dos “ricos instantâneos”. Mas para isso é preciso, em simultâneo, construir alternativas de emprego digno e gratificante. Crescimento com emprego, porém, só é possível se como diz Hernando de Soto se se criar essa base de conhecimento que “valida informação sobre quem tem propriedade de terra, do trabalho, do crédito, do capital e da tecnologia e mostra como estão conectados e como podem lucrativamente serem combinadas”.

quinta-feira, janeiro 26, 2012

Restaurar valores

"A sociedade caboverdiana está descaracterizada", palavras de Dom Arlindo Furtado depois de um encontro com o Presidente da Câmara para discutir a problemática da segurança na Praia. A constatação do Bispo de Santiago vai ao encontro da percepção de muitos de que o tecido social do país mostra sinais graves de enfraquecimento e ameaça rasgar-se. Problemas mostram-se na falta de civismo, na fragmentação familiar e na violência crescente contra pessoas.

O sentimento de falta de amparo por parte da sociedade atinge particularmente os jovens. Alguns reagem saindo à cata de algum refúgio e julgam encontrá-lo na droga e nos "gangs" denominados thugs. Na busca de substâncias ilegais e na utilização da violência como forma de afirmação e identidade no espaço urbano, acabam por contribuir para o aumento da agressividade geral. Com isso alienam ainda mais a sociedade envolvendo a todos numa espiral de violência que cria mais insegurança, aprofunda o desnorte e revela impotência geral. Agrava-se a situação sempre que as autoridades e a sociedade deixam-se cair na tentação

de resolver os graves problemas sociais com acções excessivas das forças de segurança.

Várias razões estarão na origem da fragmentação social que se verifica actualmente. Mas, facto é, valores só se revigoram e se renovam num ambiente socioeconómico e cultural propício. Por exemplo, valores de dignidade, liberdade e autonomia dificilmente se afirmam, quando se toma como prioridade máxima a atracção e gestão da ajuda externa em detrimento da construção de estruturas produtivas no país. No ambiente criado de assistencialismo, tais valores vêem-se substituídos por subserviência, conveniência e oportunismo. No processo, a iniciativa individual também fica distorcida. Em vez do empreendedorismo capaz de congregar capacidades para atingir objectivos socialmente úteis, favorece-se quem sobe na carreira subtraindo outros ao longo do caminho via intrigas, relações especiais com poderes instalados e pertença a redes de influência.

A prática dos poderes públicos na distribuição da ajuda externa favorece, em primeiro lugar, quem é próximo e leal. Naturalmente que isso gera a marginalização do outro, crescente desigualdade social, discrepâncias profundas entre regiões do país e centraliza-ção nas decisões do país. As consequências ao nível individual e familiar são profundas. Os que se sentem abandonados, ou sem as oportunidades dadas a outros, podem descambar numa postura associal e procurar conforto em causas e organizações muitas vezes marginais.

A luta contra a pobreza, supostamente, deveria constituir um esforço de contenção desse resvalar para a miséria e a indigência de quem tem muito pouco a perder e que não acredita em nada. A actividade das ONGs e das associações comunitárias, ao propiciar espaços dignos de participação e oportunidades na construção autónoma da vida das pessoas, deveria ser um bálsamo para as chagas no tecido social. O desânimo não tomaria conta das pessoas e a esperança numa vida melhor poderia reacender-se com políticas públicas e encorajamento da actividade económica privada nacional e estrangeira propiciadoras de emprego.

O sequestro pelos poderes públicos da agenda de muitas das associações e ONGs no intuito de servir propósitos partidários e controlar cidadãos vulneráveis, escamoteia a missão nobre para a qual foram criadas.

