segunda-feira, outubro 08, 2018

Ameaças de Lock-out?

O país foi surpreendido no passado dia 24 de Setembro pela posição da companhia aérea Binter de considerar que deliberações da Autoridade Aeronáutica (AAC),com que não concorda, a “libertam de compromissos” tomados com o governo actual e o anterior. Imediatamente parou vendas a partir de 28 de Outubro, data em que os novos preços máximos dos bilhetes de avião inter-ilhas iriam, segundo directiva da AAC, entrar em vigor.
Sendo a única operadora nos vôos domésticos, era evidente a confusão que se gerou quando de repente se tornaram incertas as ligações entre as ilhas. No dia 26 a Binter, referindo-se a “reuniões frutíferas”, em relação às quais e não se sabe se foram internas ou com alguma entidade externa à empresa, retomou a venda de bilhetes depois de endereçar à AAC um pedido para reavaliar o quadro tarifário publicado com as baixas nas tarifas máximas. Os dois dias de incertezas vieram lembrar a fragilidade que caracteriza o transporte aéreo nas linhas domésticas em Cabo Verde, as enormes dificuldades com que a TACV se confrontou e que a levaram à situação da falência e a importância estratégica para o país que é assegurar a todo o tempo que meios existam e a preço adequado e justo para ligar por via aérea regular todas as ilhas.
Os problemas nos transportes aéreos já vêm de longe e as soluções não têm deixado de ser polémicas. Na sequência de problemas financeiros graves da TACV, a Binter, a partir de 1 de Agosto de 2017, ficou sozinha no mercado doméstico. Três meses antes, a 25 de Maio, tinha assinado com o governo um acordo em que cedia 49% do seu capital social de 647 mil contos à entidades públicas e privadas cabo-verdianas. Desses 49%, trinta por centro seriam em troca da “posição comercial” da TACV e os restantes 19% seriam preenchidos até 1 de Junho de 2018. O acordo incluía a integração de administradores representantes dos accionistas caboverdianos. Acontece porém que até à data referida de início de Junho deste ano nada do que tinha acordado foi cumprido. De acordo com o BO de 7 de Maio de 2018, a Binter um ano depois ainda é uma sociedade unipessoal e tem todos os administradores nomeados pelos accionistas canários. Interpelado pelos jornalistas a 29 de Maio sobre qual foi o destino dos 30% que resultaram da cedência da posição comercial da TACV e porque não estão administradores cabo-verdianos, a resposta do Vice-Primeiro Ministro e Ministro de Finanças quando deste ano foi é peremptória: “Nós acordámos a entrada do Estado de Cabo Verde com 30% do capital pela saída na operação doméstica. Nós não queremos ser accionistas de empresa para termos administradores públicos juntamente com privados. Nós queremos que a empresa preste um bom serviço para os cabo-verdianos”. Quanto aos restantes 19%, o Ministro de Finanças já em várias ocasiões manifestara que o governo não tinha interesse em comprar.
Com esta declaração do Vice-Primeiro Ministro fica-se a conhecer a intenção futura do governo em relação à participação do Estado na Binter e o facto de não corresponder ao que inicialmente foi acordado. Não se fica a saber é o que vai acontecer entrementes e a falta de transparência ou défice na comunicação governamental não ajuda ninguém. Viram-se os problemas que foram criados antes porque várias questões não teriam ficado claras no referido acordo, designadamente, a das evacuações médicas e o transporte aéreo de mercadorias. Hoje assiste-se ao contencioso com a AAC quanto aos procedimentos para fixação das tarifas máximas. Amanhã poder-se-á estar a discutir sobre eventuais subsídios para as rotas de “baixa densidade de tráfego” como determina a resolução nº 24 de 10 de Março de 2016.
Este incidente porém trouxe à baila algo que já tinha acontecido antes, mas que agora, tratando-se dos transportes aéreos, tomou uma outra dimensão. Uma empresa suspendou a sua actividade, neste caso de venda de bilhetes de avião, como forma clara de pressão política. Aliás, se alguma dúvida houvesse quanto ao que pretendia, dissipou-a imediatamente ao considerar-se liberta de todos os compromissos tomados com o governo. O problema é se é legítimo ou mesmo legal e constitucional fazer isso. Para os constitucionalistas, a proibição de lock out no nº 3 do artigo 67 da Constituição visa também “vedar às entidades patronais o recurso ao encerramento da empresa como meio de pressão política”. E vão mais longe e dizem que a proibição abrange profissionais autónomos e os produtores independentes pelo que não podem fazer da paralisação da actividade uma arma para atingir certos interesses .
Nestes dois últimos anos já se tinha assistido também a movimentações de empresas envolvendo paralisia de actividade que podem configurar lock-out e todas com objectivo de pressão política. É só lembrar do encerramento das cerca de 30 lojas chinesas na Boavista em Agosto de 2016 em resposta à fiscalização dos serviços das finanças que consideraram discriminatória. Ou então o encerramento da empresas Frescomar em dois momentos: a 10 de Junho de 2016, para levar os trabalhadores em manifestação contra críticas dos moradores de Lazareto, e a 18 de Outubro, também numa manifestação contra a Câmara Municipal de S. Vicente. Curioso que nestas duas situações não haja registo de reacção das autoridades para pôr cobro ao que aparentemente é ilegal fazer-se em resposta a diferendos com comunidades, serviços públicos ou autoridades reguladoras. No caso da “greve” das lojas chinesas segundo a imprensa da época, o problema foi ultrapassado mas com a intervenção da embaixada chinesa. Pergunta-se se o Ministério Público abriu algum inquérito a uma prática com evidentes prejuízos para o público e dirigidas a pressionar politicamente as autoridades.
A fazer escola este tipo de atitudes, que no caso do transporte aéreo que une as ilhas são facilmente perceptíveis as consequências, pode-se estar a abrir uma caixa de Pandora que depois será difícil fechar. Pergunta-se é se, ficando as autoridades em geral e o governo em particular em silêncio quando confrontadas com essas tácticas fora do quadro legal, não se estará a impedir que o melhor ambiente para que os conflitos sejam dirimidos correctamente e com transparência seja criado. Para evitar que isso aconteça, tais tácticas têm que ser combatidas e criadas as condições para que as instituições nacionais, designadamente as autoridades reguladoras, se afirmem e se constituam no activo essencial que é fundamental em actividades chaves para o futuro do país como é o caso da aviação civil.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 879 de 03 de Outubro de 2018.

segunda-feira, outubro 01, 2018

Ser consequente na defesa dos direitos humanos

Este ano de 2018 celebra-se em todo o mundo o septuagésimo aniversário da Declaração Universal dos direitos humanos. As comemorações em vários países convergem para 10 de Dezembro, o dia em que em 1948 a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou por esmagadora maioria a carta dos direitos humanos. Em Cabo Verde a passagem de mais um aniversário da Constituição – aconteceu ontem, dia 25 de Setembro – é um bom momento para relembrar a importância dos direitos humanos. Foi em 1992 que tais direitos se viram efectivamente integrados na Lei Magna de Cabo Verde. Na Lei de Organização do Estado (LOPE) aprovada em 1975, logo a seguir à independência, foram simplesmente ignorados. A Constituição de 1980 já os registou, mas restringiu-os de seguida sujeitando-os aos ditames da lei ordinária (art. 47) e proibindo o seu exercício contra as instituições do regime de partido único (art. 34º).
O Mundo sentiu a necessidade da uma decla­ra­ção solene dos direitos humanos na sequência dos horrores da segunda guerra mundial e em particular do profundo choque que foi conhecer a forma sistemática como o Estado nazi agiu para esmagar indivíduos e proceder ao aniquilamento de grupos étnicos, com destaque para os mais de 6 milhões os judeus liquidados nos campos de concentração de Auschwitz, Dachau e Treblinka. Às víti­mas da ferocidade nazi jun­taram-se depois os muitos milhões enviados pelo comunismo para os gulags e os campos de reeducação para relembrar da importância de se salvaguardar os indivíduos da prepotência e violência do Estado. A Magna Carta forçada ao rei inglês João, há mais oitocentos anos, já era sinal dos tempos que o exercício do poder deveria verificar-se dentro da lei e que os indivíduos em caso algum devem ser atropelados nos seus direitos. Séculos depois a declaração dos direitos humanos da revolução francesa e a Bill of Rights americana serviram para consolidar o princípio de que democracia é um governo de poder limitado em o que governo além de se sujeitar à lei na prossecução dos seus objectivos deve respeitar os direitos do indivíduo, não os comprimindo em caso algum.
Em Cabo Verde a inexistência de direitos fundamentais estabelecidos, ou de sensibilidade para os defender, abriu caminho para todas as espécies de abusos. Vítimas do regime ao longo dos anos podiam ser encontradas em todas as ilhas, acusadas por crime de lançar boatos, ou presos por mais de três meses sem culpa formada, ou acusados de desobediência por reagirem a autorizações de saída e outros esquemas de controlo das autoridades. Em S.Vicente e S.Antão em particular várias pessoas foram torturadas e houve mortes. Nas outras ilhas aconteceu o mesmo, mas em menor escala. O regime sempre esteve preparado para responder a qualquer desafio ao poder da sua clique dirigente. Por isso é que considerá-lo como quase benigno, tomar os factos e o que aconteceu às vítimas como acidentes ou como excessos de militantes, só serviu para camuflar a sua natureza de sistema repressivo e iliberal instalado no país desde de 1975.
Em simultâneo, deixando de fora as instituições que constituíam esse sistema, não se motivou ninguém para pôr a fim a práticas e desalojar uma cultura institucional desrespeitadora dos direitos fundamentais nesses anos todos. Não é a toa que recorrentemente vêm à tona casos de violência policial, ou que se notam tensões entres os operadores de justiça devido a acusações múltiplas sobre quem é responsável pela falta de eficácia da Justiça. Assim é, em parte, porque o Estado nunca assumiu que torturou e matou. Mudam os governos e nenhuma entidade quer assumir a responsabilidade do Estado perante quem foram as suas vítimas. Mas na falta dessa assunção plena pelo Estado ao mais alto nível como se pode reorientar as instituições para abandonar as práticas anteriores e evoluir no sentido do que se espera no regime democrático.
Este ano de comemoração da declaração universal dos direitos humanos devia ser aproveitado pelos órgãos de soberania para, em nome do Estado, pedir desculpas pelo atropelos graves cometidos contra pessoas nos primeiros 15 anos após a independência, acompanhadas de eventual compensação para os que mais sofreram com a sua família a violência do Estado. Seria um acto de justiça e um acto consequente com a adopção da Constituição de 1992 que com todo o seu catálogo de direitos dos cidadãos foi uma clara reacção a ausência desses mesmos direitos no regime anterior. Também marcaria a disposição firme de lutar contra derivas iliberais que se vêm manifestando nas democracias, comprimindo os direitos dos cidadãos, atacando a independência dos tribunais e procurando condicionar os órgãos de comunicação social e a actividade jornalística na sua tarefa de escrutínio de todos os poderes.
Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 878 de 26 de Setembro de 2018.

