segunda-feira, maio 29, 2023

Renovar a esperança

 O governo escolheu fazer um balanço de dois anos de governação neste que é o seu segundo mandato na liderança do país. A data coincide grosso modo com a declaração do fim da emergência mundial criada pela covid-19 e com a recuperação da economia para os níveis de 2019. O Primeiro-ministro na sua alocução ao país fez questão de proclamar que “Salvamos vidas. Protegemos empregos, rendimentos e empresas. Investimos na recuperação e na retoma económica”. O tom quase propagandístico das mensagens, com enfase na auto-glorificação pelo conseguido, acaba por ser uma espada de dois gumes.

Se por um lado promete vantagem ao governo numa perspectiva de ganho político-eleitoral, por outro abre caminho para reivindicações de vários sectores da sociedade e em particular as populações mais vulneráveis que também querem ser compensados pelos sacrifícios, rendimentos e oportunidades perdidas. As críticas da oposição, em resposta, além de disputar o mérito e a qualidade das soluções encontradas pelo governo, procuram canalizar as reivindicações das populações, amplificá-las e exigir que sejam cumpridas imediatamente. E justificam dizendo que se o país está a crescer em média 12% ao ano, como proclama o governo, então que os efeitos desse crescimento sejam sentidos por todos de forma equitativa.

É mais um debate em que uns e outros não se ouvem e não há acordo praticamente sobre nada. O resultado é que dificilmente se vai manter a perspectiva real do que foram realmente estes anos de crises sucessivas e interligadas e o quanto é que se está longe de as ultrapassar. Tão cedo não se vai ter noção dos estragos permanentes causados ao nível pessoal e familiar, em termos designadamente de rendimento nas escolas, carreiras profissionais e saúde mental, mas também social ao nível da coesão nas comunidades, postura cívica e sentido de pertença. As erupções de violência, o uso de armas de fogo a atracção dos gangs sobre os mais jovens continuarão a pôr a sociedade em sobressalto sem que se chegue a acordo sobre como lidar com esses fenómenos.

Enquanto o discurso público for dominado pelo tipo de irrealismo quanto aos objectivos e aos meios que se vê, por exemplo, na abordagem de problemas como a produção agrícola, os transportes aéreos e marítimos e a luta contra a pobreza dificilmente vai-se deixar de cometer os mesmíssimos erros do passado. Para o governo, que faz o balanço com triunfalismos, positividade e good vibes, e para oposição, que sobe a fasquia nas reivindicações sem preocupação com os custos, tudo aparentemente se resume a ir empurrando o país com a barriga. A diferença numa avaliação futura é que as frustrações serão maiores porque as expectativas foram elevadas a outro patamar, os custos maiores porque, com sucessivos fracassos ou ineficiências várias, as dívidas acumularam-se, as instituições e a própria democracia fragilizaram-se porque se mostram incapazes de inflectir o processo de perda de credibilidade.

Não é de hoje que se procura apostar na agricultura com mobilização de água e agronegócios, ou se procura abrir voos da TACV para se ligar à diáspora e desenvolver um hub aéreo e se implementam programas de luta contra a pobreza. Fez-se no passado várias vezes e os resultados são de todos conhecidos em termos de empobrecimento progressivo do meio rural acompanhado de perda de população, aumento da dívida pública e crescimento da pobreza extrema nas cinturas urbanas. Agora promete-se fazer basicamente o mesmo num futuro próximo com água dessalinizada, com mais aviões e barcos, com empreendedorismo massificado e pensão social mais abrangente e espera-se que os resultados sejam diferentes. Caso para perguntar se a definição de insanidade atribuída a Albert Einstein se vai aplicar.

Winston Churchill num momento difícil da II Guerra Mundial teria dito que nunca se deve deixar uma boa crise ser desperdiçada. Infelizmente não foi só uma crise, mas várias crises que Cabo Verde deixou desperdiçar. O que já vinha acontecendo desde de 2017 com as secas sucessivas juntou-se em 2020 uma crise pandémica sem precedentes que, pelo enorme impacto global e local que teve, podia ser a grande oportunidade para o país repensar as suas opções, rever a sua forma de fazer política e mudar a atitude. Passou ao lado.

A generosidade do resto do mundo que se seguiu na forma de ajuda financeira, vacinas e equipamentos, ao tranquilizar os espíritos, retirou motivação para mudar. Em acréscimo, ao reforçar o papel já tradicional do Estado na reciclagem da ajuda externa, com o seu efeito concomitante de reproduzir o espírito de dependência que favorece esquemas de poder em detrimento da autonomia e iniciativa da sociedade e das pessoas, acabou por inibir ainda mais a vontade de fazer diferente. Não estranha que depois que a policrise se complicou com o aumento da inflação, a invasão da Ucrânia e o aumento brusco dos preços de alimentos e combustíveis ainda não se notam na sociedade indícios de debate sobre a nova realidade global. Um dia, porém, o país terá que repensar o seu futuro num mundo que claramente está em mudanças profundas tanto em termos geopolíticos como económicos.

Os foguetes lançados no balanço dos dois anos e as críticas azedas da oposição acontecem num ambiente que ainda se espera pela bonança prometida nos projectos de mudança climática, transição energética, digitalização e economia azul para que, no essencial, tudo se mantenha igual. E como até agora aconteceu, ficam adiados os esforços no sentido de revigorar o espírito de solidariedade que o país tanto precisa para diminuir a crispação política, aumentar a confiança interpessoal e reforçar a credibilidade das instituições.

Um bom passo em frente seria deixar de lado o optimismo, a positividade e good vibes de quem simplesmente acredita que as coisas vão dar certo, crença essa que pode resvalar para o irrealismo. Em troca, cultivar a esperança que parte da convicção de que com os pés bem ficados na terra se pode agir de forma estratégica e solidária para assegurar que se vai atingir os objectivos desejados com ganhos para todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1121 de 24 de Maio de 2023.

segunda-feira, maio 22, 2023

Polarização que dificulta o avanço do país

 

Polarização política, confrontos partidários estéreis e falta de consenso em questões-chave da vida dos países têm sido cada vez mais vistos como sinais de grave crise da generalidade das democracias.

O debate político, crescentemente sequestrado por questões mais próximas das identidades partidárias do que da substância das políticas públicas, ajuda a vincar a ideia que “tudo é política” e que com tudo se pode fazer política. No ambiente assim criado em que sentimentos tendem a prevalecer sobre os factos dificilmente se consegue esquivar do rótulo de pertencer a uma facção ou outra. A grande habilidade é sempre encontrar temas que alimentam essa polarização reforçando o sentido de pertença de uns e identificando outros como adversários ou inimigos.

Claro que não se pode manter uma situação dessas sem que haja custos para a qualidade da vida política e para o nível de participação da sociedade civil na discussão das grandes questões do país. Há ainda um outro custo importante que são as instituições que ficam resistentes a reformas e cativas de interesses que se revêem e se legitimam nas questões fracturantes. De qualquer forma, o que se nota é que, a par da polarização que empobrece a vida política e enfraquece a vontade de encontrar soluções para um presente e futuro diferentes, há o frequente retorno a questiúnculas que sempre que invocadas reforçam a marca ideológica de uns em contraposição a outros.

Um exemplo recente desses retornos que amiudamente acontecem na democracia cabo-verdiana é a controvérsia à volta da iniciativa diplomática do governo junto de Marrocos. Pelas reacções nos media e nas redes sociais percebe-se que foi uma oportunidade para vincar credenciais de “libertadores”, supostos defensores do princípio de autodeterminação e independência, versus os “outros” “ligados a outros interesses”. Era a polarização a trabalhar com o seu motor de sempre. Pareceu não interessar que o governo anterior procurou normalizar a relação com Marrocos, a exemplo da maioria dos países africanos e da própria União Africana (2007),  deixando congelada a questão do Saara Ocidental. Também se esquece que em matéria do direito dos povos há quem não pode ser exemplo porque quando devia ser a vez de Cabo Verde de exercer o seu direito à autodeterminação, no pós-25 de Abril de 1974, a palavra de ordem era “Não ao referendo, independência já, mas com o PAIGC”.

No mesmo sentido convergem outros momentos como os que se seguiram à discussão e aprovação do SOFA, o acórdão favorável do Tribunal Constitucional e a sua ratificação pelo presidente da república. Deixa-se no ar que interesses do país poderão não estar a ser servidos pelo governo acompanhado de um quê de antiamericanismo que cola bem com roupagens de anti-imperialismo do passado. Mais uma vez a tentação do reforço das credenciais ideológicas se sobrepõe. Não se vê qualquer contradição com posições de governo anterior que autorizou exercícios da NATO em Junho/Julho de 2006, celebrou SOFAs com a NATO e a Espanha, recebeu ex-prisioneiros do Guantánamo em 2010 e assinou acordo de parceria militar com os Estados Unidos em 2015.

Aparentemente nessa investida não é de exigir coerência governativa. Veja-se, por exemplo, a politica de reaproximação da África e a recomendação recente de estimular o desenvolvimento da cooperação com os países vizinhos. Depois de quase cinquenta anos após a independência não se vê alterações na estrutura das relações comerciais que poderiam sugerir que houve progresso significativo e nem se vê sinais que poderá haver avanços no futuro próximo. A opção pela África, porém, continua não como parte de uma estratégia governativa de desenvolvimento, mas para se manter uma identidade ideológica que dá fundamento à polarização política mesmo que os interesses do país não sejam realmente bem servidos no processo.

Num outro sentido, a reafricanização dos espíritos que também sustenta a polarização encontrou, na suposta defesa do crioulo, um terreno propício para os autênticos e os resistentes se demarcarem dos outros eventualmente lusotropicalistas, macaronésios ou simplesmente duvidosos. A verdade é que todos os cabo-verdianos falam o crioulo e não há perigo de nenhuma criança deixar de aprender a sua língua materna. Não obstante isso, e o facto de ao mais nível do Estado os titulares dos órgãos de soberania se expressarem em crioulo, criou-se a ideia que ela é desprestigiada e secundarizada. O objectivo aí é claro de mobilizar paixões supostamente para a causa da oficialização quando já existe desde 1999 a directiva constitucional para se criar as condições para estar em paridade com o português, a começar pela padronização enquanto língua formal e escrita. Curiosamente nem um jornal se procurou criar para habituar as pessoas a ler em crioulo como acontece em Aruba e Curaçau.

Os custos da polarização que certos sectores se empenham em reproduzir acabam por atingir as instituições do país com consequências nem sempre visíveis ou previsíveis. No caso do projecto lei sobre a língua portuguesa, apresentado na Assembleia Nacional, viu-se um ministro e um instituto público a extravasar as suas competências num confronto com uma maioria de votos de deputados a favor mesmo que insuficiente para passar a lei. A efectiva estatização da cultura claramente reconhecida no preâmbulo do regime jurídico do património cultural, mas não assumidamente extirpada das competências da instituição, representa de facto o entrincheiramento da política de reafricanização dos espíritos. Uma política que vem do regime de Partido Único e que se mantém imperturbável na democracia na qual o Estado, constitucionalmente, está impedido de impor correntes estéticas, ideológicas e filosóficas ao país e aos cidadãos. Desse choque entre dois sistemas de valores vem muito da paixão, do ressentimento e da nostalgia que alimenta a polarização política e cultural que dificulta o avanço do país.

