segunda-feira, agosto 29, 2022

Conter as derivas

 Na semana passada o ex-candidato presidencial Casimiro de Pina em declarações à imprensa contestou a deliberação da Comissão Nacional de Eleições que lhe recusou o pagamento da subvenção eleitoral a ser feito pelo Estado.

A CNE baseou- -se no artigo 390 da lei eleitoral que determina que só têm direito a apoio público os candidatos que tiverem pelo menos 10% dos votos e ele só tinha conseguido 3.346 votos correspondente a 1.8% dos votos válidos. Acontece que, em 2018, em resposta a uma acção colocada pelo candidato Joaquim Monteiro a posição do Tribunal Constitucional, enquanto tribunal de recurso eleitoral, foi de revogar a deliberação da CNE por considerar inconstitucional o preceito que condiciona o acesso a subvenção à obtenção de mais de 10% dos votos. O caso repetiu- se agora porque a norma constante do artigo 390º se manteve inalterável no código eleitoral. 

No acórdão de 11 de Abril de 2018 o TC não chegou a declarar a inconstitucionalidade da norma. Não lhe cabia essa função enquanto tribunal de recurso eleitoral. Depois da decisão, a iniciativa para qualquer solução mais definitiva do assunto só podia ser do legislador que com um voto qualificado de mais de dois terços dos deputados presentes podia alterar a lei eleitoral. Uma outra via podia ter sido uma iniciativa do Procurador-geral da República com vista à fiscalização abstracta da constitucionalidade que levasse à declaração da inconstitucionalidade da norma. 

Ninguém agiu e algo que pode configurar um sério obstáculo a candidaturas não apoiadas por estruturas políticas com uma base financeira mais sólida numas eleições que se quer supra partidárias ficou sem o tratamento devido. Omissões similares, além do desgaste provocado às pessoas que repetidamente são forçadas a recorrer do mesmo para verem os seus direitos protegidos também acabam por afectar as instituições. Deixam transparecer uma certa indiferença perante a necessidade de eficiência e eficácia no funcionamento do sistema político que é essencial para o reforço da confiança na democracia. 

Não espanta que após vários exemplos de situações, que podem configurar descaso, prioridades trocadas ou até o entendimento da política como bloqueio, as instituições se descredibilizem, queixas da morosidade de justiça aumentem e o sentimento difuso de insegurança a vários níveis se instale. Permite-se, por exemplo, que se deixe arrastar para além do tempo estabelecido o mandato de titulares de órgãos eleitos como a alta autoridade para a comunicação social, a comissão nacional de protecção de dados, o conselho superior de magistratura e o conselho do ministério público. Aconteceu mais uma vez. A última sessão legislativa terminou em Julho último sem que as partes no parlamento tenham chegado a acordo para a eleição desses órgãos. Como resultado, continuaram numa espécie de limbo com membros desmotivados, legitimidade algo limitada e alguma fragilidade no planeamento e na resposta às novas realidades de uma sociedade cada vez mais complexa e desafiante. 

E a verdade é que não funcionando em pleno as diferentes partes do sistema, seja porque falta de colegialidade e unidade no exercício das suas competências, seja porque não há assunção plena das responsabilidades intrínsecas aos cargos, é a efectividade e accountability do todo que fica posta em causa. Os cidadãos acabam por sentir isso e, perante o progressivo descrédito das instituições, exacerbado não poucas vezes pelo protagonismo excessivo de governantes e de outras figuras na esfera pública, por práticas eleitoralistas e crispação entre os partidos políticos , se deixam atrair por movimentos inorgânicos de contestação, como ficou evidente nas manifestações recentes em vários pontos do país. O problema é o que vem depois, ao não acontecerem as mudanças pretendidas. A tendência é instalar-se a frustração e o ressentimento acompanhado de perda de confiança no presente e futuro do país. 

Em situações normais tais derivas é o que de pior pode acontecer porque minam as energias do país, enfraquecem o sentido do bem comum e deixam as pessoas expostas a apelos populistas de todo o tipo que já de outras realidades se sabe que não levam a nada, senão à autocracia e ao desespero. Na actual situação, com a gravidade conhecida devido à sobreposição de várias crises em que as incertezas são muitas, deveria haver um esforço excepcional de carácter nacional para conter tais derivas. Infelizmente, não é o que se vê. Os apelos feitos ao governo a partir de vários quadrantes para efectivamente se estruturar para liderar nestes tempos excepcionais aparentemente caem em saco roto. 

Pelo que se assiste pela televisão e principalmente nas redes sociais com a sucessão de visitas de governantes às ilhas e concelhos, participação em eventos repetidos e movimentações de vária ordem nem sempre pelas melhores razões, não é claro que fique muito tempo para reflexão estratégica, actuação concertada e devidamente ponderada. Aliás, não se nota unidade e colegialidade na acção do governo. Mesmo quando se quer caminhar na direcção certa, a tentação de fazer navegação à vista e empurrar com a barriga leva a falhas custosas como as que se verificam nos transportes aéreos e marítimos e já dão sinais em outros sectores. Num ambiente desses fica difícil fazer o apelo à solidariedade tão necessário para se reunir as energias e conter os efeitos das crises que afectam o país. 

É por isso imperativo que haja uma inflexão da actual situação. O sistema político tem que funcionar e inspirar confiança. A todos os partidos políticos e titulares de órgãos de soberania deve-se exigir responsabilidade constitucional. A sociedade civil e os cidadãos devem ter bem presente que os seus direitos e a sua autonomia dependem do sistema democrático liberal que existe no país. A atitude deve ser de garantir o funcionamento pleno do sistema político, obrigar os eleitos e os detentores de cargos públicos a exercer em plenitude as suas competências e exigir responsabilidade pelo exercício do poder. Como se pode ver do que acontece noutros países, fazer diferente e descredibilizar as instituições, deixar-se apanhar pelas paixões e apelos às emoções dos populistas é um caminho que o país, com as fragilidades e vulnerabilidades de Cabo Verde, nunca devia arriscar-se. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1082 de 24 de Agosto de 2022.

segunda-feira, agosto 22, 2022

Diplomacia para os novos tempos

 

Cabo Verde, através da resolução nº 80/2022 de 10 de Agosto, criou um Dia da Diplomacia referenciada à data de 16 de Setembro da aceitação do país na Organização das Nações Unidas. Com a escolha feita do dia para celebrar a diplomacia cabo-verdiana e o trabalho realizado pelos seus profissionais destacados no país em missões estrangeiras provavelmente se quis destacar a importância do multilateralismo nas relações internacionais e a pertença a uma comunidade de valores suportada na Declaração Universal dos Direitos Humanos adoptada em 1948 pela ONU. Também se quis afirmar a adesão forte e engajada a princípios e valores, cujo substrato bebe numa longa tradição de luta pela liberdade e de respeito pelas minorias que vem da Magna Carta, do Bill of Rights inglês, da declaração universal dos direitos do homem da revolução francesa e da declaração da independência dos Estados Unidos da América. 

O momento para a criação do Dia da Diplomacia é a vários títulos especial. Antes de mais o mundo está numa encruzilhada em que há previsões de desglobalização, de um mundo multipolar e de alinhamento económico políticos para resiliência com reforço global de segurança e das cadeias de abastecimento e um redireccionamento do investimento para os países que comungam dos mesmos valores. As ofensivas diplomáticas a que se vem assistindo por todo o mundo e em particular em direcção à África vão no sentido de atrair países para os campos político-económicos já em emersão. Nesse sentido é que se compreende a digressão do Ministro dos Negócios Estrangeiros russo por vários países africanos assim como as visitas do presidente francês e do chanceler alemão e ultimamente do secretário de estado americano, da embaixadora americana na ONU e de delegações de congressistas e senadores à Africa. 

Cabo Verde também tem sido alvo dessas visitas porque entre outras razões é referenciado, quando comparado com outros países africanos, pela qualidade da sua democracia, pelo nível de governança visto na gestão da pandemia e da vacinação e pela resposta que tem dado na mitigação dos efeitos sociais das crises sucessivas que têm assolado o país e o mundo. Durante a visita da embaixadora americana na ONU deu-se a conhecer o incentivo e o apoio americano a uma eventual candidatura de Cabo Verde a membro da Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Nas circunstâncias actuais o convite provavelmente estaria a confirmar o reconhecimento da pertença de Cabo Verde à comunidade de valores que passa pelo nome de Ocidente e que defende uma ordem mundial com regras, vê os direitos humanos como valores universais e se opõe à ofensiva das autocracias suportada por um nacionalismo que ameaça a liberdade e a autodeterminação de povos vizinhos. 

A oportunidade da adopção do Dia da Diplomacia devia ser aproveitada para uma reflexão aprofundada sobre o que tem sido as linhas gerais da diplomacia cabo-verdiana e como foi condicionada pelo contexto histórico marcado pela Guerra Fria e pelo ideal do pan-africanismo. Também para se saber como a acção diplomática de Cabo Verde se deixou moldar para atrair ajuda externa e como, considerando as várias tentativas de avançar com uma diplomacia económica, ela tem ficado aquém do desejável no apoio aos esforços de atracção de investimentos, no desenvolvimento de mercados e na cooperação tecnológica e científica. A encruzilhada em que o mundo se encontra actualmente perante o provável fim de uma ordem mundial e a emergência de outras realidades político- -económicas, marcada pelo “decoupling” da economia chinesa e uma espécie de ostracismo da Rússia, requer uma outra abordagem talvez mais subtil que não se compagina com as posições de não alinhamento de outrora e as fantasias da cooperação Sul-Sul que resultaram em muito pouco. 

Da máxima que em matéria de relações externas os países não têm sentimento e só procuram os seus interesses pode-se extrair que para se ter uma diplomacia consistente e efectiva é fundamental que o país tenha conhecimento de si próprio, da sua história e da sua cultura e tenha controlo da narrativa que perpassa a sua acção e o seu relacionamento com o mundo. De outro modo, é a ambiguidade e ineficácia nas relações como por exemplo tem acontecido com a relação com a Guiné-Bissau. 

A adopção por Cabo Verde de figuras, símbolos e narrativas da história moderna guineense tem levado durante décadas a tensões, mal-entendidos e até a hostilidades abertas a começar pelo fracasso do projecto da unidade Guiné-Cabo Verde, passando por momentos de relações frias ou quase inexistentes entre os dois países como aconteceu nos anos oitenta. Ainda hoje não se pode dizer que na interacção sócio-económica e cultural se conseguiu o que seria previsível, considerando o historial comum no quadro do império português. Aparentemente há demasiados óbices para uma relação normal e não se consegue potenciar proximidades de relacionamento que eventualmente existam. 

O outro lado do imbróglio é a própria insegurança identitária que gera em Cabo Verde e que acaba por afectar a relação com os países vizinhos no continente africano. Procura-se durante décadas uma integração económica que até para os países continentais se está longe de atingir enquanto que as relações económicas ligadas à importação, exportação, investimentos, fluxos turísticos e ajuda externa são essencialmente com o espaço europeu onde sempre se situaram. Recentemente isso foi outra vez comprovado com as ofertas de milhares de empregos vindas do sector turístico de Algarve. Uma relação com sucesso com os países africanos terá que ser em outros moldes como por exemplo as Maurícias fizeram. 