sexta-feira, setembro 28, 2018

Ser consequente na defesa dos direitos humanos

Este ano de 2018 celebra-se em todo o mundo o septuagésimo aniversário da Declaração Universal dos direitos humanos. As comemorações em vários países convergem para 10 de Dezembro, o dia em que em 1948 a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou por esmagadora maioria a carta dos direitos humanos. Em Cabo Verde a passagem de mais um aniversário da Constituição – aconteceu ontem, dia 25 de Setembro – é um bom momento para relembrar a importância dos direitos humanos. Foi em 1992 que tais direitos se viram efectivamente integrados na Lei Magna de Cabo Verde. Na Lei de Organização do Estado (LOPE) aprovada em 1975, logo a seguir à independência, foram simplesmente ignorados. A Constituição de 1980 já os registou, mas restringiu-os de seguida sujeitando-os aos ditames da lei ordinária (art. 47) e proibindo o seu exercício contra as instituições do regime de partido único (art. 34º).
O Mundo sentiu a necessidade da uma decla­ra­ção solene dos direitos humanos na sequência dos horrores da segunda guerra mundial e em particular do profundo choque que foi conhecer a forma sistemática como o Estado nazi agiu para esmagar indivíduos e proceder ao aniquilamento de grupos étnicos, com destaque para os mais de 6 milhões os judeus liquidados nos campos de concentração de Auschwitz, Dachau e Treblinka. Às víti­mas da ferocidade nazi jun­taram-se depois os muitos milhões enviados pelo comunismo para os gulags e os campos de reeducação para relembrar da importância de se salvaguardar os indivíduos da prepotência e violência do Estado. A Magna Carta forçada ao rei inglês João, há mais oitocentos anos, já era sinal dos tempos que o exercício do poder deveria verificar-se dentro da lei e que os indivíduos em caso algum devem ser atropelados nos seus direitos. Séculos depois a declaração dos direitos humanos da revolução francesa e a Bill of Rights americana serviram para consolidar o princípio de que democracia é um governo de poder limitado em o que governo além de se sujeitar à lei na prossecução dos seus objectivos deve respeitar os direitos do indivíduo, não os comprimindo em caso algum.
Em Cabo Verde a inexistência de direitos fundamentais estabelecidos, ou de sensibilidade para os defender, abriu caminho para todas as espécies de abusos. Vítimas do regime ao longo dos anos podiam ser encontradas em todas as ilhas, acusadas por crime de lançar boatos, ou presos por mais de três meses sem culpa formada, ou acusados de desobediência por reagirem a autorizações de saída e outros esquemas de controlo das autoridades. Em S.Vicente e S.Antão em particular várias pessoas foram torturadas e houve mortes. Nas outras ilhas aconteceu o mesmo, mas em menor escala. O regime sempre esteve preparado para responder a qualquer desafio ao poder da sua clique dirigente. Por isso é que considerá-lo como quase benigno, tomar os factos e o que aconteceu às vítimas como acidentes ou como excessos de militantes, só serviu para camuflar a sua natureza de sistema repressivo e iliberal instalado no país desde de 1975.
Em simultâneo, deixando de fora as instituições que constituíam esse sistema, não se motivou ninguém para pôr a fim a práticas e desalojar uma cultura institucional desrespeitadora dos direitos fundamentais nesses anos todos. Não é a toa que recorrentemente vêm à tona casos de violência policial, ou que se notam tensões entres os operadores de justiça devido a acusações múltiplas sobre quem é responsável pela falta de eficácia da Justiça. Assim é, em parte, porque o Estado nunca assumiu que torturou e matou. Mudam os governos e nenhuma entidade quer assumir a responsabilidade do Estado perante quem foram as suas vítimas. Mas na falta dessa assunção plena pelo Estado ao mais alto nível como se pode reorientar as instituições para abandonar as práticas anteriores e evoluir no sentido do que se espera no regime democrático.
Este ano de comemoração da declaração universal dos direitos humanos devia ser aproveitado pelos órgãos de soberania para, em nome do Estado, pedir desculpas pelo atropelos graves cometidos contra pessoas nos primeiros 15 anos após a independência, acompanhadas de eventual compensação para os que mais sofreram com a sua família a violência do Estado. Seria um acto de justiça e um acto consequente com a adopção da Constituição de 1992 que com todo o seu catálogo de direitos dos cidadãos foi uma clara reacção a ausência desses mesmos direitos no regime anterior. Também marcaria a disposição firme de lutar contra derivas iliberais que se vêm manifestando nas democracias, comprimindo os direitos dos cidadãos, atacando a independência dos tribunais e procurando condicionar os órgãos de comunicação social e a actividade jornalística na sua tarefa de escrutínio de todos os poderes.
Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 878 de 26 de Setembro de 2018.

quarta-feira, setembro 26, 2018

Com clareza ganha-se eficiência

Da Conferência Internacional comemorativa dos 20 anos da assinatura do Acordo de Cooperação Cambial entre Portugal e Cabo Verde saiu pelo menos uma novidade: O doutor João Serra, Governador do BCV, foi claro a defender que a adesão de Cabo Verde à moeda única da CEDEAO não vale a pena.
Justificou a sua declaração afirmando que “nós quase não temos relações económicas com a África: quer com a CEDEAO, quer com a África no seu todo. E continuou: “90% das nossas importações vêm da Europa, 90 das nossas exportações vão para a Europa, 90% das nossas remessas dos emigrantes vêm da Europa, 90% dos investimentos externos vêm da Europa” pelo que Cabo Verde não tem vantagens em alterar a sua ligação. O facto curioso é que insistiu em dizer que fazia a defesa dessa posição do “ponto de vista técnico”.
Os dois políticos presentes na abertura e no fecho da conferência, respectivamente o Vice-primeiro ministro e o primeiro-ministro, não aproveitaram a ocasião para clarificar qual é realmente a opção política definitiva quanto ao futuro da moeda nacional. Limitaram-se a apoiar o acordo cambial existente, mas relembrando o VPM o “enquadramento africano e a perspectiva de criação de moeda única africana” e o PM a necessidade da “âncora na Europa, mas sem prejuízo da integração regional”. Mesmo com os dados sobre as relações económicas com a África apresentados pelo governador do banco central a preferência foi manter uma posição ambígua sobre a matéria. Para revelar a sua posição o governador teve que se socorrer da sua condição enquanto técnico.
É evidente que o país nada ganha com a falta de clareza em questões fundamentais. Dissipam-se recursos, não se age estrategicamente e dificilmente se consegue manter a motivação e o foco da nação no que realmente precisa fazer para vencer os desafios do desenvolvimento. Várias serão as razões por que colectivamente se persiste nesta atitude tão perniciosa de não confrontar a realidade como ela se apresenta. Entre elas estará a sempre presente tentação de atirar os problemas para debaixo do tapete, como se aí desaparecessem ou se resolvessem por si próprios. Não deixarão de contribuir também os vestígios de amarras ideológicas e de sentimentalismos bacocos, que outrora serviram para legitimar regimes anti-democráticos e para sustentar engenharias sociais duvidosas, como projectos de construção de nações e do homem novo. Só assim se explica que, mesmo com a economia a funcionar em 90% com a Europa, quer-se é integração africana, e pouco interessa para o caso que o professor doutor João Estêvão, nessa conferência do BCV, tivesse demonstrado que desde do século dezoito a relação económica de Cabo Verde com África sempre foi marginal. Ou que recentemente, na sequência da rejeição da presidência cabo-verdiana da CEDEAO, o governo tenha achado por bem criar uma pasta ministerial de integração africana. Ninguém percebeu a estratégia por detrás dessa iniciativa. Talvez mais um caso de sentimentos a sobrepor-se a interesses.
Mais complicado ainda é que, sem se definir ao mais alto nível e sem ambiguidades o futuro da política monetária do país, se procure aprofundar o acordo cambial na perspectiva de aumentar a linha de crédito que suporta a convertibilidade do escudo caboverdiano. Inicialmente estimada em 50 milhões de euros, parece que hoje é considerada insuficiente não só porque a economia de Cabo Verde tem uma outra dimensão como, particularmente depois da liberalização de capitais, o BCV, segundo o governador na sua intervenção, perdeu a sua “função de prestamista de última instância”. O levantamento do controlo do movimento de capitais tem um preço: pode potenciar ataques especulativos à moeda cabo-verdiana. E como acrescenta o governador isso pode acontecer mesmo “num contexto de disciplina de disciplina macroeconómica”.
O aumento na linha de crédito de apoio cambial serviria também para apoiar em caso de acção de especuladores. O problema é se quem faculta a linha de crédito o faz contando com essa possibilidade e considerando os riscos inerentes. O economista americano Jeffrey Sachs, quando liderou a equipa técnica que dirigiu todo o processo de convertibilidade do zloty polaco nos fins dos anos oitenta e início de noventa, foi peremptório em dizer que a marca de maior sucesso do processo foi o facto de nunca ter sido necessário recorrer a linha de crédito criada para o suportar. Com isso reforçaram grandemente a confiança na sustentabilidade da convertibilidade do zloty. Nesta perspectiva, parece pior sugerir que alguma vez linhas de crédito similares sirvam para responder a ataques especulativos contra a moeda nacional. Ainda por mais, como é caso, quando não há clareza total do que se pretende no futuro com a “integração africana”.
Apesar das críticas vindas de vários quadrantes, optou-se por liberalizar completamente o movimento de capitais. Supõe-se que no processo de decisão tiveram em devida conta a história económica de vários países, em particular dos apanhados pela crise de 1997 e os problemas posteriores do Brasil, Argentina e Rússia, que aconselharam a manutenção de controlos na saída de capitais. No mesmo sentido aponta o caso recente da Turquia, que assistiu em poucos dias à queda do valor da sua moeda em 40%. No caso de Cabo Verde está-se para ver os influxos de capitais que a liberalização poderá facilitar e como os benefícios irão contrapor-se aos eventuais riscos. A vontade geral é que tudo corra bem. Para assegurar isso é importante clareza nas políticas, agir com pragmatismo e não deixar-se apanhar nem pela ideologia, nem por sentimentalismos.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 877 de 19 de Setembro de 2018.

quinta-feira, setembro 20, 2018

Para quando a real descolagem?