Há dias, e a propósito da tragédia na Serra de Malagueta em que morreram oito militares num acidente de viação, algumas vozes, algumas delas surpreendentes por que já tinham ocupado posições ministeriais no sector, fizeram-se ouvir a pedir um debate alargado sobre o papel das forças armadas, a necessidade do serviço militar obrigatório e as missões que deve ou pode desempenhar. Realmente há muito que isso devia ter sido feito. Em primeiro lugar porque sendo Cabo Verde um país arquipélago de 10 ilhas e ilhéus as suas forças militares deviam ser concebidas de forma a responderam às ameaças e emergências e desafios que se colocam a um país insular. Não foi o que aconteceu porque se quis que as forçar armadas reproduzissem uma cultura de uma luta de libertação em que nunca participou e tivesse como objectivo principal a segurança interna do regime.

Em consequência, mesmo no período democrático, a polarização política serviu para assegurar que reformas de fundo, mais consentâneas com a natureza dos constrangimentos e ameaças do país, não fossem levadas adiante. Muito menos qualquer debate na transformação das forças armadas que tirasse os comandantes dos seus pedestais e mexesse com as suas datas revolucionárias. Os custos estão à vista de todos, mas mesmo quando se propõe debate, da forma enviesada com que é colocada, fica no ar a ideia que, de facto, o que se quer manter é a tensão que permite que a polarização se perpetue. Ou seja, quer-se, parafraseando Giuseppe de Lampedusa, que se dê sinais de mudança para que tudo fique na mesma. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1120 de 17 de Maio de 2023.

segunda-feira, maio 15, 2023

Disputa de protagonismo

 

Em declarações à imprensa o presidente da república José Maria Neves disse que espera que, ao que chamou de “disputa de protagonismo” entre o presidente português Marcelo Rebelo de Sousa e o primeiro-ministro António Costa, não faça escola em Cabo Verde. Pelas declarações que fez a seguir, a propósito de fundos para apoiar jornalistas e órgãos de comunicação social na cobertura de visitas presidenciais e do governo, fica-se com forte impressão de que aqui também já há essa disputa.

Nota-se em matérias aparentemente menores discutidas na praça pública como recursos orçamentais alocados aos órgãos de soberania e a propósito de verbas para viagens, mas também nas políticas governativas que até foram foco das mensagens presidenciais dirigidas ao país. O tom não é muito diferente do que é usado noutros debates políticos no país em que as teclas tocadas são as usuais de discriminação, exclusão e vitimização.

Em Portugal, a disputa atingiu um ponto clarificador quando a sugestão pública do PR para o PM demitir um ministro foi também expressa e publicamente negada. Na sequência o PR acabou por não avançar com “a bomba atómica” da dissolução do parlamento que só se justificaria com um não normal funcionamento das instituições e, por outro lado, o país ficou a par da uma vontade mais firme e explícita do PM de pôr travão à ingerência presidencial em matérias da governação. Não obstante as promessas do PR em manter com rédea curta o governo, a verdade é que toda a ideia da magistratura de influência até agora exercida, provavelmente terá que ser reformulada. Há quem diga que praticamente acabou quando, por disputas de protagonismo, o que antes era dito, sugerido ou recusado no recato dos encontros do PR e do PM já não têm a mesma receptividade de ambas partes.

Diz-se muitas vezes que em sistemas de governo nos quais o presidente da república é eleito directamente por sufrágio universal, mas não governa e o governo que ele nomeia só é politicamente responsável perante o parlamento, a relação entre o PR e o PM é de geometria variável. A existência de uma maioria absoluta a apoiar o governo limita o poder de influenciação do PR enquanto governos minoritários e mesmo coligações mais ou menos frágeis abrem outras possibilidades de intervenção e protagonismo presidencial. A disputa em Portugal nos termos em que se verificou, aconteceu praticamente após um ano de governo maioritário depois de seis anos de governos minoritários. O mais normal é que mais tarde ou mais cedo houvesse um momento de choque seguido de reajuste.

Em Cabo Verde onde sempre houve governos maioritários seria de esperar que as bases da relação entre os dois órgãos de soberania já estivessem normalizadas. Na ausência de governos minoritários e sem os, quase livres, poderes de dissolução do parlamento e de demissão do governo que o PR português detém, o mais normal é que em Cabo Verde se tivesse refinado essa magistratura discreta, mas eficaz que daria para melhores relações entre os dois órgãos de soberania. Mesmo a coexistência de presidente da república e de governo oriundos de diferentes origens partidárias até agora não se tinha mostrado propício para tensões fora do ordinário. A disputa de protagonismo actual sai do padrão talvez porque equilíbrios foram percepcionados como tendo sido rompidos devido a sucessivas crises que afligiram o país e novas realidades políticas, económicas e sociais que se impuseram.

De facto, outras razões para além das normais tensões dos órgãos de soberania poderão estar a alimentar as disputas de protagonismo tendo em conta os seus efeitos nas confrontações eleitorais futuras. Em Portugal, a perspectiva da chamada bazuca financeira, ou seja, o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) permitiu ao presidente da república justificar mesmo no novo quadro de um governo maioritário um seguimento de perto das políticas da governação na base que é fundamental para o país aplicar bem os fundos comunitários. É convicção geral que do bom uso que se fizer dos investimentos do PRR dependerá a possibilidade de Portugal inflectir a actual tendência do país de continuar a ser ultrapassado pelos novos membros da União Europeia e criar as bases da prosperidade futura. Com o PR a predispor-se para garantir que isso será feito já joga um importante papel político para os sectores de opinião que consideram que o actual governo não é dado a reformas de fundo e é mais virado para políticas com foco principal em manter uma base social de apoio ao poder actual e ganhar eleições.

Em Cabo Verde, a disputa já não está tanto a traduzir visões diferentes do futuro do país, mas antes os interesses de sectores distintos de uma classe política que já toda ela parece ter assumido como estratégia de desenvolvimento algo que não se distingue muito da agenda das Nações Unidas e das organizações multilaterais. O mais normal seria que houvesse a maior tranquilidade na relação entre os dois órgãos de soberania considerando que o actual PR está num primeiro mandato e lida com um governo maioritário. As coisas mudam quando, em momentos cruciais como eleição da Mesa da Assembleia Nacional, aprovação do Programa do Governo e Orçamento do Estado, o governo sinaliza fragilidades na sua maioria parlamentar.

Perante isso, o PR envolve-se em contactos com os partidos para garantir estabilidade e aprovação de instrumentos fundamentais como o Orçamento do Estado (2021) e ganha um protagonismo inesperado. Mas, como foi primeiro-ministro durante quinze anos e deixou de o ser há pouco mais de seis anos, qualquer protagonismo crítico mais pronunciado, particularmente incindindo sobre políticas governativas, imediatamente são tomadas como críticas que só poderiam vir da oposição. Daí é um passo para o PR ser visto como chefe da oposição tanto pelo partido no governo como também pela própria oposição partidária que acaba por sincronizar as suas intervenções no parlamento e na comunicação social com os seus pronunciamentos.

A disputa de protagonismo não só vai fazer escola como já cá está e com tonalidades complicadas porque, ao se tomar o PR como chefe da oposição, esvazia-se no processo o papel central de árbitro e moderador do sistema político e perdem-se as vantagens que podiam advir de uma magistratura de influência exercida por uma presidência suprapartidária. Mais complicado fica o sistema político que já vem sofrendo das ineficiências criadas pelas disputas de protagonismo entre o governo e as câmaras municipais e que agora se vê juntar a disputa com o presidente da república.

Quando o país precisa focar para fazer face a sucessivas crises e sabe-se que existem riscos expressivos que podem travar a recuperação, como deixou bem claro a última missão do FMI, é fundamental que todos compreendam que o mandato que receberam nas eleições democráticas é para servir o povo e o país e não para se servirem. Ninguém quer continuar a assistir à exibição de egos e ao cortejo de vaidades em que muito da vida política no país se transformou. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1119 de 10 de Maio de 2023.

segunda-feira, maio 08, 2023

Pela liberdade de imprensa

 

Comemora-se, hoje, 3 de Maio, o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, uma data que deve focar a atenção de todos no que há de mais essencial para se garantir liberdade e democracia. Ter essa garantia significa que, como disse James Madison, “o povo não será privado ou abreviado de seu direito de falar ou publicar seus sentimentos” e que não será coarctada “a liberdade de criticar e se opor ao governo”, como bem lembrou George Orwell.

Também significa estar-se ciente, na linha de Albert Camus, que “a imprensa livre pode ser boa ou má, mas que sem liberdade não será outra coisa senão má” e que, por isso há que, a exemplo de Alexis de Tocqueville, “a amar por consideração aos males que ela evita muito mais do que pelo bem que faz”.

Cabo Verde actualmente na posição 36 entre 188 países no ranking (2022) dos Repórteres sem Fronteiras (RSF) é, segundo aquela organização, um país onde os profissionais do jornalismo podem exercer livremente, mas que a autocensura é generalizada. A contradição é explicada pela posição hegemónica dos órgãos do sector público no cômputo geral da comunicação social, pelo seu peso excessivo sobre o mercado publicitário e pelas vantagens que oferece na contratação de jornalistas. Acresce-se ainda “uma cultura de sigilo e as restrições do Estado no acesso a informações do interesse público.

O fenómeno da autocensura tem sido identificado pelos RFS ao longo de décadas e nos diferentes governos, não desaparecendo com a alternância dos partidos no poder. Provavelmente será mais complexo do que parece e poderá estar a revelar um fenómeno mais geral marcado pela fragilidade da sociedade civil, por uma cultura de dependência, pela falta pensamento crítico e autónomo e por uma relação com a verdade e a realidade dos factos baseada na conveniência do momento. Ou talvez traduza o medo colectivo reminiscente de um medo de outrora, mas que perdura, de, parafraseando John Kennedy, deixar o povo julgar a verdade e a falsidade em um mercado aberto de ideias, privilegiando pelo contrário narrativas ideológicas polarizantes da sociedade e promovendo tabus.

O ambiente de crispação não só política como institucional e cultural que daí resulta serve como forte inibidor da busca pela verdade que a liberdade de expressão, de informar e de imprensa devia proporcionar. Nos debates na esfera pública nota-se como as partes se quedam nas suas posições rígidas, ou como negam factos evidentes ou, de forma aparentemente contraditória, como às vezes são cúmplices na secundarização ou mesmo na ocultação de elementos que poderiam clarificar uma situação. Prefere-se eternizar o conflito colocando a identificação e lealdade partidária à frente do interesse público. E para preencher ou explicar o que não é dito, especula-se quanto aos interesses em jogo e insinua-se que há corrupção.