Em vez de ajudarem a restaurar a dignidade e autonomia das pessoas, colocam-se no papel de instrumentos indutores da dependência e do espírito assistencialista. Como têm uma actuação abrangente, não há ponto do território nacional que escape ao efeito erosivo dos valores provocado por tais práticas.
Restaurar valores, ter instituições com sentido de serviço público e orientar o país para oferecer um emprego digno e gratificante a todos os caboverdianos é o caminho que deve ser trilhado para um futuro de paz, de segurança, de solidariedade e de prosperidade.
Editorial do Jornal “Expresso das Ilhas” de 25 de Janeiro de 2012

quinta-feira, janeiro 19, 2012

Memória e posteridade

As nações nos seus feriados, monumentos e símbolos como a bandeira, o hino e armas celebram a sua existência, avivam a memória e passam à posteridade o sonho de uma vida “até ao fim dos tempos”. O contrato social que une todos numa vivência comum é particularmente renovado nesses momentos em que todos se reúnem em comunhão. Faz-se então a reafirmação dos princípios basilares que norteiam a nação e justificam as instituições que medeiam a relação entre o indivíduo e o colectivo e entre governantes e governados.

Liberdade, Independência e Democracia são as grandes aspirações dos povos e nações em todo o mundo. Nos calendários nacionais são as grandes datas escolhidas para as comemorações em que toda a “polis” se reúne com uma só voz independente das suas divisões políticas ou outras no quotidiano da sua existência. Uma outra data de celebração colectiva que aparece em muitos calendários é a da Memória e Gratidão por actos superiores de indivíduos que tiveram papéis cruciais em momentos críticos da vida da nação ou, pelos seus feitos, trouxeram o reconhecimento universal da grandeza da nação. É a data dedicada aos heróis.

Em Cabo Verde, o 13 de Janeiro, o dia da Liberdade e Democracia, o 20 de Janeiro, o dia dos heróis nacionais e o 5 de Julho, o dia da independência, são os três grandes feriados civis. A celebração desses dias nacionais ainda carece da unanimidade necessária para se tornarem momentos revigorantes da república. Este ano, pela primeira vez, o Presidente da República observou com solenidade o dia 13 de Janeiro. A Assembleia Nacional, porém, ainda se recusa a referenciar o dia que marca a sua própria existência como órgão de soberania plural constituída por deputados da nação eleitos livremente em listas pluripartidárias. Uma incongruência que urge pôr um fim definitivo.

O espectro do regime de partido único ainda ensombra os caminhos que ligam o desejo da Liberdade à conquista da Independência e à instauração da Democracia. Procura apresentar-se como necessidade histórica e justificar-se com indispensável para a defesa da independência. Nada mais falso. Foi uma opção que suprimiu por 15 anos a Liberdade.

Os vinte e um anos de democracia já provaram que a Liberdade e a Independência só são preservados se os direitos do indivíduo são respeitados, se a soberania popular legitima o Poder político e se há sucesso na construção do Estado de Direito. A tragédia da Guiné-Bissau onde se misturam golpes, guerras, invasões e permanência de tropas estrangeiras é elucidativa a esse respeito. A lealdade de todos os órgãos de soberania para com os princípios que regem a república e constituem o sustentáculo das instituições deve ser claro e inequívoco. A liberdade e a estabilidade do país assim o exigem.

O dia dos heróis nacionais completa os outros dois feriados nacionais. A comemoração do dia deve ser um momento de exaltação dos valores neles consubstanciados e que levaram indivíduos em momento diferentes da história do país a fazer os maiores sacrifícios e a realizar os maiores feitos para que a Nação fosse livre e o futuro pertencesse a todos os seus filhos. Deve ser também um momento de demonstração de gratidão para os que tanto deram para a sua colectividade sem expectativa de recompensa em riquezas e poder sobre os seus semelhantes.

Editorial do jornal "Expresso das Ilhas" de 18 de Janeiro 2012

quinta-feira, janeiro 12, 2012

Falar Verdade

É preciso falar verdade, é o grito que se ouve por todo o mundo. Movimentos sociais espontâneos com o nome de Indignados ou Occupy Wall Street descrevem-se a si próprios como movimentos de pessoas que falam a verdade. Muitos governantes além fronteiras já se aperceberam que só trazendo a real situação do país para discussão na esfera pública podem esperar receber algum suporte da população nas horas críticas que espreitam à frente.