Ultrapassado o meio do mandato (965 dias de um total de 1825) do governo de Ulisses Correia e Silva impõe-se que se faça uma avaliação dos resultados das políticas no país, em particular, no que toca à questão crucial trazida à liça no momento eleitoral de 2016.
Na eleições legislativas de então o que estava em disputa era quem conseguia transmitir confiança que com a sua maioria e as suas políticas conseguiria operar uma mudança estrutural na economia que permitisse ao país alcançar taxas de crescimento elevadas, mais de 7% ao ano, e também debelar o desemprego a curto e médio prazo, em particular para os jovens. O paradoxo da quase estagnação económica dos cinco anos anteriores enquanto se verificavam investimentos vultuosos de centenas de milhões de dólares designadamente em portos, aeroportos, asfaltagem de estradas e construção de habitação social deixou nas pessoas uma vaga sensação que algo de profundo teria que mudar no modelo de desenvolvimento e na forma de governar o país. Uma outra via teria que ser encontrada para vencer os grandes desafios do desemprego e da pobreza e manter a esperança que é possível construir uma base económica e institucional sustentável para se ganhar a batalha da prosperidade para todos.
A realidade económica dos últimos dois anos com taxas de crescimento de 4,7% em 2016 e 3,9% em 2017 pode não ser a mesma dos anos anteriores, mas ainda está longe da dinâmica prometida dos 7% ao ano. Não é por acaso que os efeitos nos rendimentos das pessoas ainda não se mostrem expressivos. As previsões de organizações internacionais como o FMI apontam para crescimento até 2020 de cerca de 4,1 %. Para alguns observadores o potencial de crescimento não foi alterado. Faltam realizar as reformas estruturais que, ao fazer o país mais competitivo e mais produtivo, poderiam elevar esse potencial. Nos anos 90 as políticas de liberalização da economia e de construção da economia de mercado elevaram extraordinariamente o potencial da economia abrindo caminho para taxas de crescimento que chegaram a atingir dois dígitos e que até 2007-2008 permitiram níveis de crescimentos dos mais altos registados na história recente do país.
Repetir a proeza de elevar o potencial não tem sido fácil. Resistência às mudanças abunda e os sucessivos governos têm falhado em transmitir às pessoas e à sociedade a enormidade da tarefa que é ultrapassar os constrangimentos que à partida se colocam numa economia pequena, fragmentada, com reduzida base produtiva e pouco diversificada. A invulgar rotação de ministros pelas pastas da economia e o facto de quase ninguém sair incólume dos múltiplos embates com os interesses instalados e que beneficiam do status quo devia indiciar o grau de dificuldade que é construir em Cabo Verde uma economia moderna, competitiva e com níveis elevados de produtividade. Neste particular é de relembrar que o governo de José Maria Neves em quinze anos teve sete ministros de economia e que o ministério da Economia criado pelo novo governo já se dividiu em dois em menos de dois anos, perdendo pelo caminho a favor do ministério das Finanças departamentos importantes como o de gestão de projectos e a tutela efectiva de empresas públicas em sectores-chave da economia nacional. Infelizmente, ou porque não se dá a devida importância à necessidade de reformas económicas, ou porque fica mais fácil manter-se no quadro do modelo de reciclagem da ajuda externa, mais ou menos disfarçado por retóricas desenvolvimentistas em voga nos fóruns internacionais, o que se constata geralmente é que o ministro da economia não tem o peso político que seria de esperar para fazer as reformas e enfrentar o sistema vigente.
A verdade é que se continua a não arregimentar vontade política favorável às reformas, a não combater os interesses instalados e a não tornar mais eficiente todo o processo produtivo mesmo sabendo que o futuro do país depende da economia que se souber construir. Não estranha pois que a reforma da administração pública, essencial para a diminuição dos custos de contexto, se tenha encalhado nas intermináveis discussões sobre a partidarização condimentadas com a bizarra questão das incompatibilidades. Não se pôs suficiente foco na procura de eficiência nos sectores de energia e água e no sistema de transportes com vista a baixar os custos. A atenção oficial, seguindo talvez modismos, centrou-se na inovação como se o país já tivesse instalada a infraestrutura física, institucional e humana para fazer dos avanços tecnológicos e de processos produtivos mais criativos o motor da economia nacional. A grande aposta no privado nacional deparou-se com as dificuldades quase congénitas de um sector que além de constrangido por um mercado exíguo e custos elevados de contexto viu-se a gravitar à volta de um Estado que insistia no papel de facultar acessos, de criar oportunidades e de influenciar decisões de negócios. Quando se pensou e se agiu junto do sector bancário como se o problema do sector privado fosse o financiamento, rapidamente se chegou à conclusão que a questão era mais complexa e que segundo o PCE da Caixa Económica, António Moreira, citado pela Inforpress, “os projectos e os promotores devem reunir as condições de financiamentos, de forma que os projectos sejam elegíveis o promotores credíveis”. Isso porque, segundo ele, o crédito vencido em Cabo Verde “é três vezes aquilo que é o nível da Europa” como resultado dos bancos terem aprovado “créditos cujo nível de risco não deveria ser aceite”.
Ainda com as mudanças na Administração Pública por fazer e o sector privado sem grande protagonismo, a economia continua apoiada no turismo e estimulada pela procura interna onde as transferências para os municípios jogam um papel importante. O problema é que os fluxos turísticos continuam controlados pelos grandes operadores em mais de 90% e direccionados para o mercado de Sol&Mar e aparentemente não se tem feito muito para diversificar a procura numa perspectiva de se impactar mais a economia nacional e de se contornar eventuais quebras no fluxo actual devido, por exemplo, à renovada concorrência da Turquia e dos países do Norte de África e também do Brexit que afecta o maior contingente de turistas que são os ingleses. Quanto à procura interna os efeitos das transferências para os municípios tendem a diminuir se não houver estratégias que criem uma procura efectiva para as ilhas.
Devia ser evidente que uma grande estratégia para atrair investimentos externo e integrar Cabo Verde na economia mundial através do aumento do fluxo turístico e da exportação de bens e serviços é fundamental para o país atingir os níveis de crescimento económico que precisa para se desenvolver. Não parece porém que suficiente importância se esteja a colocar nessa direcção. A impressão com que se fica é que maior esforço tem sido em incursões em direcção Europa, na perspectiva de ajuda, mas isso tem os seus limites. O mesmo se pode dizer da ofensiva junto à China que facilita o crédito mas traz mão-de-obra própria e material para as obras, o que limita imenso o impacto local da construção das infraestruturas, ficando o país mais endividado. Há que voltar a pôr o foco no que de facto se decidiu a 20 de Março de 2016: o país precisa crescer a mais de 7% para garantir o futuro e o governo tem a obrigação de dar a conhecer às pessoas as dificuldades reais e mobilizar vontade nacional para atingir esse objectivo. Mais de dois anos já se passaram. Não há mais tempo a perder.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 876 de 12 de Setembro de 2018.
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segunda-feira, setembro 10, 2018

Enfraquecimento das instituições

Depois de meses a assistir ao desgaste do parlamento devido, entre outros factores, à excessiva crispação das forças políticas, à duvidosa organização e gestão dos trabalhos parlamentares e às ausências prolongadas e injustificadas do primeiro-ministro em sessões sucessivas da Assembleia Nacional, o país depara-se agora com despiques públicos entre o Presidente da República e o governo.
É uma situação que não beneficia ninguém e muito pelo contrário tende a enfraquecer a imagem das instituições e a minar a confiança na democracia. Nos tempos actuais – em que a tentação populista na abordagem e resolução dos problemas associada ao acesso rápido e quase universal das pessoas às redes sociais põe especial desafio às democracias – todo o cuidado é pouco na gestão do processo político essencial para que o desenvolvimento do país se faça na liberdade e no pluralismo. O que menos se precisa é que se aumente e se aprofunde a descrença nos princípios e valores democráticos por razões ligadas à actuação de titulares de órgãos de soberania e de dirigentes políticos ávidos de protagonismo e pouco dispostos a seguir procedimentos já sedimentados, mesmo na nossa jovem democracia, nas relações entre o presidente, o governo e o parlamento.
A tensão entre o presidente da república e o governo, aparentemente à volta do SOFA, veio depois provar que afinal ela tem uma origem mais profunda que é de saber quem tem competência para dirigir a política externa do país. Pelas declarações feitas à TCV, no dia 20 de Setembro de 2017, apercebe-se claramente que o PR pensa que, por exemplo, no caso do acordo SOFA com os Estados Unidos da América o seu papel não deve ser apenas de ratificar o acordo depois de negociado e assinado pelo governo e levado ao parlamento para discussão e aprovação como parece estipular a alínea a) do artigo 136º da Constituição. O PR mostra-se convicto de que em matéria de acordos internacionais não deve apenas ser informado nos encontros regulares com o primeiro-ministro mas que deve “haver acompanhamento das negociações e até em certos casos o assentimento prévio do Chefe do Estado para que na altura da ratificação não haja situações..”. Prossegue suas declarações dizendo que a intervenção é “pedagógica” mas na realidade pela alusão ao “assentimento prévio” do PR em certos pontos negociais a impressão com que se fica é que pretende ter participação efectiva no processo.
É um facto que o PR tem um papel a desempenhar na política externa no âmbito da sua função de representação externa da República. Também é um dado assente que quem constitucionalmente dirige a política interna e externa do país é o governo. Desde os primórdios da Constituição de 1992 o regime democrático cabo-verdiano foi caracterizado como “parlamentarismo mitigado”. Diferentemente do semi-presidencialismo português, o governo em Cabo Verde não é responsável politicamente perante o presidente da república. Por isso estranha que haja quem pense que o PR em Cabo Verde possa ter competências ou protagonismo na direcção da política externa do país que nem no sistema português actual nem no sistema francês no quadro da coabitação Miterrand/Chirac e Chirac/Jospin, todos de pendor presidencial mais pronunciado, os presidentes da república pareciam ostentar. É só ver como na fotografia oficial da recente Cimeira da CPLP a dupla Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa protocolarmente se apresentava enquanto o PR cabo-verdiano se encontrava no centro com o PM Ulisses Correia e Silva distante junto à secretária executiva da CPLP. Não é essa a imagem que se tem, por exemplo, do presidente Miterrand e do primeiro-ministro Chirac nas cimeiras internacionais em que a França participava.