Não é de estranhar que os profissionais da comunicação social como, aliás, os servidores públicos, académicos e grupos de interesses empresariais, profissionais e outros vejam um tal ambiente quase como um campo minado que se deve atravessar com muito cuidado. Compreende-se assim por que a autocensura não acontece apenas entre os jornalistas e por que paralelamente o stock de cinismo na comunidade cresce e a confiança nas pessoas e nas instituições cai na mesma proporção. As declarações da presidente da Autoridade Reguladora para a Comunicação Social (ARC), que atribuiu a um “conflito que que opôs os órgãos e jornalistas ao poder judicial” a queda de Cabo Verde, em 2022, de 9 pontos no ranking da Liberdade de Imprensa dos Repórteres sem Fronteiras, podem ser interpretadas como um alerta contra esse estado de coisas.

A reacção do Procurador Geral da República (PGR) foi considerar inadmissível a posição da ARC, um órgão colegial eleito por uma maioria qualificada de dois terços dos deputados e que tem, como uma das suas competências constitucionalmente estabelecidas, garantir o direito à informação e à liberdade de imprensa. Alguma cortesia institucional deveria ser esperada na interacção entre os dois órgãos públicos. É verdade que ninguém está acima da Lei e que o Ministério Público deve ter todas as condições para investigar crimes e esclarecer situações que causam apreensão e angústia na opinião pública. Difícil fica porém compreender que da investigação de um caso de morte de um indivíduo, crivado de balas segundo o PGR numa entrevista à TCV no dia 2 de Fevereiro de 2022 num encontro com forças policiais, só terminada oito anos depois, se tenha concluído pelo arquivamento do processo por se ter encontrado “prova bastante” de legítima defesa enquanto jornalistas e órgãos de comunicação são constituídos arguidos por “desobediência qualificada” por terem trazido o caso à ribalta depois de tantos anos.

Casos de violência aparentemente desproporcional envolvendo polícias e cidadãos são motivo de preocupação em todo o mundo. O caso de George Floyd e de outros similares envolvendo inocentes, mas também alegados criminosos quando vêm a público, na maior parte das vezes por espectadores ou investigação jornalística, obrigam a resposta rápida das autoridades para tranquilizar a opinião pública e reforçar a confiança da população que a polícia procura sempre agir com sentido de proporcionalidade. Suspendem os policiais envolvidos, fazem inquéritos internos, pedem auditoria externa em certos casos, informam o público das conclusões e das medidas para melhorar práticas. Também há casos que vão para os tribunais e daí resultam absolvições, mas também condenações.

Não se pode é deixar arrastar situações do género por anos seguidos sem qualquer informação, sem sinais de medidas tomadas para mudar práticas e sem assunção de responsabilidade. Mostra que o Estado de Direito funciona sempre que vem a público situações que também causaram apreensão na opinião pública como foi o caso do polícia morto alegadamente pelo colega que já foi julgado, mas, de acordo com o Santiago Magazine, vai-se repetir o julgamento na primeira instância. Ter-se-ia, segundo o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, cometido um erro notório na análise das provas. É reconfortante ver o sistema a funcionar independentemente dos resultados.

Mas quando não funciona ou se mostra autista é fundamental que a comunicação social e seus profissionais sejam ousados e não se deixem amarrar pela autocensura, nem por receio de acções judiciais. Sabe-se que a Liberdade de expressão e de informação é a rainha das liberdades, mas não é absoluta. Aos tribunais cabe fazer caso a caso a devida ponderação dos vários direitos. A liberdade de imprensa é prejudicada sempre que há a percepção de que se está a agir enviesadamente em relação ao mensageiro quando, no que respeita à mensagem, não se mostra urgência em que ela chegue, clara e completa, ao público, para tranquilidade de todos e maior confiança nas instituições.

Melhorar Cabo Verde no ranking da liberdade de imprensa passa por diminuir o peso do sector público na comunicação social e por desanuviar o ambiente de crispação no país ao mesmo tempo que se perde o medo de deixar o povo julgar a verdade e a falsidade em um mercado aberto. É nesse sentidode que todos devem trabalhar para garantir liberdade e democracia. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1118 de 3 de Maio de 2023.

segunda-feira, maio 01, 2023

Erros de cálculo

 

A semana passada foi terrível para o governo. A precedê-la havia o anúncio da assinatura de uma adenda ao contrato de concessão de transportes marítimos que finalmente viria colocar o serviço no caminho certo. A realidade que se seguiu à publicação e divulgação do novo acordo gerou descontentamento generalizado e ameaça de caos no sector. Em particular na rota S.Vicente/ Santo Antão o impacto das novas tarifas foi estrondoso e levou a reacções fortes da população, dos operadores e das forças da oposição.

Não só ficou clara a importância do tráfego marítimo na vida das duas ilhas que realmente constituem uma região económica como também se pôde constatar que o não reconhecimento dessa realidade faz cometer “erros de cálculo” que custam caro às pessoas e à economia e desgastam politicamente o governo.

Somando isso a outros “erros de cálculo” na adequação das opções nas linhas marítimas que ligam as ilhas compreende-se o fogo cruzado intenso em que o governo repentinamente se viu exposto depois da assinatura formal do acordo por dois ministros e pela empresa concessionária, quando a expectativa era outra e muito diferente. O rápido marcha-atrás nas medidas tomadas poderá servir para conter o desgaste político, mas não vai resolver os problemas de fundo. Claramente que há problemas com o modelo de concessão escolhido e parece não haver a melhor articulação entre as medidas de política e a dinâmica económica das ilhas como ficou aparente na ligação S.Vicente/Santo Antão. Também falta clarificar o que pode ser reservado a outros operadores, qual o futuro para a armação nacional e que papel para o Estado que até já assumiu comprar quatro barcos num futuro próximo. Equacionar e agir em relação a tudo isto não vai ser fácil, considerando o nível de descrédito na opinião pública que os últimos acontecimentos acabaram por revelar.

Cabo Verde tem constrangimentos incontornáveis como são a sua condição de arquipélago com 9 ilhas relativamente distantes umas das outras e condições de navigabilidade em oceano aberto muitas vezes severas. Acrescentando a isso a pequena população e a fraca estrutura produtiva do país dificilmente se poderá contar com a possibilidade de rentabilizar os transportes marítimos num sistema de serviço público regular e cobrando tarifas acessíveis sem uma forte subsidiação do Estado. É o que acontece nos outros arquipélagos da Macaronésia como, por exemplo, nos Açores onde subsídios para transportes aéreos chegam aos 140 milhões de euros e para os transportes marítimos atingem 9 a 10 milhões de euros. No país essa realidade não é assumida clara e frontalmente.

Governos sucessivos e partidos que se alternam na oposição esforçam-se por escamotear a realidade ou com subsidiação intransparente ou com afirmações duvidosas que tudo depende de políticas certas e uma boa gestão. Alimentam-se ilusões que as ilhas podem ter barcos a aportar todos os dias ou até que barcos podem pernoitar nas mais isoladas para responder a eventuais situações de emergência. Em consequência, indo de expediente em expediente, para responder a situações que vão surgindo de transporte marítimo de passageiros, particularmente nos últimos tempos em que a circulação aérea ficou mais difícil e mais cara, aumentam-se as ineficiências e naturalmente os custos de operação.

A par disso cresce o descontentamento do público e também as denúncias politicamente motivadas que por sua vez levam à intervenção directa do governo. Intervenções essas que geralmente criam mais ineficiências e custos, agravando o círculo vicioso existente. O resultado disso vê-se no montante de subsidiação indemnizatória que se paga anualmente que por duas vezes (2020-2022) ultrapassou um milhão de contos. A intenção do governo em financiar a compra de quatro barcos para quebrar o círculo vicioso, quando originalmente previa-se que seria a empresa concessionária a adquirir barcos num total de cinco, dá uma ideia da espiral descendente que foi traçada seguindo por esse caminho. Devia ser evidente que se vai tarde na reflexão sobre como reverter uma situação que tende a ficar pior porque se acumulam ineficiências e seus custos e apresenta-se cada vez mais complexa porque é mais profundo o descrédito das populações. A tentação é, como se vê também nos transportes aéreos, de seguir pelos mesmos caminhos adoptando estratégias desenhadas antes das crises e, não obstante fiascos como da associação com a Icelandair, esperar que realmente “desta vez” vai dar certo. É a corrida atrás de ilusões.

A semana terrível do governo cabo-verdiano com a questão dos transportes marítimos tem similaridades com os tempos difíceis que governos de outras democracias vêm passando. Há o exemplo mais recente dos problemas em Portugal da TAP, das pensões na França e das crises sucessivas de governos no Reino Unido ou das tribulações na política americana. As crises múltiplas dos últimos anos acabaram por revelar o quão intratáveis se tornaram problemas como transporte, habitação, aumentos do custo de vida, em particular de alimentação, acesso a serviços de saúde e falhas no sistema educativo. Com o enfraquecimento das instituições, com o maior “ruído” das redes sociais e fragilidades do sistema de partidos e da democracia representativa, a tarefa dos governos democráticos tem-se complicado extraordinariamente.

A opção pela política-espectáculo, a tentação de políticos se comportarem como celebridades e a preferência por medidas de política populistas têm conjugado para tornar ainda pior a situação mesmo quando por algum tempo essa via pareça ser a melhor para conquistar e se manter no poder. Já o que vem de arrasto, que são as exigências crescentes de transparência, o escrutínio apertado em bom número de casos e a tensão permanente criada via redes sociais, que muitas vezes parece o “vociferar da turba”, tendem, por seu lado, a fragilizar a governação, fixando-a na gestão do momento, sem a devida ponderação na realização de objectivos mais alargados e mais virada para suscitar paixões e afectos. É o terreno propício para, de facto, não se cumprirem mandatos, no sentido de se fazer as reformas de fundo que credibilizam instituições, reforçam o capital humano e criam condições para aumentar a competitividade e produtividade. Pelo contrário, enfatiza a concentração em como manter-se no poder e procurar reeleição.

Romper com esse círculo vicioso significa entre outras coisas agir activamente para que os problemas não se acumulem, a dívida pública não atinja valores insustentáveis e a frustração e o ressentimento não se transformem no combustível que alimenta a máquina política no país. Para isso é fundamental governar com verdade, com realismo e pragmatismo e ter presente o tempo do mandato para desenvolver estratégias, mobilizar vontades e encadear medidas políticas de forma a atingir ao fim dos cinco anos os objectivos que se preconizou e deixar alicerces seguros para continuação da construção do futuro.

Hoje fala-se muito na pressão das redes sociais que não deixam que se concentre com tempo, ponderação e sabedoria na melhor forma de resolver os problemas do país. É, porém, responsabilidade dos governantes não se renderem às forças que procuraram tornar inoperacional a democracia representativa. Aliás, seria bom que os activistas nas redes sociais estivessem cientes que essa forma de participação só é possível nas democracias liberais porque nelas é que não se corta a internet e não se constrói sistemas de segurança na internet (firewall) para bloquear conteúdos considerados inaceitáveis pelo Estado.