O Presidente da República na sua mensagem de resposta à apresentação dos cumprimentos de Ano Novo pelo Governo fez também a recomendação ao executivo do Dr. José Maria Neves de “explanar toda a verdade dos factos, por mais duras que sejam” para que se torne “mais célere o engajamento de todos (…) no esforço de resistência e ultrapassagem da crise”. Claramente que o Primeiro-ministro não gostou do conselho, mas o mundo hoje não se compadece com posturas de governação que primam por apresentar a situação do país em tons róseos iludindo factos concretos. Só se adia a consciência pública das coisas e não se consegue evitar o encontro muitas vezes doloroso com a realidade.

Em Novembro passado, o PM não apreciou as sugestões de política feitas pelo governador do Banco de Cabo Verde. Reagiu mal e depois não foi consequente em traduzir para o Orçamento as medidas de política que com pompa e circunstância tinha anunciado uma semana antes para o país fazer face à crise. Entretanto, desde o 1º de Janeiro os caboverdianos deparam-se com uma outra realidade derivada das restrições ao crédito impostas pelo BCV com vista a preservar reservas externas e a garantir o Acordo Cambial. Já se sabe que a economia nacional vai abrandar devido a essas restrições com consequências no rendimento das famílias e no emprego. Não se tem conhecimento é como irá o Governo contrapor ao abrandamento considerando que já atingiu os limites do endividamento público e o FMI aconselha que se mantenha as reservas externas em três meses de exportação.

O nosso sistema de governo prevê a separação e a interdependência dos órgãos de soberania. O sistema só pode funcionar se houver respeito mútuo entre os órgãos de soberania, se forem preservados os papeis de cada um dos titulares dentro do sistema e se o exercício das respectivas competências forem aceites normalmente. A reacção agastada do Sr. Primeiro Ministro ao apelo do Sr. Presidente da República para ser franco com Nação obviamente não se justifica.

Este governo já demonstrou que investiu e muito na propaganda particularmente na televisão pública. O Centro de Imagem do Governo já teve verbas em montantes quase iguais aos destinados ao Cabo Verde Investimentos para realizar acções de promoção de Cabo Verde e de atracção do investimento externo. Por conseguinte, não é um Governo estranho à tarefa de tratar informações para que a mensagem que chega ao chega ao público lhe seja o mais favorável. É do mais puro interesse público, particularmente em tempo de crise, que do mais alto representante da nação venha o apelo de se falar a pura verdade aos caboverdianos.

A tirada do PAICV de acusar o presidente da república de ser líder da oposição demonstra falta de sentido de Estado. Não se pode pôr em causa a natureza suprapartidária do cargo do presidente da república só porque convém marcar alguns pontos políticos. Nem tão pouco com esse acto arrastar o PR para o buraco da bipolarização que esvazia o debate político e retira espaço aos que tão vivamente viveram as últimas movimentações políticas e sonham com uma esfera pública menos crispada, mais plural e mais respeitadora dos factos.