Depois de terem perdido o acesso especial que os seus fundos de investimento tinham ao mercado indiano, as Maurícias voltaram- se com sucesso para a África tornando-se num hub de investimento. As ilhas em geral, pela sua própria natureza e sem possibilidades de economia de escala em vários sectores, têm que saber prestar serviço para países continentais e um deles é o de minimizar riscos nas transacções. Teimar em seguir as vias de sempre como parece ser a intenção na criação do ministério de integração regional só desvia a atenção de onde relações económicas diversificadas já foram desenvolvidas e há potencial para se aprofundar mais com visão, qualificação de mão- -de-obra, diversificação da oferta e serviço de qualidade. 

Para isso, porém, é fundamental um sentido de unidade, a assunção de uma narrativa que explica o país ao mundo e ambição de vencer. Também essencial é nunca se deixar apanhar pela vitimização e pelo ressentimento. Essa deve ser a postura a adoptar pela diplomacia do país e também pelas pessoas e pela sociedade civil. Ambiguidades identitárias devem ser ultrapassadas porque como disse Elisabeth Moreno, ex-ministra da França de ascendência cabo-verdiana, em entrevista à TCV, a força de Cabo Verde é manter-se unido e que é “estupidez” insistir com a caracterização de cabo-verdianos em “badios e sampadjudos” porque o povo é um só e as exigências de um mundo de hoje de “terrível competição” são imensas. Vários sinais de líderes dos países do Ocidente apontam para uma nova ordem internacional organizada sobre uma comunidade de valores e privilegiando resiliência sobre eficiência. Investimentos em cadeias de valor e de abastecimento serão feitos tendo em conta a segurança e a confiança que países parceiros poderão proporcionar na base do chamado friend-shoring. A diplomacia de um pequeno país para funcionar neste novo contexto onde já não servem as experiências dos países não-alinhados entre dois blocos militares e ideológicos terá que ser subtil, mas inevitavelmente engajada. 

A assinalar o que será esse novo contexto vê-se no conceito estratégico da NATO segundo o qual parceiros são os que compartilham os mesmos valores e interesses na defesa da ordem da internacional baseada em regras e que com esses a abordagem será orientada por interesses, flexível, focada e capaz de se adaptar às realidades geopolíticas em mudança. Ser bem-sucedido neste processo exigirá reflexão séria sobre o futuro da diplomacia do país. Que a data criada sirva de estímulo para isso.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1081 de 17 de Agosto de 2022.

segunda-feira, agosto 15, 2022

Não se deixar apanhar pelo torvelinho das redes sociais

 

Cada vez mais os sentimentos de indignação e as manifestações de ressentimento que fazem vibrar as redes sociais e tornam certas matérias virais são absorvidos e amplificados pelos média tradicionais em particular a rádio e a televisão, acabando por condicionar todo o discurso na esfera pública.

Intervenções no parlamento marcadas pela excessiva polarização, a pouca preocupação com a contextualização das matérias e juízos sobre a motivação dos deputados dão conta dessa influência. Também grandemente afectadas são as reacções dos outros órgãos de soberania apanhados no torvelinho das paixões destiladas nas redes sociais e obrigados a comentar e a posicionar-se quase instantaneamente e muitas vezes sem a devida ponderação sobre questões que no momento prendem a atenção das pessoas. A completar o quadro notam-se as vozes de movimentos inorgânicos galvanizados pela expressão de indignação nas redes sociais que não poucas vezes tomam a forma de contestação anti-sistema, demagógica e populista.

É evidente que daí só pode resultar o empobrecimento do discurso público, tensões políticas desgastantes entre os poderes e tratamento imperfeito ou superficial de matérias cruciais devido à incapacidade de se chegar a compromissos e firmar acordos. Os problemas do país continuam sem serem devidamente equacionados e na falta de consenso sobre os seus contornos não se vê a possibilidade de se desenvolver um diálogo construtivo para os resolver definitivamente. Pior ainda, é que quando por alguma razão se consegue algum grau de clarificação de algum assunto como que se quer voltar atrás e deixá-lo outra vez indefinido e dessa forma propício para ser arma de arremesso, alvo de suspeições e material para teorias de conspiração.

Viu-se isso recentemente na reacção altamente negativa de certos sectores de opinião ao acto clarificador que foi o voto da suspensão do deputado em prisão preventiva. A verdade é que com a resolução da Assembleia Nacional já foi possível marcar o julgamento para o fim de Agosto e abrir o caminho para se ultrapassar a situação de desgaste das instituições que a perpetuação do problema estava a criar. Outros problemas com impacto gravoso a vários níveis têm sido trazidos à praça pública no meio desse mar de paixões como se pôde verificar ao longo da semana com as denúncias do sindicato de pilotos, as vicissitudes dos barcos da empresa CV Interilhas e a morte do adolescente evacuado por bote da Ilha Brava. São oportunidades de manifestação de indignação sobre matérias como os transportes aéreo e marítimo, evacuação médica e emergências nas diferentes ilhas e consequências de movimentação de mão-de-obra dentro do país e para o exterior, mas que depois não conduzem a praticamente nada. Não se traduzem em novas abordagens e disponibilidade para se chegar a entendimentos e resolvê-los. Simplesmente tendem a repetir-se quando o momento se oferecer.

Romper com este círculo vicioso implicaria disposição para clarificar as questões, contextualizá-las e abrir-se ao diálogo para as resolver. Em relação, por exemplo, à TACV já se vai em mais de três comissões parlamentares de inquérito nos últimos anos e certamente que como das outras vezes muito pouco vai sair daí. Na realidade, devia-se assumir que é praticamente impossível gerir uma empresa em que, entre várias coisas, ministros anunciam rotas, deputados fazem anúncios de actos de gestão da empresa, sindicatos montam uma feroz resistência a qualquer mudança e uma multidão de ex-trabalhadores faz valer os seus direitos adquiridos logo que a empresa tenta levantar-se de mais um revés. Não é à toa que a TACV acumula dívidas derivadas de todas essas ineficiências que continuam a ser ignoradas quando devia ser claro que o mercado da aviação dirigido fundamentalmente para nacionais e emigrantes dificilmente tem escala ao nível do tráfico para, sem subsídios, alimentar rotas para Europa, África e Américas como se insiste em apregoar.

No mesmo sentido devia-se ter em devida conta a natureza e dimensão do mercado cabo-verdiano quando se opta por um serviço público de ligação entre as ilhas. Há que assumir que com os enormes constrangimentos em termos de número de pessoas e de volume de carga expectável dificilmente será uma operação possível sem subsídios. Nunca é possível nas ilhas como bem mostram outros arquipélagos da Macaronésia. Isso, porém, tem que ser dito e assumido e não escamoteado para depois não se ter serviço de qualidade e muito ruído. Também deve-se ter uma visão compreensiva das necessidades de evacuações médicas, emergências e acções de busca e salvamento para não se estar com soluções ad hoc como fazer barcos comerciais pernoitar em ilhas mais isoladas para responder a eventuais acidentes ou usar aviões de passageiros para o mesmo fim.

Outras questões como as consequências da mobilidade da mão-de-obra no espaço nacional, os problemas criados tanto nas ilhas de origem das migrações como nas ilhas de destino devem ser encaradas com realismo e pragmatismo, visando a criação de empregos de qualidade e o desenvolvimento de uma base produtiva diversificada e geradora de riqueza. Da mesma forma deve ser vista a possibilidade da qualificação da mão-de- obra para emigração também numa perspectiva não estática, mas dinâmica com as vantagens que daí podem advir na diminuição do desemprego e no aumento das remessas. A opção por clarificar situações e evitar indefinições que deixam espaço para promessas fantasiosas e exploração demagógica retiraria pretexto para as ondas sucessivas de indignação que só servem para extremar posições, desgastar instituições e impedir soluções consensualizadas.

Outrossim, saber responder à ineficiência e a ineficácia de muitos serviços públicos essenciais ajudaria a conter a dívida pública e a melhorar a competitividade. Também seria essencial para renovar a confiança cívica tão necessária para acabar com o sentimento de insegurança e restaurar a autoridade pública sem a qual não irão diminuir os custos com os roubos sistemáticos de água e energia que têm reflexos transversais na economia e no bem-estar das pessoas. Já é claro que não é só com privatizações, identificação de parceiros e desagregação ou, no sentido inverso, com integração de empresas ou outras iniciativas similares que se vai conseguir os resultados pretendidos. Fazer as pessoas cair no real é essencial, mas o factor essencial para isso passa por confrontar os factos, ter o desejo de conhecer a realidade circundante e vontade para intervir e fazer as reformas necessárias.

Cada vez mais vai ser mais difícil fazer o que de necessário se impõe para que a esfera pública não se degenere mais nesses fitos de indignação e ressentimento. Como disse o filósofo canadiano Marshall McLuhan citado por Ezra Klein do New York Times “o meio é a mensagem” e assim como com o advento da televisão tudo se transformou em entretenimento também “as redes sociais nos ensinaram a pensar com a multidão”. Se não se souber comunicar de forma a focar a atenção no que interessa para além das paixões da multidão, os problemas vão-se manter. O esforço de quebrar o círculo vicioso é cada vez maior como se pode ver da actual situação em que se constata que nem com os efeitos gravosos da tripla crise há sinais de mudança de comportamento. Pior será se continuar com a tendência de exposição sem filtro aos efeitos das redes sociais como se pode depreender do entusiamo como são abraçadas por governantes e outros elementos da classe política do país. Razoabilidade e eficácia não se pode esperar muito daí. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1080 de 10 de Agosto de 2022.

segunda-feira, agosto 08, 2022

Momentos de clarificação

 

Na última sessão da Assembleia Nacional finalmente houve votação para suspender o deputado Amadeu Oliveira preso há pouco mais de um ano e permitir o seu julgamento em três processos distintos de que é visado. Há meses que o assunto estava a arrastar-se no parlamento e em Abril acabou por ser agendado, mas depois foi adiado.

Desta vez ainda houve tentativas de deixar a matéria para Outubro. A falta de vontade em avançar para o julgamento de casos de tão forte impacto mediático deixa a impressão que para certos sectores de opinião muitas vezes convém deixar certas matérias num estado de indefinição. A busca da verdade é substituída pelo atirar de suspeições, teorias de conspiração e falsidades.

De facto, com a votação da suspensão foram clarificadas duas coisas. Primeiro, agora já não há dúvida que o deputado em prisão preventiva está suspenso das suas funções. Durante muito tempo alimentou-se a ideia de que ele não teria sido suspenso com a resolução da comissão permanente de Julho de 2021 que autorizou a sua detenção para ser submetido a interrogatório judicial. A verdade é que um deputado detido ou em flagrante delito ou por autorização da Assembleia Nacional não tem condições para o exercício pleno do seu mandato e deve ser suspenso como deixa entender o nº 4 do artigo 166ª da Constituição.

Fere a dignidade do parlamento ter um deputado no activo preso além de mudar a configuração do parlamento tanto no número de deputados com na representação partidária saída das eleições legislativas. O parlamento tem funcionado com 71 deputados e a UCID esteve desfalcada de um representante e isso não é aceitável num órgão eleito. Com a falta de clarificação, o deputado Amadeu Oliveira não foi substituído durante todo este tempo.