No meio das pressões que têm que ser feitas, opiniões que devem ser emitidas e chamadas à acção que podem ser feitas via internet, há que considerar que tudo isso só faz sentido se é para garantir a todos “segurança, oportunidade, prosperidade e dignidade”. Como diz Martin Wolf no seu último livro “A crise do capitalismo democrático” esses devem ser os objectivos fundamentais de toda a governação. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1117 de 26 de Abril de 2023.

segunda-feira, abril 24, 2023

Basta de tiro no pé

 

A Assembleia Nacional deu como aprovado na generalidade, no dia 14 de Abril, o projecto de lei que classifica a língua portuguesa como património cultural e imaterial de Cabo Verde com 27 votos a favor e 26 contra. A nota justificativa que acompanha o projecto lei começa por apresentar a língua portuguesa como parte integrante e estruturante da história, da sociedade e da identidade cabo-verdiana para depois concluir que não se pode ficar “indiferente a sinais de fadiga” na sua utilização que vão em contramão com a valorização que devia merecer como língua de comunicação interna e língua internacional do Estado de Cabo Verde.

O projecto de lei ainda terá que ser aprovado na especialidade e na globalidade antes de ser enviado ao presidente da república para promulgação. A controvérsia que se instalou sobre a maioria exigida na deliberação provavelmente não vai desaparecer e poderá ressurgir num outro momento do processo legislativo. De facto, de acordo com o nº 2 do artigo 161º da Constituição e 131º do regimento da AN os projectos e propostas de lei são aprovados por maioria absoluta dos deputados presentes. A aprovação por maioria simples, ou seja, sem contar os votos nulos, em branco e as abstenções como determina o nº 3 do artigo 121º da Constituição é, segundo os constitucionalistas, apenas um princípio subsidiário que cede quando a Constituição dispõe de forma diferente e determina que a maioria é absoluta, é de dois terços ou de quatro quintos. A prática parlamentar de sempre tem sido essa e a maioria simples só tem sido adoptada nas resoluções e mesmo nelas só quando a Constituição não estipula uma outra maioria.

De qualquer forma, a declaração do presidente da assembleia nacional a dar por aprovado o projecto de lei já foi de grande significado político. O teor do debate havido e as opções de voto dos deputados revelou o nível de polarização político-ideológica que a questão da língua portuguesa provoca. O ministro da cultura que publicamente se tinha oposto à iniciativa do projecto de lei no debate parlamentar não se fez presente nem o governo manifestou apoio à sua posição. O MpD, partido que suporta o governo, votou maioritariamente no projecto de lei juntamente com a maioria dos deputados da UCID enquanto no PAICV, pelo contrário, só uma pequena minoria foi favorável. Considerando o desenlace, ministros antes de reagirem desabridamente a iniciativas dos deputados e em particular da maioria parlamentar deviam ter em devida conta que, além de responderem perante o primeiro-ministro, são politicamente responsáveis perante o parlamento.

Ao longo do debate ficou evidente a quase impossibilidade de se discutir o estado da língua portuguesa e a necessidade de se elevar o seu nível de proficiência como condição para a cidadania plena, excelência no sistema de ensino, acesso ao conhecimento científico e da história e literatura de Cabo Verde e comunicação efectiva no plano internacional. O contraditório a partir da posição que o crioulo está a ser vítima e que não é suficientemente dignificada como língua materna efectivamente bloqueia o debate e acaba por revelar a polarização típica que se cria nas guerras culturais e identitárias da actualidade.

De facto, não pode ser considerada língua inferior aquela que pode ser utilizada pelo presidente da república, pelos deputados e em qualquer função do Estado, actividade social ou cultural como todos os dias se assiste no país através dos órgãos de comunicação social. O crioulo só tem limitações no seu uso porque ainda não se acordou numa forma estandardizada e na sua expressão escrita. Por isso é que não é língua de ensino, o boletim oficial e outros documentos do Estado não têm uma versão em crioulo nem tão pouco contratos e sentenças judiciais são redigidos em crioulo. A falta de uma versão mais formal da língua também prejudica a comunicação oral em contextos como debates parlamentares, cerimónias oficiais e apresentação de trabalhos académicos que, por razões de protocolo, exigem linguagem mais sofisticada e precisa do que a fala coloquial. O sentimento geral que há alguma degradação nos trabalhos parlamentares provavelmente não estará alheio ao crescente uso do crioulo nos debates sem a formalidade que seria de exigir na linguagem utilizada num órgão de soberania.

Sem ter um padrão do crioulo escrito e aceite pela comunidade nacional não há como ultrapassar a situação actual. Oficializar a língua não resolve o problema: criam-se obrigações custosas para o Estado de disponibilizar informação e serviços em crioulo sem ter os recursos para isso e na ausência de uma língua padronizada. Luxemburgo com todos os seus recursos levou décadas, com tentativas falhadas pelo meio, a padronizar o luxemburguês, mas o nível de utilização na sua forma escrita continua baixo. Ainda a melhor solução é procurar cumprir o comando constitucional que se deve continuar a criar as condições para ter paridade com a língua portuguesa.

Entrementes devia-se evitar criar um ambiente de conflito entre as duas línguas que arraste consigo sentimentos de vitimização, ressentimento e rejeição da língua portuguesa que interferem directamente com a vontade de fazer a sua aprendizagem adequada. Insistir na via que já demonstrou num primeiro embate não ter maioria na assembleia representativa dos cabo-verdianos só estará a prejudicar o presente e o futuro do país pela má vontade que cria nos alunos em relação à língua essencial para aprendizagem e conhecimento. De facto, vai-se para escola fundamentalmente para aprender ler e escrever. Com capacidade de leitura pode-se resolver problemas de matemática, aprender ciências, aceder a toda a literatura publicada e ser um produtor e transmissor de conhecimento. Não sendo uma língua com escrita padronizada é evidente que o crioulo não pode ser ainda uma língua de ensino.

As crianças em geral aprendem as suas respectivas línguas logo nos seus primeiros anos de vida. Depois na escola vão aprender a ler e a escrever e comunicarem-se em linguagem formal e estandardizada. A iniciação na literatura começa também aí. Se a língua materna da criança não é uma língua escrita e como no caso de Cabo Verde é a língua falada por todos e em quase todas as ocasiões, a escola tem um papel suplementar de ensinar a língua do ensino e do conhecimento com um nível de proficiência que garanta sucesso na aprendizagem a todas crianças que nela ingressa. É uma enorme responsabilidade que recai sobre os professores e os pais, mas que a sociedade no seu todo deve assumir. A criação de um ambiente propício para todas as crianças e jovens aprenderem a língua é essencial para garantirem no presente o seu sucesso escolar e depois profissional e também fundamental para o exercício de uma cidadania plena.

Do governo exige-se visão e liderança para que os enormes investimentos feitos na educação não sejam desperdiçados e nem o futuro hipotecado porque não se soube criar a motivação suficiente para elevar o nível de capital humano no país, aumentar competitividade e a produtividade e tornar o país mais atractivo para o investimento externo. Aos jovens não se pode deixar a única opção de querer emigrar para trabalhar em sectores de baixo salário. E tudo porque se permitiu que questiúnculas ideológicas e guerras culturais atrapalhassem o maior investimento que o país pode fazer que é dar uma educação de qualidade às suas gentes.

Imagine-se onde estariam a Singapura com os seus grupos étnicos e as Maurícias com sua história de colónia francesa e depois inglesa se tivessem ficado enredados em questões identitárias que prejudicasse a assunção respectivamente do inglês e do francês e inglês como língua oficial e do ensino. Quase cinquenta anos volvidos após a independência, é preciso que Cabo Verde se compenetre que não tem todo o tempo do mundo para tomar o caminho certo. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1116 de 19 de Abril de 2023.

segunda-feira, abril 17, 2023

Evitar o cinismo institucional

 

Na sessão da Assembleia Nacional que começa hoje, dia 12 de Abril, vai-se avançar com a proposta de eleição dos quatro membros do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) para completar o que deveria ser a total renovação do órgão de gestão da magistratura judicial. Em Novembro último, os juízes tinham eleito os seus quatro representantes e logo no início de Dezembro o presidente da república nomeou um juiz para completar o número de cinco magistrados judiciais entre os nove membros do CSMJ.

A Assembleia Nacional falhara em eleger os seus representantes e, apesar de não se ter verificado a renovação completa do órgão. optou-se por ir à frente com a eleição do seu presidente. Agora, ao mesmo tempo que se procura colmatar a deficiência com a nova eleição na Assembleia Nacional dos restantes quatro membros não magistrados, está-se a avançar com uma proposta de lei de alteração da orgânica do CSMJ que curiosamente vai alterar as regras do seu funcionamento num sentido no mínimo desconcertante.

A actual lei orgânica prevê um cargo de vice-presidente do CSMJ que coadjuva o presidente e que deve ser ocupado por um membro não magistrado eleito pelo órgão. Algo similar acontece no conselho superior da magistratura da Itália, que é considerado por vários autores como o modelo desses órgãos de gestão da magistratura judicial, com o objectivo de garantir ao público transparência, accountability e prestação de contas. O cargo faz, pois, todo o sentido, mas até os dias de hoje, mais de dez anos depois de a lei ter sido publicada, não foi preenchido. Nem mesmo depois do recurso feito para contornar essa norma ter sido considerado improcedente pelo Tribunal Constitucional. Um acórdão datado de 2016 do TC considerou unanimemente que não tinha razão quem questionou a constitucionalidade da norma que estabeleceu que o vice-presidente deve ser escolhido de entre os membros não-magistrados.

Causa, pois, alguma estranheza que numa mudança de 180º e aparentemente em resposta ao acórdão do TC, a proposta de lei que está para discussão e aprovação na Assembleia Nacional, vá determinar que o vice-presidente seja magistrado judicial. Mais, para além de essa alteração aumentar o peso e a influência dos magistrados no conselho também constituirá um reforço do presidente do CSMJ que não só passará a propor para eleição o candidato a vice-presidente como também poderá pedir sua destituição a todo o tempo (nº 4 do artigo 28º da proposta de lei). A discussão sobre o relativo peso dos magistrados e não-magistrados nos conselhos superiores da magistratura não é coisa inócua ou sem importância. A composição diversa desses órgãos é uma questão central para se garantir, por um lado, a autonomia e a independência dos juízes e, por outro, segundo os constitucionalistas, “se atenuar a ausência de legitimação democrática dos juízes enquanto titulares de órgãos de soberania”.

Como essa diversidade se deverá manifestar para o órgão e em que proporção se elege ou se nomeia os seus membros varia com as diferentes soluções encontradas nas democracias. Mesmo no seio de cada uma delas, a configuração tende a evoluir com o tempo. Em Cabo Verde também houve evolução quanto à maioria numérica no CSMJ. Inicialmente, na Constituição de 1992, os indicados pelos órgãos do poder político (três eleitos pela assembleia nacional e os dois nomeados pelo presidente da república) eram maioritários em relação aos magistrados judiciais (2 eleitos pelos juízes: o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e o Inspector Superior Judicial). Na prática a opção do PR em nomear dois juízes restituía a maioria aos magistrados. Na revisão constitucional de 1999 clarificou-se a intenção do legislador constituinte e estabeleceu-se que os dois membros de nomeação presidencial não podiam ser magistrados ou advogados. Na última revisão de 2010 outra vez, desta feita formalmente, foi invertida a maioria passando a ser 5-4 a favor dos magistrados.

