sexta-feira, janeiro 28, 2022

País refém de uma história contada

 

A propósito das controvérsias que sempre aparecem na chamada Semana da República entre os dias 13 e 20 de Janeiro, o Presidente da República, José Maria Neves, disse que “não temos cumprido uma grande promessa da democracia que é a educação para a cidadania”. Acrescenta ainda que “quem quer ser cidadão tem de procurar conhecer a história, sobretudo, a contemporânea do seu país”. A falha detectada pelo PR tem pelo menos duas causas mais visíveis.

A primeira é que o Estado não se esforça o suficiente para passar para as pessoas, para a sociedade e em particular para as novas gerações os princípios e valores universais a começar pelo respeito pela dignidade humana e o direito à liberdade, que estão plasmados na Constituição de 1992, nem a importância do pluralismo, do princípio da separação de poderes e da independência dos tribunais no funcionamento pleno da democracia. Em consequência, fica por desenvolver adequadamente a vontade de participação, autonomia de pensamento e acção, auto-responsabilidade e o espírito de pertença à comunidade que se espera de cidadãos plenos. Pelo contrário, põe-se demasiado ênfase em alegados actos libertadores e heróicos de indivíduos e grupos, revoltas e ressentimentos do passado e manifestações de um paternalismo “salvítico” que deixa todos gratos e dependentes do Estado e na condição de cidadãos menores. 

A outra causa tem a ver com a disputa permanente no país entre a “história contada” e a “história vivida”, entre factos e mitos, entre a procura da verdade e as tentativas de mascarar a realidade fazendo apelo a sentimentos, a lealdades antigas e a demonização do outro. De facto, a única história que realmente se é permitido conhecer não é a que aconteceu nas ilhas, mas a que supostamente teria passado nas matas da Guiné e em Conakry. Uma história perpassada por narrativas carregadas de heroísmo, de generosidade e de boas intenções que depois com as independências e o poder conquistado não se viu correspondência com a realidade dos regimes implantados tanto na Guiné como em Cabo Verde. Os seus protagonistas surpreenderam toda a gente com a perda da liberdade, a arrogância de “melhores filhos” no exercício do poder e a visão curta de quem sempre que foi dado a escolher entre desenvolvimento das pessoas e do país e o seu regime político ditatorial invariavelmente optava pela manutenção do poder. A outra história, aquela vivida nas ilhas e que foi da ditadura, de oportunidades perdidas e de vidas amarfanhadas pela falta de liberdade, pela inibição de iniciativa individual e pela sujeição a ideologias simplistas e ultrapassadas, essa durou quinze anos, mas é como se não tivesse acontecido. 

É uma história praticamente ignorada pelas instituições, pelas escolas, pela comunicação social pública e até pelos estudiosos e académicos. Só se estudam acontecimentos até à independência e depois da chamada abertura política em Fevereiro de 1990. São os momentos em que os “heróis” entram em cena, num caso para dar ao povo a independência e noutro para, em mais um acto de generosidade, oferecer liberdade e democracia. No meio fica um hiato que ninguém quer transpor com receio de ferir as susceptibilidades dos auto-indigitados “Comandantes” (ver decreto-lei nº 8/75 e decreto nº 18/80) que ocuparam os lugares-chave do poder durante a ditadura. Mesmo assim, nunca estão satisfeitos e todos os anos pelo 5 de Julho e pelo 20 de Janeiro repetem que a história da luta não é estudada suficientemente nas escolas e que os ensinamentos da Cabral não estão a ser seguidos. É uma pressão que vai continuar mesmo que hipoteticamente um número de pessoas próximo, dos 100% se submetesse à narrativa heróica, declarando “estar em paz com a história”. 

Com esse tipo de pressão, feita com o beneplácito do Estado e das suas instituições, dificilmente vai-se ter o cidadão pleno que o PR diz que precisa conhecer a história contemporânea do seu país. Não se ajuda, porém, nesse conhecimento quando se procura transpor o hiato dos quinze anos, durante os quais a aplicação dos ensinamentos de Cabral pela organização por ele criado, o PAIGC, e por dirigentes por ele formados resultou em sucessivas tragédias na Guiné-Bissau e em um Cabo Verde sem liberdade e economicamente estagnado, e se propõe elegê-lo “como o símbolo maior dessa luta pela liberdade e dignidade da pessoa humana e pela igualdade”. Aí Pedro Pires tem mais razão ao apresentá-lo como personalidade que “deu tudo o que tinha a favor da libertação do país”. E é libertação porque liberdade e dignidade individual, que certamente não é reconhecida quando em vez de pessoas se vêem massas populares e se define a pertença à comunidade política com base em concepções do tipo o povo é quem está com o partido, são princípios e valores que só seriam conquistados 15 anos depois pelos homens e mulheres das ilhas. 

Pelas reacções de diferentes personalidades durante a chamada Semana da República vê-se claramente que mais de trinta anos depois da instalação da democracia a “história contada” ainda se sobrepõe à “história vivida” mesmo quando colide frontalmente com os princípios e valores constitucionais. Instrumental nisso tudo tem sido precisamente as instituições do Estado e particularmente os órgãos de soberania. Resistências várias impediram durante 17 anos que o 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia, fosse comemorado pela Assembleia Nacional, a casa da pluralismo e a sede do contraditório na democracia. Agora já há quem queira comemorar o 20 de Janeiro com uma sessão especial da Assembleia Nacional quando se sabe pela experiência de outras democracias que comemorações da independência, da república e da memória, porque momentos de unidade e exaltação nacional, normalmente são presididas pelo presidente da república. A guerrilha continua como que para demonstrar o quanto a iniciativa da semana da república é um fiasco na tentativa de reconciliação à volta das datas históricas. 

Nos últimos dias a colisão de narrativas históricas com a Constituição centrou-se sobre o que devem ser as comemorações do Dia das Forças Armadas (FA). O Governo na pessoa da Ministra da Defesa, em linha com os ditames da Constituição de 1992, realçou a função constitucional das forças armadas de assegurar a defesa nacional, a sua subordinação ao poder civil, o seu serviço à nação e o seu apartidarismo e neutralidade política. Os “comandantes” vieram à liça reivindicar a reposição da história das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP) e o papel que teriam tido na sua origem. 

O problema é que as FARP que sempre foram concebidas como braço armado do partido, como está explícito no texto da proclamação da Independência e confirmado pela voz autorizada de Aristides Pereira em 1985 ao dizer que “a acção política e ideológica constitui uma componente essencial no trabalho das forças de defesa” e ter-se referido ao facto de as FARP, serem integradas, não por militares, mas por militantes armados”, deixaram de existir com a entrada em vigor da Constituição a 25 de Setembro de 1992 dando lugar às FA. Não faz, portanto, qualquer sentido referir-se a papéis ou missões passadas que conflituam directamente com as funções constitucionais actuais. 

Mesmo na questão do Dia das Forças Armadas nota-se a conveniência e o desejo de auto glorificação. Até 1987 o dia das FARP comemorava-se a 16 de Novembro em referência à origem das forças em 1964 na sequência do Congresso de Cassacá, assim como é ainda comemorado pelas FARP na Guiné-Bissau. O objectivo então era identificarem-se com a luta na Guiné. Em 1988, oito anos depois do golpe na Guiné e com o poder seguro em Cabo Verde acharam que podiam fazer das suas pessoas a referência do braço armado do partido. Com um simples decreto (decreto nº 5/88) criaram um novo Dia das FARP (15 de Janeiro de 1987). Agora acham que as FA não podem ter outra referência mais consentânea com a sua função actual. É mesmo patético. 

É evidente que o país não deve continuar refém de uma narrativa que glorifica pessoas responsáveis por um regime ditatorial, que promove o culto de personalidade em plena democracia e que pode causar instabilidade institucional pelos seus persistentes conflitos com os princípios e valores constitucionalmente estabelecidos. Os titulares dos órgãos de soberania devem lembrar-se todos do seu juramento de respeitar e cumprir a Constituição da República. Estar ao serviço do povo e não de quais outros interesses é a via certa para a construção de uma vida de liberdade, paz e prosperidade para todos.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1051 de 19 de Janeiro de 2022.

segunda-feira, janeiro 24, 2022

Diversificar não é disparar para todos os lados

 

​O Banco Mundial no relatório sobre a Situação e Perspectivas Económicas Mundiais previu para Cabo Verde um crescimento económico de 4% do PIB para 2021 e 5,2% e 6,1 % para respectivamente 2022 e 2023.Se se considerar que em 2020, no ano de pandemia, houve uma recessão de 14,8 % deve-se imaginar que ainda vai levar algum tempo para o país se recuperar da violenta contracção da economia e retomar a partir do que já tinha atingido em 2019.

Qualquer previsão está condicionada por incertezas várias que incluem as resultantes de tensões internacionais, estrangulamentos nas cadeias de abastecimento e o ressurgimento da inflação. Outrossim, a dependência actual do turismo enquanto motor da economia torna uma retoma económica do país mais complicada. É o sector mais afectado pelas incertezas derivadas da pandemia e condiciona directamente os sectores de viagens e de hotelaria que comandam milhares de postos de trabalho e têm um forte efeito de arrastamento de outros sectores importantes da economia nacional.

Essa situação já de si mesma preocupante é agravada pelos condicionalismos macroeconómicos e macro fiscais colocados pela dívida pública de 160,9% do PIB segundo o BCV e pelos défices orçamentais impostos pelas despesas extraordinárias necessárias para financiar o sistema de saúde e conter o impacto da pandemia da covid-19 no rendimento das pessoas e na actividade das empresas. Sem o turismo e sem o crescimento de uma procura externa de bens e serviços fica difícil gerar um fluxo de receitas suficiente para fazer face ao serviço da dívida externa e realizar os investimentos que vão sendo necessários para combater o vírus e os investimentos indispensáveis para a retoma.

A tentação de aumentar os impostos também não é o melhor caminho mesmo que traga algum alívio para o Estado. No fim do dia, sempre acaba por prejudicar as empresas e também os consumidores. Um esforço maior podia ser posto na atracção do investimento externo, mas tirando o sector do turismo à base de sol e mar aparentemente o país não tem muito a oferecer. Não melhorou como devia a sua competitividade, não valorizou adequadamente o seu capital humano e não fez as reformas da administração pública que seriam necessárias para o Estado ser visto como facilitador da actividade económica e não como um factor de ineficiência contribuindo significativamente para os custos de contexto.

Na encruzilhada difícil que se vive não faltam vozes nacionais, internacionais e institucionais que clamam pela diversificação da economia como solução para os males do país. Aparentemente esquece-se que esse clamor vem de longe e no passado recente tomou várias formas em projectos de milhões que propuseram clusters, hubs e plataformas em vários sectores designadamente financeiro, transportes aéreos, transbordo, agronegócios, energias renováveis e tecnologias de informação e comunicação.

Alguns não resultaram, outros ficaram aquém dos objectivos traçados, mas todos contribuíram para aumentar a dívida externa e deixaram na sua esteira frustrações e ressentimentos. O estranho é que sem se deter para uma análise compreensiva do que correu mal nas tentativas anteriores ainda se quer continuar a fazer as mesmas apostas. A diferença é que aparecem com outros invólucros como economia azul e economia verde e no quadro de políticas de contenção dos efeitos das alterações climáticas e de aumento da capacidade de resiliências a choques externos. É aí que estão agora os milhões.