Editorial do Jornal “Expresso das Ilhas” de 11 de Janeiro de 2012

quarta-feira, janeiro 11, 2012

Os militares e a Guiné Bissau

A morte do Presidente da Guiné-Bissau recentrou outra vez a atenção na questão da estabilidade desse país. A transição para a democracia na Guiné-Bissau nunca realmente foi completada. Um aspecto essencial segundo Samuel Huntington para o sucesso das transições é a subordinação do poder militar ao controlo civil. Isso nunca aconteceu na Guiné, porque nota-se claramente que a narrativa legitimadora do poder político nesse país continua a ser a luta armada de libertação. As forças armadas sentem-se como instrumento central dessa luta e não se convencem de que têm de se submeter ao poder soberano do povo investido nos seus representantes no parlamento e na presidência da república. Historicamente os militares são tentados a manter uma espécie de tutela sobre a democracia quando tinham sido os protagonistas na mudança de regime. Em Portugal, na sequência da Revolução de 25 de Abril, instituiu-se a tutela militar que só veio a terminar em 1982 com a revisão constitucional que pôs fim ao Conselho da Revolução. Na Turquia, os militares desde os anos das reformas de Ataturk, nos anos 20, até muito recentemente exerceram uma tutela apertada sobre o regime secular turco. Na Guiné-Bissau, os militares consideram-se acima do Estado porque, na narrativa dominante das FARP, são anteriores ao Estado (Madina de Boé, 1964) e constituem os instrumentos fundamentais na forja da nação guineense. Nessa medida, nunca realmente aceitaram que a legitimidade popular se sobrepusesse à legitimidade revolucionária que se lhes reconhece. Nino governou mais tempo com estabilidade porque conseguiu reunir as duas legitimidades. Fora disso, a instabilidade reina, intercalada por momentos de calmaria, em que tudo parece normalizar-se. Basta porém que se manifestem interesses outros designadamente no acesso às riquezas e favores derivados do tráfico de armas ou drogas para que se deflagrem conflitos à vista de todos e o poder civil se mostre completamente impotente perante os acontecimentos. A narrativa da luta de libertação que confere direitos especiais aos combatentes, tornou reféns os países recém-independentes. A narrativa justifica os regimes de partido único e porque postula uma diferença como disse Amilcar Cabral entre o “povo” (todo aquele que está com o partido) e a “população” (tudo o resto) é a fonte principal do conflito interminável que reina na sociedade. A crispação resulta da pressão inexorável do “povo” em fazer-se coincidir com a “população”. Há aí margem para toda a espécie de violência, enquanto se procura convencer toda a gente. Quando o regime se torna multipartidário não há realmente a aceitação do outro, pois insiste-se nas prerrogativas dos “libertadores” e os princípios de legitimidade popular e de separação de poderes só são aceites com um grano salis e enquanto convenientes. A meio da luta política renhida todos podem ser alvos, as câmaras da oposição e o próprio presidente da república. Esses países, para realmente se estabilizarem, têm que se libertar da chantagem dos libertadores. O exemplo em discrição vem de há mais de 300 anos. George Washington retirou-se ao fim de um segundo mandato para que o peso da história que transportava não condicionasse a voz do povo nas urnas. Por essa e outras razões foi possível substituir a narrativa da luta pela independência pela a narrativa liberal e democrática da república dos homens livres cujos direitos são inalienáveis e onde a legitimidade do exercício do poder do Estado provém de eleições livres e plurais e do cumprimento da LEI. É o que a Guiné deve fazer para poder reinar sobre os seus militares e ganhar a estabilidade.

segunda-feira, janeiro 09, 2012

Estranhas opções

O actual Ministro das Infraestruturas e Economia Marítima, segundo relatos da imprensa, foi indigitado pelos colegas do partido para ser candidato à câmara de Santa Catarina. Há menos de um ano foi nomeado para presidir à criação de dois dos quais clusters propostos pelo governo. Eis que agora é chamado para a autarquia. A qualquer pessoa causa perplexidade esse aparente jogo de cadeiras em que todos parecem candidatos a tudo. Um jogo que absorve e distrai o país e as instituições fazendo-os mergulhar num frenesim primeiro pré-eleitoral e depois eleitoral. E estão em todas as eleições, sejam as suprapartidárias do presidente da república, sejam as locais para eleger presidentes de câmara. O Ministro já de saída para concorrer em Assomada, levou basicamente os primeiros meses do seu tempo no governo concentrado nas presidenciais como, aliás, todo o Governo, a começar pelo Primeiro-ministro. A pergunta que se coloca é onde fica a governação em tudo isto. Claramente que sofre com as mudanças, com a instrumentalização partidária dos meios e com a programação feita para responder a necessidades eleitorais imediatas e não as programadas para o fim da legislatura. É natural também que, sem programação e esforço continuado e sistemático para criar vontades políticas, a governação dependa cada vez mais da propaganda para fazer vingar os seus pontos de vista. É o que tem vindo a verificar. Questão porém outra é o que fazer desta remodelação já anunciada. Será simplesmente uma questão autárquica ou está-se à procura de um pretexto para afastar o Ministro? Independentemente das razões, o que se segue é paralisia ou, no mínimo, uma letargia num sector que todos consideram chave para a economia. Com o sector financeiro afectado pelos escândalos e agora com outros dois sectores considerados para a economia real a marcar passo é de se perguntar como o país vai enfrentar as dificuldades crescentes causadas pela crise.