Parafraseando o dito que pessoas investidas com cargos tendem a apegar-se como tenazes ao poder e que esse apego as faz estender o seu poder, aumentar seus direitos e ampliar a esfera da sua própria autoridade, o mais natural é que não se fique por aí. Com as alterações na orgânica do CSMJ apresentadas para discussão e aprovação no parlamento, a proposta de lei em vários artigos dá sinal que se vai no sentido de menor influência dos membros não-magistrados e de maior poder do presidente que também passa a ter voto de qualidade (nº 3 do artigo 34º da proposta de lei).

A questão que se coloca é por que então elegê-los se a capacidade de influenciação na gestão da magistratura judicial é reduzida ao mínimo. Diversidade devia ser a chave para legitimação democrática e contenção de tendências corporativas. O sector da justiça em particular tem estado sob escrutínio mais apertado dos cidadãos e todos querem ver resultados da renovação dos seus órgãos de autogoverno. Se os efeitos não se fazem sentir por limitações várias, podia-se poupar nos custos e evitar os efeitos de fachada que alimentam o cinismo do público em relação às instituições.

Cabo Verde tem várias entidades administrativas independentes, umas nomeadas pelo governo depois de audição parlamentar e outras eleitas pela Assembleia Nacional por maiorias qualificadas de dois terços dos deputados enquanto órgãos externos. O parlamento na sessão a iniciar esta quarta-feira vai eleger candidatos a alguns cargos exteriores e espera-se que renove o mais cedo possível todos os que estão com mandato há muito terminado. O objectivo desejado é que no quadro institucional autónomo e acima das disputas políticas se assegure um ambiente salutar para todo o sistema político que prime pelo cumprimento das regras e por uma cultura de transparência, responsabilização e prestação de contas. Também que salvaguarde os direitos dos indivíduos e os direitos dos consumidores e mantenha funcional uma ordem económica e social facilitadora da iniciativa e da inovação e potenciadora da energia e perseverança de indivíduos e empresas.

São entidades que, pela sua natureza, devem ser competentes, eficazes e afirmativas da sua autonomia em relação aos outros poderes, em particular os económicos e os políticos. Todo o processo de escolha e nomeação dos seus titulares deveria ter isso em devida consideração. Também pela sua natureza e exigências de funcionamento representam custos significativos e na sociedade há a expectativa de um retorno adequado desse investimento. Por isso, não podem ser simplesmente cargos de predilecção de quem só quer privilégios especiais ou moeda de troca de quem quer dispensar favores pessoais ou partidários, nem tão pouco serem escamoteados nos propósitos por que foram criados. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1115 de 12 de Abril de 2023.

segunda-feira, abril 10, 2023

Cabo Verde de luto

 

A tragédia na Serra da Malagueta no domingo, dia 3 de Abril, deixou o país em estado de choque. Um acidente de viação levou à morte inesperada de oito jovens militares e um técnico agrário sucumbiu depois de ter sido atingido por rochas soltas. Já se tinham passado dois dias que militares em cooperação com as forças locais da protecção civil estavam conjuntamente com a população e guardas florestais a dar combate às chamas que ameaçavam alastrar-se por todo o perímetro florestal, a pôr em perigo as pessoas, os seus bens e o gado. Foi quando, apesar do tempo ventoso e seco, praticamente se tinha controlado o incêndio é que a fatalidade aconteceu.

Ainda não se conhecem as reais causas do acidente, mas segundo as declarações oficiais, parecem estar ligados a problemas mecânicos da viatura, não obstante ser relativamente nova (2021) e o condutor ser experiente. A concentração de homens e recursos, esforços que torna a missão militar eficaz, cria a possibilidade de em caso de acidente as consequências serem realmente desastrosas. Acontece em todos os exércitos, grandes ou pequenos, sofisticados ou simples. Daí a importância de se ter capacidade de organização e logística adequada e, quando algo acontece, fazer os inquéritos rigorosos para se saber das reais causas, dar a conhecer os resultados, tirar as devidas ilações e promover as melhores práticas.

O que não se pode apagar é a enorme tristeza que envolve toda a gente quando vidas são inesperadamente ceifadas nessas circunstâncias. Eram militares, mas não estavam num teatro de guerra e a probabilidade de morte era longínqua. O serviço, que com entusiamo e generosidade prestavam à comunidade, não lhes devia ter custado a vida. A profunda consternação em que o país caiu, vem dessa constatação simples. Deve ser total e genuína a solidariedade de toda a nação para com os familiares e amigos, os companheiros da tropa e com a instituição nacional única de cidadania que são as Forças Armadas. Compete aos mais altos representantes transmitir isso sem ambiguidade ou aproveitamento político.

O luto nacional deve servir para os homenagear, juntar-se às famílias neste momento de dor e incentivar as forças armadas, os homens e mulheres nas suas fileiras, os profissionais e os conscritos, a continuar a prestar o serviço que o país deles espera. Como sempre, o país quer contar com a prontidão das tropas em todos os momentos de dificuldades, sejam eles de pandemia, erupção vulcânica, busca e salvamento no mar e incêndios florestais, desastres ambientais e fiscalização dos mares. Nestes dias de tristeza colectiva a última coisa que se devia ver repetido é o ambiente competitivo que opõe actores políticos e partidos para saber quem aparece mais, quem foi o primeiro a propor, quem está mais compungido pela dor, etc, etc.

Infelizmente, a tentação é grande e com uma ponta de cinismo de uns e a hipocrisia de outros lá se vai perdendo mais uma oportunidade de a nação mostrar-se una e mais forte para continuar a ultrapassar adversidades e enfrentar os desafios da democracia, da modernidade e do desenvolvimento. Os tempos actuais com as suas incertezas quanto ao futuro e as múltiplas crises que se retroalimentam deviam levar ao reforço do que une a comunidade, tanto ao nível local como ao nível nacional, para se poder ser livre e plural e usar o dissenso e encontrar as melhoras soluções para o país. A pandemia da covid-19 pela sua natureza de ameaça quase existencial podia talvez ter desencadeado esse processo de aproximar todos.

Mas, aparentemente, foram mais poderosas as forças centrífugas que estão a trabalhar para reforçar o individualismo em detrimento da comunidade, para preferir o protagonismo pessoal e não o serviço público e optar pelo populismo com prejuízo para a credibilidade das instituições e o primado da lei. O desgaste político e social é real e visível na forma como é tratado tudo o que diz respeito às câmaras municipais, ao parlamento, ao governo, aos tribunais e ao presidente da república. Impera partidarismos, clubismos e paixões pessoais em detrimento do que poderia ser uma procura da verdade, das melhores vias para resolver problemas e da reafirmação de um consenso sobre questões fundamentais que reafirmem a comunidade política-nacional como tal. As últimas sondagens do Afrobarómetro dão conta desse desgaste institucional com reflexo na confiança, no civismo e na capacidade de mobilização da vontade nacional para construir um futuro com mais prosperidade.

É interessante que nas sondagens as Forças Armadas é a instituição de maior confiança dos caboverdianos. O conhecimento deste facto devia levar a que a pretexto das dificuldades do momento não fossem submetidas às disputas habituais entre os diferentes actores políticos e, em consequência, ao tipo de desgaste que outras instituições da república têm sido alvo nos últimos tempos. Ninguém ganhará com isso e no fim do dia só ficarão mais frágeis as ligações que ligam todos nós.

Lamentavelmente parece que os tempos não são de reforço de uma identidade comum e de procura de maior cooperação entre as pessoas. A preferência aparentemente é, como disse Alexander Hamilton nos Federalist Papers para se criar uma “torrente de paixões furiosas e malignas”. Contraria isso o exemplo daqueles militares que até ao termo das suas vidas procuraram generosamente servir a sua comunidade e as suas gentes.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1114 de 5 de Abril de 2023

segunda-feira, abril 03, 2023

Lideranças transformacionais precisam-se

 

O tema liderança recebeu grande cobertura mediática na semana passada. Foi tema de uma cimeira que contou com comunicações do presidente da república e do primeiro-ministro para além de outras personalidades, de masterclasses e tertúlias. Compreende-se que a questão esteja em voga em todo o mundo com todas as transformações em curso a começar por mudanças tectónicas na geopolítica mundial e incluindo alterações climáticas, transição energética e digitalização acelerada. Devia ser o momento ideal para o surgimento de líderes que, parafraseando o PR, fossem inteligentes, visionários e catalisadores de processos. Infelizmente, não tem sido assim na generalidade dos países e pior ainda nos países menos desenvolvidos onde mais falta fazem.

A atenção do mundo tem estado nos últimos dias focada nas medidas a tomar para evitar que dificuldades no sector bancário levem à contaminação sistémica de todo o sector financeiro e eventual diminuição do crédito disponível. O aumento rápido das taxas de juro teve efeito inesperado que vem repercutindo sobre toda a economia em especial sobre o sector bancário. Do FMI e do BCE já vieram avisos sobre o perigo que representa para todos e que é agravado, no chamado Sul Global, pela dívida acumulada por muitos países. Ou seja, às crises existentes e ainda não ultrapassadas como é a luta para baixar a inflação está-se a somar mais uma outra que vai tornar mais difícil combatê-la sem induzir uma travagem significativa no crescimento global. E tudo isso acontece quando o emergente quadro geopolítico de fundo, marcado pela guerra na Ucrânia e pelas alianças político-militares antagónicas em ascensão, vem contribuindo para exacerbar os efeitos dessas crises. A recente visita do presidente chinês a Moscovo e em simultâneo da do primeiro-ministro japonês a Kiev e a próxima reunião da NATO incluindo países do Indo-Pacífico são elucidativas a esse respeito.

Navegar neste mar de incertezas, imprevistos e novos desafios exige um nível de liderança que, como diz Brian Klaas, autor do livro “Corruptíveis”, devia ser fornecida por gente motivada pelo serviço público, generosidade e altruísmo. Na realidade, quem se tem interessado em exercer poder já é centrado na sua própria pessoa, tem como primordial a ambição do poder e toma como bitola a sua conveniência na avaliação das opções , escamoteando a verdade e os factos. É evidente que nessas condições dificilmente se vai conseguir produzir liderança transformacional, fazer reformas e mudar atitudes que realmente podem contar para a criação de riqueza e sua redistribuição de forma a haver ganhos para todos e não excluir ninguém. Manter-se no poder e dele usufruir para se fazer reeleger e se colocar na posição de garantir o apoio e a vassalagem de outros passou a ser a marca de Muitos. Principalmente quando se desdobra em frases feitas, faz uso permanente do novo jargão introduzido pelas instituições internacionais e proclama que aposta em inovação, está de facto a praticar a arte de tudo mudar para que tudo fique como está.