Exemplos que vêm de países recentemente democráticos, mas que já mostram sinais de crise e tendências populistas e autoritárias pronunciadas dão-nos conta de que tudo aparentemente começa quando partes do sistema político começam a bordejar as fronteiras das suas competências e acabam em incursões nas competências das outras. Ao reagir - seja no formato de aceitação de diminuição a que é sujeita, seja da luta que terá que fazer para se reafirmar – a parte agravada incorre no risco de ver a sua imagem diminuída, abrindo espaço para o desprestígio das instituições aos olhos dos cidadãos. Dos ataques que de há muito têm sido dirigidos à justiça e ao parlamento já se vêem as consequências. Com o governo e a presidência da república num terreno movediço que só pode levar ao desprestígio dos envolvidos, a situação só pode piorar. O ambiente de crispação política extrema em que a luta política tende a ficar pelas conveniências do momento e pela postura quase tribal dos militantes e activistas pode deixar o sistema sem defensor consequente perante as múltiplas ameaças que hoje se apresentam contra a democracia representativa e contra o Estado de direito.
Há que arrepiar caminho. Vários exemplos vindos todos os dias de fora dizem-nos que ataque aos media, à eficácia da justiça e ao parlamento não traz nada de bom para a democracia. Que também não é boa opção demonizar a oposição mesmo quando ela lá no íntimo se considera uma espécie de “Dono Disto Tudo” e mais preocupada em preservar o seu legado histórico do que em defender o sistema democrático. Há finalmente que defender as instituições e garantir que se tornem perenes e que sejam colocadas ao serviço de todos. Experiências democráticas confrontadas com derivas populistas ou autoritárias confirmam que só com instituições construídas sobre princípios e valores democráticos é que se pode ter esperança de combater os excessos de protagonismo e conter com eficácia a ameaça que parece pairar sobre todos e que servindo-se de fake news e do ilusionismo põem em causa os factos e a verdade, erigem a desonestidade, o tacticismo conveniente e o eleitoralismo como forma de fazer política e de conquistar e de se manter no poder.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 875 de 5 de Setembro de 2018.

segunda-feira, julho 30, 2018

Estado da Nação: em “gestão corrente”

O debate na Assembleia Nacional sobre o estado da Nação acontece nesta sexta-feira dia 27 de Julho. Mais uma vez os parlamentares e o governo vão debruçar-se sobre a realidade vivida no país com as suas vulnerabilidades de sempre, com os seus problemas do momento e com a constante tensão entre as expectativas criadas e a capacidade de as materializar. Em geral, nesse tipo de debates a complexidade da situação do país é passada de lado. No calor do embate a preocupação em tirar dividendos políticos imediatos leva muitas vezes a posições extremadas que dificultam a devida perspectivação dos problemas, não deixam espaço para consensos em matérias estruturantes e bloqueiam o diálogo plural que o país tanto precisa para poder enfrentar com sucesso os desafios do desenvolvimento.
Não estranha, pois, que ano após ano e com mais ou menos diferença, o estado da Nação seja realmente o de quem está sob “gestão corrente”. Vai-se vivendo com os fluxos que mais ou menos vêm de fora em forma de ajuda, também com os efeitos de uma conjuntura internacional favorável na procura externa e com o impacto do aproveitamento por outros de oportunidades pontuais, mas sem garantia de continuidade futura. Razão por que as vulnerabilidades não diminuem significativa e permanentemente, não há aumento rápido de postos de trabalho com qualidade e o país não sobe para patamares em termos de capital humano, de conectividade e de prestação de serviços que o tornariam atractivo para o investimento estrangeiro e fariam crescer as exportações. Se, pelo contrário, em vez da costumeira gestão corrente, passiva e sem ousadia a opção fosse para uma gestão estratégica, pro-activa e visionária o foco seria na criação de riqueza e no esforço colectivo para ganhar competitividade externa e elevar o nível de produtividade do país. Aí sim não seria evidente o desapontamento já palpável das pessoas que ainda estão por sentir concretamente as vantagens da alternância na governação.
Não se vai por esse caminho porque ainda há demasiadas forças em Cabo Verde que resistem a mudanças no status quo. A tentação dos poderes instalados em controlar tudo e todos põe-se demasiadamente no caminho do desenvolvimento. Não é por acaso que o Estado burocrático dividido nas suas “capelinhas” e cioso das suas prerrogativas continua a pesar proeminentemente sobre tudo o que se faz e, em particular, sobre o que de novo se quer fazer. Em vários países mesmo alguns não democráticos, governos ganham confiança da população e legitimam-se presidindo a uma economia que cresce significativamente e mantém níveis baixos de desemprego. Em Cabo Verde não é clara que essa ligação tenha sido estabelecida.
Governos no passado já foram reeleitos mesmo com crescimento baixo e altos níveis de desemprego porque se mostraram aptos em fazer a “gestão corrente” seguindo o modelo de reciclagem da ajuda externa. Aconteceu em parte porque não é fácil mudar comportamentos criados por políticas populistas e assistencialistas que depois se transformam eles próprios em obstáculos ao próprio desenvolvimento. O ilusionismo que acompanha essas práticas mascara a realidade, esconde os problemas e alimenta as expectativas com promessas de dádivas do Estado. A verdade, porém, é que os problemas simplesmente não desaparecem, pelo contrário, acumulam-se e progressivamente tornam-se quase intratáveis ou só resolvidos a elevado custo.
É só ver o que se passa com a TACV, com as barragens, com o programa Casa para Todos, os problemas das populações na Ilha do Sal e da Boa Vista, a quebra na dinâmica económica de S. Vicente, a vulnerabilidade completa da população rural, os problemas de emprego dos que saem dos liceus e das universidades para se aperceber que ficar pela “gestão corrente” do país focalizada em conseguir financiamentos para infraestruturas e em “diplomacias económicas” que mobilizam milhões para a ajuda orçamental e programas de emergência não tira o país da mediania e só agrava os problemas para o futuro. Se essa opção já não resultava no passado, muito menos efeito no crescimento e no emprego terá nos dias de hoje em que as exigências de transacções com o resto do mundo são maiores em termos de qualificação de mão-de-obra, de serviço prestado e de produtividade. Também não é boa ideia deixar-se apanhar pela tentação de disfarçar as práticas de uma gestão corrente com “fugas em frente” do tipo clusters dos anos atrás que nunca se materializaram. Ainda nesta perspectiva, o excessivo foco na inovação talvez esteja deslocado e eficiência devesse ser a preocupação primeira do Estado. Como bem sugere o Fórum Económico Mundial, Cabo Verde está entre os países nos quais o que mais conta para o crescimento económico é a eficiência na utilização dos recursos do capital e do trabalho e o desenvolvimento dos mercados.
Sair do paradigma debilitante, que exceptuando provavelmente alguns anos na década de noventa, tem dominado a prática governativa do país, é essencial para se poder projectar alguma esperança em que todos os cabo-verdianos poderão finalmente ultrapassar as fragilidades de outrora. A experiência de sucesso de países como Maurícias, Seychelles, Botswana e Singapura revela que para que medidas estruturantes e estratégicas fossem tomadas em momentos-chave da vida económica desses países houve necessidade de construir consensos entre as principais forças políticas e firmar pactos entre autoridades, sindicatos e empregadores que realmente pusessem o crescimento e o emprego acima de qualquer agenda. Em Cabo Verde, o ambiente político e o laboral confundem-se de algum modo e estando todos a defender os interesses próprios não parece que se deixe espaço para a sociedade realmente convergir em questões que se mostrarem fundamentais para o futuro.
Por outro lado, para se produzir riqueza, há que criar valor mas nem todos os operadores agem a todo o tempo seguindo esse registo. Como diz a economista britânica Marina Mazzucato no seu último livro “O Valor de Tudo” na sociedade há quem produza valor, há quem destrua valor e há quem extraia valor. Saber distinguir uns dos outros e apostar em quem realmente produz valor, neutralizar quem o destrói e não deixar-se enganar por quem simplesmente o procura extrair, não é tarefa fácil. Mais difícil fica se não se se conseguir primeiramente um entendimento de base entre os partidos e na sociedade para se efectivamente deixar a gestão corrente para uma governação estratégica. O debate sobre o estado da Nação podia ser um bom começo para esse entendimento indispensável para o presente e futuro do país. É preciso ter presente que as nuvens da incerteza ameaçam o abrandamento da economia mundial com impacto negativo certo para toda a gente. Não há tempo a perder.
Humberto Cardoso

segunda-feira, julho 23, 2018

Paga-se caro a inacção

Nos últimos dias de Dezembro de 2017 a Polícia Nacional entrou em greve por três dias. A população assistiu numa mistura de espanto e ansiedade à greve inédita na história do país. O governo também aparentemente apanhado de surpresa acabou por fazer uma requisição civil que não foi aceite por boa parte dos grevistas e que pelo contrário foi repudiada pelos sindicatos. Felizmente não houve perturbações maiores da ordem pública. Terá perdurado a má impressão deixada pelo comportamento de alguns agentes durante as manifestações pelas ruas da capital. Na época houve muita discussão se a polícia tem ou não direito à greve. O assunto acabou esquecido depois das convenientes salvas de artilharia trocadas entre os partidos, todos à procura de ganhos de curto prazo, preferindo varrer os problemas para debaixo do tapete.
O anúncio pelo sindicato da polícia SINAPOL de uma greve de seis dias para a próxima semana a partir de 26 de Julho trouxe outra vez à ribalta a insatisfação, mal-estar e falta de motivação que parece persistir na polícia não obstante os muitos investimentos já feitos nestes dois anos do actual governo em meios de comunicação e de transporte e também em aumentos salariais e promoções. E a injecção de meios não parou aí; continua tanto em efectivos, como em novas instalações e armamento. Na semana passada foi anunciado que cerca de 90 mil contos provenientes do Fundo do Turismo foram gastos em coletes à prova de bala, armas de fogo e outros meios para a polícia. Tudo isso porém parece que nem melhora o ambiente no seio da polícia, nem contribui significativamente para aumentar a sua eficácia a ponto de diminuir significativamente a percepção de insegurança na população. Talvez os dois problemas, mal-estar e falta de eficácia, tenham a mesma raiz como sugerem os altos oficiais da polícia Manuel Alves e Alcides da Luz em críticas publicadas respectivamente no Facebook e no jornal online Mindelsite que apontam para a inexistência de reformas ou de uma direcção capaz de elevar a actuação da polícia ao nível de eficácia desejável para enfrentar os desafios de hoje. Para esses dois oficiais, um no activo e outro recentemente passado à reforma, se mudanças profundas não acontecerem o prognóstico em matéria de segurança para os próximos tempos poderá não ser positivo.
Garantir a segurança é dever do Estado. É a razão primeira porque se criou a instituição Estado. Por isso não pode haver dúvidas quem tem a responsabilidade de a assegurar para tranquilidade de todos os cidadãos. E não é uma responsabilidade compartilhada no sentido em que o Estado e os seus agentes fazem a sua parte e os indivíduos, as famílias, a igreja e outras organizações da sociedade contribuem com a outra parte ficando a responsabilidade última pela eventual insegurança perdida algures sem que ninguém a assuma frontalmente. A desejável colaboração de indivíduos e organizações na manutenção da ordem e tranquilidade também compete ao Estado promove-la através de acções como cultivar o civismo e o sentimento de pertença à comunidade, facilitar a participação cívica e política e incentivar o associativismo. Se há falhas aí, a colaboração dos indivíduos é fraca e o baixo capital social da comunidade manifesta-se na falta de confiança na relação entre as pessoas, na tentação de fazer justiça privada e na desconfiança em relação às instituições. Quando é assim não se pode ficar pela simples constatação dos factos. Há que assumir as responsabilidades e há que agir em conformidade.
Do investimento feito na segurança, esperam-se legitimamente resultados num quadro que se quer marcado por critérios de eficiência e eficácia. Interesses de indivíduos, de grupos ou mesmo de corporações não podem prevalecer sacrificando o serviço público que se quer e que justifique a utilização dos recursos que afinal são de todos os contribuintes. Compete ao governo garantir que assim seja. Há que pôr fim ao mal-estar na polícia e há que aumentar a motivação dos agentes. E certamente que a questão não pode reduzir-se simplesmente a reivindicações salariais. O Estado tem recursos limitados e razoavelmente não se pode esperar que, de imediato ou quase, se resolva todos problemas que se acumularam durante mais de uma década. Por outro lado, não se pode deixar as coisas como essencialmente estavam e esperar automaticamente que haja motivação se o mérito continua a não contar e interesses difusos a serem obstáculos à elevação do nível de eficácia da organização e à realização das ambições de carreira de muitos.
Uma questão que porém já devia ter sido resolvida é da do direito à greve. A hipótese de greve da polícia foi aventada já se passaram alguns anos e houve por isso tempo para as forças políticas se debruçarem sobre o assunto e agir de modo a que nunca viesse a acontecer. Nada se fez e a greve aconteceu no final de 2017. Passados sete meses, está-se na iminência de outra greve da polícia e as opiniões divergem se é legal ou não, que limites poderá ter a requisição civil dos agentes e quem, em última instância, garantirá a ordem no país se a única força de segurança se encontra em greve. O entendimento na generalidade das democracias consolidadas é que polícias não têm direito à greve. Essa é opinião do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e de tribunais constitucionais de vários países incluindo o Supremo Tribunal Federal do Brasil. Para o supremo brasileiro a polícia sendo “o braço armado do Estado para a segurança interna não pode exercer o direito de greve sem pôr em risco a função primeira do Estado em garantir a segurança, a ordem pública e a paz social”.
Em Cabo Verde, apesar de há já algum tempo o problema se ter manifestado não se sabe se algum parecer sobre o assunto foi solicitado ao Ministério Público ou se procurou saber das instâncias judiciais algum posicionamento sobre a matéria. Também não é do conhecimento público que tenha havido alguma iniciativa legislativa para suprir eventuais omissões na lei. A postura, parece, é de nada fazer, mas esperar que o pior não aconteça. Não é razoável e facto é que a inacção muitas vezes se paga caro.
Humberto Cardoso