domingo, janeiro 08, 2012

Delegado do Governo?

O Primeiro Ministro, na apresentação da Dra. Filomena Vieira como candidata a presidente da Câmara diz que São Vicente precisa de um discurso “competente e responsável” para reivindicar para a ilha. Curiosa essa noção do Poder Local que parece resumir-se à capacidade de reivindicar recursos de um poder centralizado. Não se sabe onde ficam a lealdade institucional e o respeito pela autonomia local que a Constituição impõe nas relações entre o governo e as câmaras, nem tão pouco a justa repartição dos recursos do Estado que deve acompanhar a assunção plena das atribuições e competências pelas autarquias. Mas, segundo o PM, o que importa é ter “bom discurso e boa ambição”. E a candidata esclarece o significado dessa frase dizendo que “São Vicente precisa mais do PAICV do que o PAICV precisa de São Vicente”. Ou seja, há que alinhar com o PAICV para que São Vicente ganhe. Nessas frases, fica clara a relação paternalista e de subjugação que o PAICV entende deva existir entre o governo e as câmaras e compreende-se muito do marasmo que passa por São Vicente na última década. Assim como também se compreende a perda de muitas oportunidades e a falta de investimentos no tempo certo e devidamente encadeados num quadro estratégico de restauro de dinâmica à ilha. O PAICV sempre quis que São Vicente soubesse que sofria com a sua teimosia em eleger câmaras de cor política diferente. Ao longo de todos estes anos em que se acendiam e se apagavam esperanças em São Vicente, decorria, de facto, um jogo de “gato e rato” para forçar as escolhas dos munícipes. Em 2000, o PAICV chamou de São Tomé ao trabalho gerado pelas fábricas do Lazareto. De seguida, já no governo, fez desaparecer por vários anos o investimento externo na ilha com perda de milhares de empregos. Para ganhar as eleições, em 2005, acenou com o projecto de porto de águas profundas e do aeroporto. Depois, em 2007, foram os projectos de hotéis e resorts no valor 3 biliões de dólares, segundo o então Ministro de Economia, José Brito. O porto prometido ficou pelas intenções, o aeroporto foi inaugurado quando já a bolha imobiliária tinha arrebentado e os projectos turísticos perderam-se nos múltiplos atrasos gerados pela inércia, ganância e a luta partidária do Governo nas eleições autárquicas de 2008. São Vicente terminou a década com a maior taxa de desemprego do país, uma situação social crítica e um espírito cansado pela falta de perspectiva do governo quanto ao desenvolvimento da ilha. Agora vem o primeiro-ministro dizer que a solução para ilha é simplesmente render-se a um “delegado do governo” cujas reivindicações, porque acompanhadas de “generosidade, do espírito da paz e de um bom sorriso” serão admitidas. Espantoso como, mais uma vez, se reforça a crença que o problema de Cabo Verde é redistributivo. Ou seja, que se trata simplesmente de relocalizar recursos que estão algures e cada um tomar o seu quinhão. Que para isso, dependente do ponto de vista, a solução passa por descentralizar ou por criar câmaras alinhadas com o Governo. Ao alimentar essa perspectiva indigente de desenvolvimento, o Governo procura fugir da responsabilidade de fazer crescer o país de forma a criar empregos sustentáveis e de qualidade, ao mesmo tempo que reproduz a mentalidade assistencialista e de dependência que tão bem serve os seus desígnios de poder. A partir desta posição, pode tranquilamente punir municípios sonegando recursos, criar poderes paralelos aos órgãos autárquicos eleitos nas entidades ad hoc que subsidia directamente e desencadear campanhas de sedução para atrair votantes. São Vicente depois da punição, vai agora ser submetida a ondas sucessivas de sedução para disfarçar a capitulação a quem, com as suas opções centralizadoras e controladoras, roubou à ilha oportunidades para desencadear a dinâmica, a autonomia e a voz própria necessárias para reequilibrar o país e acelerar o seu crescimento. A sequência de acontecimentos na última semana que culminou com apresentação da candidatura do PAICV relembra tácticas anteriores: a pressão perseguidora fez-se sentir outra vez sobre Isaura Gomes e acenou-se São Vicente com glórias passadas baptizando o navio Guardião na ilha, não obstante a sede da Guarda Costeira se situar na Praia, enquanto o PM deixava claro que só haverá progresso para ilha com unidade de todos “cristãos e protestantes” e “gentes de todas as cores” na candidatura do PAICV.