Mas agora vai ser e é isso que parece ser uma das razões da irritação de muita gente. Uma outra coisa que resultou da votação é que finalmente vai-se ter o julgamento dos três processos de calúnia e difamação interpostos por magistrados, entre os quais juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça. Será a oportunidade para apresentação de provas das acusações feitas e que têm fragilizado bastante o sistema de justiça em Cabo Verde. Uma oportunidade até agora negada em vários adiamentos, o último dos quais quando o acusado se tornou candidato a deputado pela UCID nas legislativas de 2021.

Aparentemente ninguém devia opor-se à clarificação da situação que tem levado a muito desgaste das instituições incluindo o parlamento e o sistema de justiça. Curiosamente o que se vê é a tentação de ir mais a fundo e envolver o presidente da república pedindo que intervenha quando há uma decisão tomada no parlamento por voto secreto sobre o mandato de deputados que também são eleitos directamente pelo povo. Num outro sentido também grave procura-se visar o juiz que decidiu pela prisão preventiva incentivando um clima de hostilidade contra magistrados que não traz benefícios a ninguém.

A reacção excessiva à posição da Assembleia Nacional vinda de sectores da sociedade revela que não são só os políticos e partidos que querem manter indefinida uma série de situações como forma de tornar intermináveis e sem sentido certas discussões. Na sequência da votação alguns zangaram-se porque ficou claro que o deputado está suspenso e não é uma espécie de preso político. Também que o deputado agora vai a julgamento para apresentar provas das acusações em vez de as repetir sempre que tiver oportunidade e até a partir da plenária da Assembleia Nacional. Indefinições são mais apreciadas como se pode constatar ao longo dos debates sobre questões essenciais para o país em que, em vez de se cingir aos factos e se apresentar posições fundamentadas, vai-se para o secundário, recorre-se às emoções e envereda-se pela exploração de sentimentos populistas, anti-elitistas e anti-sistema.

Faz falta um sentido de responsabilidade constitucional que leve as pessoas, e em particular os detentores de cargos políticos, a sentir o quão fundamental é necessário cumprir as regras e defender o sistema. Sendo a democracia num certo sentido um jogo é evidente que não se pode ter um bom jogo atirando pedras contra o sistema e contra os árbitros e impedindo outros de fazer as suas jogadas. Dos “assistentes ou destinatários” desse jogo espera-se que exijam o cumprimento das regras porque com isso estão a garantir de que têm “um bom e gratificante espectáculo”. Momentos de clarificação das questões como o verificado com a votação na Assembleia Nacional são muito importantes porque evitam as derivas anti-sistémicas e permitem que se retome o debate construtivo. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1079 de 3 de Agosto de 2022.

segunda-feira, agosto 01, 2022

Melhorar o estado da Nação

 É crença geral que face à desgraça ou mesmo a situações complicadas o espírito de solidariedade dos cabo-verdianos vem ao de cima. Séculos de secas e fomes teriam criado esse reflexo que ao longo dos tempos e no limiar da sobrevivência tornou possível a emergência nas ilhas de uma sociedade com uma natureza, uma cultura e uma fisionomia própria. Seria de esperar que, perante as três crises da seca, da pandemia e da guerra de Ucrânia, que se conjugam e se reforçam numa ameaça quase existencial, tal reflexo ancestral se revelasse mais uma vez.

Aparentemente os tempos são outros e a ausência desse espírito solidário transversal à toda sociedade sente-se no estado da Nação, hoje dominado por polarização extrema, excesso de protagonismo pessoal e partidário e corrida interesseira aos recursos públicos por vários actores.

É verdade que se continua a ver sinais múltiplos de solidariedade vindos de diferentes quadrantes da sociedade com particular destaque para os provenientes das comunidades emigradas que aumentaram significativamente as suas remessas para os familiares. Da parte do governo foi oficialmente declarada a situação de emergência social e económica há cerca de um mês com o objectivo principal de sensibilizar e canalizar a ajuda Internacional ao país. Posteriormente o primeiro-ministro avançou com a proposta de uma frente comum de organizações da sociedade civil, confissões religiosas, ONGs e câmaras municipais para enfrentar as crises. Mas os resultados dessas iniciativas e de eventuais gestos de solidariedade não serão devidamente potenciados se não houver uma viragem fundamental na forma como as pessoas, a sociedade e o Estado encaram a actual situação da tripla crise.

De facto, na ausência de um consenso básico quanto à natureza excepcional do desafio actual e quanto aos compromissos a serem assumidos para o enfrentar interesses divisivos irão limitar o impacto das medidas tomadas e levar ao desperdício de recursos. Na generalidade das democracias como por exemplo na Itália, na França, nos Estados Unidos acontece algo similar. A disputa entre os partidos e o activismo de grupos com posições extremas em matéria cultural e social não deixam espaço para muitos compromissos. Questões existenciais como a pandemia e alterações climáticas e desafios como a transição energética, utilização de energias renováveis e os efeitos de digitalização não são enfrentados com a urgência que merecem e de forma consistente e sistemática como seria de exigir. A diferença é que nesses países há alguma capacidade de acomodação dos prejuízos que advêm dessa atitude.

Em Cabo Verde, essa capacidade é mínima por razões designadamente de dimensão do país e do mercado, de localização e de fragilidade da base produtiva. Se em tempos normais esse facto deve ser sempre considerado, na situação actual é algo crítico que devia compelir os actores políticos, mas também os sociais como os sindicatos a uma outra atitude. De facto, não é comportável ter todos a guerrearem-se à volta de sectores-chave como transportes aéreos, transportes marítimos, electricidade e água com exigências irrealistas, posições rígidas e soluções fantásticas. Os dois maiores partidos já se alternaram no governo mais do que uma vez e deviam conhecer as limitações sérias do país para não se enveredarem por caminhos que só eternizam os problemas e têm levado repetidamente a perdas avultadas de recursos.

Infelizmente até agora as alternâncias não têm trazido mais maturidade para a governação do país no sentido de maior disposição para negociar e chegar a compromissos com outros actores políticos e sociais. Quem vai para o governo ou passa a ser oposição, tende a repetir as mesmas atitudes que anteriormente criticava. É facto que as repetidas maiorias absolutas têm garantido estabilidade governativa ao país e permitido cumprir mandatos de cinco anos, mas paradoxalmente não se têm prestado a uma governação em que as políticas implementadas a curto, médio e longo prazo se traduzam em ganhos estratégicos e sustentáveis. Pelo contrário, insiste-se num eleitoralismo quase permanente que faz de cada acto ou realização um ganho para o governo e uma perda para oposição e o resultado, para além do crescimento económico que ainda não satisfaz, são os elefantes brancos, as reformas inacabadas ou desconexas e o aumento da dívida pública.

Mais do que nunca urge ultrapassar a actual situação de deficiente cooperação, da falta de confiança e de solidariedade muito aquém do que historicamente o país se reclama e que justifica o epíteto de nação resiliente. Toda ajuda disponibilizada ao país e todo o esforço posto pelas pessoas só terão impacto se uma ordem social e legal for efectivamente mantida. Sentimento de insegurança a todos os níveis tem que diminuir e atentados à autoridade pública como o roubo escandaloso de energia eléctrica não podem continuar. Mas para se ter a ordem social indispensável para enfrentar a crise sem precedente vivida actualmente há que primeiro pôr fim à tensão perniciosa nas instituições que apaga aos olhos das pessoas as virtudes do pluralismo e as deixa expostas aos discursos anti-sistema e anti-partido de populistas e outros actores políticos com tendências autocráticas.

O exemplo deve vir das lideranças que devem primar pela verdade e pela aderência aos factos nas suas intervenções na esfera pública. Verdade e confiança andam juntos e não se compadecem com ilusionismos, ambições desenfreadas e arrogância de poder. O estado da Nação deve melhorar no sentido de valorizar mais a liberdade, a autonomia e a solidariedade para que a esperança de uma via melhor realmente se concretize. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1078 de 27 de Julho de 2022.

segunda-feira, julho 25, 2022

Sem riscos não se constrói o futuro

 

Diz-se muito vezes, particularmente agora que a palavra resiliência entrou no discurso oficial e das organizações internacionais, que Cabo Verde é um país resiliente. Com essa expressão quer-se provavelmente passar a ideia que, apesar das adversidades vividas das secas, das fomes, do isolamento e da perda de população, o país tem capacidade de absorção de choques externos e de recuperação para um ponto a partir do qual pode continuar a sua trajectória como nação. A história mais recente a partir do século XIX e com enfase em grande parte do século XX mostra perfeitamente isso e deixa perceber como tudo aconteceu.

Momentos particulares de entrosamento do país com a economia global, devido à importância mais ou menos duradoira da sua posição estratégica na navegação marítima e aérea, na pesca ou nas comunicações e ainda à exportação de alguns produtos com valor no mercado da época, trouxeram algum desafogo necessário para essa caminhada. A música, a literatura e a postura cívica e cultural do cabo-verdiano e das suas elites que resultaram daí dão testemunho dessa resiliência. Sobrevivência e afirmação cultural não são, porém, suficientes. É fundamental diminuir as vulnerabilidades e ir além das limitações impostas pela pequenez do país, do seu mercado e dos parcos recursos naturais para se conseguir prosperidade e desenvolvimento. Claramente que viver na dependência da generosidade dos outros não deve ser opção de existência.

Quebrar o círculo vicioso da pobreza não é fácil. Para alguns, deixar de contar só com a ajuda de Portugal no quadro do império colonial para beneficiar da generosidade mais alargada da ajuda internacional depois da independência seria suficiente para se dar o pontapé de saída em direcção ao desenvolvimento. A realidade posterior de mais uma década veio a demonstrar que não é assim. Opções de política incluindo estatização da economia, industrialização na base de substituição de importações e a hostilidade ao turismo e ao investimento directo estrangeiro trabalhavam contra isso. Apesar de algum aumento no rendimento médio das populações e alguma protecção contra choques externos como as secas a tendência era para crescimento anémico e para uma maior dependência das populações em relação ao Estado.

Como se veio a constatar nos anos posteriores, foi só com a liberalização da economia acompanhada de privatizações, de atracção de capital estrangeiro, industrialização para a exportação e abertura para o turismo é que se conseguiu elevar o potencial da economia nacional, criar riqueza e gerar rendimentos para as populações. Mesmo assim não foi suficiente para romper o círculo de pobreza. Ganhos de um momento no quadro de programas de luta contra a pobreza rapidamente cediam lugar a perdas face a qualquer revês ou choque externo como secas e inundações, expondo vulnerabilidades profundas. Também os sinais de avanço nos bons anos não diminuíam significativamente o grau de dependência das pessoas e do sector privado em relação ao Estado e custos de contexto continuavam a pesar sobre a competitividade e a produtividade das empresas e da economia.

A tripla crise da seca, da pandemia e da guerra na Ucrânia veio expor o quanto é que, de facto, não se rompeu com círculos viciosos que reproduzem a pobreza no país. Os avisos já vinham de longe e tornaram-se mais frenéticos em cada etapa desta crise. Mesmo assim foram praticamente ignorados e não é certo que agora estejam realmente a ser escutados. A tendência é para utilizar os recursos disponibilizados em tempos de carestia como sempre se fez e o resultado só pode ser o de aprofundamento da dependência, da perda de autonomia e de uma maior fragilização face a crises futuras. Romper significaria mudar de atitude de forma a fazer de Cabo Verde uma sociedade de aprendizagem e de adaptação com base no conhecimento e estar na disposição de correr risco na identificação e aproveitamento das oportunidades. A inércia institucional e sociopolítica tem-se mostrado difícil de vencer e ideologias prevalecentes que desincentivam o espírito crítico e limitam a capacidade de aprendizagem, prejudicando o processo cumulativo do conhecimento, central para o desenvolvimento do país.