Duvidoso é se desta vez, a incorrer em custos como os de 20 mil contos em cursos de coding com a duração de 14 semanas para 22 jovens (post no facebook do Vice PM) se vai conseguir que o digital chegue a 25% do PIB como prometeu o Primeiro-Ministro em discurso recente. Os falhanços anteriores com muitos outros projectos deviam convidar a uma serenidade e ponderação no que se deveria fazer para não repetir erros do passado e para aumentar as chances de sucesso de forma a assegurar sustentabilidade dos projectos para além do seu tempo de implementação. O que se vê mais nessa procura de diversificar a economia parece mais um exercício de “disparar para todos os lados” sem uma definição de prioridades, sem o encadeamento das acções, sem a mobilização e adequação do capital humano e sem uma preocupação central em identificar nichos de mercado, avaliar o seu potencial e traçar estratégias de exploração e desenvolvimento.

Quer-se, por exemplo, que a produção nacional capture uma fatia significativa do que em produtos agropecuários se consomem nos hotéis nas ilhas turísticas do Sal e da Boa Vista. É de se perguntar se durante o período de crise pandémica se investiu para qualificar potenciais fornecedores de acordo com os standards de qualidade exigidos. Se quem já investiu nisso, como incentivo, foi ressarcido do que já gastou, no que se pode considerar uma actividade de exportação. Aliás, nessa linha de ideias devia haver um pacote de incentivos para exportar “cá dentro” considerando que a procura é realmente externa, tende a expandir-se, criando mais emprego local, e resulta num saldo positivo de divisas. Diversificar a economia devia passar por criar linhas de conexão entre várias actividades empresariais num esforço de estruturação da economia nacional, de unificação de mercado e de identificação e atracção de investimento externo que, para além de capital e know how, também trouxesse mercado.

Como as duas últimas décadas demonstram, não é indo atrás de projectos propostos por outros ou de financiamentos aparentemente concessionais que se vai conseguir diversificar a economia e tornar o país sustentável e mais resiliente aos choques externos. O que se vê hoje, na dependência excessiva do turismo, nas persistentes vulnerabilidades das populações e no peso crescente da dívida pública, é o resultado do país não encarar devidamente os seus problemas fundamentais, não debater democraticamente soluções apresentadas e não mobilizar as vontades para dar os passos difíceis, mas essenciais para se construir a prosperidade. Prefere-se ir atrás dos projectos e dos milhões anunciados quase todos os dias na rádio e na televisão. Dão para anunciar com pompa e circunstância, mas não parece que o aproveitamento que deles foi feito tenha trazido maiores certezas para o futuro. Qualquer ilusão a esse respeito foi desfeita pela pandemia.

Governar não deve significar alimentar ilusões mesmo que tragam milhões. Nem também reproduzir mitos de salvação do povo que andam à volta da chuva, da emigração ou mesmo do dinheiro de Angola da canção “Oi Teresinha”. Pior ainda, induzir sentimentos de vitimização a partir de afirmações como “a escravatura é vivência fundante dos cabo-verdianos” que se supõe só podem servir para tentar conseguir alguns milhões de compensação por atrocidades passadas. Governar para se chegar à diversificação da economia que o país precisa deve, pelo contrário, primar-se pelo realismo que descarta mitos e ideologias ultrapassadas, pelo pragmatismo que funciona com resultados concretos e sustentáveis e pela procura do interesse colectivo que reforça o sentido da cidadania, a auto-estima e a confiança no futuro. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1051 de 19 de Janeiro de 2022.

sexta-feira, janeiro 14, 2022

Relembrar o 13 de Janeiro em tempos de crise da democracia

 

Ontem foi o trigésimo primeiro aniversário do 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia. Uma data simbólica que representa na mente de todos os caboverdianos o momento da rejeição efectiva do regime de partido único implantado após a independência nacional, 15 anos atrás.

Nas primeiras eleições livres e plurais realizadas no Cabo Verde independente não ficou margem para dúvida qual era a escolha do povo. Com uma maioria de mais de dois terços dos votos, a opção pela liberdade e a democracia foi a tal ponto clara e expressiva que o governo que vinha do outro regime prontamente admitiu os resultados e, em consequência, demitiu-se logo no dia seguinte.

Cabo Verde nesse dia juntou-se a vários outros países nos diferentes continentes que, desde há alguns dois ou três anos atrás e, em particular, desde a queda do Muro de Berlim, em Novembro de 1989, vinham-se libertando da tirania nas suas roupagens autoritárias e totalitárias. Nesses anos de euforia democrática multiplicavam-se quase todos os dias o número de países e povos que, como Cabo Verde, a 13 de Janeiro de 1991, abraçavam os princípios e valores universais de respeito pela dignidade humana e de reconhecimento da inviolabilidade e inalienabilidade dos direitos humanos como fundamento de toda a comunidade humana, da paz e da justiça. Hoje Cabo Verde é referenciado mundialmente como uma democracia plena. O trabalho realizado na construção das instituições democráticas e do estado de direito democrático é real e digno de apreço.

Não se pode é deixar de chamar a atenção para as insuficiências ainda existentes seja no funcionamento defectivo de algumas instituições que estão muito aquém da assunção efectiva das suas funções e competências no quadro do sistema democrático; seja, também, nas ineficiências que o Estado se mostra incapaz de ultrapassar aumentando os custos de contexto e gerando desperdícios de recursos físicos e humanos; seja, ainda, nas dificuldade encontradas em se afirmar uma sociedade civil autónoma em relação ao Estado e em conseguir a diminuição de vulnerabilidades das populações deixando-as expostas a esquemas de dependência estatal. É um facto que hoje, mais de trinta anos depois da queda do muro de Berlim e do 13 de Janeiro, as democracias no mundo inteiro estão a expor as suas fragilidades e não são poucos os casos em que se vem notando uma regressão.

Em alguns países o definhamento político é consequência de derivas populistas. Em outros, resulta de opção por práticas da chamada democracia iliberal. Noutros ainda vem na esteira do desafio aberto de potências autocráticas regionais hostis à existência de democracias funcionais nas suas imediações. Independentemente das razões, é de suma importância compreender que as democracias estão em crise e que precisam de um novo vigor no seu núcleo essencial de princípios e valores para que o que se conquistou a grande preço há trinta anos atrás não se perca em mais uma miragem que só pode acabar por desembocar em menos liberdade, menos justiça e menos prosperidade. Também é preciso compreender que hoje ninguém está imune aos fenómenos que já se sabe de experiência que podem conduzir à morte das democracias. Há dias, 6 de Janeiro, completou um ano que a democracia americana esteve sob assalto no ataque violento de populares ao Capitólio, em Washington, para impedir a pacífica transferência de poderes presidenciais com incitamento e conivência do então presidente dos Estados Unidos e candidato vencido nas eleições.

Em Cabo Verde, como em outras paragens, vários factores trabalham para enfraquecer a democracia, descredibilizar as suas instituições e instigar o cinismo em relação à vida pública que enfraquece a confiança nos seus princípios e valores. Para além dos “culpados do costume” designadamente as redes sociais, os populistas assumidos e os políticos anti-sistema, quem paradoxalmente tem um papel neste estado de coisas é a própria classe política pertencente ao chamado arco do poder ou da governação. Pela forma como demonizam o outro para impedir debate político, fogem à responsabilidade quando chamados a prestar contas e condicionam a sua actividade política a impactos eleitoralistas mesmo que as eleições estejam a léguas de distância, alienam as pessoas da política. No processo causam frustração e ressentimentos e acabam por entregar as pessoas, que não se sentem representadas e com voz nos assuntos do país, nas mãos de populistas e de políticos sem escrúpulos e de fortes tendências autocráticas.

Acontecimentos recentes ilustram bem qual é a forma de actuação da classe política caboverdiana e das instituições e como a insistência em certas práticas fragilizam a democracia. O grave problema da dívida pública é tomado como mais um campo de batalha, onde todas as tácticas são legítimas e o que interessa é identificar “o outro” e demonizá-lo para melhor ser ouvido e possivelmente conseguir novos apoiantes ou fazer soar com mais estrondo a claque da bancada respectiva. Há problemas reais de receitas limitadas, despesas rígidas, ineficiências custosas e investimentos aquém do desejável que só podem ser resolvidos via negociações envolvendo os dois grandes partidos.

É facto que depois de 2001 nenhum deles sozinho no governo e com maioria absoluta conseguiu levar adiante reformas essenciais do Estado e conter interesses corporativos e outros que com as suas reivindicações tendem a onerar o Estado sem que se notem ganho ou retorno apreciáveis e sustentáveis. Potencial para acordos ou pactos existem como em várias ocasiões se provou e recentemente se viu na elevação do nível da dívida interna. Facilmente, porém, se esquecem desses momentos para voltar à crispação habitual e em troca obter ganhos tácticos. Pena que a mensagem do Presidente da República sobre o OE 2022 não tenha sido tomada como um convite para uma actuação conjunta multipartidária para se proceder a uma reestruturação do Estado de modo a deixá-lo mais bem preparado para enfrentar o défice orçamental e a dívida pública e com meios disponíveis para fazer os investimentos que se impõem no combate contra a pandemia e na preparação do futuro pós- pandemia.

Um outro ponto de divergência grave foi à volta das suspeições lançadas contra o ministro de Administração Interna. O assunto que há anos anda nas redes sociais e tem sido pontualmente ventilado em artigos de jornal e até em intervenções parlamentares foi catapultado para o centro da atenção pública na sequência do comunicado do Ministério Público (MP). Querendo anunciar abertura de instrução criminal por indícios de crime de violação do segredo de justiça logo após a publicação de uma notícia no Santiago Magazine, o MP acabou por confirmar um auto de instrução aberto sete anos atrás na sequência da morte de um indivíduo no âmbito de uma operação policial. O comunicado acrescentava ainda que não tem ninguém constituído arguido, nem foi convocado o actual ministro para fazer declarações. Como era de prever, o assunto chegou imediatamente ao Parlamento via uma declaração política do PAICV.

Ao longo dos trabalhos, nada ficou esclarecido e os partidos envolveram-se no tipo de troca de argumentos que bloqueiam qualquer debate sério e reafirmam o princípio de que em vez da busca da verdade deve-se ficar pela conveniência de cada um, sem preocupação com a realidade e os factos. Nem a existência de indícios de que por detrás dessas fugas de informação poderão estar a degladiar-se interesses no interior de instituições vitais para o país como as da polícia criminal conseguiu baixar os ânimos no parlamento e abrir caminho para um debate mais sereno e profícuo. O Governo, no seu comunicado posterior, limitou-se a apoiar o ministro e as instituições envolvidas, mas nada esclareceu quanto ao alcance e o impacto das tensões institucionais mesmo sabendo que o PGR já tinha manifestado publicamente a sua preocupação com a regressão na qualidade da investigação criminal devido à falta de cooperação entre as polícias.

O 13 de Janeiro de 1991 aconteceu porque os caboverdianos queriam viver num país em que ninguém está acima da lei, o poder é exercido no quadro da lei e a responsabilização política dos governantes é real e efectiva. Sem isso sabem de experiência dolorosa que não há liberdade, não há segurança e não há justiça. Neste ano, em que também se assinala os trinta anos da Constituição de 1992 que consolidou as conquistas do 13 de Janeiro, é fundamental que não se perca o sentido das motivações que levaram os caboverdianos a rejeitar um regime político e a depositar as suas esperanças num outro de liberdade, de democracia e de justiça para todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1050 de 12 de Janeiro de 2022.

segunda-feira, janeiro 10, 2022

Ganhar a crise

 

A decisão do governo anunciada, ontem dia 28 de Dezembro, de passar o país do estado de alerta para o estado de contingência veio relembrar a todos que a crise pandémica continua.