sexta-feira, janeiro 06, 2012

Criminalidade sobe

O aumento em 7 porcento da criminalidade em Cabo Verde parece que apanhou o Governo de surpresa. O Primeiro-ministro desdobrou-se logo em visitas às polícias e outras estruturas de segurança e convocou o conselho de ministros especializado para discutir o aumento da criminalidade violenta e do crime organizado. Em declarações à imprensa, vai já fazendo as manobras políticas habituais de assumir a parte que pode reivindicar algum sucesso (crime organizado) e considerar que a outra parte (delinquência juvenil e violência urbana) é culpa dos outros ou então o governo compartilha responsabilidade com as famílias e a sociedade, mas vai relembrando logo que o Governo tem cumprido a sua parte. Posto assim, o problema é outra vez relegado para o segundo plano à medida que a notícia sobre o aumento da criminalidade perde novidade. Questões subjacentes são varridos para debaixo do tapete e tudo volta ao normal, até haver um nova revelação e se assistir a mais teatro. Entretanto, as forças de segurança continuam a adquirir mais meios físicos e humanos sem que se veja que os seus métodos são melhorados, os problemas identificados e há uma estratégia de intervenção que garante resultados permanentes. De facto, não inspira confiança quando mesmo medidas básicas de prevenção de suicídio falham como no caso de segunda-feira à noite de um preso por homicídio acabado de sair do hospital por tentar se matar. Também preocupam as denúncias de corrupção e de tráfico que podem indiciar infiltração das instituições de segurança e ainda os abusos de poder com violência sobre os cidadãos referenciados por organizações nacionais e estrangeiras. O Sr Presidente da República na semana passada chamou a atenção da polícia para a “violência que não obedece aos sempre exigidos critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade, praticada em algumas esquadras policiais”. O governo tem que cuidar da capacitação estratégica e organizacional da Polícia de forma a responder à complexidade dos problemas sem que tenha de enveredar pelo caminho dos excessos de violência, pela utilização indevida de unidades especiais e pela atitude confrontacional com a população. Há que conseguir eficácia no policiamento e na luta contra a criminalidade tendo sempre presente que os recursos são ilimitados e os direitos dos cidadãos não podem violentados.

quinta-feira, janeiro 05, 2012

2012: o ano do ajuste

2012 não vai se revelar o ano cataclísmico previsto no calendário dos Maias, mas certamente que será uma ano difícil. A crise mundial ainda não percorreu o seu curso completo e sobressaltos, surpresas e desenvolvimentos inesperados devem ser esperados. Em Cabo Verde o ano inicia-se com as restrições ao crédito impostas pelo Banco Central no intuito de preservar três meses de reservas externas e salvaguardar o Acordo Cambial.