É da maior importância para qualquer país atrair investimento externo que inclua capital, transferência de tecnologia e know how e acesso a mercado. Para os países mais pequenos, menos populosos e insulares como Cabo Verde, e por isso mesmo com fraca poupança interna, mercado doméstico minúsculo e custos acrescidos para o acesso a espaços continentais, é algo vital. Como qualquer opção de política, a atracção de investimento externo via privatização e abertura do capital social de empresas nacionais a capitais estrangeiros ou com incentivos fiscais e outros a investimento directo estrangeiro acarreta riscos próprios de todo e qualquer empreendimento de não ser bem-sucedida ou de ficar aquém dos objectivos pretendidos. O contrário que seria não correr riscos e fechar-se ao mundo como se fez nos tempos idos já se sabe que levaria a um futuro de estagnação ou então a um crescimento anémico.

Naturalmente que os riscos devem ser calculados e que em caso de falhas nas estratégias implementadas se procure averiguar o que correu mal, determinar as responsabilidades e aprender com os erros cometidos. Em todos os países onde se fizeram privatizações, sejam os do Ocidente a partir de 1979 com Margaret Thatcher no Reino Unido sejam os países comunistas no pós queda do Muro de Berlim, raros são os casos que com o olhar de hoje se pode dizer que o processo foi perfeito ou que não se cometeram erros. Também em Cabo Verde se privatizou primeiro para se fazer a transição de uma economia estatizada para uma economia de mercado e depois para modernizar e inserir o país na economia mundial.

Certamente entre os ires e vires nas orientações dos diferentes governos de Cabo Verde, para além dos casos de sucesso, evidente para todos, houve outros casos em que se cometeram erros e depois levaram a verdadeiras renacionalizações como foi o caso da Electra na primeira década deste século e agora da TACV. Do processo da Electra conduzido pelo governo do Paicv e altamente politizado ainda se está a pagar a rescisão do acordo com a EDP em tarifas elevadíssimas de energia, em investimentos não realizados e no atraso na implementação de uma política energética que melhor preparasse o país para a actual e futuras crises devido à transição energética. Do processo da TACV em pleno governo do MpD e também altamente politizado os custos não vão se resumir ao anunciado 1,46 milhões de dólares que resultou do acordo assinado com o grupo Icelandair. A distorção dos preços de transporte aéreo de Cabo Verde tanto doméstico como internacional ainda vai continuar por muito tempo e com reflexos negativos na economia do país e na sua atractividade para viagens, turismo e negócios.

A destruição de valor resultando de negligências, omissões e politização excessiva da gestão da transportadora de há muito que vem acontecendo. Aliás, as várias tentativas de privatização tiveram com um dos objectivos pôr fim a esse sugar aparentemente interminável de recursos públicos. Até agora sem sucesso porque em meio de grande volatilidade política não se consegue extrair lições de erros e abordagens anteriores, nem se tem a ousadia de realisticamente dimensionar a empresa para o papel que eventualmente poderá ter no quadro de uma política nacional de transportes aéreos. Há gente que com esses infortúnios na gestão de parcerias externas queira agitar o espantalho do risco na ligação com a economia mundial. Mas sem riscos não se constrói o futuro.

É preciso deixar claro que para Cabo Verde romper com o círculo de pobreza e diminuir a dependência externa tem que ir para além da resiliência e correr riscos para poder prosperar. As falhas na TACV não devem ser impedimento para que com mais sabedoria se avance com iniciativas de grande alcance como a concessão dos aeroportos. Quem ousa ganha.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1077 de 20 de Julho de 2022.

segunda-feira, julho 18, 2022

Cabo Verde, nação resiliente e com sentido de futuro?

 

Já na segunda metade do ano 2022 e ainda não é claro qual irá ser o futuro próximo. As incertezas tendem a manter-se, mas com contornos nem sempre previsíveis. Logo nos primeiros dias do corrente ano, no início de Janeiro, com mais um surto do SARS-Cov-2 na variante Ómicron já se tinha que lidar com incertezas quanto à retoma da economia devido a constrangimentos nas viagens, no turismo e nas cadeias de abastecimento.

Depois de 24 de Fevereiro e na sequência da invasão da Ucrânia e das sanções aplicadas à Rússia e da subida em flecha dos preços dos combustíveis e dos bens alimentares e, de modo geral, da inflação, a situação global agravou-se consideravelmente.

O facto de nesta matéria ainda não se ver um fim e, pelo contrário, de se correr o risco de uma escalada nas hostilidades entre a Rússia e o Ocidente, com impacto sócio económico profundo em particular nos países mais pobres e nas populações mais desprotegidas, mostra que o panorama geral não só não mudou como tende a priorar. Receia-se que o que aconteceu no Sri Lanka dias atrás com a destituição do governo por multidões nas ruas se venha a repetir em outros pontos do planeta. A ameaça de um alargamento brusco da insegurança alimentar e mesmo de situações de fome no mundo é real, se persistirem os estrangulamentos no abastecimento de cereais e no fornecimento de fertilizantes a partir da Ucrânia e da Rússia.

Entretanto, a pandemia não acabou e surtos de subvariantes do Ómicron cada vez mais contagiosos, mas aparentemente menos letais, continuam a acontecer. Em Cabo Verde apesar de na última semana se ter conseguido diminuir bastante o número de casos activos da Covid-19, registaram-se dezenas de hospitalizações e cinco mortos desde de Junho. De acordo com as autoridades sanitárias, constatou-se também a presença das subvariantes BA.4 e BA.5 que por serem particularmente capazes de evadir o sistema imunitário levam a reinfecções de pessoas já vacinadas e facilitam o contágio a partir de infectados, mas assintomáticos. Daí a necessidade de continuar a vacinar e a administrar “boosters” para evitar complicações principalmente entre os mais vulneráveis.

Não há ainda um regresso à normalidade. Mantém-se o estado de alerta e continua-se a impor algumas restrições que de uma forma ou outra interferem com a circulação e a concentração de pessoas e prejudicam a produtividade com as exigências de cinco ou sete dias em quarentena, em caso de infecção, afectando negativamente a possibilidade de uma plena retoma da economia. É verdade que as pessoas estão cansadas de quase dois anos de pandemia e estão ávidas de uma vida mais livre e espontânea, mas não se pode deixar cair a guarda. Para muitos especialistas o vírus ainda não acabou de evoluir e possibilidades de sequelas com o chamado Covid longo deviam aconselhar cautela e incentivar hábitos de uso de máscara em situações especiais, a par com regulamentação da ventilação e qualidade do ar em recintos fechados.

Num contexto de crises sucessivas, saber fazer as mudanças que se impõem para as enfrentar é fundamental. Também importante é adoptar a atitude certa que reforça a confiança, facilita a cooperação e traz ao de cima o espírito de solidariedade. Em qualquer país isso é inegável. Em Cabo Verde é crucial para se poder ultrapassar os extraordinários constrangimentos que se colocam a um pequeno país de parcos recursos naturais, diminuta população e baixa conectividade. De outra forma seria resignar-se com crescimento económico que não satisfaz, que não diminui as desigualdades e que não reduz as vulnerabilidades particularmente das pessoas no mundo rural. As projecções de crescimento do FMI, no documento que acompanha o crédito de 60 milhões de dólares assinado dias atrás, situam-se à volta de 5% nos restantes anos desta década, menos que os 7% consensualmente considerados pelos próprios partidos políticos como o mínimo necessário para um verdadeiro “take-off” do país.

A conjuntura internacional actual marcada por incertezas devia imprimir uma maior urgência na adopção de uma nova atitude. Momentos de crise são de grandes mudanças e não há crise mais claramente explícita do que a da Ucrânia que resulta de uma guerra aberta que, querendo ou não, vai pelas suas repercussões provavelmente desconstruir a actual ordem mundial e criar outras mutuamente hostis ou pouco colaborantes. Não é talvez muito arriscado pensar que poderão emergir mundos separados na base de segurança, de comércio, de ordem monetária e financeira, de energia e mesmo de internet. No processo quase que se vai forçar cada país a tomar partido. Saber adaptar-se às novas exigências vai ser crucial.

Entrementes todos vão sentir o choque provocado pelas placas geopolíticas em movimento na espiral inflacionista alimentada pelos altos preços dos combustíveis e dos bens alimentares, no aumento das taxas de juro, no movimento de capitais para fora dos países emergentes, na alta do dólar e no agravamento da situação dos países devedores. Outras consequências mais graves poderão vir de um agravamento do conflito na Ucrânia provocado pelo avanço das tropas russas no território ucraniano que iria obrigar a uma reacção mais robusta dos Estados Unidos e da Europa. No sentido contrário o eventual sucesso das tropas ucranianas com armamento fornecido pelo ocidente também iria colocar à Rússia um dilema de alargar a guerra ou de chegar a um cessar-fogo provavelmente difícil de manter, porque em território ucraniano ocupado. As próximas semanas dirão da sua justiça relativamente às duas hipóteses e se o pior cenário de uma guerra interminável e destruidora continuará a provocar os seus efeitos nefastos sobre todo o mundo.

A percepção de que a conjuntura internacional marcada por crises sucessivas e por incertezas várias dificilmente mudará para melhor a curto e médio prazo terá levado o governo de Cabo Verde a tomar a iniciativa de mobilizar confissões religiosas, organizações da sociedade civil, ONGs, câmaras municipais e outras instituições para o “Fórum Nacional – Emergência de uma Frente Comum para Enfrentar e Vencer as Crises”. A iniciativa peca por vir tardia. Há muito que se devia ter chamado a atenção da nação cabo-verdiana pelos particulares desafios que enfrentava. Já aquando da seca e das profundas consequências que teve no mundo rural devia-se ter interrogado como tão facilmente as vulnerabilidades das populações vieram à tona apesar de anos de investimento e crescimento económico. Não aconteceu.

Depois veio a pandemia, os “lockdown” e a violenta contracção da economia e não foi acompanhada de uma reflexão que levasse a focar a nação no que claramente era uma antevisão de problemas futuros de natureza global que careciam de um especial engajamento de todos para serem enfrentados. Continuou-se a fazer o mesmo e a desvalorizar a crise com anúncios de retoma que depois ficavam pelo caminho. Finalmente veio a guerra na Ucrânia e só quase cinco meses depois se está a alertar para as profundas consequências do conflito. Durante crises sucessivas o país deixou-se embalar na política altamente polarizada que não deixa muito espaço para compromissos e tende a fazer do discurso político um exercício estéril. Não se elegem os órgãos externos da competência da Assembleia Nacional, não se consegue chegar a entendimentos em matérias fulcrais para o país como a segurança, educação e transportes e deixa-se passar ao lado os múltiplos projectos financiados pela cooperação internacional sem uma discussão sobre os objectivos pretendidos e os resultados obtidos.