Se a euforia normal neste período do ano tinha feito esquecer essa dura realidade ou se a diminuição progressiva de casos nos últimos meses tinha desenvolvido alguma complacência no uso de máscaras, na higienização das mãos e no distanciamento social, o rápido crescimento de casos de covid-19 na última semana constituiu um acordar brusco. Não é que se estivesse a ignorar o que se estava a passar na Europa, na América e em outras partes do mundo, mas aparentemente para a generalidade das pessoas, já cansadas de tantas restrições, convinha pensar que era tudo muito longe.

Não tendo o país ainda desenvolvido capacidade para sequenciar o vírus e melhorar a sua vigilância epidemiológica com informação em tempo útil, as incertezas quanto ao “quando” e ao “como” reagir tendem a aumentar ficando às vezes a dúvida se se está a precipitar nas medidas duras de contenção ou se já são tardias. De qualquer forma, com a chamada à realidade e com a evidência de que a variante Ómicron é muito mais contagiosa ainda que menos agressiva, resta é ajustar-se aos novos constrangimentos e manter viva a esperança de que talvez no próximo ano a pandemia ceda e a covid-19 se torne uma doença quase comum como a gripe. O ano 2021 iniciou-se sob a ameaça da variante Delta que se revelou muito contagiosa e bastante letal em toda a parte e também em Cabo Verde. Hoje, a Ómicron está a substitui-la como variante predominante e num quadro em que há um número crescente de pessoas vacinadas. Se se conseguir diminuir as probabilidades de surgimento de variantes com um esforço global de vacinação talvez 2022 venha a se revelar o ano do fim da pandemia. É o que o mundo anseia e o que Cabo Verde precisa urgentemente.

Ninguém duvida que a resposta à crise pandémica e às suas consequências, em particular na vida económica e social, tem custado imenso ao país. Vê-se designadamente na perda de rendimentos das pessoas, na estagnação de sectores-chave da economia, na perda de receitas fiscais e consequente deficit orçamental e no aumento explosivo da dívida pública. Também é facto que, se as incertezas quanto à evolução da pandemia e quanto ao impacto que poderá ter na vida das pessoas e na economia continuarem, os custos nos próximos tempos serão cada vez mais difíceis de suportar. A percepção nos primeiros meses do ano de 2021, em cima das eleições legislativas, das dificuldades que iriam ser encontradas na gestão da crise terá contribuído para se manter o mesmo governo da legislatura anterior na expectativa provavelmente de que a continuidade seria preferível à uma alternativa traduzida em medidas políticas potencialmente disruptivas de um outro partido. Opções similares foram feitas em várias outras democracias. Há, pois, um dever de corresponder às expectativas e cumprir.

Quem ganha nessas circunstâncias fica com a responsabilidade acrescida de manter a nação mobilizada e focada para ultrapassar as extraordinárias dificuldades da conjuntura actual. O país terá que confrontar as vulnerabilidades reveladas pela crise, reconhecer os limites do modelo de desenvolvimento seguido, corrigir as ineficiências e manter uma dinâmica criadora e inovadora para contornar obstáculos, aproveitar oportunidades e potenciar no máximo os seus recursos. Mais do que nunca a construção do futuro não deve ser prejudicada com divisões ideológicas que impedem qualquer debate construtivo sobre a realidade e os desafios que se colocam ao país. O foco em resultados tangíveis que trazem ganhos para todos deve substituir confrontos que só têm sentido no quadro de uma guerra cultural interminável que deixa o país exangue e sem capacidade de se mover para a frente.

Questões fundamentais como a da conectividade envolvendo os transportes aéreos e marítimos num país arquipélago e relativamente remoto devem merecer um tratamento ponderado e realista que não pode ficar por grandes gestos que depois se vem saber dos custos enormes que incorrem. O caso da TACV é paradigmático. Desperta paixões, cria expectativas exageradas e demasiadas vezes desemboca em frustrações enquanto a dívida associada aumenta. Nesta semana iniciaram voos para Lisboa que pouco tempo antes tinham sido previstos para o primeiro trimestre de 2022 no quadro da reestruturação da empresa. Augura-se o melhor para a iniciativa, mas infelizmente faz lembrar decisões anteriores complicadas e custosas, cujos últimos episódios foi a vinda do avião de Miami em Abril deste ano, uma tentativa de reinício de voos em Junho seguido de arresto do avião e finalmente a renacionalização da empresa.

As incertezas quanto à duração da crise pandémica, se termina no ano de 2022 ou se vai continuar ainda por mais algum tempo, põem urgência no tratamento das questões essenciais e obriga que se tenha uma maior preocupação com os custos particularmente quando se trata de ajuda externa. A resposta global à crise tem posto pressão sobre os recursos que são disponibilizados no quadro da cooperação internacional e em certos casos já se nota algum cansaço dos doadores, muitos deles também pressionados pela gestão doméstica da pandemia. Em Cabo Verde é notório a diminuição em 64,5% dos donativos até Setembro em termos homólogos, como assinala o BCV no seu último relatório económico. É verdade que Luxemburgo continua com financiamentos de vários milhões de dólares para projectos de desenvolvimento, mas notícias recentes de ajuda orçamental de Portugal de quantias como 100 mil euros anuais e de Espanha de 600 mil euros por três anos podem deixar transparecer uma tendência de decréscimo que não se pode ignorar.

É evidente que Cabo Verde deve procurar ir por outros caminhos que não o de ajuda. Como bastas vezes foi repetido, as crises não trazem só desafios, mas também oportunidades. Nas crises podem-se observar fragilidades e vulnerabilidades que não estariam tão expostas em situações normais. Também por causa de situações extremas que transversalmente a sociedade é obrigada a enfrentar há a possibilidade de mobilizar a solidariedade numa escala sem precedentes para combater desigualdades sociais, proporcionar igualdade de oportunidade e garantir a inclusão. Desperdiçá-las, não fazendo as reformas que noutra situação dificilmente poderiam ser feitas, é imperdoável. Vários países do mundo, entre os quais os Estado Unidos com o seu projecto de infra-estruturas e de apoios sociais de mais de dois trilhões de dólares, a Europa com o plano de muitos biliões de euros de financiamento inovador chamado de bazuca financeira, mas também a China e outros países grandes e pequenos estão-se a preparar para o mundo que vai sair da crise. Um pequeno e frágil país como Cabo Verde tem que também fazer algo construtivo da experiência e dificuldade vividas com a pandemia. Para o ano de 2022 há que reunir coragem, visão e capacidade colectiva de diálogo para ganhar a crise. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1048 de 29 de Dezembro de 2021.

segunda-feira, dezembro 27, 2021

Enfrentar o novo normal

 

Nas vésperas do Natal e quase no fim do ano de 2021 a variante Ómicron do vírus SARS-CoV-2, identificada em primeiro lugar na África do Sul avança vertiginosamente pela Europa e pelos Estados Unidos da América tornando-se já em muitos lugares mais de 70% dos novos casos da infecção da covid-19.

 A rapidez com que tudo está a acontecer vem contrariar as expectativas de que pelo fim do Verão e último trimestres de 2021 o pior da pandemia teria sido ultrapassado. A aplicação massiva de vacinas a partir dos primeiros meses do ano parecia justificar esta crença, mas o caracter desigual da operação, as resistências encontradas e as dificuldades logísticas particularmente nos países menos desenvolvidos vieram revelar-se como factores propícios para o surgimento de variantes do vírus e no caso do Ómicron de uma variante mais infecciosa ainda que talvez menos virulenta. Naturalmente que as pessoas ficaram confusas e não espante que por vários países a confiança tenha diminuído e que situações de choque com as autoridades se tenham multiplicado.

O próximo ano de 2022 não dá sinais que vai ser muito melhor. Incertezas quanto ao futuro vão continuar e talvez seja esse estado de coisas o novo normal. Para a revista Economist em editorial desta semana é a era da imprevisibilidade previsível que desponta e que poderá prolongar-se por vários anos ao longo desta década. A corroborar a ideia parece ir o director da Riu Palace na entrevista de domingo à TCV quando alertou que para o próximo ano vai-se trabalhar no curto prazo porque trabalhar no longo prazo é impossível com as incertezas na Europa. Na nova era, assumir que é com um elevado grau de imprevisibilidade que se vai governar, trabalhar e viver será fundamental para se adoptar a melhor atitude na busca do bem geral, ser mais estratégico nas abordagens e dar mais atenção aos resultados.

Para isso, deve estar implícito que em certos sectores ou actividades não se poderá retomar do ponto onde se ficou no início da pandemia. Que em determinados empreendimentos vão-se ver inovações, quanto a produtos e processos afectando profundamente relações de trabalho e relações sociais nem sempre fáceis de antecipar. Que a reestruturação de cadeias globais de valor e de abastecimento irá eventualmente destruir oportunidades de negócios existentes e criar outras, as quais nem sempre passíveis de aproveitamento considerando as valências existentes no país. E que incertezas de outra natureza derivadas de tensões latentes entre potências económicas e militares conjugadas com os desafios constituídos pelas alterações climáticas e pela urgência em se proceder à transição energética poderão tornar mais complexas e sensíveis as relações internacionais de cooperação. Sem essa compreensão de um mundo a entrar numa nova era, a tentação vai ser a de continuar a fazer mais do mesmo, manter o modelo de gestão de “empurrar com a barriga” e deixar-se guiar exclusivamente pelo eleitoralismo na condução dos assuntos públicos.

Não passando para as pessoas a noção de que se está a viver num mundo mais complexo de imprevisibilidade previsível, fica difícil justificar por que a retoma do turismo pode não acontecer nos mesmos moldes do antigamente. Também não se explica por que aumentam os preços dos combustíveis e de energia e por que há deterioração do poder de compra e da qualidade de vida em consequência da inflação importada, dos custos mais altos dos transportes e dos estrangulamentos na distribuição global dos produtos. Sem um entendimento das dificuldades do momento, das suas causas e de como agir para as ultrapassar, para além da proverbial “mão estendida”, fica difícil apelar à contenção nas reivindicações, incentivar a cooperação para se ser mais produtivo e mobilizar o espírito de solidariedade com os mais afectados pela crise pandémica. O sucesso no engajamento das pessoas é essencial para se poder enfrentar as dificuldades actuais com o país altamente endividado e vivendo uma conjuntura rodeada de incertezas.

É evidente que uma mudança de postura do governo e de toda a classe política facilitaria todo o esforço de enfrentar as imprevisibilidades futuras. Mais do que nunca as pessoas precisam saber que se está a agir efectivamente para conter os custos, construir competências e para prestar serviços com qualidade. Aumentar a confiança nas instituições e diminuir o cinismo como são encaradas muitas das acções dos governantes é essencial. Também essencial é dar um enérgico basta ao jogo de apontar culpas em que se transformam todos os debates sobre os problemas do país. As questões ficam por ser esclarecidas, não se criam bases para acordos e compromissos e nas entrelinhas cria-se espaço para que outros interesses se sobreponham ao interesse público.