Em países como Portugal, esse ficar aquém na transformação do país, paga-se na falta de convergência com os outros países da União Europeia e no ficar na cauda da Europa ultrapassado até pelos recém-entrados. Em países como São Tomé e Príncipe, a falta de confiança numa liderança transformativa mostra-se em indicadores como os vindos a público nos últimos dias que põem em 80% o número de jovens que querem sair do país em direcção a Portugal. Da mesma forma, em Cabo Verde um dado similar quanto à emigração já sentido na diminuição da população poderá estar a revelar as reduzidas oportunidades do país e a pouca esperança que a prazo as coisas mudem. No caso de Portugal, as críticas apontam a falta de vontade ou de capacidade para fazer o aproveitamento adequado dos fundos disponibilizados pela União Europeia, sendo o PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) o último, e operar as mudanças necessárias para aumentar a competitividade e a produtividade do país. Em Cabo Verde, como na generalidade dos países em desenvolvimento, os fundos disponibilizados em formato de ajuda ao desenvolvimento também não resultam em pôr o país no terreno seguro do crescimento económico e da sustentabilidade com base numa capacidade endógena de criação de riqueza.

Daí a desesperança que se vai instalando particularmente entre as camadas jovens e que sustenta movimentos migratórios em direcção à Europa e aos Estados Unidos. Para as lideranças nacionais nota-se em muitos casos a acomodação ao modelo sustentado pelas múltiplas transferências dos países desenvolvidos traduzida em Cabo Verde na adopção confirmada pelo primeiro-ministro, na conferência anual sobre política externa, de um “Plano Estratégico de Desenvolvimento Sustentável 2022/2026” que vai erradicar a pobreza extrema até 2026 e uma “Agenda Ambição Cabo Verde 2030”. Precisamente o que tem sido preconizado pelas Nações Unidas e outras organizações multilaterais. O problema com essas prescrições é que não há memória de algum país se ter desenvolvido com base nelas. Aliás, já com quase 50 anos de independência e como recipiente da ajuda internacional, Cabo Verde tem suficiente experiência dos múltiplos planos de desenvolvimento e de luta contra a pobreza que foram implementados e cujos resultados ficaram muito aquém dos pretendidos.

A produção de uma liderança transformacional que não se deixa apanhar pelas estratégias com base nos recursos de fora não é fácil de se conseguir. O modelo de desenvolvimento que tais estratégias normalmente suportam reproduz a dependência da sociedade em relação ao Estado e ajuda uma elite mais próxima do sector estatal a manter-se no poder. Uma mudança no sentido de uma viragem para se criar um ambiente propício à iniciativa individual e à criação de riqueza e consequente maior autonomia e sustentabilidade do emprego e do rendimento encontra sempre resistência. Curiosamente é o que acontece quando, ao mesmo tempo que se deixa entender que prosperidade e emprego estão ao alcance de todos, porque todos podem ser empreendedores, startups têm financiamento e talentos são muitos, permite-se que informalidade e concorrência desleal esvaziem iniciativas e criem dificuldades para a consolidação e expansão de empresas nascentes. A opção transformacional seria a que resultaria num ambiente de negócios onde fosse visível uma ordem económica e social com regras aceites e cumpridas por todos.

Também essa opção seria a que capitalizasse sobre o conhecimento da realidade do país e soubesse potenciar as vantagens e fraquezas numa perspectiva de futuro. Imagine-se onde o país poderia estar se há muito tivesse reconhecido que vivia as consequências de alterações climáticas e apostado em tecnologias, produtos e processos de poupança de água. No mesmo sentido, se, enquanto Estado oceânico, tivesse feito uma aposta mais abrangente e compreensiva na economia azul. Também, se, considerando o potencial do país em energia eólica e solar, de há muito tivesse enverado estrategicamente para as energias renováveis. Ou ainda, se, para a prestação eficiente e eficaz de um conjunto de serviços para todos num país insular e com população dispersa, tivesse tomado como fundamental um vigoroso e criativo investimento na digitalização. Israel e Estónia foram por esse caminho e têm sido ricamente compensadas por isso, agora que o resto do mundo mais precisa desse know how. Infelizmente, em Cabo Verde prevaleceu o modelo dos projectos financiados, seguindo essencialmente a agenda dos doadores e não uma aposta estratégica do país. Agora que todos falam de clima, energias renováveis, economia azul e verde e de digitalização, espera-se que não se está simplesmente a aproveitar mais uma fonte de ajuda no modelo tradicional e que em mira estão realmente objectivos transformacionais.

Hábitos arreigados, porém, são difíceis de perder particularmente se resultam de atavismos ideológicos, fantasias teimosamente mantidas ou nostalgia de um passado desconhecido. Como se pode exercer liderança transformacional se se persiste em olhar para o país na perspectiva simplista e ideologicamente conotada que exalta o papel da mulher cabo-verdiana como criadora da língua materna, protagonista de revoltas populares (homi faca, mulher matchado) e heroína de uma guerra de libertação na Guiné-Bissau. Sem libertar o país de narrativas ideológicas não há como cortar as amarras que têm impedido que as sucessivas lideranças na governação retirem o país de modelos de dependência e precariedade e consigam fazer as reformas que tornam possível a criação de riqueza e permitem vislumbrar prosperidade futura para todos.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1113 de 29 de Março de 2023.

segunda-feira, março 27, 2023

A tragédia dos partidos

 O ambiente político começa a aquecer e os partidos preparam-se para “arrumar a casa” e posicionar-se para o período pré-eleitoral a iniciar em meados do corrente ano. No MpD ainda vai-se escolher a nova liderança e, como será uma eleição disputada, só depois de Maio próximo é que poderá começar a preparar-se para os embates futuros. No PAICV e UCID já com a liderança acertada, pelos menos para a próxima eleição, a incógnita a resolver será de se saber quem depois dos resultados das autárquicas estará em melhor condição para liderar nas eleições seguintes. Neste quesito já o actual primeiro-ministro se posicionou para ser o candidato do seu partido para um terceiro mandato, mas estando as autárquicas pelo meio nada pode ser dado como certo. Um resultado menos favorável, diminuição do número de câmaras ou perda de câmaras emblemáticas, poderá condicionar a decisão para continuar na liderança do partido e ser futuro candidato.

No último trimestre de 2024 deverão realizar-se as eleições autárquicas para, com a diferença de cerca de ano e meio, se avançar com as legislativas. A proximidade das duas eleições partidárias empresta uma outra importância à preparação para o novo ciclo eleitoral considerando que, em geral, os resultados dos diferentes partidos nas autárquicas afectam a percepção das pessoas quanto às probabilidades de vitória ou derrota nas legislativas com o impacto maior a ser suportado pelo partido no governo em caso de revés. Infelizmente, para o país não parece que haja consciência que se está a viver tempos extraordinários que exigem um outro repensar do país e uma nova disponibilidade para pertencer e servir a comunidade.

A crise nas câmaras da Praia e de S. Vicente demonstram até que ponto as lideranças nacionais dos partidos ficam cativas de protagonismos nas câmaras municipais que são mais tributárias da personalidade dos presidentes e da forma marcadamente pessoal como exercem o poder camarário do que resultado de uma visão política diferente. Atropelos feitos ao estatuto dos municípios tanto no funcionamento dos órgãos colegiais como no processo de aprovação do orçamento municipal e do plano de actividades, já referenciados pelo Tribunal de Contas e pela Inspecção Geral das Finanças, não merecem reparo das lideranças partidárias. Nem tão-pouco se procura promover diálogo para ultrapassar bloqueios.

A questão que se coloca aos partidos nessas situações é até que ponto a solidariedade política sobrepõe-se à lealdade devida ao cumprimento da Constituição e às leis por todos os actores políticos. Ainda uma outra questão é se com solidariedade a populistas nas câmaras não se está a abrir caminho para o populismo triunfar ao nível nacional com as consequências que se conhecem de descredibilização das instituições, incompetência e atraso no desenvolvimento. As próximas eleições deverão ser esclarecedoras a esse respeito.

Anos atrás quando ainda não se falava da tripla crise da Covid-19, da alta inflação e da guerra na Ucrânia já se tinha identificado um mal-estar nos países democráticos que ameaçava retirar legitimidade aos seus sistemas políticos. Era mais um sintoma do que se viria a chamar de crise da democracia no pós-crise financeira de 2008 e que traduzia as deficiências sentidas na representação e participação política, no sistema de partidos cada vez menos capaz de apresentar alternativas reais de governação e na erosão de instituições como os média e o sistema judicial. A emergência do populismo e da extrema direita em muitos países como reacção a essa “malaise” precipitou e aprofundou ainda mais a crise nas democracias.

Ao longo desse processo abriu-se caminho para a chegada ao poder de personalidades como Trump nos Estados Unidos e Bolsonaro no Brasil e provocaram-se estragos múltiplos nos partidos políticos onde passaram a ser normal manifestações de ambição pura e de narcisismo deixando em muitos casos sinais evidentes de falta de humildade e de competência política. A evolução da esfera pública para um ambiente de troca de ideias e informação diversa quase sem mediadores e sujeito a comportamentos de rebanho e aberto a fenómenos de viralização de rumores, modismos e cancelamentos, que, entretanto, se verificou, certamente que contribuiu para isso. Uma evolução para a qual foi instrumental a massificação dos smartphones que deram acesso generalizado às redes sociais, plataformas e médias sociais e com isso empoderaram muitos que nunca o seriam sem o facebook, twitter instagram ou viber.

Em consequência, a forma de ascensão nos partidos mudou e perderam-se oportunidades de desenvolvimento de sensibilidades políticas que traziam pluralismo e renovação aos partidos ao mesmo tempo que criavam laços de lealdade que perduravam e permitiam governantes implementar projectos coerentes de governação. Passou a reinar a lealdade e obediência ao chefe. Cabo Verde não foi excepção e vê-se no estado em que actualmente se encontram os partidos no sistema político.

É interessante notar que a crise de representação nas democracias levou os partidos a se abrirem mais para a sociedade e a introduzir e adoptar práticas como primárias na escolha de candidatos e eleição directa do líder do partido. Não é evidente que se ganhou muito com essas inovações considerando que não conseguiram conter o descrédito dos partidos a ponto de, em vários países democráticos, partidos nacionais de grande envergadura acabaram por encolher (Portugal, Espanha) e em alguns casos quase desaparecer (França, e Itália, Grécia). Também ficaram mais expostos ao populismo e ao aparecimento de líderes com tendências autocráticas e a promessa de novas ideias para a governação não se concretizou. Pelo contrário, em muitos casos ficou a forte impressão de incompetência como resultado de se querer mudar as regras do jogo institucional, de não aplicar o princípio da separação de poderes e de se fugir à responsabilização e à prestação de contas.

Em Cabo Verde, também a introdução de eleição directa dos líderes dos partidos não trouxe vantagem. Teve o efeito de concentração do poder no líder em detrimento dos outros órgãos a começar pelas convenções e congressos. Na ausência de visões estratégicas para o país que poderiam surgir de vivo debate nos órgãos colegiais partidários e também com os militantes e a sociedade, cada vez mais a estratégia de governação parece uma cópia decalcada da agenda das Nações Unidas, anteriormente “os Desafios de Desenvolvimento do Milénio” e actualmente “a Ambição 2030”. Entretanto as crises vão acontecendo numa dinâmica de policrise onde uma crise bancária poderá vir juntar-se às existentes e constituir-se um risco real ao qual poderá ainda seguir eventual aperto no crédito com consequências globais no crescimento da economia mundial.