É de perguntar se ainda se vai a tempo de construir a vontade comum necessária para se enfrentar os extraordinários desafios que se colocam. Dizia-se que era preciso ultrapassar o ciclo eleitoral para se ter tranquilidade e serenidade para fazer reformas do Estado. Passaram as eleições, mas aparentemente não se aproveitou o período da suposta acalmia eleitoral para se construir consensos que podiam advir de uma responsabilidade constitucional partilhada por todos os partidos. Nem as crises sucessivas conseguiram criar tal milagre. A questão é saber o que é que o impede. Provavelmente não se vai descobrir e as próximas eleições já não estão tão distantes. Cabo Verde certamente que apreciaria a oportunidade de demonstrar que é, de facto, uma nação resiliente e com sentido de futuro. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1076 de 13 de Julho de 2022.

segunda-feira, julho 11, 2022

Datas comemorativas devem reforçar o sentido do destino comum

Ontem, pelas comemorações dos 47 anos de independência nacional, repetiu-se o habitual. Foi proclamado o dia maior de Cabo Verde mesmo que para se conseguir o 5 de Julho teve-se que, primeiro, negar aos caboverdianos o direito à autodeterminação e logo a seguir submetê-los a um regime autocrático que duraria 15 anos.

Constatou-se pela quadragésima sétima vez que a independência valeu a pena porque supostamente teria posto fim às fomes passando por cima do facto que desde a última em 1947, segundo José Vicente Lopes, no seu recente livro, não aconteceram mais. Assistiu-se à mais uma demonstração do culto de personalidade de Amilcar Cabral que semelhanças só tem com o culto de figuras revolucionárias como Lenine, Mao Tse Tung e Kim il Sung e como tal é naturalmente impróprio das democracias.

Ainda repetiu-se pela enésima vez a cantilena que muitos não acreditavam na viabilidade do Cabo Verde como país independente. Como se ao longo destes anos o país tivesse provado o contrário, diminuindo vulnerabilidades e dependência da ajuda externa a exemplo das Maurícias que recebeu uma advertência similar do Prémio Nobel da Economia James Meade, mas conseguiu prosperar com superior governança. Tudo isso no ritual costumeiro de glorificação dos auto-intitulados “melhores filhos do povo” e de demonstração de eterna gratidão que os retira qualquer responsabilidade pela forma como exerceram o poder durante anos e efectivamente desperdiçaram oportunidades e recursos do país.

A comemoração do dia da independência não devia servir para isso. De facto, numa democracia onde a legitimidade do exercício do poder político é dado pelo voto livre e plural não se espera apologia directa ou indirecta de regimes suportados em legitimidade histórica. E num Estado de Direito Democrático não se reconhece “Estado de Direito” em regimes com Lei do Boato, com a direcção nacional de segurança a deter cidadãos até cinco meses, com civis a serem julgados por tribunal militar, juízes nomeados por ministros e restrições efectivas à liberdade de expressão, de imprensa e de associação.

A celebração da independência é o momento para toda a comunidade político-nacional se ver una e não a revisitar as divisões do passado. Também deve ser para renovar o “contrato social” com base nos princípios e valores da liberdade, da democracia e do Estado de Direito” sem o qual não há suficiente consenso na república que possibilite o dissenso indispensável para se encontrar os caminhos para a prosperidade, respeitando a dignidade de todos. Se com cada comemoração se dá ou não um passo para enfrentar o presente e para construir do futuro vai depender do carácter da nação que se souber erigir.

Como dise John Kennedy esse caracter, tal qual o caracter do indivíduo, “é produzido em parte por coisas que fizemos e em parte pelo que nos foi feito. É o resultado de factores físicos, factores intelectuais e factores espirituais. Na paz, como na guerra, sobreviveremos ou fracassaremos” na medida em que se souber lidar com isso tudo. Não deixar que memórias e narrativas criadas para legitimar actos do passado desestruturem o presente é essencial para se manter a energia e o foco necessários para vencer os desafios actuais e não ser apanhado em círculos viciosos que reproduzem vulnerabilidades e aumentam a dependência.

A fragilidade que o país tem demonstrado perante as crises sucessivas deixa entender que ao longo de todos estes anos de independência não houve atitude e acção consistentes da parte de toda a nação e da sua governação que efectivamente permitisse ao país dar o salto para um outro patamar. Houve avanços, muita ajuda foi recebida, mas está-se muito aquém do ponto onde se devia estar. Num dia como o da independência nacional devia-se falar com clareza da realidade das coisas sem cair no jogo de pôr a culpa no outro e sem sentimentalismos que apenas servem para escamotear a realidade. O país precisa de factos, de honestidade e de motivação solidária para enfrentar os graves problemas da actualidade.

Para Michael J. Mazarr, cientista político sénior da Rand Corp, são sete os atributos necessários para o sucesso competitivo das nações: ambição e vontade nacional; identidade nacional unificada; oportunidade compartilhada; um Estado activo; instituições eficazes; uma sociedade de aprendizagem e adaptação; e diversidade competitiva e pluralismo. Cabo Verde com uma consciência nacional de séculos e sobrevivente de fomes sem nunca ter sucumbido ao fatalismo não devia ter dificuldade em mostrar ambição e vontade na consecução dos seus objectivos. Nesse sentido, prejudicial são as narrativas que ao alimentar sentimentos de vitimização e ressentimento deixam as pessoas presas em círculos viciosos de dependência e de pobreza. Pior ainda, são aquelas outras que em vez de ver riqueza na diversidade como bem cantou Antero Simas introduzem elementos de desestruturação de uma identidade nacional unificada em vez de a potenciar. Perde-se um factor de sucesso competitivo por causa de ideologias completamente alheias à formação da nação cabo-verdiana.

O contrato social que deve ser renovado em comemorações da independência, para ser efectivo e conseguir engajamento de todos, deve incluir a promessa da oportunidade compartilhada que não deixa ninguém de fora. De outra forma deixa-se campo aberto para os populistas que apresentando-se como anti-elitistas mais não fazem do que polarizar a sociedade sem resolver os problemas reais dos mais pobres. Nesse sentido, é essencial um Estado activo, mas eficiente e instituições eficazes nos diferentes sectores económicos sociais e culturais que propiciem um ambiente adequado para iniciativas individuais e empresariais e para manifestações criativas e inovações capazes de produzir riqueza e criar empregos de qualidade.

A suportar tudo isso deve-se alimentar o amor ao conhecimento e uma preocupação com a verdade e com os factos que depois se traduzam numa sociedade ávida de aprender e pronta a se adaptar a novos desafios. Imagine-se que para isso não se pode ter a realidade condicionada e distorcida por ideologias ultrapassadas no tempo, memórias ficcionadas e cultos de personalidade. Pior ainda, se suportadas por estruturas do Estado no sistema educativo e na comunicação social pública que estão sob o comando constitucional de não impor “directrizes filosóficas , estéticas, políticas, ideológicas e religiosas”.

O mundo está a mudar rapidamente e as incertezas são muitas e não se sabe qual será o rumo que as coisas vão tomar. Fixar-se em reforçar os factores de sucesso competitivo que Michael J. Mazarr apontou é fundamental para se ter a nação pronta para os enormes desafios que se colocam e suficientemente maleável para uma realidade em transformação a todos os níveis. Manter o ambiente sócio-político e económico diverso e plural sem cair em extremismos e divisões artificiais garante a dinâmica que a troca livre de ideias pode propiciar para se encontrar as melhores soluções para os problemas e situações difíceis que poderão estar à frente.

Cabo Verde é um país pequeno e frágil e não pode ficar simplesmente dependente da generosidade dos outros até porque já deve saber que há limite para isso. Contar consigo próprio e com a força, a energia e o sentido de destino comum que construiu durante séculos é fundamental para o país poder fazer o melhor das oportunidades e da ajuda que eventualmente receber do mundo. Datas comemorativas devem servir para o reforço desse espírito e não para impor narrativas, inibir o pensamento livre e alimentar realidades alternativas. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1075 de 6 de Julho de 2022.

 

segunda-feira, julho 04, 2022

Salvar os oceanos e resolver o futuro

 

Na conferência sobre os oceanos que decorre em Lisboa ao longo desta semana até 1 de Julho representantes de todos os países do mundo reúnem-se para definir objectivos, traçar metas e encontrar vias para ultrapassar os males que hoje afligem os oceanos.

Na mira de todos estarão certamente a poluição, as ameaças à biodiversidade e os plásticos. Questões como as alterações climáticas serão discutidas. Considerando que os oceanos constituem 71% da superfície da Terra e a elevação do nível do mar afectará a todos com efeitos catastróficos em muitos lugares e particularmente nos espaços insulares. Sendo os oceanos grandes produtores de oxigénio e o maior centro de sequestro de carbono para além do seu potencial de produção de alimento, de energia e de metais valiosos, certamente que se procurará chegar a algum tipo de consenso quanto à sua gestão. Já há países que garantem que se vão responsabilizar por pelo menos 30% da sua zona exclusiva.

A dúvida é se realmente é desta vez que haverá o engajamento necessário para isso. A inacção nessas matérias que vem de muito atrás mereceu um pedido de desculpa do secretário-geral da ONU, António Guterres, logo no começo da conferência. Chegou mesmo a dizer, que “fomos lentos e muitas vezes relutantes a reconhecer que as coisas estavam a ficar piores”. Continuou afirmando que “ainda estamos na direcção errada”. Realmente depois da primeira conferência de Nova Iorque, em 2017, não se avançou muito no sentido de salvaguarda dos oceanos. Pelo contrário, houve retrocessos no que respeita aos acordos de Paris em matéria de alterações climáticas e agora na sequência da pandemia e da guerra na Ucrânia tornou-se mais difícil avançar com a transição energética.

Fala-se actualmente em aumentos dos investimentos nos combustíveis fosseis quando se devia estar a tratar da diminuição da sua utilização e da mudança para as renováveis. O caminho para o futuro, porém, tem que ser o que leva à descarbonização da economia e à redução dos riscos associados ao efeito de estufa e a variações extremas de temperatura. De outro modo é todo o planeta que fica à mercê da maior violência e frequência dos ciclones, das grandes e inesperadas inundações, de secas prolongadas, do degelo dos glaciares e consequente elevação do nível do mar com todas as consequências inerentes. É evidente que melhor posicionado para navegar e beneficiar desse futuro estarão os países que previram com devida antecedência a actual situação e souberam preparar-se no tempo certo com investimentos, tecnologias e mudanças comportamentais adequados.

Um futuro marcado pela importância central do mar na economia devia ser óbvio para um país arquipélago como Cabo Verde e para países com extenso litoral e tradição marítima como, por exemplo, Portugal. O facto de não o ter sido no caso de Portugal levou o presidente Marcelo Rebelo de Sousa, numa intervenção no âmbito da conferência dos oceanos, a dizer aos jovens para não confiarem nos decisores e lutarem por si contra as alterações climáticas e a favor dos oceanos. Aparentemente a inacção das autoridades nessa matéria não se deve ao desconhecimento. Recentemente em Portugal até se criou um ministério do Mar precisamente para dar atenção especial aos problemas do mundo oceânico e procurar explorar os seus recursos de forma sustentada. Do que se pode depreender das reacções de Guterres e do presidente da república portuguesa é que talvez na prática não tenham sido consequentes em termos de políticas viradas para o sector. Algo similar terá acontecido também em Cabo Verde.