O arrastar por muitos anos por esse tipo de impasse provoca um mal-estar que para além das disfunções que provoca nas instituições, tem um efeito erosivo nas pessoas e no tecido social manifestando-se em comportamentos anti-sociais. Muito do alcoolismo, uso de drogas, violência contra pessoas e criminalidade estará provavelmente associado de uma forma ou de outra a esse mal-estar. E sem uma resposta compreensiva da governação do país, as reacções ficam pelas denúncias e pelas manifestações de indignação que depois com o passar do tempo e ausência de progresso na resolução dos problemas acabam por desembocar em frustrações e ressentimentos. Em ambiente de pandemia, de incertezas e de vulnerabilidades reveladas, o passo a seguir é para esses sentimentos já exacerbados serem condutas para mais violência como se está a verificar em todo o país.

Pôr um travão a isso passa por uma liderança que não deixe que o país se perca em discussões do passado e se vire decisivamente para confrontar o futuro prenhe de incertezas. Uma liderança que também se distinga pela coragem e realismo, competência pragmática e crença efectiva num futuro de prosperidade para todos. Não há maior prova de liderança do que demonstrar ser capaz de mobilizar a nação para a realização de tal desígnio. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1047 de 22 de Dezembro de 2021.

segunda-feira, dezembro 20, 2021

Elevar o poder local para outro patamar

 

No passado dia 15 de Dezembro, completaram-se trinta anos de poder local democrático em Cabo Verde.As primeiras eleições autárquicas realizadas em finais de 1991 aconteceram quase um ano depois que as eleições multipartidárias de 13 de Janeiro inauguraram uma nova era de liberdade e democracia no país. Com a criação de um regime democrático, o mais natural é que se procedesse rapidamente à restauração do poder municipal, agora dotado de órgãos eleitos pelo voto popular. O princípio da autonomia local, baseado no reconhecimento que comunidades locais têm interesses específicos em relação aos quais devem ter meios e órgãos próprios para os gerir, está intimamente ligado à democracia e à ideia de um Estado descentralizado. Nem se esperou pela adopção da nova Constituição, que iria acontecer em 1992, para se avançar com o processo eleitoral para as câmaras municipais.

O regime de partido único tinha posto fim às câmaras municipais e em sua substituição tinha instalado um secretariado administrativo dirigido por um delegado de governo coadjuvado por um conselho deliberativo, todos nomeados pelo governo central. Já o regime salazarista tinha limitado a autonomia das câmaras municipais com as nomeações dos titulares pelo governo. Com as eleições de 15 de Dezembro iniciou-se, de facto, uma nova era do poder local mas não sem que ficassem pendurados alguns resquícios dos regimes anteriores. Um deles tem a ver com os poderes do presidente da câmara municipal. Tido como órgão executivo singular e com poderes próprios tende a dominar o órgão colegial eleito, a Câmara Municipal, e a apoderar-se dos seus poderes adoptando uma postura de cacique local. O exemplo acabado disso é o que se passa actualmente no município da Praia em que o projecto de orçamento municipal que se vai discutir e aprovar na assembleia municipal não é o projecto da câmara municipal, mas sim do presidente.

De facto, o enquadramento legal das primeiras eleições autárquicas na falta de uma constituição ficou limitado e acabou condicionado pela legislação pré-existente de 1989. A Constituição de 1992 e depois o Estatuto dos Municípios de 1995 vieram mais tarde clarificar as atribuições e competências dos órgãos autárquicos, mas permitiu-se que continuasse a constar da lei um órgão executivo singular com poderes próprios apesar do texto constitucional só prever dois órgãos colegiais. O facto das decisões tomadas pelo presidente da câmara no exercício de poderes próprios não prever recurso para a câmara municipal tornou a tendência para o presidencialismo do presidente da câmara ainda mais pronunciado. Ultrapassa o que existe por exemplo em Portugal com um modelo autárquico similar em que poderes da câmara tacitamente exercidos pelo presidente têm recurso para o colectivo da câmara e não só para os tribunais como acontece em Cabo Verde.

O poder local em Cabo Verde começou nos 14 municípios então reconhecidos e hoje existe em 22 municípios depois da criação de S. Domingos, Mosteiros e São Miguel nos anos noventa e de mais um total de cinco nas ilhas de Santiago (3), Fogo (1) e S. Nicolau (1) em 2005. É reconhecido por todos o extraordinário efeito que a criação dos municípios tem tido nos diferentes pontos do território nacional e nas respectivas comunidades locais. Ganhou-se muito nomeadamente com os investimentos feitos, com a maior proximidade na prestação de vários serviços, com o reconhecimento do carácter específico dos problemas e interesses locais, um maior sentido de pertença e uma voz distinta ao nível nacional. Podia-se provavelmente ter ganho mais. O que se conseguiu até agora tem ficado aquém das expectativas que acompanharam a instalação do poder local democrático.

Em termos de descentralização depois da instalação dos órgãos municipais não se viu um esforço de aprofundamento com experiências inframunicipais para as quais havia e há abertura constitucional. Preferiu-se aumentar o número de municípios não dando a devida atenção à sustentabilidade dos mesmos. A oportunidade de se criar uma administração municipal com uma cultura de relação com os utentes menos centralizadora, menos burocrática e mais atenta às necessidades das pessoas foi em grande parte desperdiçada. Da mesma forma foi perdida a oportunidade de se instituir nas novas administrações municipais uma cultura de mais isenção e imparcialidade na relação com os munícipes e de menos partidarismo nas nomeações das chefias e cargos técnicos. Com tais opções perderam-se muitos dos ganhos de eficiência e eficácia pretendidos com a instituição dos municípios, ficando demasiadas matérias dependentes de decisão do presidente da câmara, cada vez mais centralizador, e de alguns dos seus vereadores mais próximos.

A proximidade das pessoas e dos problemas propiciada pelo poder local devia ser uma base forte para a construção de um espírito democrático, o desenvolvimento do civismo e uma cultura de participação. Não é líquido que se tenha tido muito sucesso nessas frentes fundamentais para uma cidadania consciente e actuante. A política local sofre com a crispação político-partidária e a possibilidade de participação de grupos de cidadãos nos órgãos autárquicos não a atenuou o suficiente para ajudar a focar a atenção na resolução dos problemas comuns com negociações, acordos e compromissos firmados. Também não se vê engajamento suficiente das autarquias na luta contra as incivilidades que se impunha para que houvesse menos lixo, menos ruas sujas, menos violência e se vivesse num ambiente menos confrangedor. Em vez de participação cívica, nota-se o crescer da cultura de dependência numa relação directa com a tentação de caciquismo que desde o início se manifestou.

Um outro factor importante que também é prejudicado é o sentido de pertença enquanto munícipes, ou seja, residentes num território bem delimitado. Trata-se de algo que devia ser central na identificação dos interesses próprios e constituir a base para se encontrar soluções e exigir responsabilidades dos órgãos eleitores. Mas é muitas vezes escamoteado com apelos identitários vindos dos actores políticos que deliberadamente confundem o munícipe com o nascido no território. No processo são largos segmentos da população que são deixados de lado e quase se consideram expatriados no lugar onde residem, fazem a sua vida e vêem os filhos crescer. Para esse estado de coisas também contribui o facto de os municípios não dependerem suficientemente dos impostos dos seus membros e de nem fazerem o esforço para fazer a colecta de impostos que lhes cabe por lei.

A falta de sustentabilidade própria dos municípios leva a uma excessiva dependência do Estado central. Esta relação por sua vez alimenta a tendência para o caciquismo dos dirigentes ao mesmo tempo que enfraquece a ligação dos cidadãos com os seus municípios. Tudo isso acaba por prejudicar o funcionamento da democracia local, impedir que os recursos postos à disposição sejam usados de forma eficiente e eficaz e também que a população local, não ultrapassando as suas divisões e querelas, não se engaje como devia na resolução dos problemas da comunidade. Ao fim de trinta anos com altos e baixos, aspectos positivos e negativos impõe-se que se dê um outro impulso ao poder local. Há que o colocar na posição de cumprir com as promessas implícitas na sua criação nomeadamente a descentralização, autonomia e mais prosperidade e qualidade de vida em qualquer parte do território nacional que as pessoas escolherem para viver. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1046 de 15 de Dezembro de 2021.

segunda-feira, dezembro 13, 2021

Democracia e eficiência

 

Finalmente tomou posse esta segunda-feira o novo ministro do Mar depois de mais de um mês que formalmente o Primeiro-ministro tomou conhecimento do pedido de demissão do cargo apresentado por Paulo Veiga.

Na primeira reacção, o PM disse que a nomeação do novo titular ficaria para depois do empossamento do Presidente da República que estava marcado para 9 de Novembro. Nada o obrigava a esperar, considerando que o então PR estava em plena posse dos seus poderes. Se ainda levou mais de três semanas para propor, outras razões terão pesado na decisão, ou indecisão, conforme as interpretações, considerando que acabou simplesmente por entregar a pasta da Economia do Mar ao ministro da Cultura.

O país não ficou realmente surpreso com a solução encontrada porque tem sido a forma standard de operar do actual primeiro-ministro. Não é dado a reais remodelações do governo nem com a mudança de legislatura e nem até agora com a crise pandémica, não obstante o seu impacto sem precedentes ao nível económico e social. Quando surgem vagas no governo por razões de demissão, desaparecimento físico ou desgaste político de vária ordem tende a entregar a pasta a um outro ministro ou faz acréscimos pontuais. Não estranha que a discussão sobre a funcionalidade do governo fique sobre se é “gordo ou magro” visto da perspectiva de quanto o número de titulares do momento estará a pesar nas despesas do Estado. Deixar sem titular durante mais de um mês um sector-chave da economia nacional e depois ir para o que até prova contrária poderá passar a imagem de ser uma solução de recurso alimenta esse tipo de debate porque fica-se sem saber que objectivos são prioritários e qual é a estratégia que se está a seguir para os atingir.

Com o turismo ainda longe de reocupar o seu papel na dinamização da vida nacional, a que se acrescentam as múltiplas incertezas provocadas por surtos de variantes do sars-cov-2 e outros constrangimentos da economia mundial, é cada vez mais clara a necessidade de se proceder à diversificação da economia. O sector da economia do mar é fulcral nesse sentido. Entre as suas várias contribuições permite explorar recursos naturais através da actividade piscatória e aquacultura, aproveitar a geo-localização do país para prestar um leque importante de serviços e via investimentos já feitos na investigação científica, ensino superior e formação profissional capacitar mão-de-obra especializada para demandas nacionais e estrangeiras em vários domínios. Em simultâneo, é também fundamental na criação de condições para se manter a ligação entre as ilhas, unificar o mercado nacional e permitir a certas actividades agro-pecuárias e industriais beneficiar de economias de escala que de outra forma não seriam possíveis. Não é, pois, um sector que em algum momento ou em qualquer questão concreta se queira passar qualquer sinal de descaso, indecisão ou fragilidade.

Particularmente em tempos de crise devia-se procurar transmitir com maior vigor uma imagem de firmeza institucional, de comprometimento com os objectivos definidos e de sentido de Estado e de defesa do bem público. Também devia-se evitar tacticismos político-partidários que só levam a bloqueios e a degradação do discurso político. De outra forma começam a proliferar comportamentos e iniciativas fora do quadro procedimental já estabelecido dos quais ninguém acaba por ganhar, só se criam tensões desnecessárias no sistema político e dá-se azo para futuros conflitos de competências.