Sobreviver e prosperar como país nestes tempos difíceis exige muito mais do que os partidos parecem dispostos a dar, transformados como estão essencialmente em máquinas de conquista do poder. A malaise da democracia continua sem fim à vista quando nem as regras do jogo democrático se mostram dispostos a cumprir para além da conveniência política do momento e até se ensaia pôr em causa o próprio Tribunal Constitucional. A diminuição da população que o INE detectou no último censo devia servir de aviso porque pode indiciar que há muitos que já votam com os pés procurando os caminhos da emigração. A utilidade dos partidos na democracia deve ser reafirmada e a via para isso deverá passar por desenvolver uma vida interna mais rica e plural e ser capaz de lançar um olhar global sobre o país e a sua trajectória história que potencie o melhor que as suas gentes conseguiram ser e produzir. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1112 de 22 de Março de 2023.

segunda-feira, março 20, 2023

Tribunal Constitucional, o árbitro final

 

A reacção de alguns actores políticos face ao acórdão n.º 17/2023 do Tribunal Constitucional (TC), que considerou constitucional a resolução da Assembleia Nacional autorizando a detenção do deputado Amadeu Oliveira para efeito de interrogatório judicial, não tem sido particularmente construtiva. De facto, reagir a uma decisão do TC com declaração política no parlamento e pedido de audiência ao presidente da república não é o que se espera de quem com responsabilidade deve velar pela integridade do sistema político suportado pelo princípio da separação e interdependência dos poderes.

O Tribunal Constitucional é o órgão supremo da justiça constitucional no país e, enquanto tal, é o regulador do processo político-constitucional. Como dizem os constitucionalistas, a começar pelos obreiros da Constituição americana Madison e Hamilton, numa democracia liberal e constitucional não se pode fazer a interpretação da Constituição depender do tumulto e conflito do processo político nem permitir que todas as questões constitucionais fossem decididas no âmbito da barganha política. Daí a necessidade da existência de um tribunal formado por juízes independentes que, segundo John Marshall, juiz presidente do supremo tribunal dos Estados Unidos, tido como o fundador do “judicial review”, deve “enfaticamente dizer o que a Lei é”. E nesse sentido a sua decisão é virtualmente final.

O acatar da decisão judicial, porém, não tem que significar para os outros poderes inibir-se ou limitar-se a manifestações públicas, às vezes patéticas, que só descredibilizam o sistema ou o deixam exposto a ataques dos descontentes e inimigos da democracia. Os deputados podem, por exemplo, ter a iniciativa de rever o regimento da assembleia nacional e tornar a actuação da Comissão Permanente mais conforme ao que está na Constituição. Em matéria de gestão de mandatos dos deputados pode-se ir em sede de revisão dos estatutos dos deputados para uma solução que, a exemplo do que existe em outras paragens, exige para autorização para a suspensão de mandato uma maioria absoluta de votos por escrutínio secreto no plenário da assembleia nacional. Aliás, ela já existe nos estatutos actuais para os casos de autorização de prosseguimento de procedimento criminal (nº 4 do artigo 11º) e bastaria alargar para todas as autorizações de levantamento da imunidade. Também podia-se legislar para que com os pedidos vindos do poder judicial se suspender o tempo de prescrição do procedimento criminal e na passagem de uma legislatura para outra não permitir que caducassem.

Seguir pelo caminho de legislar ou mesmo de introduzir projectos de revisão constitucional serviria para credibilizar o parlamento não permitindo que a imunidade parlamentar fosse confundida com impunidade ou que a imagem de ser joguete de outros poderes passasse. Infelizmente, a via por que aparentemente se quer ir é a de contestar a decisão do TC, que se devia tomar como final em matéria de interpretação constitucional, com acusações até de estar a rever informalmente a Constituição. E tudo por uma prática institucional, há mais de trinta anos estabelecida, que atribui à Comissão Permanente da Assembleia Nacional, funcionando entre as reuniões plenárias e sessões legislativas, a gestão do mandato dos deputados.

Quantas vezes a Comissão Permanente já deu autorização para deputados serem ouvidos como declarantes, testemunhas e até como arguidos nos meses entre Outubro e Julho em que decorre a sessão legislativa. Quantas vezes autorizou a saída do país do presidente da república. Até já autorizou o PR a declarar pela primeira vez o estado de emergência a 28 de Março de 2020. Em todas as situações sempre houve possibilidade de recurso para a plenária e no caso da autorização do estado de emergência foi posteriormente ratificada pela plenária.

Com uma prática tão consolidada de uso de várias competências entre as reuniões e as sessões plenárias durante três décadas não se vê que haja costume contra a Constituição, ou costume limitador de direitos fundamentais ou mesmo de polémica aberta sobre o papel da Comissão Permanente. O que se vê é a reacção de um partido contra as instituições porque perdeu uma jogada política de alinhamento com um discurso populista e contra o sistema judicial que acreditou podia ter-lhe dado mais deputados, deputados em mais de um círculo e número de deputados suficiente para criar um grupo parlamentar. Repete-se o padrão de tomar como os principais alvos no questionamento da democracia liberal o sistema de justiça e o parlamento e é curioso que em boa parte das vezes são os próprios partidos os principais promotores dessa descredibilização das instituições.

No parlamento a degradação do discurso político tem sido agravada com a introdução cada vez mais frequente de questiúnculas municipais em debates que deviam ser de políticas nacionais. De facto, nem os deputados nacionais são representantes das câmaras municipais, nem a assembleia nacional tem a tutela sobre os municípios e muito menos a tutela de mérito. Em consequência todos perdem. Não se respeita a autonomia dos municípios que têm os seus próprios órgãos de poder político devidamente eleitos e responsáveis perante os respectivos munícipes, desperdiça-se o tempo parlamentar, alimenta-se um protagonismo deslocado de deputados que na realidade não representam municípios e cria-se mais oportunidade de crispação entre os partidos ao se ter todos a se esforçarem por dar cobertura política às câmaras municipais onde são maioria.

Acusações de corrupção mútuas tanto no passado como no presente alargadas também às câmaras municipais contribuem para degradar o discurso político e tornar as posições ainda mais irreconciliáveis. No cômputo global tais acusações de falta de transparência e não prestação de contas acabam por não corresponder à imagem que o país projecta em vários rankings internacionais sobre corrupção e governança, mas não deixa de afectar negativamente o ambiente político. E o resultado é que os partidos cada vez menos se mostram disponíveis para equacionar e resolver os problemas reais do país. Tendem a agravá-los como acontece nos dois maiores municípios onde se mostram incapazes de influenciar os seus representantes nos órgãos de poder local de forma a terminar com a crise institucional instalada e funcionarem dentro da legalidade, respeitando os procedimentos de há muito estabelecidos.

A Cabo Verde, ainda a sofrer o impacto da tripla crise causada pelas secas, pandemia e guerra na Ucrânia e preocupado com um futuro de incertezas, o que menos precisa é de um quadro de enfraquecimento das suas instituições e da sua liderança devido a excesso de protagonismo, ambição desenfreada e insuficiente comprometimento com a democracia, o Estado de Direito e a procura do bem comum. Evitar que o Tribunal Constitucional também se transforme em alvo de ataques é fundamental para que o país mesmo em ambiente de sobressaltos e crispação tenha as referências para se equilibrar e prosseguir o caminho de consolidação da sua democracia. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1111 de 15 de Março de 2023.

segunda-feira, março 13, 2023

Cultura estatizada

 Na semana passada, a propósito de um parecer do Instituto do Património Cultural (IPC) sobre um projecto de lei na assembleia nacional a classificar a língua portuguesa como património nacional, o país, estupefacto, passou a saber que afinal nem os deputados nacionais nem a assembleia nacional têm competência para isso.Segundo o ministro, a iniciativa só pode partir do ministério da cultura e do IPC. Não se sabe é onde fica o princípio de que o parlamento pode legislar sobre toda e qualquer matéria, exceptuando o que é de reserva exclusiva do governo, e que no processo pode revogar qualquer dispositivo legal contrário, designadamente o que eventualmente se encontrar nos estatutos do IPC. Um outro aspecto que não se compreende é qual a razão para o alvoroço sobre considerar a língua portuguesa como património quando a na lei de bases do Património Cultural nº 102/III/1990, em que o decreto regulamentar nº 3/2020 de 17 Janeiro que cria o actual IPC, se enquadra explicitamente inclui “a língua nacional e a oficial” entre os bens imateriais que devem ser preservados, defendidos e valorizados (artigo 3º, alínea d).

É ainda curioso que três meses depois, em Abril de 2020, através da lei da A.N. 85/IX/2020 que aprova o Regime Jurídico de Protecção e Valorização do Património Cultural, finalmente se revogou a lei de bases de 1990 com o argumento, entre outros, de no articulado estar plasmado o “carácter estatizante da cultura”, ou seja, de na prática se governamentalizar a cultura. Passados quase três anos parece que não se sentiu a necessidade de mudar os estatutos do IPC para “desgovernamentalizar” e adequar-se à nova lei e o resultado é a interpretação que que só o IPC pode identificar, documentar, inventariar a classificação de bens a património imaterial, com exclusão até da própria Assembleia Nacional. Nem se conseguiu flexibilizar essa postura rígida com a abertura já presente na nova lei (artigo 17º) de o processo de classificação de bens culturais também poder ser desencadeado “pelas administrações locais ou por qualquer pessoa singular ou colectiva”, cabendo ao ministério prestar o apoio técnico requerido.

A estatização da cultura nacional pela via da monopolização governamental do que deve ser considerada cultura cabo-verdiana, história de Cabo Verde e património é uma realidade incontornável que a lei referida de Abril de 2020 pretende inflectir. Os seus efeitos notam-se, por exemplo, na insipiência no ensino da história do país, que é feito à mistura com a cultura cabo-verdiana a todos os níveis do sistema do ensino e também na ausência de departamentos e cursos de história nas universidades. Nas duas últimas décadas a estatização ganhou um outro ímpeto com a criação do Instituto de Investigação e Património Cultural, em 2004, e depois do IPC, em 2014, com atribuições na investigação nos domínios da história, sociologia, antropologia, linguística e arqueologia com vista à promoção e divulgação do que nos estatutos referiam-se como a “própria História da Nação” e “estabelecer cientificamente os verdadeiros contornos da antropologia cabo-verdiana”.

Ou seja, estudos que normalmente deviam ser feitos em meios académicos com autonomia própria das universidades e liberdade intelectual eram entregues a instituições governamentais com o objectivo de posterior divulgação junto dos canais tradicionais como escolas e comunicação social e eventual condicionamento de agentes e eventos culturais. Não estranha que com esse tipo de dirigismo do Estado em matéria de investigação histórica e cultural, contrariando o princípio constitucional de que o Estado não “programa a educação e o ensino segundo directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”, se esteja a cavalgar ondas identitárias polarizadoras da sociedade a partir das quais se quer ver relações de dominador e dominado e se promove o sentimento de vitimização. O conflito aberto entre o crioulo e o português é uma manifestação clara disso.