Pelo mundo fora, nestes primeiros dias do ano, a mensagem que mais se ouve é que sacrifícios devem ser feitos para que as dívidas se tornem sustentáveis e os caminhos de crescimento sejam retomados. O previsto abrandamento da economia mundial poderá mais ser mais profundo em consequência de programas nacionais de austeridade, de convulsões sociais e de perturbações geopolíticas com efeitos no preço do petróleo e no comércio internacional. Adoptar a atitude adequada face às muitas incertezas é o grande desafio que se coloca a todos os povos e seus governantes.

Parece claro que o mundo entrou num “tempo de vacas magras” e sem ter feito as necessárias reservas nos momentos bons. Sobreviver e vencer no ciclo actual irá exigir contenção séria nos hábitos e nos gastos, procura fincada de eficiência e ganhos significativos de produtividade. Fundamental para que o esforço de todos resulte, é ter-se instituições de alta qualidade, um Estado comprometido com a economia, o crescimento e o emprego e, também, governantes com profundo sentido do serviço público que não se esgota no desejo de manter o poder a todo o custo.

A qualidade das instituições vê-se designadamente na sua capacidade de se manterem focalizados na sua missão, livres de conflitos de interesses e fiéis ao ambiente regulatório envolvente. Os acontecimentos recentes que já levaram à prisão do Presidente da Bolsa de Valores e prometem respingar em outras entidades públicas, interpelam a todos quanto ao real nível das nossas instituições. Deve preocupar a todos as persistentes notícias sobre a droga e tráfico envolvendo pessoas ligadas a vários serviços estatais. A aparente corrupção que é aí referida pode não ser tão pequena e até confirmar uma certa infiltração do aparelho do Estado a todos títulos indesejável.

O comprometimento do governo e do estado com a economia deve fazer sentir-se, em particular, no nivelar do terreno com oportunidades para todos, na fixação das prioridades e na preocupação de ter tributação justa de pessoas e empresas conjugada com esforço visível de melhoria da qualidade das despesas. Se, pelo contrário, as empresas nacionais sentem-se preteridas e também sobrecarregadas por uma administração fiscal com propósitos unidimensionais de cobrar e a lidar com serviços pouco sensíveis aos custos induzidos, quebra-se a solidariedade que o momento exige. Da parte dos trabalhadores tem que existir a percepção de que os sacrifícios consentidos irão resultar em crescimento do emprego tanto em número como em qualidade.

Vulgariza-se, em certas paragens, a ideia de que as tarefas de governação deviam ser entregues a tecnocratas. A Itália pós-Berlusconi seria o exemplo disso. A realidade é que não se pode sacrificar a democracia com a panaceia da tecnocracia. Os governantes têm mandatos fixos de quatro ou cinco anos para cumprir as promessas eleitorais e devem escalonar a sua actuação de forma a serem efectivos e eventualmente serem reeleitos. Não podem optar por estar em campanha eleitoral permanente e desculparem-se por não tomar medidas certas e atempadas por receio de alienação do eleitorado. O sentido do bem servir o interesse público deve poder sobrepor-se aos interesses partidários do momento.

As crises têm o condão de levar as pessoas, a sociedade e os governos a fazerem um ajuste com a realidade tanto nas expectativas como nas promessas. O ajuste que vem aí é inevitável e incontornável. Só se espera que não seja traumático e realmente eleve a contribuição de todos para um outro patamar. Do esforço que se vier a fazer dependerá a capacidade do país em enfrentar as dificuldades do momento e em singrar com sucesso no futuro próximo.