Há duas semanas atrás aconteceu que o PM foi com uma delegação de dois ministros apresentar a proposta de orçamento do estado ao PR. Na sequência, o PR fez uma série de contactos junto dos partidos políticos com assento parlamentar, câmaras de comércio e sindicatos ficando a impressão no público que poderia haver dificuldades em passar o OE. Tudo afinal não passou de falso alarme como foi comprovado na sessão do parlamento em que para apoiar a proposta do governo esteve uma maioria sólida. Ninguém beneficiou com os equívocos criados e as iniciativas que bem podiam ser mais úteis noutros momentos, mas no ar e provavelmente na mente de alguns o governo ao longo do processo deixou passar um quê de fragilidade.

Esta segunda-feira, foi a vez do presidente da Assembleia Nacional a encontrar-se com o presidente da república para apresentar a agenda parlamentar. Segundo as declarações do PAN à imprensa foram abordadas várias questões entre as quais a eleição dos órgãos externos à Assembleia Nacional, a questão da segurança do parlamento e “a revisão da Assembleia Nacional para suprir as lacunas, acabar com os excessos que temos no regimento, para que o parlamento possa imprimir maior eficiência e eficácia no seu desempenho”. Tudo isso é no mínimo surpreendente não só pelo insólito como também por não se imaginar que papel o presidente da república poderia ter nessas matérias que são da competência exclusiva do parlamento, um órgão de soberania plural eleito directamente pelo povo. Em Outubro último o parlamento elegeu com a maioria de dois terços dos deputados presentes os membros do Conselho Superior de Defesa Nacional e os membros da comissão de fiscalização dos Serviços de Informação da República. Há, portanto, disponibilidade para colaboração dos grupos parlamentares e nada aparentemente impede que essa vontade que já se manifestou também se estenda para a eleição dos órgãos externos. Certamente que o presidente da Assembleia Nacional pode sozinho pressionar para que isso aconteça o mais cedo possível.

O ambiente de “competências pouco definidas” ou “fluídicas” que parece querer instalar-se nos últimos tempos já se faz sentir também ao nível do poder local. Na Câmara da Praia o presidente num conflito aberto com a maioria dos vereadores entre os quais alguns pertencente à sua lista dá sinal de querer assenhorear-se das competências do órgão executivo colegial, nomeadamente a aprovação da proposta do orçamento municipal a apresentar à assembleia municipal, como estabelece o estatuto dos municípios. Está-se supostamente a contrapor à lei de organização e funcionamento dos municípios a lei das finanças locais que diz que a proposta do orçamento elaborada pelo presidente é submetida à apreciação da Câmara até dia 15 de Setembro numa interpretação que esvazia de qualquer importância um órgão político colegial directamente eleito, anulando efectivamente o mandato dos eleitos que no caso até representam diferentes partidos.

A última reunião da assembleia municipal que devia ser de discussão e aprovação dessa proposta não se realizou com esse ponto na agenda porque continua o braço de ferro. Aparentemente a AM está a hesitar em seguir o procedimento adoptado durante os trinta anos de poder local democrático em todos os municípios do país que é de se discutir e aprovar o orçamento do município depois de a câmara ter aprovado o projecto de orçamento municipal (art. 92º nº 2, alínea r). Com essa falha procedimental põe-se em causa os equilíbrios do sistema de poder local ao provocar a deslocação excessiva de poder para o presidente da câmara em detrimento dos outros órgãos eleitos e incorre-se no risco de perda de eficácia na actuação pública municipal e de com isso defraudar os eleitores.

A realidade tem demonstrado que cair na tentação de seguir a via do voluntarismo, da discricionariedade e da unicidade de poder só porque parece dar respostas rápidas e fortes traz custos que todos acabam por pagar e constituiu um lastro que impede o desenvolvimento. Há, pois, que manter a aposta no aprofundamento da democracia que implica respeito pela separação de poderes e competências, pluralismo nas deliberações e responsabilização permanente. É ainda o melhor caminho para maior eficiência e eficácia do Estado na vida pública e para se conseguir o almejado desenvolvimento inclusivo. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1045 de 8 de Dezembro de 2021

segunda-feira, dezembro 06, 2021

Precaver incertezas futuras

 Nos últimos dias o mundo passou a estar outra vez em sobressalto com o aparecimento de mais uma variante do vírus Sars-cov-2. O novo espécime detectado na África do Sul, e já declarado variante de preocupação pela Organização Mundial de Saúde (OMS), apresenta mais de 30 mutações em relação ao vírus original.

São mutações que, segundo os cientistas, podem vir a revelar-se facilitadores de contágio e indutores de mais casos de hospitalização e mortes por Covid-19. A rapidez com que se propagou em algumas zonas da África do Sul e o facto de já ter sido detectado em vários países e continentes sugere logo à partida alta transmissibilidade. Quanto à letalidade provavelmente vai-se ter que esperar umas semanas para conseguir dados suficientes para a aferir adequadamente. Preocupante é o facto de, aparentemente, estar a levar a taxas elevadas de hospitalização de crianças com menos de dois anos, o que a distingue de outras variantes que têm, em grande medida, poupado as crianças.

As reacções ao aparecimento da variante têm sido bastante fortes e até desproporcionais ao ponto de o presidente americano Joe Biden relembrar que foi classificada pela OMS como variante de preocupação mas não de pânico. A verdade é que um número significativo de países, particularmente países desenvolvidos da Europa, Ásia e América trataram de cortar viagens para um conjunto de países da África Austral logo que a informação sobre a variante foi facultada, sem se cuidar dos enormes prejuízos que estariam a causar a esses países. Uma reacção considerada por muitos como excessiva e que nem os ganhos discutíveis que podiam advir de um suposto isolamento das origens do novo surto da coronavírus justificavam.

De facto, não se está no mesmo ponto de há um ano atrás no que respeita à preparação para enfrentar surtos de coronavírus. Na época ainda não se tinha conhecimento profundo do vírus, não havia vacinas disponíveis e não se podia contar com antivirais (molnupiravir and Paxlovid) em forma de comprimidos bastante efectivos no combate aos sintomas mais graves da covid-19 a poucos dias ou semanas de serem autorizados pelas reguladoras do sector da saúde na América e na Europa. Ainda bem que, de alguma forma, depois desse passo em falso se está a procurar compensar esses países africanos com gestos de solidariedade que incluem grandes ofertas de vacinas e outros produtos necessários para um combate efectivo contra a pandemia.

Devia ser fácil para todos compreender que o que a humanidade enfrenta é uma pandemia e que a resposta efectiva à ameaça não pode ser pelo isolamento. Tem que ser simultaneamente local e global. De outra maneira, deixando milhares e milhões de pessoas por vacinar, sem ser testadas e não praticando adequadamente as regras de distanciamento social e de utilização de máscaras, só se está a disponibilizar viveiros selectos e diversificados para o vírus produzir mutações que depois partindo de um ponto de origem, não interessa onde no mundo, acaba por chegar em pouco tempo a qualquer outro lugar da face da Terra.

A falta de racionalidade no combate global à pandemia tem a sua contraparte ao nível nacional na resistência à vacinação e na desvalorização que certos grupos e personalidades fazem das vacinas, das medidas de distanciamento global e do uso de máscaras nas ruas, em recintos fechados e em encontros massivos das pessoas. A tensão polarizante criada por esse tipo de atitude diminui consideravelmente a eficácia das medidas tomadas porque na prática deixa sempre uma parte da população desprotegida no seio da qual o vírus pode fazer mutações, desenvolver estratégias para ser mais eficiente na infecção dos humanos e preparar o caminho para surtos sucessivos de covid-19. O mesmo acontece quando largas camadas da população do globo ficam sem vacinas e sem os cuidados que devem ser dispensados aos que são imunodeprimidos ou foram submetidas a reinfecções sucessivas da coronavírus por causa de tratamento inadequado.

O resultado desse tipo de comportamento em termos de variantes potencialmente mais perigosas e de sucessivos surtos da covid-19, aumentando incertezas e provocando disrupções sucessivas da vida das pessoas a todos os níveis, devia ser óbvio para todos e forçar mudanças sérias de atitude, mas não é. Pelo contrário depara-se é com esforços de alguns, em geral os mais afortunados, em procurar açambarcar vacinas, controlar patentes para maximizar lucros e sempre que confrontados com a realidade de novos surtos de covid-19 recorrer a medidas de isolamento. Com isso, aumentam extraordinariamente as incertezas nos países pobres, na prática alimentando o círculo vicioso que tende a perpetuar o problema e a reproduzir as condições que vão quase por certo garantir surtos sucessivos do vírus num futuro não muito longínquo.

Um dos grandes enigmas do nosso tempo é o facto de perante uma ameaça global com a magnitude da covid-19 não se ver crescer uma onda de solidariedade que fosse a expressão forte e sem ambiguidade da consciência de uma humanidade comum. Obras de ficção na literatura e no cinema têm repetidamente debruçado sobre esse momento em que, face à ameaça ou choque externo de contornos planetários, toda a humanidade se unia no esforço para o combater. A verdade é que pelo menos até agora a pandemia da covid-19 ainda não despertou esse sentimento de união e a outra grande emergência planetária, que são as alterações climáticas, tem ficado muito aquém do que seria desejável, como se viu semanas atrás no encontro da COP26 na Escócia.

Essa falta de sentido de urgência manifesta-se também ao nível das políticas nacionais de vários países em que muitas vezes a tendência é continuar na mesma toada de sempre mas com os olhos postos nas novas linhas de financiamentos. Há casos em que se aproveita facilidades de crédito – como por exemplo, a chamada bazuca financeira da União Europeia ou outros fundos facultados por organizações multilaterais criadas para responder às alterações climáticas e às necessidades da transição energética e da transição digital – para fazer mais do mesmo. Raros são os casos, como na Itália de Mario Draghi onde se vai conseguindo reunir vontades para fazer as reformas que se impõem neste momento charneira da vida da humanidade, provando mais uma vez a importância de se ter lideranças visionárias, competentes e comprometidas com o bem público.

Em Cabo Verde o peso da dívida pública, as limitações orçamentais de um país que sofreu das piores contracções da sua economia durante a pandemia e as incertezas quanto a uma retoma sustentada como vem assinalando o BCV não parecem ser razão suficiente para se ultrapassar a rigidez do discurso e do debate político e encontrar compromissos necessários para avançar. A forma como vem sendo tratada a questão da elevação do tecto da dívida interna e do aumento proposto dos impostos é prova de como questiúnculas partidárias tomam precedência sobre tudo o resto deixando o país sem a possibilidade do diálogo necessário para encontrar saídas para os graves problemas existentes. O quase pânico gerado pelo repentino surgimento da variante ómicron da Sars-Cov-2 e as incertezas para as viagens e para o turismo que criou devia ser mais um aviso de como a crise pandémica ainda não terminou e que a retoma da normalidade anterior não é para tão cedo como muitas vezes os governantes se mostram ávidos de proclamar.