segunda-feira, julho 16, 2018

SOFA gera controvérsia

É cada vez mais frequente no mundo globalizado e interconectado de hoje os países procurarem estabelecer parcerias especiais. As razões invocadas são múltiplas, mas fundamentalmente têm natureza política e económica ou são ditadas pela necessidade de segurança mútua. Na generalidade dos casos a relação entre estados, seja no quadro de uma comunidade económica, de uma aliança militar ou de uma simples parceria para paz e segurança implica cedências de soberania.
Por isso mesmo o caminho para ali chegar nunca está livre de espinhos e escolhos. Mesmo quando se chega ao fim e a parceria funciona normalmente não cessam as críticas, não desaparece a sensação que se cedeu demais ou que a contrapartida não é a melhor. Prova disso, mesmo em parcerias há muito consolidadas, são as tensões à volta do euro, à volta das migrações e das directivas da Comissão Europeia que levam muitos dos estados membros a ressentirem-se contra o que consideram cedência excessiva às instituições da Europa. Tensões similares são percebidas em blocos económicos como a NAFTA e a CEDEAO e entre os países integrantes da NATO.
Em Cabo Verde a discussão do Acordo do Estatuto das Forças Militares Americanas (SOFA, da sigla inglesa) que poderão num momento ou outro estar em Cabo Verde no quadro da parceria para segurança também está a ser motivo de grande controvérsia, envolvendo os partidos políticos e a sociedade. Para os Estados Unidos a controvérsia não é novidade considerando que se verificou e em muitos casos continua a se verificar na generalidade dos mais de 100 estados com quem já assinou um SOFA. Há um entendimento que é legítimo que se queira saber em que a medida a presença de tropas estrangeiras vai ter implicações na relação do país com o exterior, como irá afectar a sociedade e que impacto eventualmente terá na economia. Claro que se é mais sensível a essas questões se, como no caso de Cabo Verde, sempre predominou no país uma postura oficial de não alinhamento com blocos militares traduzida ainda na recusa constitucionalizada de bases militares estrangeiras. Não espanta pois que o debate sobre a matéria se tenha exacerbado e trazidas à baila questões de identidade e de patriotismo, a par de dúvidas quanto à conformidade à Constituição do SOFA aprovado na Assembleia Nacional pela maioria parlamentar do MpD com abstenção dos deputados do PAICV e da UCID.
A realidade do mundo de hoje já não é a de blocos militares ideologicamente antagónicos a se ameaçarem mutuamente com armas nucleares. Os problemas maiores de segurança advêm principalmente do terrorismo, dos diferentes tráficos, da pirataria marítima e do crime organizado. São ameaças caracterizadas por nem sempre terem rosto visível, por não serem corporizadas por um Estado e também por tomarem toda a gente como alvo potencial. Reconhecendo a nova realidade, na revisão da Constituição de 2010 introduziu-se no n.2 do artigo 11º das relações internacionais que o Estado de Cabo Verde “participa no combate internacional contra o terrorismo e a criminalidade organizada transnacional”. A partir daí, o país já não é mais neutro porque ele próprio está sob ameaça dessas entidades subestatais e não tendo meios próprios para as enfrentar sozinho deve procurar parcerias internacionais para garantir a sua própria segurança e não permitir que nenhum ponto do seu território sirva de base ou depósito para tráfico de drogas, lavagem de dinheiro ou para qualquer tipo de suporte de acções terroristas. É evidente que a colaboração com outros estados no quadro de parcerias para a defesa e segurança do país terá de implicar cedências no domínio da soberania. O quanto que se deve ceder certamente que vai ser sempre matéria de controvérsia, mas decisões devem ser tomadas e em tempo útil porque a escolha poderá ser entre, por um lado, no presente não ter controlo completo do próprio território porque não se tem nem os recursos nem a necessária cooperação de forças estrangeiras para isso, e, por outro, orgulhosamente proclamar que não se quer bases militares estrangeiras numa recusa que teria razão de ser em tempos da guerra fria mas que actualmente na era dos drones e das operações especiais não faz sentido. Hoje a tendência é abandonar as bases permanentes como deverá acontecer com a base americana das Lajes, nos Açores.
Na concretização da cooperação quase incontornável para se garantir segurança contra as ameaças transnacionais um dos problemas mais melindrosos é o da jurisdição criminal, civil e administrativa. A pergunta é se a jurisdição deve ser concorrencial entre os dois estados ou ficar só com o estado de origem do contingente militar e não com o estado hóspede. Os Estados Unidos da América compreensivelmente procuram subtrair todos os seus soldados e funcionários a qualquer tipo de jurisdição do Estado hóspede. Na prática, os SOFAs que tem negociado designadamente com os países da NATO, o Japão e a Coreia têm variantes conforme a resistência encontrada junto do estado hóspede e também o seu próprio interesse em ter uma presença no país mesmo quando o estatuto das suas tropas num quadro do SOFA não seja o ideal. De acordo com o documento do Departamento do Estado americano citado por este jornal na edição anterior, esse ideal consubstanciado num Global Sofa Template só foi aceite completamente por alguns micro-estados. Imagina-se que quem o aceitou fez uma opção para ceder em termos de soberania e de jurisdição criminal no seu território em troca de ganhar em segurança. Certamente que terá razões para isso e as deverá apresentar a eventuais críticos ou opositores..
O SOFA aprovado em Junho último no parlamento não foi o primeiro adoptado por Cabo Verde. Em 2006, aprovou um SOFA para as forças da NATO que vieram participar nos exercícios militares da Steadfast Jaguar. Nesse SOFA houve naturalmente cedências em matéria de jurisdição criminal e civil, mas no nº 4 do artigo 7 (BO de 2 de Janeiro de 2006) deixou-se a possibilidade de “em casos específicos, Cabo Verde puder solicitar que renunciem à imunidade de jurisdição do Estado de Origem relativamente aos seu pessoal militar ou civil presente”. Também em 2008 no acordo de Cabo Verde com a Espanha foi aprovado um SOFA que no artigo 9º nº 2 dizia que “Cada uma das partes considerará a possibilidade de renunciar às imunidades criminais que os membros das suas forças usufruem a pedido de outra, em situações que se justifique a realização de um processo no próprio local do crime, por motivos de especial gravidade do crime”.
No SOFA com os Estados Unidos, assinado dez anos depois, autorizou-se os Estados Unidos a exercer jurisdição penal sobre as tropas durante a sua permanência em Cabo Verde sob a justificação da necessidade de controlo disciplinar das mesmas (artigo III , nº 2). Como o documento do Departamento do Estado acima referido deixa claro essa, é uma cláusula vivamente procurada pela América para garantir que se vá além da Convenção de Viena e se institua, de facto, a exclusividade da sua jurisdição penal. Certamente que o governo cabo-verdiano ao assinar e fazer aprovar o SOFA terá as suas razões. Seria bom que as explicitasse e as contextualizasse para a tranquilidade dos caboverdianos.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 867 de 11 de Julho de 2018.

segunda-feira, julho 09, 2018

Ultrapassar a lógica das “capelinhas”