Editorial do jornal “Expresso das ilhas” de 4 de Janeiro de 2012

quarta-feira, janeiro 04, 2012

Mensagens díspares

As mensagens do fim do ano do Presidente da República e do Primeiro Ministro denotam duas atitudes distintas em relação aos problemas do país. O PM muito no seu timbre exacerba a percepção que, via vários indicadores, certos sectores da comunidade internacional convenientemente querem alimentar sobre Cabo Verde. Também quer que os caboverdianos aceitem a visão que os outros pretendem ter do país pondo de lado a sua vivência e a experiência colhidas no dia-a-dia. Assim, o Primeiro-ministro pretende que se engula a ideia de que Cabo Verde é uma democracia acima de Portugal, e outros países com instituições democráticas mais antigas e consolidadas e com um ambiente sócio-económico de longe mais propício para a dinâmica democrática. Quer que se acredite que há aqui maior liberdade de imprensa do que em países com uma sociedade civil possante e autónoma e com meios de comunicação privados que ao contrário do que se passa em Cabo Verde têm mais audiência do que os públicos. Quer ainda que se acredite que Cabo Verde passou ao lado da crise por sua capacidade endógena de crescimento, quando é ele próprio que extrapola as vantagens do MCA mesmo reduzido à metade do primeiro. E quando todos notam que, atingidos os limites do endividamento, o BCV impõe restrições ao crédito para conter a erosão das reservas externas. Já o Presidente da República afirma que a nação precisa saber onde está para poder saber como agir para o futuro. E aconselha ao Governo “comunicações francas para cabal informação da real situação do País”. Continua, dizendo que “numa altura como esta é preciso explanar toda a verdade dos factos, por mais duras que sejam”. O Presidente da República considera que só assim “se torna mais célere o engajamento de todos (…) no esforço de resistência e ultrapassagem da crise”. No passado recente, todos puderam ver repetidamente o filme de governos a pintar de cores róseas situações que depois vieram revelar-se problemáticas, se não mesmo catastróficas. O Portugal de Sócrates foi isso e agora o povo português como, aliás, o grego, o espanhol, o italiano e o irlandês pagam na pele euforias deslocadas. É preciso que se deixe de ver a política como uma espécie de jogo onde o que vale é fazer-se eleito não olhando a meios. E, quando a realidade cai em cima, afastar a responsabilidade com a desculpa de que “do lado do Governo fez-se tudo”mas que a sociedade, as empresas ou os trabalhadores falharam, como se, a par do governo da república, existisse um “lado dos outros”.

terça-feira, janeiro 03, 2012

Símbolos e regimes

Na reportagem da tomada de posse do Chefe de Estado Maior das Forças Armadas a câmara da RTC não deixou de parar por um breve instante sobre o quadro de Amílcar Cabral no salão nobre da presidência da República. O retrato mostra Amílcar Cabral vestido de camuflado militar com pistola à cintura. O poder simbólico do quadro mostrou-se mais uma vez, talvez mais por se destoar completamente dos princípios actuais da república. Foi colocado na presidência da república quando vigorava o regime de partido único. A legitimidade do regime derivava da luta armada do PAIGC na Guiné cujo líder tinha sido Amílcar Cabral. Natural que, de entre os muitos retratos dele com outras indumentárias, se escolhesse a da imagem do militar. Condiz com a ideologia revolucionária que, segundo Mao Tse Tung, proclama que o “poder político está na ponta da espingarda”. Na II República porém o poder político emana da vontade soberana do povo expressa de forma livre e plural. A presença do símbolo no coração da presidência não faz sentido particularmente no acto de nomeação do Chefe das Forças Armadas pelo presidente eleito pelo povo. A nomeação do CEMFA é um acto de extrema importância porque afirma, perante toda a nação, a subordinação dos militares à autoridade civil legitimamente constituída. Mais, transmite aos militares a mensagem que não constituem uma milícia ou braço armado de quem quer que seja e que devem lealdade absoluta à Constituição. Os símbolos da República e da soberania nacional são a Bandeira, o Hino e a Armas nacionais, assim como está estabelecido no artigo 8º da Constituição. De acordo com a tradição republicana, a única imagem permitida nas estruturas do Estado é a do Presidente, porque só ele representa interna e externamente a República. Há que repor a legalidade e a coerência de princípios.