Necessário se torna ir além dos discursos repetitivos e presos no passado de governação dos partidos do arco de poder para se focar na procura de soluções para os graves problemas que se colocam agora e também para enfrentar o próximo ano de 2022 que, segundo alguns observadores, estará a perfilar-se como uma espécie de annus horrible com muitas incertezas. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1044 de 1 de Dezembro de 2021.

segunda-feira, novembro 29, 2021

Estabilidade garante-se com maioria coesa

 

A discussão e a aprovação na generalidade do orçamento do Estado vai acontecer durante os trabalhos da Assembleia Nacional que se iniciam hoje, dia 24 de Novembro, com muita controvérsia pelo meio.

A proposta de lei do OE 2022 foi apresentada ao público em Outubro e tem sido alvo de debate público acalorado tanto pelo suposto impacto que teria tido nos resultados das eleições presidenciais como pelas reacções negativas recebidas de vários sectores da população e operadores económicos. A intenção do Governo de aumentar impostos, em particular de elevar a taxa do IVA de certos produtos de 15 para 17%, não foi digerida muito bem pela generalidade da população que desde Setembro/Outubro já se vê a braços com aumentos gerais dos preços, em particular dos preços de combustíveis, de energia e de transporte. A questão à volta dos impostos ganhou traços mais complicados quando alguns deputados da maioria deixaram transparecer, em declarações à imprensa e nas redes sociais, posições não convergentes com as propostas do governo de aumento do IVA.

No espírito de alguns estar-se-ia a desenhar algo similar ao que aconteceu em Portugal algumas semanas atrás com a não aprovação do Orçamento do Estado e subsequente dissolução do Parlamento pelo Presidente da República. A parecer confirmar isso, veio na semana passada o acto insólito do Primeiro ministro, acompanhado do ministro de Finanças e da ministra de Assuntos Parlamentares, ir ao palácio presidencial apresentar o orçamento do Estado ao Presidente da República. Logo de seguida, o Presidente da República chamou para consultas os partidos com representação no parlamento. Das declarações dos dirigentes partidários à saída, ficou-se a saber que havia abertura para diálogo em sede de discussão orçamental e em matéria de elevação do nível da dívida interna que, por duas vezes, tinha sido presente ao parlamento e não passou. Do protagonismo inusitado do Presidente da República ficou patente a fragilidade negocial do Governo junto da oposição e dúvidas aumentaram quanto à própria coesão da maioria parlamentar.

Em sistemas de governo de pendor parlamentar, esse tipo de intervenção do Presidente da República só acontece em situações extremas como a que se verificou recentemente em Portugal em que um governo minoritário se viu sem o apoio dos correlegionários da chamada geringonça para aprovar o orçamento do Estado. Aí, sim, depois de avisar para as consequências de não aprovação do instrumento fundamental da governação, o PR agiu em conformidade. No caso de Cabo Verde, não parece que o espaço para as conversações com as forças da oposição tinha sido realmente esgotado. Só há pouco tempo é que se trouxe verdadeiramente para atenção das pessoas e dos protagonistas políticos a situação grave da dívida pública, os efeitos nos preços derivado do aumento distorcido da procura global de produtos, acompanhado de estrangulamentos logísticos graves nos transportes e, ainda, o enorme peso que irá representar o serviço da dívida a partir de 2022 com um aumento de mais 9 milhões de contos. Era só uma questão de tempo para, em sede parlamentar, se chegar a entendimentos e a compromissos para se ultrapassar a actual situação.

Por outro lado, não se compreende que, inadvertidamente ou não, se queira passar a ideia de uma maioria fragilizada. Como se pôde vislumbrar, há seis meses atrás, na aprovação da moção de confiança que se seguiu à apresentação do Programa do Governo, a maioria parlamentar é aparentemente sólida e não se vê razões para que em outros momentos cruciais para a garantia da continuidade do governo, como aprovação de Orçamento de Estado e votação de moções de censura ou de confiança, não vote em conformidade, mesmo que noutros momentos um ou mais deputados expressem desacordos pontuais. A acção do governo, enviesando desnecessariamente o processo de discussão e a aprovação do orçamento – que iniciado no Governo, vai ao Parlamento e só depois chega ao Presidente da República para promulgação –, diminui o papel do Parlamento e abre o caminho para uma reconfiguração das relações entre órgãos de soberania que desnecessariamente pode beliscar a estabilidade política que todos dizem prezar.

Grande parte do debate durante a campanha eleitoral para as presidenciais incidiu sobre a questão da relação do Presidente da República com o Governo. Todos os candidatos, com excepção do candidato abertamente presidencialista, professavam colaborar com o governo e não ser um factor de instabilidade política no país. A ênfase nesta questão às vezes até parecia excessiva porque parecia confundir lealdade institucional que deve existir entre órgãos de soberania com algum tipo de colaboração em que a função do PR de árbitro e moderador do sistema saía de alguma forma diminuída. Curiosamente, o que se vem notando nas últimas semanas é precisamente o contrário. O Governo dá sinais de fragilidade, de indecisão e até subserviência enquanto o Presidente da República não perde tempo em deixar o país saber o que pensa dos problemas e desafios que está a enfrentar neste momento de crise. O problema é que para além da imagem projectada por uns e outros, o sistema determina quem, de facto, tem os instrumentos para governar e é responsável pelos resultados obtidos.

O sistema de governo é mais eficaz, com benefícios para todos, em termos de liberdade e democracia, de capacidade de resolução dos problemas e ultrapassar vulnerabilidades e de criação de condições para prosperidade futura quando os seus titulares cumprem precisamente o que lhes compete. Naturalmente que há sempre jogo político e tensões que se desenvolvem no processo. Se tudo for percebido como feito em nome do interesse comum, credibilizam-se as instituições e valorizam-se ainda mais o pluralismo e a separação de poderes pelas vantagens a todos os níveis que trazem para o país, em particular a estabilidade política que tem caracterizado a democracia cabo-verdiana desde os seus primórdios há trinta anos atrás. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1043 de 24 de Novembro de 2021.

segunda-feira, novembro 22, 2021

Não adiar o futuro com divisões

 

Pela primeira vez num acto solene de primeira grandeza como é o de investidura do presidente da república o discurso do presidente eleito foi proferido num modo bilingue, parte em português, parte em crioulo. Ninguém ficou grandemente surpreendido considerando que há muito que o uso da língua materna cabo-verdiana pelos titulares dos órgãos de soberania é corriqueiro no país. O PR, o PM, os ministros e os deputados em várias circunstâncias fazem declarações, debatem no parlamento e dirigem-se às pessoas e ao país em crioulo, usando as diferentes variantes conforme a audiência ou a origem do orador. Os cidadãos também podem tratar os seus assuntos com administração pública e depor nos tribunais em crioulo. A língua é falada de forma generalizada no país por todos os estratos sociais e é um instrumento fundamental de expressão da alma cabo-verdiana particularmente na sua música, em todos os géneros cultivados nas ilhas e nas comunidades no estrangeiro. Se para alguns ainda houvesse algum sentimento que o crioulo era oficialmente discriminado seria de esperar que com esse acto do novo PR, num momento alto da vida da república, tal dúvida fosse completamente dissipada.

Estranhamente não é o que aconteceu. Em vez da acalmia dos ânimos num momento único que devia ser de união, o que se seguiu foi o recrudescer da militância em prol de uma oficialização que supostamente estaria a ser preterida. De facto, o artigo 9º da Constituição da República sob a epígrafe línguas oficiais estabeleceu desde 1999 que todos os cidadãos têm o dever de conhecer as línguas oficiais e o direito de usá-las. Também determina que o Estado promova as condições para a oficialização da língua materna a par com a língua portuguesa, o que evidentemente implica que tenha escrita aceite por todos. Ou seja, está-se a perseguir um fantasma, visto que a oficialização é real, como o seu uso normal nos mais diferentes actos deixa transparecer, em vez de concentrar na criação de condições para se ter a língua escrita. Até parece que convém excitar paixões apontando exemplos de discriminação, identificando vítimas e alimentando ressentimentos em vez de se estimular os impulsos e sentimentos positivos de perseverança, criatividade e espírito de união necessários para a realização prática das condições exigidas pela constituição.

Não mais existindo razões reais para continuar a pressionar o sistema político no sentido da oficialização, para além da vontade de uns de se mostrarem “mais puros e autênticos” à custa de adversários fictícios, o foco desvia-se para o sistema de ensino. Não se tem a língua escrita padronizada, mas quer-se que seja ensinada nas escolas e liceus do país. Não há professores formados nem se produziram manuais, mas tudo aponta que as aulas para os alunos do secundário a partir do 10º ano vão começar no próximo ano lectivo. O que, segundo declarações feitas na TCV, no domingo dia 14, por membros do governo e outras personalidades, parece ser uma decisão assente, curiosamente ainda não foi levada para discussão e aprovação no órgão próprio, no Conselho de Ministros. Também não se sabe se mais tempos lectivos vão ser adicionados aos alunos ou se se vai subtrair de disciplinas fulcrais o tempo para leccionar a língua materna e nem se conhecem os outros custos tangíveis e intangíveis a incorrer com a iniciativa. Entretanto, para muitos pais apreensivos, observando de fora esta ofensiva militante que já vem de longe, só lhes resta, se tiverem sorte e meios, procurar outras escolas com outro currículo e outra gestão como, aliás, vem acontecendo há vários anos.

Todo este conflito fictício em que o crioulo é apresentado como uma língua discriminada tem tido custos pesadíssimos que estão à vista de todos, mas que são ignorados como, aliás, muitas outras coisas no país. Posto em confronto de natureza identitária com o português, torna-se num sério obstáculo à aprendizagem afectando transversalmente a qualidade do ensino em Cabo Verde. Ninguém, porém, parece preocupado com o facto dos enormes investimentos no sistema educativo não trazer os retornos desejados. O facto de se exigir aos estudantes cabo-verdianos que vão para universidade em certos países lusófonos prova de proficiência no português não parece ser motivo de preocupação, nem tão pouco o facto de entre os países de expressão portuguesa serem os cabo-verdianos a ficar para trás no domínio da língua com prejuízo para a sua empregabilidade entre os emigrantes em Portugal. Para quem alimenta este conflito o que interessa são os reflexos da polarização em outras disputas políticas e culturais pois, fazendo muitos deles parte de uma elite que envia os filhos para as melhores escolas, não são prejudicados com as consequências. Antes pelo contrário, consolidam a sua posição.

Cabo Verde tem ganho uma grande reputação pela sua estabilidade política na democracia ao longo dos últimos 30 anos. Para essa estabilidade contribui extraordinariamente o facto de Cabo Verde ser um povo e uma nação unido pela cultura, pela língua e por um destino comum no decurso de séculos e em condições adversas dentro de um império colonial. É fundamental não permitir que esse ganho extraordinário seja diminuído com divisões que opõem ilhas e regiões do país numa luta por recursos, com importações de preconceitos de raça e de cor de há muito sem sentido no país em termos sociais, económicos ou políticos e com questões identitárias desconhecidas para uma gente de há muito imbuída de uma consciência de nação. Aprecia-se a riqueza que se tem quando se observa o desastre terrível que se abateu sobre a Etiópia, um país que estava em pleno progresso e um exemplo de sucesso em África, por causa de conflitos étnicos. Por outro lado, há que ter em atenção que a democracia, porque tem na sua base a liberdade e o pluralismo, pode na sua dinâmica levar a polarizações, impasses e mesmo ao extremar de posições com base em conflitos políticos, sindicais e outros. Manter a unidade de propósitos em questões fundamentais evitando fractura divisivas e artificiais é essencial para se beneficiar da dinâmica democrática e para fazer avançar o país sem que se incorra no perigo de paralisia e regressão que podem advir de instabilidade política com impacto duradoiro nos domínios económico e social.

