Em vésperas do debate sobre o estado da Nação importa que também se reflicta sobre o estado dos partidos e da política e seu impacto na qualidade das políticas públicas. As democracias pressupõem a existência de partidos políticos.
E é assim porque se tem na base a ideia de que com liberdade e pluralismo as virtualidades de um debate no contraditório podem traduzir-se em conhecimento da realidade complexa do país e em acção governativa responsável dirigida para a consecução do interesse público. Também essencial é a existência de mais de um partido para se ter alternância na governação e os eleitores estarem na posição de escolher visões alternativas do futuro do país. Nesse sentido, a “boa saúde” dos partidos políticos é vital para as democracias.
Sem um bom desempenho dos partidos políticos, as promessas da democracia dificilmente são cumpridas e a crise em diferentes roupagens poderá instalar-se, aumentando o cinismo público e abrindo a porta a populismos demagógicos. A crise prevalecente na generalidade das democracias, expressa na forma de crise de representação, na deriva para posições iliberais, na normalização de posições extremas, nas guerras identitárias e culturais e na ascensão de actores políticos narcisísticos e anti-sistema, afecta destrutivamente os partidos e paradoxalmente é potenciada pela actuação dos próprios. A cavalgar e a aprofundar as crises das democracias estão “alegremente” os partidos políticos, mesmo que no desfecho final da crise, sejam eles também vítimas a procurar sobreviver num ambiente de mais autocracia e de menos liberdade, menos criatividade e mais seguidismo, menos capacidade de transformar o país e mais submissão aos ditames de quem ainda financia o país.
Por todo o mundo, neste ano de todas as eleições, o drama que reflecte essa crise aguda da democracia repete-se. Em alguns casos, como recentemente na França e na Índia ainda se vai driblando o que parecia desfecho certo de regressão no sistema democrático liberal. Nos Estados Unidos encontra-se tudo em aberto para o que poderá ser um grande ponto de viragem na relação desse país com o resto do mundo com consequências nefastas para a paz, para a prosperidade global das nações e para se enfrentar os desafios das alterações climáticas e da transição energética que se impõe.
Em Cabo Verde, os sinais de crise nos partidos de há muito que se fizeram sentir. Como praticamente nada foi feito num período relativamente longo de 2021-2024 sem confrontos eleitorais para corrigir tendências desestruturantes no seio das organizações partidárias, não será agora, em cima de um novo ciclo eleitoral, a iniciar com as eleições autárquicas de Novembro/Dezembro, que isso vai acontecer. É por causa disso, que mesmo com uma maioria parlamentar, não se conseguiu transmitir uma imagem de solidez na articulação entre o governo e a sua maioria que tivesse um efeito estabilizador do sistema e proporcionasse espaço para compromissos em questões essenciais. Iniciado o novo ciclo eleitoral, o resultado, de não se ter feito atempadamente mudanças nos partidos e no estilo das suas lideranças, será provavelmente de tornar ainda mais disfuncional o sistema democrático a começar pelo poder autárquico.
Na origem disso vão-se encontrar comportamentos facciosos e protagonismos individuais com características narcisísticas que cada vez mais fazem escola impulsionados pelas redes sociais e que tendem a normalizar-se dentro dos partidos. Como se viu nas últimas semanas, no drama vivido no seio do maior partido da oposição, tais tendências podem servir até para sacrificar ou cancelar dirigentes, militantes e as suas ideias, mas não se prestam para conseguir a unidade necessária para garantir, por exemplo, uma direcção parlamentar e evitar tendências autocráticas nas duas principais câmaras do país. Na sequência das novas eleições nos municípios e com o eventual realinhamento autárquico, outras situações semelhantes às das câmaras de S. Vicente e da Praia poderão aparecer. Não é de esperar que os partidos, no actual estádio de conflitualidade interna, venham a estar em posição de as resolver.
À medida que os problemas nos partidos vão-se aprofundando, podem transferir-se para as instituições e para o funcionamento do sistema provocando impasses e bloqueios. Já se viu como podem derramar-se sobre o parlamento afectando negativamente a qualidade do debate político, impedindo a eleição de órgãos externos à AN e diminuindo a eficácia da fiscalização do governo. Também essas omissões e desencontros no uso de competências constitucionais criam tensões entre órgãos de soberania como parece ter sido a questão das chamadas linhas vermelhas do presidente da república e outros “casos e casinhos” que amiudamente aparecem.
Aliás, é de notar que nunca antes durante as três décadas de democracia as tensões entre o PR e governo tiveram a publicidade de hoje. Governos de maioria absoluta não deixam muito espaço para o PR ganhar o hábito de “bordejar” os limites das competências constitucionalmente estabelecidas e mesmo ultrapassá-las. O facto de só ter acontecido nos dois mandatos do governo de Ulisses Correia e Silva e com diferentes PRs pode querer sinalizar quem não se está a guardar bem no exercício das suas funções.
As situações anómalas criadas não beneficiam o funcionamento do sistema político porque entre outros factores abrem portas para tentações. Tanto os partidos de oposição podem procurar instrumentalizar as intervenções do PR como, pior ainda, na proximidade das eleições, elas podem ser vistas como orientadoras da oposição. Evidentemente que com tais posicionamentos os partidos subalternizam-se ou são subalternizadas deixando de ser os protagonistas principais no processo que leva a mudanças de governo para se apresentarem como uma espécie de clique à procura de poder a todo o custo.
Não menos prejudicada é a preocupação com a produção de políticas para o presente e futuro do país particularmente quando as dificuldades se acumulam em certos sectores-chaves como (transportes, educação, saúde). É preciso uma busca conjunta que conduza ao debate profícuo entre as partes e a entendimentos estratégicos para as ultrapassar. Busca essa que claramente é prejudicada por disfunções nos partidos.
No caso do partido da maioria, a gestão delas leva a uma espécie de imobilismo no governo que anos seguidos continua praticamente o mesmo independentemente se está ou não a enfrentar com sucesso os desafios. Não espanta que as projecções do FMI para o crescimento da economia para os próximos anos até 2029 continuam a situar-se à volta de 4,5%. Por seu lado, a oposição também a nivelar-se por baixo na gestão das ambições de curto prazo de indivíduos e grupos não consegue ser muito diferente em termos de substância. Junta-se à caravana que tem soluções simples para problemas complexos, que toma como ideal fazer de todos um empreendedor e que não se furta à perspectiva de ter mais apertadas as malhas da dependência. Afinal, é aí o campo privilegiado para se fazer os jogos do poder.
O ano parlamentar vai terminar na próxima semana e claramente que os partidos não se prepararam para a produção de políticas públicas nem para a formação de dirigentes para os desafios que o novo ciclo eleitoral vai trazer. O mundo, porém, está a mudar rapidamente e não basta em relação às políticas seguir simplesmente a agenda das organizações internacionais. Nem tão-pouco para as lideranças ficarem pelo mais ambicioso, ou o mais narcisista, ou o mais fechado em si próprio. Seguindo exemplos recentes de outras democracias há que inflectir a tendência para a degradação da política e dos partidos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1182 de 24 de Julho de 2024.