Cabo Verde em 1995 e muito antes de Portugal teve o seu primeiro ministério do Mar. O ministério desapareceu anos depois e voltou a reaparecer no governo que resultou das eleições de 2021. Por aí vê-se que durante a maior parte do tempo o sector não era tido como central, mas sim subsidiário de outros como se pode constatar no caso da sua junção ao ministério da agricultura ou quando foi integrado no sector dos transportes. É uma opção que não deixa de ser paradoxal num país arquipelágico e com uma vasta zona económica exclusiva. De facto, para suprir a falta de recursos em terra deveria fazer todo o sentido que se procurasse explorar as sinergias que actividades múltiplas com base no oceano designadamente a pesca, aquacultura, transportes, investigação científica, controlo da poluição, turismo e desporto náutico pudessem facultar.

Nem mesmo no campo da fiscalização das águas territoriais e da zona económica exclusiva do país, onde se devia exigir uma atenção especial porque de soberania, de segurança e de controlo dos recursos naturais, se soube fazer a aposta certa. A opção foi de se ter Exército “em terra” talvez com questões de regime e de segurança interna em mente. A Guarda Costeira criada nos anos 90 ficaria num estado incipiente enquanto deficiente se mantinha ao longo dos anos a fiscalização das costas, do mar territorial e da zona económica exclusiva do país. Isso sem falar em todas as outras missões que constitucionalmente foram-lhe atribuídas em matéria de busca e salvamento, protecção do meio ambiente e controlo da poluição marítima, de apoio à protecção civil e combate aos diferentes tráficos.

O resultado disso tudo é que Cabo Verde, com a sua secular vocação marítima, podia ter-se especializado na prestação de vários serviços de segurança no sector do mar e provavelmente ser útil nesta região do Atlântico Médio e da costa ocidental africana quando ainda hoje tem por estruturar e operacionalizar uma guarda costeira à altura das suas necessidades, ameaças e desafios. Uma boa notícia é que nos últimos dias se passou a ter um Contra-almirante na chefia das Forças Armadas e talvez se consiga finalmente adequar as FA ao que realmente o país precisa. Também em outros sectores a tradição de um país de marinheiros, de pescadores, de industrialização na base de conserveiras em várias ilhas, de escolas do mar podia ter sido potenciada. Infelizmente, as opções foram outras e o resultado é que, apesar dos enormes investimentos feitos, a capacidade de captura de peixe continua insuficiente, as conserveiras dependem de facilidades renovadas anualmente pela União Europeia, a formação profissional em diferentes sectores está aquém das necessidades do mercado e a investigação é incipiente.

Num mundo onde cada vez mais se fala da economia azul e da economia verde o facto de Cabo Verde não estar em posição de beneficiar com soluções próprias e testadas e ser um exemplo a seguir é revelador da falta de visão que terá marcado décadas de governação do país. A exortação de Marcelo Rebelo de Sousa também aqui se aplica. Convenhamos que não devia ser de hoje ter-se uma a estratégia para a transição energética. Eficiência energética e utilização eficiente da água há muito que deviam constituir uma prioridade das políticas do Estado e razão suficiente para mudanças comportamentais com impacto positivo na competitividade, na qualidade de vida e do meio ambiente e na diminuição da dependência de combustíveis fósseis.

Em áreas em que um país é claramente frágil ou mostra desvantagens, o facto de se encontrar soluções inovadoras para as ultrapassar pode revelar-se útil quando outros países se virem em situações similares e precisam de assistência. Michael Porter no livro “A Vantagem Competitiva das Nações” aponta o exemplo de Israel com as soluções de poupança de água e do Japão com os amortecedores para as más estradas do país que depois conquistaram o mundo. A via, porém, para lá chegar não pode ser o acumular de projectos que mais cumprem uma agenda de parceiros internacionais do que fazer parte de uma estratégia própria do país no quadro de uma agenda de futuro. Ao seguir sem critério, corre-se o risco de acabar por ficar com um “cemitério” de projectos e uma dívida pública pesada. Com uma agenda própria o futuro tem a chance de cumprir as promessas feitas.

Nestes tempos críticos, é fundamental não se deixar enredar em slogans ou simplesmente ir atrás das ofertas de dinheiro em nome do salvamento dos oceanos, das alterações climáticas e da transição energética. Resultados duráveis que beneficiam a todos exigem políticas consistentes e sustentáveis. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1074 de 29 de Junho de 2022.

segunda-feira, junho 27, 2022

Emergência económica e social também se aplica à segurança

 

Na segunda-feira quase sem aviso prévio o primeiro-ministro apareceu a declarar a situação de emergência social e económica de Cabo Verde.

Invocou a guerra na Ucrânia e o seu impacto na oferta e nos preços dos produtos alimentares e dos combustíveis. Na sua intervenção o PM disse que a iniciativa da declaração “vai permitir accionar junto dos parceiros instrumentos e mecanismos ajustados às respostas de emergência e mobilizar recursos”. Acrescentou ainda que também visa o reforço da consciencialização dos cabo-verdianos sobre a grave situação que o mundo vive e o seu impacto no país.

Avaliando a oportunidade da tomada de posição do governo pode-se dizer que, no que toca à consciencialização dos cabo-verdianos sobre a gravidade das ameaças e desafios com que Cabo Verde se depara, a declaração, não obstante as propostas pertinentes e sensíveis, provavelmente terá sido algo tardia. A emergência económica e social já vem da pandemia, dos sucessivos surtos, das dificuldades posteriores na retoma e das incertezas em relação ao futuro derivado do chão movediço em que o mundo procura apoiar-se nestes tempos. As tensões geopolíticas e a guerra subsequente só vieram agravar ainda mais a situação. Também a declaração terá sido omissa num renovado apelo à solidariedade de “todos para com todos”, algo que não se perde nada em repetir para assegurar que os recursos próprios são canalizados de melhor forma e que há total empenho para que a ajuda internacional concedida tenha a melhor utilização e atinja as pessoas que mais dela necessitam.

De facto, as crises sucessivas dos últimos anos durante as quais se tem a registar a contracção de quase 15% do PIB do país e o aumento na dívida pública acima dos 150% do PIB acabaram por deixar a nu as profundas vulnerabilidades do país e as dificuldades de a médio prazo as poder ultrapassar. Mas a particularidade de, mesmo com essas situações extremas, não haver a consciencialização desejável dos extraordinários desafios que se colocam impediu a mobilização de energias suficientes para os enfrentar de forma sistemática e decisiva. Ficou-se sempre na expectativa de ver a pandemia passar, de não haver mais surtos de coronavírus e de rapidamente se voltar à normalidade anterior. E qualquer sinal de actividade era tido como prenúncio de retoma. Não havia como cristalizar essa consciência das dificuldades e deixá-la crescer num ambiente desses, ainda para mais, em cima de eleições que por natureza são polarizantes.

Não espanta que logo que com o esvanecer da vaga da variante Ómicron em fins de Janeiro do corrente ano se tenha descortinado uma oportunidade para voltar às práticas anteriores. Vê-se isso no proliferar de festas com subsídio público, de viagens e de outros eventos provavelmente dispensáveis porque realmente não prioritários como tinha ficado provado durante a pandemia. O mundo, porém, de facto mudou e nem sempre para o melhor e as boas novas da vacina não eram suficientes para garantia completa de imunidade. Por outro lado, dificuldades inesperadas surgiram no abastecimento e nos preços devido a estrangulamentos nas cadeias de abastecimento e a inflação reapareceu a assombrar a todos, impactando negativamente no rendimento das pessoas em particular dos mais pobres. A guerra, as sanções e as incertezas vieram piorar ainda mais a situação. Sofre mais quem menos conseguiu ler os sinais dos tempos e não construiu resiliência económica, nem tão pouco resiliência cívica e solidária para enfrentar incertezas.

Num livro recentemente publicado “Gambling on development” (Apostando no desenvolvimento) o autor Stefan Dercon diz que a “característica definidora de um acordo para o desenvolvimento é o compromisso da elite do país, ou seja, daqueles com o poder de moldar a política, a economia e a sociedade, de lutar pelo crescimento e o desenvolvimento”. Segundo esse economista, é só com esse acordo de elite, por exemplo, é que a própria ajuda externa deixa de ser uma espécie de remendo para os problemas do país para se torna num factor impulsionador nos períodos de crescimento e amortecedor nos momentos difíceis. Infelizmente não há muitos sinais que exista tal acordo em Cabo Verde. É maior a tentação do jogo de soma zero em que um ganha com a perda do outro, ou seja, de se manter um processo subtractivo que prejudica ou mesmo inviabiliza a cooperação necessária para se adicionar eficiência e eficácia ao sistema político-económico com proveito geral. Em momentos de emergência social e económica como o actual, existir ou não um acordo dessa natureza é fundamental até para que a ajuda internacional tenha os benefícios desejados de mitigar os efeitos da crise internacional nos mais pobres e no país.

Um bom ponto de partida para se construir um tal acordo seria a luta contra a criminalidade. Os recentes homicídios na Cidade da Praia com destaque para o assassínio de um guarda prisional chamam a atenção para a necessidade urgente de se combater a insegurança na capital e em todo o país. Sem garantia de segurança a todos os níveis não há realmente possibilidade de desenvolvimento. E ordem e tranquilidade pública não são matéria que deva ser escamoteada sob que pretexto ou artifício for. Nem também deve ser objecto de confrontos entre as forças políticas que invariavelmente terminam deixando as coisas como estavam ou como eram feitas, salvando as aparências, enquanto recursos crescentes são sugados sem que haja benefício que justifique os maiores custos incorridos.

Resultados concretos em termos de diminuição da percepção de insegurança devem ser exigidos e não se ficar pelos efeitos mediáticos das mega operações policiais ou com declarações de “guerra” ao crime. Como bem refere o criminologista David Kennedy o que acaba por acontecer nas comunidades mais pobres quando se adopta certo tipo de tácticas e se militariza a polícia é que se cria uma dinâmica estranha de excesso de policiamento e de subprotecção das pessoas, deixando para trás um rasto de desconfiança que dificulta colaboração futura com as autoridades. Um grande avanço seria, sem dúvida, diminuir o que aparentemente é o acesso fácil a armas de fogo de fabrico artesanal e outras por parte de jovens e adolescentes. Em quase todos os crimes violentos fala-se do uso dos “Boka bedju”.

O governo anunciou na semana passada que vai propor alterações na lei para que, entre outros mecanismos de controle de uso e posse de armas, aumentar penas para a posse ilegal. Passaram nove anos depois da entrada em vigor da lei de armas em 2013 e quatro anos depois do comandante da polícia nacional na ilha do Sal, com prejuízo da sua carreira profissional, ter declarado que a lei vigente é amiga das armas na sequência de uns disparos feitos alegadamente por um jovem contra um carro de turistas. Não se tem a percepção que durante os anos seguintes diminuíram as armas em circulação ou são menos utilizadas em assaltos e conflitos entre pessoas e gangs. Pelo contrário.