No mundo de hoje com as grandes crises, a pandémica e a económica e social, e os grandes desafios, a transição energética e as alterações climáticas, é de maior importância que se construa nas sociedades democráticas um capital de confiança traduzido na confiança nas instituições, no alto grau de civismo e no foco no interesse comum. Países com esse capital conseguem com mais facilidade e mais solidariedade enfrentar as dificuldades presentes como os surtos de covid-19, as resistências à vacinação, os altos preços de energia, a inflação que vai fazer subir o custo de vida e diminuir o poder de compra e as dificuldades em conseguir emprego de qualidade. Central para se conseguir esse capital de confiança vai ser o comportamento dos governantes e da classe política em geral. Mais do que nunca, o país precisa de uma liderança de qualidade, competente e comprometida com o interesse comum e que não se deixa levar pelo caminho fácil, mas custoso do ilusionismo. Do presidente da república, órgão singular e suprapartidário, espera-se que aja para reforçar a unidade da nação para que a dinâmica da governação democrática mostre os seus frutos sem perigo de divisões que criam ineficiências, distracções e bloqueios e deixam o futuro permanentemente adiado.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1042 de 17 de Novembro de 2021.

 

segunda-feira, novembro 15, 2021

Fará história quem oferecer nova narrativa

 

O novo Presidente da República, doutor José Maria Neves, no seu discurso ontem na cerimónia de investidura disse a dado passo que Cabo Verde “vive uma situação de crise a qual foi revelada e agravada pela pandemia cujos efeitos têm sido extensos e profundo”.

Tais efeitos vêem-se, segundo ele, nos níveis da dívida pública e do défice público nas altas taxas de desemprego, nas manchas significativas de pobreza e na acentuada desigualdade e exclusão social. É um facto que a situação do país piorou com a covid-19 como, aliás, todos os países do mundo, mas já não é tão claro que a crise em que se encontra tenha sido revelada em 2020 pela pandemia.

Provavelmente já vem de longe quando, na sequência de grandes investimentos nos princípios da década, se seguiram anos de quase estagnação económica com médias de crescimento anual de 1% do PIB. Mostrou a cabeça com clareza quando a seca de 2017-2019 revelou as vulnerabilidades do país e a precariedade de vida das populações, particularmente no mundo rural, não obstante os programas multimilionários de luta contra a pobreza implementados ao longo dos anos, designadamente o do Banco Mundial, de 117 milhões de dólares, iniciado em 2005. A conjuntura económica externa favorável dos anos antes da pandemia terá ajudado a camuflar a situação com crescimento a aproximar-se à volta dos 5%, mas os problemas de fundo da dívida pública elevada, da falta de diversificação da economia, do desemprego e da crescente desigualdade social já lá estavam. O que leva a pensar que a crise em que se encontra o país tem raízes mais profundas e que não deriva simplesmente de opções políticas recentes do governo.

Saber identificar essas causas mais profundas que mantêm Cabo Verde vulnerável e as suas populações em situação de precariedade profunda após 46 anos de independência é a tarefa urgente que se impõe neste momento. Já se conhece parte das consequências da covid-19 mas não se sabe ainda até onde pode ir considerando que a covid-19 ainda não está sob controlo e não se consegue prever o quanto vai afectar a economia global nos próximos tempos. Concomitantemente, está-se perante outros desafios como o da transição energética e o das alterações climáticas cujas consequências de omissão ou de uma má abordagem ninguém realmente conhece e que podem ser simplesmente catastróficos. Para se poder navegar no meio de tantas incertezas, o mínimo que se deve fazer é procurar ter uma visão realista sobre o país e mobilizar vontades para ultrapassar os obstáculos que até agora impediram o país de pôr o seu desenvolvimento em bases mais seguras, mais sustentáveis e mais esperançosas para toda a gente.

Do presidente da república, que é o garante da unidade nacional, espera-se que tenha um papel central na promoção do diálogo necessário para se conhecer os constrangimentos que impedem o país de avançar num passo rápido, mesmo nas melhores conjunturas, e chegar aos acordos para a realização das reformas que o país precisa. A coincidência do início de um novo mandato presidencial com a crise que, pelo seu impacto expõe as fragilidades do país e as vulnerabilidades das populações de uma forma nunca antes vista, pode constituir-se numa oportunidade única para se proceder à tal reflexão. Na sua qualidade de árbitro e moderador do sistema político e exercendo a sua magistratura de influência, o novo presidente da república poderia desempenhar um papel fundamental em todo esse processo e fazer o debate fluir, colocando o foco no interesse comum da nação e minimizando diferenças ideológicas. O país encontra-se numa encruzilhada e fará história quem contribuir para que encontre a melhor saída.

O facto de depois 46 anos de independência ainda não ter a estrutura produtiva diversificada que seria de desejar nem a estrutural empresarial necessária para criar empregos de qualidade e exportar bens e serviços é uma falha que devia inquietar toda a gente. Piora a situação é que, com as insuficiências existentes, não se estabeleceu no país uma cultura de trabalho voltada para a criação de riqueza que pusesse ênfase na produtividade e na qualidade do serviço prestado. Pelo contrário, ao mobilizar a ajuda externa para as colmatar, em particular no que respeita a assegurar algum rendimento para as pessoas, desenvolveu-se um sistema de dependência que acabou por se sobrepor a tudo o resto no país.

O Estado agigantou-se e centralizou-se cada vez mais, criando uma classe média dele dependente para empregos, favores e acessos privilegiados. Também, como sempre acontece quando se estabelecem sistemas de natureza rentista, a desigualdade aumenta e fica difícil quebrar círculos viciosos de pobreza. Finalmente, o exercício do poder político a todos os níveis acaba misturado com a gestão da dependência alimentando o eleitoralismo na governação e práticas ilegais como compra de votos nos períodos eleitorais. Não admira que, privilegiando sistemas distributivos em detrimento de estruturas produtivas, se note a diminuição do capital social com deterioração do civismo e do associativismo devida à corrida desenfreada para aceder aos recursos existentes. Em tal ambiente, o nível de criminalidade, particularmente em certas zonas mais carenciadas do país, tende a crescer.

Também não é alheio a isso que Cabo Verde de hoje conviva com questões fracturantes que já se mostram preocupantes e prejudiciais. O PR ontem no discurso de tomada de posse teve de se referir ao novo pacto de poder entre as ilhas, talvez para atenuar a tendência actual de se ver em Cabo Verde nove países. Para o que foi uma nação una, acentua-se a ideia de que o país se divide em “badios” e “sampadjudos” e narrativas de ressentimento fazem escola em certos círculos. Uma outra questão fracturante é a da língua crioula, tida como não oficial mesmo quando é discurso de investidura do PR, que é posta em contencioso identitário com o português com evidente efeito negativo na qualidade da sua aprendizagem no sistema de ensino. Sair com sucesso da crise deve significar deixar para trás questões que esgotam a energia da pessoas e da sociedade em querelas, diminuem a cooperação entre elas e enfraquecem o sentido de um desígnio comum.

Yuval Harari, o historiador e filósofo autor do livro Sapiens, numa entrevista recente ao jornal New York Times chamou a atenção para as grandes narrativas, as estórias que fazem parte do imaginário colectivo e que a crença nelas permite que as pessoas cooperem à escala global da sociedade. Segundo ele. “a estória em que você acredita é a que molda a sociedade que você cria”. Naturalmente que atitudes diferentes resultam se nessas estórias se é sujeito e protagonista com autonomia ou se se é passivo e objecto da acção de outrem. Cabo Verde construiu-se como uma nação ao longo de séculos em condições adversas dentro de um império mas a narrativa que prevalece é que a sua nacionalidade foi ganha e decidida nas matas da Guiné-Bissau a 600 kilómetros de distância.

É evidente que nada de bom pode daí resultar. Com essa narrativa, a população, vista com paternalismo pelos poderes constituídos, é esvaziada da energia e autonomia com impacto directo na disponibilidade para cooperar ou contribuir na realização dos desígnios nacionais. O círculo vicioso da dependência reproduz as vulnerabilidades e a precariedade de tudo o que se construiu acaba por se revelar na primeira crise grave que surgir. Inverter a situação implicará reformas só possíveis com uma nova atitude moldada por uma narrativa que resgata o protagonismo, a autonomia e audácia perdidas em ideologias desajustadas e jogadas renovadas de poder paternalístico. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1041 de 10 de Novembro de 2021.

segunda-feira, novembro 08, 2021

Evitar a captura do Estado

 

O mundo a querer sair da terrível pandemia causada pelo Sars2-cv-19 que já contabiliza cinco milhões de mortos depara-se agora com a grande tarefa de enfrentar as consequências da gestão da crise.

Assim é, porque medidas extremas como quarentenas repetidas, apoios monetários directos às pessoas desempregadas e sem rendimentos e inoculação massiva de vacinas desenvolvidas em tempo recorde tiveram que ser tomadas para se poder conter um vírus que em menos de seis meses já tinha contaminado praticamente todo o planeta. E o acto de “parar” o planeta, metaforicamente ou não, não podia deixar de ter um impacto enorme que hoje se sente em todo o mundo, em particular na disrupção das cadeias de produção e de abastecimento e nas falhas de produtos de consumo, na pressão inflacionista visível na alta de preços de quase tudo e na crise energética exacerbada por más opções tomadas no âmbito da transição energética.

A acrescentar a isso há ainda as perturbações no mercado de trabalho causadas pelas reacções às vacinas e ao processo de vacinação que têm contribuído para agravar a escassez de bens básicos de consumo e de componentes para produção, dificultando extraordinariamente um regresso à normalidade pré-pandémica. Como pano de fundo disto tudo tem-se ainda os extremos climáticos observados em vários pontos do globo que indiciam problemas mais graves derivados do aquecimento global, do degelo das calotas polares e da elevação dos níveis médios das águas dos oceanos. A humanidade é assim lembrada de uma assentada de que perigos, ameaças e desafios de grande envergadura colocam-se com urgência e que na ausência de uma resposta concertada só pode vir desgraça que, como bem provou a Covid-19, ninguém pode, à partida, dizer que está imune nem mesmo os países tecnologicamente mais avançados ou os mais ricos. A COP26 em Glasgow que se iniciou no dia 1º de Novembro é a última das múltiplas tentativas das Nações Unidas em federar vontades dos diferentes países para organizar uma resposta conjunta aos problemas potencialmente catastróficos das alterações climáticas resultantes do aquecimento global. Espera-se que das conversações havidas saiam compromissos das partes que renovem a esperança que não se está a caminhar inexoravelmente para um desastre climático de proporção planetária.

Ao nível de cada país o que cada vez mais se espera é que o Estado seja mais eficiente na utilização dos meios e recursos e mais eficaz na sua actuação. A importância crucial de se ter um Estado efectivo viu-se durante a situação emergencial vivida durante a crise pandémica. Vai continuar a ser necessário face às dificuldades que se apresentam tanto para materializar a retoma económica e ajudar na reconfiguração do que será o novo normal como também para enfrentar o desafio da transição energética essencial para a contenção dos efeitos das alterações climáticas. Com as receitas em queda por causa da crise, as exigências quanto à qualidade das despesas e às opções dos investimentos devem ser maiores assim como mais rigorosa terá que ser a fiscalização política da administração pública para evitar que recursos sejam capturados por interesses políticos, corporativos e outros em detrimento do interesse geral. A crise política que Portugal vive neste momento na sequência da não aprovação do Orçamento do Estado para o ano 2022 é ilustrativa do que já acontece em muitos países. Em tempo de vacas magras e de incertezas é maior a tentação de “captura do Estado” por parte de grupos de interesses. Impedir que isso aconteça é um dos grandes desafios da actualidade.