Muito dessas dinâmicas polarizadoras não deveriam ser esperadas em Cabo Verde, um arquipélago onde vários séculos antes da independência desenvolveu consciência de nação e não tem divisões de natureza rácica, étnica ou linguística. De facto, no quadro democrático actual, globalmente ninguém é preterido no acesso a cargos políticos e outros cargos públicos por razões de tonalidade da pele, religião ou origem social e ninguém duvida que oportunidades de carreira profissional ou empresariais estão abertos a todos sem discriminação. A dificuldade que, porém, persiste e que é fracturante foi introduzida no acto da proclamação da independência com a afirmação que no âmbito do projecto do PAIGC da Unidade Guiné/ Cabo Verde se escolheu o destino africano para o povo as ilhas.

Em consequência, como o professor doutor Gabriel Fernandes explica no seu livro “Em busca da Nação” pag. 202: No novo contexto, em que a política, mais do que a cultura, é o que passa a nortear sua luta emancipatória, os cabo-verdianos não se concebem a partir de dentro, da sua peculiaridade cultural, mas sim de fora, da sua compartilhada situação de africanos e dominados”. E continua, “…os actores políticos cabo-verdianos acabaram por exacerbar as diferenças internas abrindo um fosso entre os próprios cabo-verdianos, doravante percebidos, não em termos culturais-unitários, como parte integrante de uma entidade peculiar, mas sim político-dualísticos, sob o rótulo de anticolonialista ou de colaboracionista”. Hoje, já se sabe que que o projecto da unidade tinha ficado completamente comprometida com a morte de Amilcar Cabral e prisão dos cabo-verdianos em Conacri, mas como esse facto, de acordo com as declarações, em 1990, na ilha do Sal, de um alto dirigente do PAICV, foi ocultado aos cabo-verdianos o seu impacto devastador na sociedade cabo-verdiana continua a fazer-se sentir até hoje.

Toda a política cultural estatizante ou governamentalizada e a apetência para a doutrinação em particular de crianças e jovens via o sistema de ensino, a comunicação social pública, instituições do Estado e até aulas magnas proferidas por actores políticos continuam. O que se pode chamar de uma idolatria do Amilcar Cabral e da luta de libertação acompanhado de fervor na “reafricanização dos espíritos” prossegue com os sucessivos governos independentemente da cor partidária sem que se tenha em conta os seus efeitos perniciosos de polarização da sociedade, de restrição da liberdade intelectual e do despojar do país da plenitude da sua história.

A esperança que o 13 de Janeiro poderia corrigir o grave desvio verificado em 1975 não se concretizou. Parte das razões da população para a rejeição da ditadura de partido único perdeu-se pelo caminho. O episódio inusitado à volta da classificação da língua portuguesa confrontando governo e deputados é o exemplo de como se pode ficar refém do passado e condenar-se a um círculo vicioso onde se alimentam mitos, dificuldades reais acumulam-se e problemas tornam-se progressivamente intratáveis. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1110 de 8 de Março de 2023.

Desafiar mitos para se chegar a um futuro democrático

 

O confronto sobre as políticas de transporte seja marítimo, seja aéreo tem aumentado de intensidade e de virulência à medida que os problemas vão se agravando e possibilidades de resolução à altura das expectativas criadas se tornam cada vez mais remotas.E é assim porque, como não se consegue discutir o presente e o futuro, vasculha-se o passado da governação dos dois partidos do arco do poder enquanto as perdas se acumulam tornando os problemas praticamente intratáveis. Hoje são os transportes e também a habitação e o programa Casa para Todos que têm ocupado muito do debate político nas últimas sessões do parlamento. Amanhã e depois chegará a vez de outros sectores como a agricultura, a pesca, a energia, segurança, educação, saúde etc. a serem submetidos ao mesmo tipo de discurso crispado e estéril que simplesmente vai adiando a abordagem séria dos problemas e a discussão de eventuais soluções.

Varrer problemas para debaixo do proverbial tapete sem o conhecimento prévio das suas causas e sem ponderar devidamente sobre as consequências de não acção ou de abordagem não suportada por uma visão estratégica torna-os a prazo extremamente difícil de tratar e resolver. Sem uma cultura de se apoiar nos factos para fazer a análise da realidade do país e para se debater perspectivas plurais de como estrategicamente agir para alterar o estado de coisas, corre-se o risco de se ter uma democracia em que a imagem do político cada vez mais se aproxima da do “vendedor de ilusões”. Vários factores, incluindo tabus em relação ao conhecimento do passado, reminiscências de ideologias de há muito datadas e partidarização fracturante do próprio regime político, não permitem que a democracia enquanto conjunto de procedimentos se revele como a via para se chegar à verdade partindo do princípio que ninguém a detém em exclusivo. Em tais circunstâncias verdade é conveniência de cada um e fica impossível seguir o conselho do historiador e autor do livro “Sobre a Tirania”, Timothy Snyder, que “é preciso aprender a história, desafiar os mitos para se chegar a um futuro democrático”.

O facto da intratabilidade de muitos problemas com que o país se confronta estar a se revelar com maior acuidade nos últimos anos que também têm sido de policrise torna ainda mais urgente que o país arrepie caminho do que tem sido a sua forma de fazer política. De facto, a sequência de três anos de uma crise pandémica, alta inflação e guerra na Ucrânia devia ter tido o efeito transformativo na forma de actuar da liderança do país e da sua classe política. Infelizmente, o que se notou foi o acentuar dos aspectos performativos da actuação dos titulares dos órgãos de soberania, em detrimento de substância, amplificados por uma presença não poucas vezes excessiva dos próprios nas redes sociais.

As consequências vêem-se na crispação política a exacerbar-se ainda mais, na crise institucional que já quase paralisa os dois maiores municípios do país, no baixar do nível dos trabalhos parlamentares e nas crescentes fricções com o presidente da república. Também se manifestam na dificuldade em confrontar as fortes limitações de país arquipélago, a perder população, com uma reduzida estrutura produtiva e uma história de precariedade que a dependência do turismo em 25% do PIB só realça. Querer resolver problemas do transporte aéreo ou marítimo sem ter presente estas realidades é o que de há muito vem sendo feito nas múltiplas tentativas de reorganização do sector e o resultado vê-se nas dívidas acumuladas e na dificuldade até em garantir o mínimo. Algo similar, mas menos visível, talvez não por muito tempo, acontece noutros sectores como se pressente nas recentes críticas dirigidas aos sectores da segurança, saúde e educação.

O que não parece afectado pelo estado da política no país é o optimismo que emana de certos sectores da governação que põe como objectivo mobilizar 5 mil milhões de euros, duas vezes e meia o valor do PIB, junto de parceiros públicos e privados até 2030 e que para isso organiza-se uma conferência de parceiros na ilha da Boa Vista em finais de Abril, como já se tinha feito em Paris, em 2018, e outras vezes na ilha do Sal. De acordo com o vice-primeiro-ministro e ministro de finanças a transição energética, climática, a economia circular são temas que, no fundo, acabam por ‘facilmente’ convencer parceiros a injectarem recursos para que sejam concretizados.

O problema com esses expedientes, que já tiveram exemplos similares no passado movidos com agendas da altura, é que no fundo muito pouco acaba por se realizar: elefantes brancos proliferam; a dívida pública aumenta e qualquer choque externo põe a nu as vulnerabilidades do país e a precariedade das populações. Viu-se isso recentemente com a crise provocada pela seca a partir de 2017 que deixou claro o fraco retorno dos enormes investimentos que tinham sido feitos a partir de 2008 em estradas, barragens e Casa para Todos. Com o fim do período de carência em 2022 aumentou em cerca de 9 milhões de contos o serviço da dívida contraída.

A repetição periódica dessas situações incluindo prejuízos sucessivos e cumulativos de natureza económica e social indiciam que algo está errado na abordagem das questões de desenvolvimento e que provavelmente há uma desconformidade entre a realidade perspectivada por políticos e governantes e os dados concretos do país. Cabo Verde, sequestrado que foi por circunstâncias históricas que acompanharam o desmantelamento do império colonial português, parece estar enredado em contos, mitos e narrativas que não deixam o país revelar-se na plenitude da sua história e do processo secular de construção de uma identidade própria.

Sem conhecimento integral da real história do país, recursos que podiam ser capitalizados para o desenvolvimento não são reconhecidos, alertas quanto aos percalços de desenvolvimento num país pequeno e arquipelágico não são escutados e conflitos artificiais podem ser criados. Neste particular, o conflito que se instalou entre o crioulo e a língua portuguesa é o exemplo de como às enormes dificuldades de um país como Cabo Verde se pode somar artificialmente mais um entrave ao seu desenvolvimento. Todos os cabo-verdianos falam o crioulo e pelo seu uso em cerimónias oficiais e momentos solenes pelo presidente da república, pelo governo e pelos deputados vê-se que não é ameaçada nem ostracizada.

A cabo-verdianidade, porém, não é expressa somente em crioulo como comprova todo o espólio literário que foi instrumental para a emergência da consciência da nação e que na sua quase totalidade resulta do uso criativo do português. Se conflito existencial entre as duas línguas não se verificava antes, não se compreende que quase cinquenta anos depois e com toda a gente a falar crioulo o presidente da república se sinta na necessidade de declarar que “N ta ben sta na linha di frénti di konbáti pa ofisializason plénu di nos Kriolu”. O posicionamento do PR levanta uma série de questões. Para começar no sistema constitucional cabo-verdiano só os deputados têm iniciativa em matéria de revisão constitucional. Sendo representante da unidade da nação e guardião da Constituição vigente não se vê como é que o PR vai ser parte no debate público e proceder para influenciar deputados que também representam os partidos no parlamento. Por outro lado, se houver revisão constitucional e qualquer que for a direcção tomada pelo legislador constituinte o PR não pode recusar a promulgação das leis de revisão (Artº 291 da CRCV).

De facto, nas circunstâncias e nos termos em que se referiu, o posicionamento do PR foi desnecessário: o crioulo só ainda não é oficial porque não se consensualizou uma versão estandardizada e escrita e desde de 1999 que há um comando constitucional a obrigar o Estado a criar as condições nesse sentido. Também foi pernicioso porque, pela linguagem utilizada, alimenta-se a conflitualidade linguística com consequência para disposição dos alunos em aprender o português e serem proficientes na língua oficial do país enquanto cidadãos plenos. Uma conflitualidade que não se pode negar considerando a hostilidade dirigida por certos sectores contra a Escola Portuguesa de Cabo Verde porque procura fazer o óbvio que é criar um meio imersivo para mais rápida aprendizagem da língua e suprir o facto que praticamente fora da escola só se fala o crioulo.

Neste início do segundo ano da guerra na Ucrânia, em que incertezas e imprevistos toldam a imagem do que pode vir à frente, o foco devia estar em conduzir o país com base segura, sem realidades ficcionadas, e pôr a democracia a funcionar de forma a encontrar soluções duradoiras para os problemas de desenvolvimento. Humildade, competência e procura da verdade deviam caracterizar a actuação dos actores de forma a se diminuir os conflitos e, com confiança e solidariedade se enfrentar os grandes desafios que o país tem para frente. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1109 de 1 de Março de 2023.