O Vice-Primeiro Ministro e Ministro das Finanças, Olavo Correia, anunciou ontem, 3 de Julho, que o Governo está a trabalhar em parceria com as entidades seguradoras e o INPS, para que o país tenha, muito em breve, um bom sistema de evacuação dos doentes.
Certamen­te todos esperam que sim por­que o país precisa. O problema é que anúncios similares feitos por governantes vêm de longe e ninguém em particular nas ilhas e fora das cidades da Praia e de Mindelo até hoje pode sentir-se seguro de um socorro rápido em caso de emergência grave apesar das promessas feitas ao longo dos anos. E não há menos caso para isso. Há duas semanas viu­-se o que aconteceu na Boa Vista. Outros casos recentes na mesma ilha, no Sal e no Fogo vieram re­lembrar a urgência em encontrar uma solução para o problema das evacuações, problema esse agora mais agravado pela per­cepção geral que a companhia aérea Binter não se considera obrigada a proceder da forma como era esperada da TACV nas mesmas circunstâncias.
Situações dramáticas foram vividas num passado recente de­signadamente com a erupção do Vulcão do Fogo, o afundamento do navio Vicente e o massacre do Monte Tchota. Em todos elas constatou-se a impotência das estruturas do Estado, seja na ausência de planos de contin­gência no âmbito da protecção civil, seja na montagem de uma capacidade nacional de busca e salvamento ou na simples garan­tia de sistemas de comunicação entre destacamentos das forças armadas e a base. Na sequência dos desastres, vieram promes­sas diversas: helicópteros para busca e salvamento, mais uma unidade naval e outra aérea para não se repetir o caso do Guardião e do Dornier inoperacionais no momento da erupção do vulcão do Fogo e helicópteros para re­solver o problema de transporte para a Brava. Recentemente, já
no actual governo, repetiram­-se promessas de aquisição de dois helicópteros e em Outubro de 2017 fez-se apresentação no Aeroporto da Praia de dois apa­relhos de origem austríaca com capacidade para evacuações mé­dicas e para patrulhamento ma­rítimo. Mistério é porque apesar de todos estes “démarches”, con­tinua-se praticamente na estaca zero, sem capacidade de resposta efectiva e tempestiva a qualquer tipo de emergência real no país.
O vice-primeiro-ministro fala de uma solução trabalhada com as seguradoras e com o INPS mas dirigida para um problema em particular que são as evacua­ções médicas. Fica-se por saber quais as soluções para os outros problemas como busca e salva­mento, protecção civil, patru­lhamento marítimo e transporte para ilhas sem aeroporto que advêm da natureza arquipelá­gica do país. E pergunta-se por que não uma solução integrada que responda às necessidades de forma compreensiva e mais em linha com o binómio custo/benefício. Evacuações médicas inter-ilhas não parecem ter a frequência que justificaria um investimento exclusivo para as garantir. Aparentemente o mais lógico seria investir de modo a garantir capacidade de respos­ta global para os problemas do país arquipélago. A dificuldade em se enveredar por esse ca­minho, não obstante os muitos anos de discursos e promessas, talvez resida no facto de todas essas competências não terem sido atribuídas a uma autorida­de marítima e pelo contrário es­tarem espalhadas por entidades díspares como guarda costeira, polícia marítima, serviço de pro­tecção civil, agência marítima e portuária, capitania dos portos, etc,. A lógica das “capelinhas” e de interesses corporativos não terá ajudado na adopção de uma abordagem mais sistémica e pas­sível até de negociar cooperação internacional favorável, capaz de suprir os fracos recursos do país
na tarefa de assegurar a ligação entre as ilhas em qualquer cir­cunstância e também a seguran­ça das costas e o controlo efecti­vo da zona económica.
No BO de 31 de Maio de 2018 o governo instituiu o ser­viço de busca e salvamento ma­rítimo e aeronáutico. Segundo o decreto–lei o prestador des­se serviço deve ser a Guarda Costeira e o financiamento do mesmo deve vir de uma taxa de segurança marítima. Sen­do a Guarda Costeira parte das forças armadas e não uma força de segurança como a polícia ma­rítima não é claro que possa as­sumir completamente as outras funções da autoridade marítima designadamente de policiamen­tos dos mares e costas. Por outro lado, ficando limitado às receitas do fundo de segurança marítima para busca e salvamento que por lei também tem outros destina­tários como, por exemplo, servir para “eventuais indemnizações compensatórias pelo serviço público de transporte marítimo inter-ilhas” não é líquido que consiga de facto pôr-se à altura do que lhe é exigido.
É, de facto, da maior impor­tância sair do status quo actual que variadíssimas vezes já de­monstrou que deixa o país pra­ticamente indefeso perante as ameaças dos vários tráficos e sem meios e capacidade para responder às necessidades da população em situações de ca­tástrofe natural, naufrágios e emergências. Para isso, porém, é cada vez mais claro que o sistema de forças tal qual tem existido há mais de uma década não pode continuar. Não é eficaz, dificulta a coordenação do esforço nacio­nal e não potencia a cooperação internacional em domínios tão essenciais como sejam a segu­rança das populações e o exercí­cio da soberania sobre todos os pontos do território nacional e da zona económica exclusiva.
Ultrapassar os obstáculos para reformulação do sistema actual de forças não é porém fá­cil. Até parece que o sistema já aprendeu a contornar todas as tentativas de reforma. A oportu­nidade de transformação que um novo governo podia representar foi gorada quando se insistiu em deixar tudo como estava. As con­sequências
não podiam ser dife­rentes. Agora, para que o estado das coisas mude e se encontre saídas para os problemas de fun­do do país terá que haver um alto nível de consenso entre as forças políticas. Mas com a crispação política no rubro e a excessiva preocupação com ganhos políti­cos de curto prazo não fica muito espaço para os entendimentos estratégicos que o futuro do país exige. As incertezas que actual­mente não deixam ver com cla­reza o futuro exigem uma outra postura das forças políticas que mais enfase pusesse no que têm de comum do que exacerbar aquilo que as faz diferentes. Com essa nova atitude mais energia, motivação e foco se conseguiria mobilizar para fazer as reformas a todos os níveis que o país ur­gentemente precisa. Vamos fa­zer do 5 de Julho um dia em que, sem deixarmos de ser diferentes e de cultivarmos o pluralismo, reforcemos a unidade da nação na prossecução dos seus grandes objectivos de liberdade, justiça e prosperidade para todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 866 de 4 de Julho de 2018.

segunda-feira, julho 02, 2018

Estará o sistema de governo em Cabo Verde a mudar?

A actuação dos diferentes protagonistas políticos nos últimos tempos deixa uma forte impressão que algo no sistema de governo está a mudar em Cabo Verde. O que se tomou como certo e garantido nos 25 anos da vigência da Constituição de 1992 quanto à configuração dos poderes do presidente da república, do parlamento e do governo já não parecem tão claros.
O protagonismo do presidente da república é cada vez maior, o papel do parlamento diminui a olhos vistos e o governo alterna, ora mostrando uma postura submissa ao PR, ora revelando arrogância na relação com o parlamento. O Primeiro-ministro há mais de seis meses que não se apresenta ao parlamento nem para as sessões de fiscalização do governo, mas com o presidente da república põe-se em situações que lançam dúvidas sobre quem realmente comanda a política interna e externa do país.
O sistema de governo cabo-verdiano sempre foi considerado como semipresidencial, mas com forte pendor parlamentar. Nesse sentido, nota-se que apesar de ser o PR a nomear o PM tendo em conta os resultados eleitorais, o governo só é politicamente responsável perante o parlamento. Por outro lado, a assunção plena de funções pelo governo deve ser precedida da aprovação de uma moção de confiança pela maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções. Com as funções e competências assim distribuídas é óbvia a centralidade do parlamento no sistema e, em particular, na fiscalização da actividade governativa assim como também é fundamental para o funcionamento do sistema o papel do PR como guardião da Constituição, árbitro e moderador do sistema, ficando o governo com a exclusiva responsabilidade de dirigir a política interna e externa do país.
As maiorias absolutas que resultaram das seis eleições legislativas já verificadas na II República nunca deixaram espaço para exercícios do poder de geometria variável pelo presidente da república, como aconteceu em outras paragens com sistemas semipresidenciais, que tiveram em algum momento de lidar com governos minoritários ou coligações frágeis. Por isso causa algum espanto as tendências actuais da evolução na relação entre os órgãos de soberania quando não há sinais de fragilidades na maioria que suporta o governo. Também não seria de esperar tensões entre o actual PR e o governo considerando que grosso modo resultam da mesma base eleitoral e o presidente se encontra no seu último mandato. A deriva no sistema do governo poderá ter razões específicas mas não deixa de manifestar sintomas já notados noutras paragens e que se caracterizam pelo descrédito das instituições representativas como o parlamento, pela atracção e vontade de sujeição a personalidades singulares indutoras de sentimentos e emoções extremadas nas pessoas e pela desconfiança em relação a instituições mediadoras como os partidos políticos e os mídias.
O que se vê em muitos países da Europa e também nos Estados Unidos da América e que fez renascer populismos de esquerda e de direita em várias democracias consolidadas também está-se a fazer sentir em Cabo Verde. Um sinal é a influência crescente do PR que se desdobra em múltiplos encontros e múltiplas deslocações no país e no estrangeiro na sua política de “estar junto das pessoas” . Está-se a transformar na figura providencial a que todos vão recorrer. Na semana passada, dia 19, recebeu a presidente do PAICV que segundo o post no facebook da presidência da república foi lá submeter para informação e apreciação dois projectos de lei que por sinal já estavam agendados para a sessão ordinária de 25 de Junho da Assembleia Nacional. Foi um acto insólito para um sujeito parlamentar contornar a sede própria de discussão e aprovação da legislação e também estranho para o PR que sabe que o momento de avaliação política dos diplomas aprovados no parlamento é o da promulgação. Em relação a outras matérias também abordadas pela líder, designadamente o acordo SOFA com os Estados Unidos da América, o PR “garantiu toda a atenção”. O encontro de ontem com o PM e o Ministro de Negócios Estrangeiros teve como um dos objectivos essa questão como publicita um post na página do Facebook do próprio PR. Curioso que todas estas démarches e também a crispação entre os partidos à volta de acordos militares poderiam talvez ser evitadas se discutidas em tempo e sede próprio no Conselho Superior da Defesa Nacional, presidido pelo PR, e composta pelo PM, membros do governo, o Chefe de Estado-Maior e três deputados representativos de todos os partidos presentes na assembleia nacional.
O afastar ou “bordejar” dos procedimentos há muito estabelecidos para tratar os assuntos da república não deixa de ser um grande motivo de preocupação para todos. Retira previsibilidade à acção colectiva do Estado, faz deslocar o exercício do poder para onde não é esperado, fragiliza as instituições e convida a protagonismos individuais que armados de agendas próprias e suportados pelo erário público desdobram-se em actos cujos custos podem ser conhecidos, mas os benefícios para o colectivo não se vêem claramente. A democracia é o sistema de governo em que o exercício do poder só é legítimo se se verificar em conformidade com a Constituição e as leis. Quem recebeu o mandato para o exercer deve poder prestar contas e considerar-se publicamente responsável pelas suas consequências. A transparência no exercício do poder garante que se está a seguir todos os procedimentos exigidos e que a responsabilidade de quem governa não está sendo diluída a ponto de a culpa morrer solteira e de interesses individuais, corporativos ou de grupo ficarem em posição de se apropriem dos recursos públicos sem que sejam impedidos.
Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 865 de 27 de Junho de 2018.