Razão para que nestes tempos em que todos parecem reconhecer uma situação de emergência social se tomar uma posição de “desarmar a população” como já foi aconselhada em outros editoriais deste jornal e a exemplo do que países como o Reino Unido (1997), Canadá (2020), Austrália (1996) e Nova Zelândia (2019) e o próprio Brasil (2003) fizeram quando confrontados com escalada grave da criminalidade violenta. E esses são países com cultura de armas ou uma cultura de “fronteira” e não Cabo Verde, onde parece que o que alguns chamariam de masculinidade tóxica tem expressão na posse de armas, em assaltos, guerras de gang e, no extremo, ataque a polícias no intuito de roubar a pistola.

A próxima discussão da lei de armas na Assembleia Nacional pode ser a oportunidade para esse acordo da classe política no sentido de desarmar a população e acabar com o sentimento de insegurança no país. A seriedade que se deve mostrar a enfrentar a situação de emergência social e económica deve ser a mesma a ser posta na resolução do problema de insegurança sentida pelas pessoas. Não há uma coisa sem outra. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1073 de 22 de Junho de 2022.

segunda-feira, junho 20, 2022

Concentração de poderes não é salutar

 

O governo pelo decreto-lei nº 21/2022, publicado no Boletim Oficial de 10 de Junho, criou uma nova entidade reguladora independente, a Autoridade de Concorrência, com a missão de promoção e defesa da concorrência nos vários sectores económicos tendo em vista o funcionamento eficiente dos mercados, a afectação dos recursos e os interesses dos consumidores.

A exemplo do que vem acontecendo em vários países que recentemente e em particular nos anos noventa seguiram pelo caminho da liberalização da economia, supõe-se que com este e outros actos quer-se dar um outro impulso ao processo de transição de um Estado intervencionista para um Estado regulador da economia. Independentemente da pertinência e da oportunidade da criação neste momento da nova autoridade reguladora não deixa, porém, de ser curioso que a indicação para a nomeação dos membros do conselho de administração tenha sido atribuída ao ministro das Finanças.

O normal seria que fosse o ministro que normalmente reúne os sectores do comércio, da indústria e da energia como acontece noutras paragens. Aliás, o próprio diploma refere-se a atribuições antes exercidas por serviços desse ministério em matéria de concorrência que são passadas à nova autoridade reguladora. Também no caso recente da nomeação dos membros do conselho de administração da Agência Reguladora Multissectorial da Economia (ARME) a impressão com que se fica é que, apesar da lei estabelecer que a indicação dos membros do conselho de administração deve ser sob proposta dos membros de governo com responsabilidade nas áreas cobertas pela ARME, todo o protagonismo ficou com o titular das Finanças. Coincidentemente dois dos nomeados, incluindo o PCA, vieram directamente de posições-chave no ministério das Finanças.

Mesmo que se considere que esse papel reforçado seja uma opção do executivo há certas questões a ponderar. O ministro já tem competências abrangentes sobre os sectores financeiro e fiscal e é de se perguntar se não se torna problemático para o funcionamento eficiente e eficaz do país que ainda se acrescente outras noutros sectores de actividade. Para além de eventual ruído no próprio funcionamento do governo tendo em conta que os estatutos estipulam que a relação orgânica da ARME faz-se através do ministro da Economia é quase inevitável que tal concentração excessiva de poderes tenha outras consequências. Por outro lado, pode acabar por afectar de algum modo o desempenho de empresas públicas e privadas, a autonomia das entidades reguladoras, a competitividade do país e os próprios consumidores nas escolhas possíveis de produtos e serviços e nos preços a pagar.

Situações similares de sobreposição ou de algum conflito de competências já se tinham verificado anteriormente e viram-se as consequências na governação e na condução de certos dossiers como o da privatização da TACV. A resolução do governo nº 87/2017 de 3 de Agosto que dispôs 23 empresas públicas ou participadas pelo Estado para serem privatizadas ou cedidas em forma de concessão passou efectivamente a tutela dessas empresas para o ministério das Finanças. Na sequência dessa decisão e provavelmente em resultado das tensões criadas o então ministério da Economia que abrangia os vários sectores da economia foi dividido em três ministérios no quadro de uma remodelação ministerial que se verificou no fim do ano de 2017 e alguns dos seus serviços ou departamentos transferidos para o ministério das Finanças. A aparente intenção de dar um maior peso ao ministério da Economia na estrutura do governo implícita no desenho inicial sucumbiu à habitual dinâmica governativa em Cabo Verde que acaba sempre por afirmar uma posição quase hegemónica do ministério das Finanças sobre os outros departamentos governamentais.

Aconteceu no passado quando a instabilidade na área económica da governação visível no facto de se ter sete ministros de economia em 15 anos contrastava com a estabilidade nas finanças com três ministros. Voltou a mostrar-se no último governo com múltiplas mudanças de titulares e de configuração governamental nos sectores económicos mantendo-se o mesmo ministro das Finanças e cada vez mais reforçado na sua função de vice-primeiro-ministro. Com isso o país aparenta ter um viés na forma como a sua economia é estruturada e orientada que não só tende a mantê-lo institucionalmente débil e como também muito aberto à informalidade devido à fragilidade do seu tecido empresarial. Vive-se numa espécie de círculo vicioso que de alguma forma impede Cabo Verde tanto de conseguir taxas de crescimento que podiam construir uma base de criação de empregos e de aumento de rendimento como também de se diversificar para ganhar resiliência e enfrentar as suas vulnerabilidades e diminuir a precariedade das populações.

Mesmo antes da pandemia não se conseguiu chegar a crescer a economia a mais de 7 % do PIB, a taxa que consensualmente se considera necessário para, de facto, debelar a pobreza, combater o desemprego e prosperar. Não parou de crescer, porém, durante todo esse tempo, o escopo da actividade do ministro das Finanças. Com a crise que veio depois e a ajuda externa que foi mobilizada então é que se agigantou como se pode comprovar pelo frenesim de aparecimentos públicos em múltiplos eventos prodigiosamente cobertos pelos órgãos de comunicação e pelas redes sociais. O problema é que fazer essencialmente o mais do mesmo como anteriormente, mas agora numa escala ainda maior, não só tende a reproduzir as ineficiências do passado como muito provavelmente a agravá-las.

Em situações de crise a dependência em relação a quem gere recursos e disponibilidades acaba por afectar negativamente a participação e autonomia das outras partes, diminuindo a complexidade de todo o sistema e com ela a sua resiliência, capacidade adaptativa, a iniciativa e criatividade. No processo perde-se extraordinariamente em eficiência e eficácia mesmo que se esteja a nadar em recursos disponíveis. O próprio governo é afectado porque perde em colegialidade quando os seus membros são condicionados pela gestão que é feita num ministério das Finanças cada vez mais influente. O sistema do governo de base parlamentar enfraquece e perde as virtualidades derivadas de um exercício construtivo do contraditório quando a percepção de crise se generaliza e desencadeia uma corrida desenfreada aos recursos cada vez mais escassos.

Não é à toa que para além de não se ter conseguido o crescimento necessário, não se conseguiu travar o sentimento de precariedade e assiste-se ao degradar de sistemas como o de segurança, da justiça e da educação. A pandemia apesar dos seus efeitos nocivos trouxe a possibilidade de ajuda massiva no sector da saúde que ajudou o país a conter a percepção das deficiências. Nos grandes objectivos de redinamizar a economia com as privatizações como se cogitou na referida resolução nº 87/2017 das 23 empresas só realmente se concretizou o processo da privatização da TACV e pode-se claramente ver pelos resultados que, de facto, fracassou redondamente e resultou em mais dívida pública e destruição de valor em vários sectores de actividade conexas. Há que continuar a atrair investimento externo, construir parcerias e criar condições para servir uma procura externa de bens e serviços, mas aprendendo com os erros cometidos, sendo competitivos e adquirindo competências várias e garantindo segurança a todos os níveis, seja ela pessoal, jurídica, sanitária e regulatória.

Concentração de poderes em estruturas, funções e pessoas nunca é salutar. Perde-se extraordinariamente em eficiência e eficácia e inibe-se toda a criatividade, a capacidade de correr riscos e a energia necessária para sair da situação de crise e construir algo de novo. A crise que se vive actualmente é afinal várias crises juntas e ninguém garante que outras não vão aparecer. Não é repetindo os erros do passado recente que se vai contornar as dificuldades e enfrentar as incertezas. A construção de uma base sólida onde se possa apoiar para se conseguir o desenvolvimento sustentável e inclusivo irá requerer espírito de solidariedade, respeito pela diversidade, adesão aos princípios e valores da liberdade e democracia e uma verdadeira paixão pelo conhecimento. Um desafio que se coloca principalmente aos que detêm o poder e têm a responsabilidade de o exercer para o bem de todos e não para benefício pessoal. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1072 de 15 de Junho de 2022.

segunda-feira, junho 13, 2022

Os tempos clamam por um Estado mais eficiente em tudo

 Nos últimos dias vem-se desenvolvendo uma controvérsia à volta da participação do presidente da república numa cimeira da CEDEAO no Gana. Primeiro, através de um comunicado, os serviços da presidência da república anunciaram que por razões logísticas e financeiras o PR não iria estar presente no encontro de Chefes de Estado e de Governo marcado para o dia 4 de Junho.

Depois questionou-se se houve ou não cortes no orçamento da presidência da república no tom já habitual entre os protagonistas políticos que pouco esclarece, mas serve para alimentar especulações sobre possíveis tensões entre os dois órgãos de soberania. Curioso é que enquanto em Cabo Verde muitos se apoderam do tema com intervenções na comunicação social e nas redes sociais que acabam por configurar mais um “round” nos múltiplos jogos para manter activa de crispação política, a cimeira de Accra, sem ter conseguido chegar a acordo em relação à situação no Mali, Burkina Faso e Guiné-Conacri mostrou-se praticamente uma perda de tempo. Foi adiada para o próximo mês de Julho.

De qualquer forma, em todo este imbróglio a questão central sobre qual devia ser a participação de Cabo Verde, considerando as prioridades da política externa do país, e a que nível de representação, se do Chefe de Estado ou do Governo ou de Embaixador, é que aparentemente não foi discutida. Certamente que se tivesse sido esse o caminho seguido desde o início, para qualquer que fosse a opção adoptada encontrar-se-iam os meios financeiros para a concretizar, não obstante os constrangimentos orçamentais actuais do país. Tanto nesta como em outras situações é fundamental que se afirme que deslocações e viagens oficiais têm como objectivo principal razões de Estado e não protagonismo pessoal ou motivação partidária. Porque, de facto, tratando-se da utilização de recursos públicos, e estes são sempre escassos, a decisão para as realizar devia ser sempre devidamente ponderada.

A verdade é que há dúvida nas pessoas, que todos os dias assistem na televisão pública ao desfile dos políticos em frequentes e repetidas visitas às ilhas, encontros com população, auscultações, inaugurações, apresentações de planos estratégicos, aberturas e fechos de seminários, formações e socializações, se essas deslocações e viagens se justificam. Provavelmente algumas terão razão de ser, mas certamente que nem todas. Viu-se durante a pandemia, em particular durante os lockdown e as restrições nas viagens, que com alguns constrangimentos é certo, podia-se funcionar, fazer chegar mensagens às pessoas e resolver problemas candentes. A essa experiência muito concreta e real devia seguir-se mais contenção no que até o momento tinha sido uma prática de décadas.