O Estado para ser eficaz tem que ser credível. Para manter a credibilidade não pode passar a imagem de se desviar dos seus propósitos em prol do interesse geral para satisfazer interesses particulares. Em Cabo Verde, o caminho, por exemplo, não pode ser a rigidez da despesa pública agravada em 90% com a implementação dos PCCS, em detrimento de investimentos em serviços públicos e infraestruturas essenciais para uma maior dinâmica económica particularmente quando não é muito visível a melhoria da qualidade dos serviços prestados e a contribuição para a diminuição dos custos de contexto essencial para um bom ambiente de negócios. Nos tempos actuais de grandes dificuldades os sacrifícios devem ser suportados por todos e as exigências de rigor, produtividade e competência devem-se aplicar sem se deixar desviar por considerações de natureza eleitoralista.

Também questões importantes para o presente e futuro não podem ser ignoradas. A forma como na reunião plenária da Assembleia Nacional da semana passada se discutiu a justiça, a segurança e a educação, matérias essenciais para o país, não foi a melhor nem a mais produtiva. Quando se tratava da justiça, a oposição punha enfase nos meios disponibilizados pelo governo e não havia responsabilização das magistraturas pelos resultados, não obstante funcionarem em regime de autogestão. Quando veio à baila a questão da qualidade da educação, foi a vez do governo de acusar a oposição de desrespeitar o trabalho dos professores. Algo similar aconteceu com a segurança e mais uma vez o argumento de respeito pelos polícias foi utilizado pelo governo. São exemplo de tácticas sempre utilizadas no parlamento e noutros fóruns para bloquear o debate sobre matérias essenciais ao país. Com isso, excita-se o espírito corporativo em várias classes de profissionais da administração pública tornando-os insensíveis e hostis a qualquer crítica ou avaliação do seu sector de actividade. Entretanto, os problemas vão-se acumulando debaixo do tapete.

Quando não há uma discussão séria de questões essenciais, nota-se a deterioração dos serviços como é o caso que ficou patente nas declarações recentes do Procurador-Geral da República (PGR) ao longo das quais diz que “na prática não constitui segredo para ninguém que a cooperação e a concertação entre os órgãos da policia criminal ainda estão longe do desejado e desejável, com tendência para regredir e com prejuízo claro para a investigação criminal, o que não pode acontecer”. Ou seja, toda a gente sabe que há tendência para regressão na cooperação entre as polícias com impacto na segurança, mas não há debate nem fiscalização da matéria no parlamento. Provavelmente se for agendado vai sempre surgir de um dos actores políticos a acusação de que se está a pôr em causa os polícias. Não admira, pois, que o PGR sugira que “as questões devem ser resolvidas internamente”. A grande questão é quem se responsabiliza se o prejuízo para a investigação criminal por falta de cooperação se verificar como receia o PGR.

Hoje, mais do que nunca, não é de deixar o Estado e a sua administração pública à deriva e sob ameaça de captura por interesses de grupos. A presente situação de alta geral de preços – que pode vir a revelar-se transitória porque resultante em boa medida de estrangulamentos na produção e distribuição e de um surto na procura após a pandemia – não deve servir de pretexto para reivindicações salariais desajustadas e possíveis disrupções laborais que o país não consegue comportar no momento. Os desafios actuais exigem um Estado competente, eficiente e eficaz e capaz de uma intervenção qualificada a vários níveis para potenciar a iniciativa e a criatividade de cada indivíduo com vista à criação de riqueza e prosperidade. Para isso todos devem contribuir e por aí que se deve encaminhar com estabilidade política, mas também com honestidade e respeito pelo pluralismo e pelo exercício do contraditório. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1040 de 3 de Novembro de 2021.

segunda-feira, novembro 01, 2021

Descobrir a origem das coisas

 

Findo o ciclo eleitoral, as pró­ximas eleições que serão para as câmaras municipais só vão realizar-se no último trimestre de 2024 ficando as legislativas para 2026. Este grande interva­lo de tempo sem eleições podia ser uma grande oportunidade para – num quadro plural, mas que também deve ser de conver­gência em aspectos fundamen­tais – a sociedade se mobilizar e encontrar vias para a constru­ção de uma prosperidade sólida e sustentável.

Os enormes desa­fios que se colocam neste mo­mento ao país e vão-se colocar nos próximos anos assim o exi­gem. Infelizmente não é o que provavelmente vai acontecer. A tentação é de continuar a fazer política da mesma forma venha seca, venha pandemia ou venha crise económica mundial. O re­cente ciclo eleitoral foi ilustrati­vo a esse respeito.

De facto, não se aproveita­ram os vários embates eleito­rais para trazer para a consciên­cias das pessoas os problemas do país. Os actores políticos limitaram-se a renovar as pro­messas e a fazer acusações mú­tuas do não cumprimento do que foi prometido no passado. Em consequência, a situação real do país não passou a ser mais conhecida e eventuais so­luções para sair da crise socioeconómica não foram realmen­te debatidas. O impacto da cri­se pandémica no mundo e dos efeitos nos bens e serviços, as­sociados aos aumentos no preço dos combustíveis, aos estran­gulamentos no shipping e nas cadeias de produção e de distri­buição, às alterações climáticas, e a dificuldades na transição energética, não foi explicado de forma inteligível à população.

Pelo contrário, deixou-se en­tender às pessoas que por acção ou por omissão o governo é de alguma forma responsável pela inflação nos preços que se já se fazem notar em todos os secto­res. Há mesmo quem atribua o desaire eleitoral do candidato apoiado pelo partido no gover­no ao mau “timing” dos aumen­tos do preço dos combustíveis e de energia e água e também à proposta intempestiva de au­mento do IVA. Entretanto, não se dá a devida atenção às razões de fundo das vulnerabilidades nacionais, às ineficiências em vários sectores que prejudicam a produtividade e a competi­tividade do país e a comporta­mentos avessos a critérios me­ritocráticos, à orientação por resultados e à valorização do conhecimento que são nocivos. E sem essa atenção, e sem a cla­rificação dos problemas reais, dificilmente será possível fede­rar vontades na sociedade para fazer as reformas necessárias do Estado, da educação e da economia e se ter, de facto, de­senvolvimento sustentável.

Todos dizem que a realidade actual de uma economia pouco diversificada, dependente do turismo, altamente endividada (mais de 155% do PIB) e sem possibilidade aparente de cres­cer a taxas superiores a 7% do PIB consideradas necessárias para debelar o desemprego, mesmo numa conjuntura fa­vorável como foi a anterior à pandemia, não pode continuar. Agir, porém, é mais difícil. Mesmo quando se procura fa­lar a verdade dos factos não se é ouvido. O governo através do ministro das Finanças tem-se referido em vários momentos ao problema da dívida pública que está a atingir níveis quase insustentáveis. Para 2022 o ser­viço da dívida pública, segundo ele, vai aumentar 9 milhões de contos com o fim das mora­tórias dos créditos contraídos entre 2008 e 2016, passando a totalizar cerca de 24 milhões contos. Perante esta declara­ção, aparentemente nem o país pestaneja e nem se vê razão suficiente para os partidos com assento no parlamento chega­rem a acordo e alterar na lei os mínimos dos valores do défice e da dívida interna para o Estado de Cabo Verde poder fazer face aos seus compromissos junto dos credores.

Caso para perguntar que si­tuação difícil ou crise consegue forçar as pessoas, a sociedade e os actores políticos a focar nas reformas que devem ser feitas e chegar aos compromissos ne­cessários para as materializar. O poeta Ovídio Martins dizia que “as secas já não nos me­tem medo porque descobrimos a origem das coisas”, mas na realidade parece que o que se descobriu foi a solução da aju­da externa quando há qualquer calamidade seja ela seca, pan­demia ou desastre natural. As reformas para diminuir vulne­rabilidades e ganhar resiliência são sucessivamente adiadas ou quando encetadas ficam aquém dos resultados pretendidos. O que parece perdurar é a con­vicção de que talvez o país seja “too small to fail” e qualquer ajuda, qual migalha a cair do prato dos outros, tem grande impacto na sua pequena econo­mia. Nesse sentido, ninguém se sente grandemente pressionado para fazer os arranjos políticos e sociais que poderiam apressar reformas e assegurar que tives­sem os resultados desejados.

Para responder ao grande fardo de cumprir com o servi­ço da dívida pública (capital mais juro) já se estão a mobi­lizar parceiros como o BAD, o Banco Mundial, Luxemburgo, Portugal e a União Europeia sendo todos os contactos feitos e as promessas de ajuda anun­ciados com grande fanfarra pelo governo. Do FMI vieram cerca de 30 milhões de dólares correspondentes a 21 milhões de SDR, de direitos especiais de saque. Foi o que coube a Cabo Verde em resultado da distri­buição feita pelo FMI por todos os países do mundo de acordo com as suas respectivas cotas a partir de um bolo comum cor­respondente a 650 bilhões de dólares. O interessante neste esquema para ajudar os países com dificuldades acrescidas devido à crise pandémica é que os SDRs recebidos não contri­buem para o aumento da dívida pública.

O FMI, através do fundo Poverty and Resilience Trust constituído a partir de SDRs cedidos por países sem difi­culdades orçamentais, preten­de alargar ainda mais a ajuda aos países mais pobres. Cabo Verde deve poder usar esse ca­nal multilateral para conseguir mais SDRs e reestruturar a sua dívida externa com esquemas que lhe permitam moratórias mais longas e juros mais bai­xos. Devia-se explorar também canais bilaterais com os países mais próximos e em particular com aqueles como Portugal em que uma parte da dívida é de natureza comercial (exemplo Casa Para Todos) e o serviço da dívida é mais pesado. Nos anos noventa inovou-se com a criação do Trust Fund para di­minuir o impacto do serviço da dívida interna acumulada na transição da economia estati­zada para economia de merca­do. Talvez seja agora o tempo para uma entidade igualmente inovadora para fazer face aos constrangimentos orçamentais que irão ser postos pela dívida externa a partir de 2022.

Não se deve é ficar por aí. O espaço ganho deve ser utilizado para se avançar com as refor­mas que podem tornar o Estado e a sua máquina mais eficiente e eficaz e também mais útil e competente enquanto agente do desenvolvimento. A rigidez das despesas do Estado que segundo o OE de 2022 atin­ge os 90 % deve ser diminuída consideravelmente. Para isso e também para se poder atingir os objectivos de resiliência e sustentabilidade, compromis­sos sociais e políticos terão que ser firmados. Se em tempo de crise profunda não se conseguir o que a realidade nacional e in­ternacional força todos a fazer para se poder construir um fu­turo de prosperidade, ninguém garante que mais tarde haverá motivação para isso. É respon­sabilidade de todos assegurar que esta crise não seja mais uma oportunidade perdida. Ao governo da República natural­mente cabe uma responsabili­dade muito maior.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1039 de 27 de Outubro de 2021.