segunda-feira, junho 25, 2018

Facilitismo na legalização de imigrantes

A Assembleia Nacional vai na próxima semana discutir um projecto de lei apresentado pela maior força da oposição, o PAICV, cujo objecto é a regularização da situação de cidadãos oriundos da CEDEAO que se encontram em Cabo Verde sem autorização legal de permanência. No preâmbulo da lei o PAICV diz que avança com a iniciativa movido por “um imperativo moral e político, tributário de uma amizade especial” para com os imigrantes vindos da costa ocidental africana, uma amizade que remonta “à luta de libertação nacional”.
Ao procurar no texto fundamentação para a proposta constata-se logo nos primeiros parágrafos que não há um conhecimento real da situação da imigração no país. Assim no que respeita à dimensão do fenómeno simplesmente “estima-se em número elevado de cidadãos estrangeiros”; quanto à proveniência dos mesmos não há certezas mas “é percepção generalizada que muitos são originários da CEDEAO”; e quanto aos pedidos de legalização contenta-se com o facto de que “é de conhecimento público que existem muitos pedidos pendentes”. Sem dados concretos o proponente fica por estimativas, percepções generalizadas e suposições. Não parece que esse seja a melhor base para legislar. A complexidade da matéria deveria sugerir uma abordagem mais cuidada, mais suportada nos factos e mais ponderada nas medidas a serem tomadas considerando as consequências de eventuais maus passos numa pequena sociedade como Cabo Verde.
Assuntos tão importantes e delicados do Estado como é questão da imigração deviam merecer um outro tratamento das forças políticas, em particular das situadas no arco da governação, estejam elas no governo ou na oposição. Se o dia-a-dia do país não os desperta para a enormidade do problema e das dificuldades que pode causar, a observação do que se passa um pouco por todo o mundo, mas em particular na Europa e nos Estados Unidos da América, devia ser motivo para alguma cautela. Como se sabe, nesses países, a problemática dos migrantes e também dos refugiados já contribuíram para mudanças na política nacional e na configuração das forças políticas. O mesmo tem acontecido no processo de emergência do populismo e de derivas iliberais acompanhadas de manifestações de xenofobia, de racismo e de intolerância. Também os países de passagem dos migrantes não ficaram incólumes. A corrupção e o crime alimentados pelo tráfico humano tendem a perpetuar a instabilidade, a insegurança e guerras sectárias que dilaceram essas sociedades. Questões como migrações internas ou fluxos exteriores não deviam ser tratadas de ânimo leve ou servir de pretexto para exibições de populismo e confrontos demagógicos. As consequências desses exercícios nem sempre são controláveis e quase sempre deixam marcas profundas na memória colectiva.
Cabo Verde, neste momento, depara-se com fluxos internos de pessoas sob pressão do exterior. Para além das costumeiras movimentações em direcção às cidades de Praia e Mindelo a procura turística vinda do estrangeiro introduziu uma nova dinâmica no fluxo inter-ilhas focando-se essencialmente sobre as ilhas que menos população tinham. O caso paradigmático é o da ilha da Boa Vista que antes de ser o destino procurado pelos grandes operadores turísticos tinha cerca de 4 mil habitantes. Em menor grau, o mesmo aconteceu com a ilha do Sal. Mas, como não se pode desenvolver actividade económica sem mão-de-obra, era óbvio que milhares de pessoas das diferentes ilhas iriam deslocar-se para onde poderiam conseguir trabalho. Só foi aparentemente surpresa para o governo de então que tardou em identificar os múltiplos e complexos problemas de fazer crescer a população na ilha sem fazer os investimentos públicos indispensáveis, sem um ambiente de negócios e um mercado de trabalho devidamente regulados e sem a sensibilidade necessária para preservar o legado histórico-cultural que cada ilha soube construir ao longo dos séculos. E como foram sistematicamente empurrados para debaixo do tapete os problemas persistiram, amplificaram-se ainda mais e afectam o destino dessas pessoas na forma como se vêem a si próprios e como interagem com os outros. Resolvê-los de uma forma compreensiva e abrangente dificilmente iria compadecer com iniciativas avulsas como o que parece ser esta regularização de imigrantes ilegais. Aliás, este é um problema em grande parte criado por omissão e pela incapacidade de desenvolver e implementar uma estratégia de mobilização e formação de mão-de-obra qualificada que o país, e em particular algumas ilhas, tanto precisavam.
As razões e fundamentações para a apresentação do projecto-lei mostram como sectores da classe política ainda continuam “distraídos” quanto às questões fundamentais que se colocam ao país. O foco em ganhos de curto prazo junto ao eleitorado ou à custa de quem governa mantém-se como objectivo pessoal e partidário dos líderes. Nem o facto de o mundo à volta estar a dar sinais de se desmoronar sob o impacto dos sucessivos desafios que as políticas do presidente Trump tem colocado à ordem mundial consegue alterar isso. Ninguém aparentemente se incomoda que o mundo, marcado pelo apego ao primado da lei, pela defesa da democracia e dos direitos humanos e pela promoção do comércio livre entre as nações e que propiciou prosperidade a uma parcela importante da humanidade em todos os continentes, poderá estar em perigo com os assaltos sucessivos protagonizados por Donald Trump e por muitos outros políticos populistas que aparecem por aí.
Na estreiteza de visão que faz escola em Cabo Verde, as guerras comerciais e as zangas entre as grandes potências do G7 não afectam a ninguém. O país parece “blindado” a isso. Esquecem porventura que as instituições internacionais que canalizam a ajuda ao desenvolvimento também são produtos dessa mesma época da PAX Americana. Com ataques a partes fundamentais não há que espantar se todo o edifício se desmorona. Há que se preparar para todos esses cenários num ambiente em que a política não pode só ficar por ganhos de curto prazo, por iniciativas como a da regionalização e, agora, a da regularização de ilegais que muito dificilmente vão resolver os problemas do país. Há que dar o salto e ver que problemas seculares como a seca persistem e que só com uma outra atitude de todos, na democracia e respeitando o pluralismo mas procurando o bem geral, se poderá equacionar e respondê-los a contente de todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 864 de 20 de Junho de 2018.

terça-feira, junho 19, 2018

Banhos de realismo precisam-se

O Primeiro-ministro Ulisses Correia Silva esteve nas duas últimas semanas ausente do país, primeiro nos Açores no quadro de um encontro dos arquipélagos da Macaronésia e logo de seguida em visita oficial a São Tomé e Príncipe.
 Curiosamente de entre as conclusões dos encontros realizados nos dois momentos sempre se destaca a necessidade da criação de condições para a livre circulação de pessoas e bens e o estabelecimento de tráfico aéreo e marítimo ligando os diferentes arquipélagos. São passos considerados vitais para se atingir os objectivos de uma aproximação maior entre os diferentes espaços e de diversificação das relações económicas. Propõe-se o mesmo quando se fala em reforçar a integração de Cabo Verde no espaço da CEDEAO. O problema é que se passou anos a repetir esse discurso e nada de significativo acontece. E a razão é simples – não há movimento de pessoas nem de mercadoria que justifique a manutenção de tráfico aéreo e marítimo regular entre os diferentes espaços. Nem também o futuro a médio prazo augura um incremento nas transacções que viabilize as rotas criadas.
A realidade do que é o comércio entre os arquipélagos e do que potencialmente poderá atingir não parece afectar o discurso oficial que sistematicamente é proferido nessas circunstâncias. Repetem-se as propostas mesmo que no fundo se saiba que dificilmente se vão traduzir em algo real e sustentável. Não é por acaso que a questão da subsidiação das rotas que devia acompanhar qualquer discurso realista nesta matéria é recorrentemente omitida. Ouvindo os políticos, fica-se com a impressão que a simples manifestação de vontade em fazer é suficiente e que a partir daí o mercado se encarregaria de dinamizar a vida económica, aumentar as transacções e acelerar a circulação e o intercâmbio das pessoas nesses diferentes espaços geográficos. Age-se diferente quando a política não é oca e não se pretende criar narrativas ilusionistas, mas pelo contrário se procura com infraestruturas, investimentos e mercados potenciar o que está latente e pode florir no ambiente certo.
Recentemente foi notícia um arranjo das autoridades portuguesas para assegurar a ligação Funchal/Porto Santo no arquipélago da Madeira. No processo foi instituído o serviço público, concessionado a rota à Binter Canárias na sequência de concurso público e o governo português alocou o valor de 5,6 milhões de euros para compensar a operadora por operar entre as duas ilhas com a frequência estabelecida em contracto e praticando tarifas diferenciadas para nacionais e estrangeiros. Não se deixou a companhia à mercê do mercado ou que inventasse formas de se compensar pelas perdas que as rotas praticadas eventualmente produzissem ao mesmo tempo que se lhe exigia na prática um serviço público. Tal aconteceu com a TACV que só viu reconhecer a existência de rotas no serviço doméstico com baixa densidade de tráfico num resolução do governo anterior, publicada dez dias antes das eleições de 20 de Março de 2016 (Resolução nº 24/16).
Em Cabo Verde, talvez porque os governantes sempre se sentiram tentados pelo ilusionismo na política, é demasiado frequente as manifestações de falta de realismo na enunciação de políticas públicas. Não se dá muita atenção à relação custo/benefício e isso faz com que o país em muitos aspectos se transforme num “cemitério” de projectos que custaram milhões, mas pouco retorno geraram para além do efeito dos gastos em salários e compra de bens. Quando a governação persiste na sua falta de realismo, as consequências são muitas vezes catastróficas como foi o caso da TACV. Globalmente os efeitos são sentidos na pesada dívida pública, no crescimento muito aquém do desejável, nos níveis altos de desemprego em particular entre os jovens e os mais escolarizados, na baixa produtividade e também na falta de competitividade externa. Pela insistência nos discursos tendo como palco a Macaronésia, a CEDEAO e por último São Tomé e Príncipe vê-se que a política no país ainda não prima pelo realismo e continua a singrar pelos caminhos que já mostraram não serem os melhores.
Sentimentos, eleitoralismo e pensamento mágico continuam a marcar o discurso político. Se mais nenhuma outra razão houvesse para se deixar para trás políticas de ilusionismo, a realidade do mundo de hoje deveria ser razão suficiente. Vive-se uma nova era em que a confiança nos políticos e nas instituições é cada vez mais precária, em que se espera o rápido cumprimento das promessas eleitorais e em que a nível individual quer-se a gratificação quase instantânea das expectativas. Deixar-se apanhar pela sua própria retórica é o pior que pode acontecer a um governo. As dificuldades com o programa de mitigação dos efeitos da seca é um exemplo de como expectativas criadas nas pessoas chocam com o possível e o racional desejáveis em anos de escassez extrema de água e pasto. Falhas na comunicação ou comunicação enviesada pelo ilusionismo endémico na política cabo-verdiana alimentada pela excessiva publicidade dada aos donativos internacionais criou a missão impossível da salvar “todo o gado”. Perante esse objectivo inatingível as acções do governo vão sempre ficar aquém das expectativas dos criadores e o espaço político para se tomar medidas para prevenir situações similares de seca no futuro será sempre limitado pela tentação da oposição de aproveitar a vulnerabilidade do governo na matéria para o expor e o fragilizar.
Uma outra área onde a falta de realismo na condução de políticas poderá ser prenhe de consequências é no domínio do transporte marítimo. Diferentemente do que aconteceu com o tráfico aéreo em que a TACV deixou o mercado para um operador com capital estrangeiro sem que fosse estabelecido os termos do serviço público, para o transporte marítimo esse serviço é estabelecido imediatamente e a concessão do mesmo é para um único operador. O Estado faz exigências importantes ao futuro concessionário designadamente quanto ao número e idade dos navios mas não há sinal que irá compensar o mesmo pelas rotas não rentáveis. O realismo deveria forçar a que se tivesse sempre em consideração os problemas de escala quanto ao volume de carga e o número de passageiros que se colocam a um pequeno país de pouco mais de quinhentos mil habitantes e dividido em 9 ilhas habitadas. Os privados no transporte marítimo nacional já convivem com o problema actualmente e imagine-se como vai ser com um concessionário único. A coabitação entre eles irá manter-se? O Estado vai subvencionar certas rotas? Ninguém parece saber. Em tal ambiente vir ainda propor a criação de outras rotas (CEDEAO, S. Tomé) que necessariamente terão de ser subsidiadas não parece ser realista nem razoável. Não se pode ficar eternamente à espera que outros paguem a nossa falta de realismo.
Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 863 de 13 de Junho de 2018.