As dificuldades que se seguiram com a retoma a não se verificar no ritmo esperado, com os surtos das variantes do SARS-CoV-2 a perturbar um regresso à normalidade, e depois com a invasão da Ucrânia pela Rússia acompanhadas das incertezas em relação a esses e outros constrangimentos que ainda se mantêm, deviam ter levado a uma mudança profunda de atitude. Não foi o que aconteceu e claramente que a tendência é voltar ao que sempre se fez. E continuará a ser assim enquanto não houver melhor ponderação nas decisões de viagem, considerando designadamente as prioridades de governação, a eficácia na execução da política interna e externa do governo, a representação do país e o dever de accountability, de responsabilização e de prestação de contas. Ficar-se-á na mesma também se não se cortar com práticas de responder sem razão justificada a convites feitos ou solicitados, de exercer funções públicas seguindo motivações pessoais ou partidárias ou deixar-se enredar em agendas de outras entidades porque é conveniente e não se tem uma agenda própria.

Muito do que acontece na política e em outras actividades públicas e em eventos diversos ao nível nacional e também local faz-se em modo de espectáculo e em geral põe-se mais ênfase nos protagonistas do que nos temas ou questões tratadas. Daí o desdobramento de certas personalidades por tudo o que é mediático resultando muitas vezes em excesso de exposição, banalização de funções e em custos evitáveis em deslocações e estadias. E não se pense que nisto tudo estão envolvidos apenas governantes, deputados, presidentes de câmara e outros políticos. O Primeiro-ministro na discussão do Orçamento do Estado a explicar os 630 mil contos para deslocações e estadias deixou claro que uma parcela significativa dessa soma é utilizada pela administração pública e outros serviços do Estado e o mais normal é que as práticas já estabelecidas levem a um maior prejuízo para as finanças públicas do que se pode claramente assacar aos políticos. Afinal eles são um alvo mais visível e atacável do que práticas e culturas organizacionais estabelecidas que muitos pouco ousam pôr em causa.

O privilégio de viajar dentro e fora do país com as correspondentes ajudas de custo foi sempre cobiçado nos vários níveis dos serviços do Estado. Visto por muitos como complemento de salários deliberadamente diminuídos nos primeiros anos da independência era procurado activamente pelos que tinham acesso de alguma forma a dirigentes e conseguiam integrar delegações. Aos outros num tempo que era de escassez ficava só a possibilidade de comprar produtos trazidos do exterior por colegas e adquiridos, supunha-se, com poupança nas ajudas de custo. Imagine-se a inveja que tudo isso provocava. Quando podiam, alguns privilegiados até instituíram uma espécie de escala de viagem. Não espanta que ainda hoje a questão de viagens e ajudas de custo seja matéria sensível seguida por largos sectores da população e por isso potencialmente explosiva e passível de aproveitamento nas lutas partidárias. Curiosamente não há muita preocupação com uma outra consequência dessa prática. A desconformidade entre integrantes das delegações e o objectivo da viagem, que vem de longe e ainda é perceptível em alguns casos, tem custos e explica muitas vezes a inutilidade, a falta de resultados ou a dificuldade de se fazer o seguimento de missões. Nem por isso, como se pode inferir da controvérsia actual, se procura preparar melhor as participações, fazer as concertações necessárias e mobilizar os recursos para o sucesso das mesmas.

Cabo Verde não precisa de distracções artificialmente criadas só para manter a virulência política que impede o debate de questões de substância e de futuro. No ambiente actual de preços elevados de todos os produtos e em particular dos bens alimentares e dos produtos energéticos o foco devia estar em ganhos de eficiência a todos os níveis não só para se ser mais produtivo como também para poupar nos recursos disponíveis. Obviamente que a poupança nas deslocações e estadias por serem mais visíveis e também matéria sensível pelas razões referidas deveria ser um objectivo central da governação na actual conjuntura.

Até ajuda que não se esteja num período pré-eleitoral em que a pressão partidária não é tão forte e que a reacção das pessoas perante as incertezas do momento é de maior contenção nas suas exigências. Para isso, porém, o exemplo deve vir de cima. E ao contrário do que disso o Primeiro Ministro em entrevista, as críticas devem ser escutadas para melhor se estar em condições de governar o país. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1071 de 8 de Junho de 2022.

segunda-feira, junho 06, 2022

Mais pluralismo e menos crispação na comunicação social

 

Na última sessão da Assembleia Nacional de Maio foi agendado a pedido do governo um debate sob o tema comunicação social, democracia e desenvolvimento.

Como seria de esperar o que devia ser o debate entre os deputados e o governo transformou-se numa espécie de batalha campal em que jornalistas eram postos em colisão com o governo e deputados procuravam posicionar-se conforme as suas preferências político-partidárias de um lado ou de outro da barricada. A publicação dias antes do relatório dos Repórteres Sem Fronteiras que dava conta da queda de Cabo Verde de nove lugares no ranking da Liberdade de Imprensa no Mundo incendiou o que já por si seria um debate quente.

Não estranha por isso que mais uma vez se tenha ficado por manobras para mostrar quem é mais amigo dos jornalistas, quem se move contra a liberdade de imprensa e quem mais protege a comunicação social pública. Ao lado ficou o debate sobre o grau de pluralismo existente em Cabo Verde e em particular na comunicação social. O mesmo aconteceu com o papel do serviço público da rádio e da televisão, a eficácia da comunicação social como meio de fiscalização da acção governativa ou simplesmente como watchdog e a importância cada vez mais sentida de se ter uma comunicação social credível para contrabalançar os efeitos mais negativos das redes sociais.

A democracia, que precisa ser protegida de polarizações extremas que deixam o sistema político fragilizado, viu-se secundarizado num debate em que os protagonistas se desdobraram a desresponsabilizar-se por qualquer falha e, em simultâneo, a apontar o dedo ao outro. No mesmo segundo plano ficou o desenvolvimento que para acontecer não precisa que se confunda facto com opinião e se deixe de buscar a verdade. Nem que se procure alimentar a alienação das pessoas e da sociedade com posicionamentos anticientíficos e teorias de conspiração e promover atitudes que minam a confiança nas instituições, porque se quer com motivos escusos contornar a ordem democraticamente estabelecida.

É interessante notar que a disputa actual à volta da liberdade de imprensa que opõe jornalistas ao governo veio na sequência de denuncias trazidas à praça pública de um assassinato verificado em 2014 durante uma operação policial tida como supervisionada pelo então diretor-adjunto da polícia judiciária e actual ministro da Administração Interna. Acusados dois jornalistas de crime de violação do segredo de justiça e constituídos arguidos rapidamente a controvérsia deixou de ser o conteúdo das denúncias e o eventual envolvimento de um ministro para se concentrar na questão de saber se a violação de segredo de justiça pelos jornalistas é legal ou mesmo constitucional.

Seguiram-se denúncias de perseguição de jornalistas e entrou-se pelo caminho de confronto entre jornalistas e o governo já noutras ocasiões percorrido e que pode permitir constatações do tipo: os governos do MpD dão-se mal com a imprensa. Ou seja, a tensão criada pelas denúncias acabou por ceder à tranquilidade que de alguma forma a disputa política habitual entre os partidos traz a todos, socorrendo-se das reivindicações de alguma classe profissional mais mediática como arma de arremesso. O anúncio da queda dos nove lugares no ranking da liberdade de imprensa, tal qual a cereja em cima do bolo, funcionou como um bónus para se apressar no regresso ao “normal” em que questões essenciais são sempre adiadas.

Cabo Verde tem uma posição nos rankings da democracia, das liberdades e especificamente da liberdade de imprensa que não destoa muito de outros países tidos como democráticos. Aliás, muitas vezes está melhor classificado do que alguns deles com mais anos de regime democrático. Tentar compreender as razões das insuficiências ainda presentes devia ser matéria intensa de debate entre as forças políticas. Infelizmente prefere-se ficar por acusações mútuas e não agir concertadamente para ultrapassar os constrangimentos.

No que respeita por exemplo à comunicação social devia ser óbvio o peso excessivo da rádio e televisão públicas. O órgãos públicos absorvem enormes recursos por via de taxas e outras transferências do Estado e têm cativo grande parte do mercado de publicidade do país tanto de origem estatal como privada ocupando com isso uma posição hegemónica clara. Empecilhos fortes ao pluralismo são criados nessas circunstâncias devido à fragilidade económico-financeira dos órgãos privados e a dificuldade em competir na contratação de jornalistas. Uma outra consequência é que com tantos meios e recursos acompanhado de capacidade de influência das audiências torna-se praticamente impossível evitar suspeição de interferência governamental, independentemente de quem governa e de órgãos supostamente independentes criados para mediar a relação entre o governo e a direcção dos órgãos públicos.

A Constituição prevê um serviço público da rádio e televisão e impõe princípios de independência e de pluralismo interno. Não define qual deve ser a dimensão do serviço que fica ao critério dos governos, mas é evidente que se for esmagador o pluralismo é globalmente prejudicado. Da parte de quem governa vai sempre existir a tentação de alguma interferência e da parte da oposição haverá sempre acusações de manipulação. Se nem a BBC com um percurso reconhecido de isenção e imparcialidade está a salvo de acusações, imagine-se o que pode acontecer em Cabo Verde onde uma cultura de dependência do Estado foi instituída desde os primórdios da independência nacional em 1975. Conseguir um maior equilíbrio entre o órgãos públicos da comunicação social e os órgãos privados deveria ser o primeiro passo para se ultrapassar a situação.

As dificuldades para se avançar nesse sentido são à partida enormes, desde logo pela fragilidade dos privados. Órgãos de comunicação social privados e em particular rádios em S. Vicente e na Praia deixaram de existir poucos meses antes do 5 de Julho de 1975. Posteriormente, nos anos oitenta iniciativas embrionárias de televisão por particulares foram terminadas para dar lugar à televisão estatal. Nos anos noventa da democracia e da liberdade de expressão os privados tiveram de recomeçar praticamente do zero. Mesmo a cultura jornalística em grande parte moldada nos órgãos estatais do regime anterior e marcada pela dependência e pelo controlo ideológico não constituía grande ajuda para iniciativas com uma outra matriz.

Não é à toa que durante anos a prática do exercício dos direitos designadamente dos direitos de liberdade de expressão e de imprensa estabelecidos pela nova constituição tenha sito pontuada por choques entre o novo poder e os jornalistas. Entretanto a comunicação social do Estado manteve a sua posição hegemónica no sector apesar das tentativas de reforma. Provavelmente aprendeu a manobrar as forças políticas que se sucedem no governo de forma a absorver cada vez mais recursos e reforçar ainda mais a sua posição. Discutível, porém, continua a ser a qualidade da programação que não devia ser virada simplesmente para conquista de audiências e o grau de pluralismo atingido e que é traduzido nas correntes de opinião expressas.

Mudar a situação só podia vir de um amplo consenso dos partidos para se diminuir no acesso aos recursos do mercado publicitário a favor dos privados e apostar mais na qualidade dos programas informativos e de entretenimento e nos documentários. Ganhar-se-ia no pluralismo externo com uma maior diversidade de órgãos privados e também se diminuiria na crispação política derivada da disputa de quem mais tem influência na rádio e na televisão públicas. Coragem e visão para se agir nesse sentido é que parece faltar. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1070 de 1 de Junho de 2022.