sexta-feira, junho 15, 2018

Tempos conturbados

Os tempos continuam conturbados. Incerteza, falta de confiança e desesperança de camadas expressivas da população nas democracias vêm produzindo fenómenos complicados.
As causas seriam, entre outras, o aumento da desigualdade social, os efeitos da globalização do mercado de trabalho e a incapacidade das sociedades em propiciar vias para a satisfação de expectativas individuais criadas em paralelo com a conectividade crescente do mundo via redes sociais. Em consequência, para além das já habituais surpresas que a América de Donald Trump brinda o resto do mundo quase todos os dias, assistiu-se nos últimos dias em Espanha às peripécias da queda do governo e ao ballet dos partidos populistas de extremos opostos na formação do governo italiano. Em todos esses casos as instituições dão sinais de querer soçobrar sob o impacto da corrupção, a polarização do discurso político abre caminho para o tribalismo político, e a tentação autoritária da democracia, tal qual um tsunami, vai-se propagando sem se deixar notar até que se torne inevitável e tudo varre numa onda populista.
Cabo Verde vive também estes tempos e isso foi notório nos últimos dois anos nas múltiplas manifestações e passeatas realizadas nas diferentes ilhas, nas frustrações ventiladas nas redes sociais, em sondagens e em estudos de opinião e nas críticas dirigidas à classe política acompanhadas de especial sensibilidade em relação a qualquer sinal de abuso, apropriação ou má utilização de bens e recursos públicos. Há quem veja nessa nova disponibilidade das pessoas em dar a conhecer a sua posição face aos problemas do país a prova que está-se agora mais livre para opinar, participar e contestar posições do governo. A realidade, porém, é que, de facto, em termos de sentimento e emoções em relação aos políticos, aos partidos e a indícios de corrupção, muito mudou. Anos seguidos de ilusionismo político deixaram as pessoas frustradas e deram lugar a acelerado cepticismo e descrença por não cumprimento em tempo quase imediato das promessas feitas. Isso não chega para explicar a deterioração rápida da confiança das pessoas no próprio sistema eleitoral e nas instituições democráticas. Deve haver algo mais a trabalhar e que encontra correspondência em outras democracias. Os fenómenos de descrença são similares assim como também o são a tendência para ceder a propostas populistas e a um mal escondido fascínio por políticos com tiques autocráticos, mesmo para aqueles que não se apresentam como “animais ferozes”.
O colunista e autor David Brooks do jornal New York Times aponta entre as razões para a estranha situação de descrença do homem e cidadão moderno o facto da sociedade ter resvalado para um ponto em que se deixou de avaliar as pessoas pelo seu carácter e passou-se a concentrar no sucesso conseguido independentemente da forma e meios utilizados. Com isso, na sua opinião, a sociedade desmoralizou-se deixando de haver sistemas morais que restabeleçam a harmonia entre as pessoas, as instituições passaram a ser simplesmente um meio para se conseguir certos fins e manifestações de narcisismo tornaram-se cada vez mais frequentes alimentadas em particular pelas redes sociais, o culto de celebridades e a exploração sem pudor de emoções e sentimentos das pessoas para ganho pessoal. Nessas condições, a luta pela afirmação pessoal, que naturalmente contraria o tipo de cooperação entre as pessoas, a começar pelo dever cívico de participação na comunidade que o desenvolvimento do mundo de hoje exige, também mina as instituições existentes que são essenciais para se garantir a democracia e não permite que se crie convergência política suficiente para, na diversidade e pluralismo, se realizar o interesse público.
Em Cabo Verde, o multiplicar de intervenções públicas de personalidades políticas em quase todas actividades que se fazem no país não consegue mudar a percepção pública da fragilidade das instituições. No Afrobarómetro os cidadãos queixam-se da falta de diálogo ou da falta de acesso a políticos não obstante as visitas, as mesas redondas, os workshops, fóruns, socializações etc., que acontecem por todo o país. E certamente que não se vai corrigir a falha e melhorar a situação pela via de aumento desses eventos. O que deixa as pessoas na mesma desemparadas, sem a satisfação de sentirem que foram ouvidas e as suas preocupações devidamente consideradas, vem em boa medida da tendência crescente dos governantes e políticos em geral em realizar a sua agenda própria em detrimento da função institucional. Os perigos dessa forma de fazer política é que quase sempre tende a resvalar para o populismo e a demagogia e, não poucas vezes, tem que recorrer à corrupção para manter os fiéis à sua volta e prontos para serem lançados em combates políticos futuros.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 862 de 06 de Junho de 2018.

Humberto Cardoso

segunda-feira, junho 04, 2018

Realismo e pragmatismo na governação

Nesta última semana falou-se do Acordo Cambial, da liberalização de capitais e até da euroização. O pretexto foi a comemoração dos 20 anos do acordo que estabelece o “peg” fixo do escudo cabo-verdiano com o euro.
Também na semana em que se celebrou o Dia da África, 25 de Maio, e os 43 anos da criação da CEDEAO, foi trazida à baila a possibilidade da adesão de Cabo Verde à união monetária no espaço da sub-região africana e a importância crucial para o futuro do país que seria a integração económica de Cabo Verde nessa comunidade. Algo insólito, nesses dois momentos que parecem configurar opções diferentes, houve manifestações de entusiasmo de personalidades oficiais, políticos e académicos. Aparentemente, num evento regozijavam-se com o sucesso do acordo cambial e, e no outro, mostravam-se entusiastas em avançar para um cenário em que Cabo Verde integra uma outra união monetária com países com os quais as suas transacções anuais não conseguem ultrapassar 5% da totalidade do seu comércio internacional.
A atitude assim demonstrada não parece primar-se pelo realismo e pragmatismo que deve caracterizar a gestão das questões do Estado, em particular na relação com outras nações. Factores como a ideologia, sentimentalismos diversos e questões identitários dão a impressão de sobreporem-se à realidade dos factos evidentes nas limitadas transacções económicas, nos relativamente raros intercâmbios culturais e académicos e no pouco espaço para protagonismo no seio da comunidade, como ficou demonstrado recentemente na corrida para a presidência da Comissão da CEDEAO. Só assim se compreende que, apesar de tudo o que aconteceu, em vez de se acautelar os interesses do país, lança-se numa ofensiva para integração, compreendendo a criação de um cargo ministerial para o efeito, abertura de embaixada em Abuja e maior abertura para acomodar imigrantes provenientes da sub-região.
Continua-se a propalar que a CEDEAO constituiu um mercado de 300 milhões de pessoas, que Cabo Verde tem uma posição estratégica única para o “transhipment” na região e como “hub” aéreo, que é ideal para oferecer serviços como praça financeira e que pode ser a via para entrada de investidores no espaço da comunidade. Nem a afirmação de Jean-Paul Dias a este jornal a reduzir os trezentos milhões a vinte milhões, ou a realidade do movimento nos portos e aeroportos de Dakar e das Canárias, ou ainda a pequena dimensão do nosso sistema financeiro e os sinais claros de fraco conhecimento das regras no seio da comunidade parecem suficientes para temperar o entusiasmo dos governantes e políticos. Ao país convém explorar e desenvolver relações com os estados vizinhos, mas para isso deve poder optar por políticas realistas e efectivas e saber sempre pôr em perspectiva o interesse comum. Não é fazendo mais do mesmo das últimas quatro décadas que se vai alterar a situação actual caracterizada pelo comércio regional fraco e pela interacção limitada que se constata a todos os níveis. Simplesmente subsidiando mais uma vez barcos e aviões não se vai aumentar a quantidade de carga e passageiros entre Cabo Verde e os países da CEDEAO. Há que fazer muito mais.
O foco excessivo e deslocado na questão da integração na CEDEAO contrasta com a falta de foco e sentido de urgência que se faz sentir sobre os problemas da ilha do Sal e na Boa Vista. As manifestações da população nas duas ilhas deixam perceber que, em particular, no que respeita à segurança, saúde e habitação não se fez o suficiente para reverter a situação que vinha de anos atrás. Diferentemente do que se passa com as relações com a CEDEAO em que a economia e a vida de muitos milhares de cabo-verdianos não depende do que ali é transaccionado, nas ilhas do Sal e da Boa Vista estão uma boa fatia da economia cabo-verdiana e a base de muitos milhares de empregos, tanto aí como nas outras ilhas. Toda a atenção do governo deve ser para dirigida para as estabilizar, criar as melhores condições de vida e de enquadramento da população de modo a potenciar os seus recursos naturais e seu capital humano. A aposta do país no turismo como um dos motores principais da sua economia obriga a que investimentos sejam feitos com a necessária urgência onde já acontece e onde tem maior potencial de crescer, de criar empregos e de eficazmente arrastar a economia nacional. A estratégia para aumentar os fluxos turísticos não deve ser deixada só para os actuais e futuros operadores. O país deve ter a sua própria estratégia e ser pro-activo em orientar o turismo para onde o impacto sobre toda a economia seja maior e os efeitos nos rendimentos e qualidade de vida sejam mais imediatos e mais profundos. É evidente que para isso recursos não devem ser desperdiçados e a atenção de governantes não deve desviar-se para objectivos que para serem atingidos vão exigir muito tempo e muito investimento mas sem garantia razoável que o retorno justifique todo o esforço despendido. Há de facto que priorizar no interesse do país e não ir atrás de sentimentos e ideologias datadas.
A complexidade dos desafios do desenvolvimento de Cabo Verde obriga, em particular, na encruzilhada em que se encontra, a que se dê particular atenção à necessidade de manter a estabilidade governativa, a confiança das pessoas nas instituições e o sentido do colectivo e do bem comum. Para isso é essencial a realização prática dos princípios e valores da democracia e do pluralismo que foram instituídos na segunda república. Liderar não pode significar subtrair-se ao exercício desse pluralismo e pôr-se acima ou abaixo do que é exigido nas relações entre as instituições, a sociedade e as pessoas. Imprescindível é pois o papel de um parlamento representativo dessa pluralidade de opiniões e da diversidade de interesses, um papel que os mídias e outros fóruns podem complementar mas nunca substituir. Pelo exercício do contraditório é que se evita cair na tentação de certa ideologia que retira realismo e pragmatismo na condução da governação, que se contornam os custos escondidos da gestão autocrática e sem transparência e que se mantém clara a responsabilização política e bem viva a possibilidade de alternância política. Mais do que nunca é desse jogo democrático que o país precisa.
Humberto Cardoso



Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 861 de 30 de Maio de 2018.