segunda-feira, setembro 30, 2024

Celebrar a Constituição para aumentar confiança e resiliência

 Celebra-se hoje, 25 de Setembro, o trigésimo segundo aniversário da Constituição da República. Trinta e dois anos atrás, pela primeira vez Cabo Verde, enquanto país independente, cumpria o estipulado no artigo 16º da declaração universal dos direitos humanos e do cidadão aprovada em 1789 na sequência da revolução francesa: A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição. A partir de 25 de Setembro de 1992 passou a ter uma Constituição com os direitos fundamentais garantidos, o poder legitimado pelo voto popular, a separação dos poderes, o Estado de Direito democrático e a independência dos tribunais.

Finalmente Cabo Verde conseguia basear a sua ordem constitucional nos princípios e valores civilizacionais hoje considerados universais que tinham sido enunciados mais de duzentos anos antes nas revoluções americana e francesa. A ascensão à civilização e à modernidade que isso representou foi acompanhada nos anos seguintes de crescimento económico e social num ritmo nunca antes verificado à medida que se libertavam as energias sociais na forma de iniciativa individual, criatividade e disposição para correr risco. Contribuía ainda para motivar as pessoas a confiança que naturalmente emerge da vivência num Estado de Direito democrático, com governos estáveis e garantia de alternância no governo e transferências pacíficas de poder.

As dificuldades nestas duas décadas deste século em propiciar as taxas de crescimento, que o país precisa para se desenvolver e eliminar a pobreza extrema, interpelam a todos o quão efectivo tem sido o aproveitamento dessas energias individuais e sociais libertadas. Nesse sentido, interroga-se o quanto a manutenção de uma economia a funcionar de forma ordeira tem servido de incentivo à iniciativa privada e o quanto a existência de uma cultura meritocrática tem contribuído para motivar as pessoas para serem agentes de mudança e inovação. É também de perguntar o quanto é que, pela promoção de uma cultura de respeito à ordem constitucional, se tem reforçado as bases da confiança nas instituições, confiança cívica e, por extensão, confiança interpessoal.

O facto de um número crescente de pessoas estarem a ponderar a possibilidade de emigração não só à busca de trabalho e de melhores salários como de possibilidade de fazer uma carreira profissional e académica já é preocupante. Pode sugerir que não se está a explorar bem o potencial do país, em particular do seu capital humano. Ter outras pessoas a querer deixar o país à procura de um ambiente mais seguro, de melhores cuidados de saúde e mais favorável para a educação dos filhos é bastante complicado. Levanta outras questões de confiança na viabilidade do país ou na capacidade de produzir uma liderança à altura dos desafios actuais e focada na prossecução do bem público.

Crises sucessivas (secas, pandemia da covid-19, guerra na Ucrânia e inflação geral dos preços) e num curto espaço de tempo podem criar algum desânimo, mas o que se revela perturbador são as fragilidades da liderança política enquanto os seus titulares disputam influência e esforçam-se por ter protagonismo pessoal e ganhos eleitorais. Notam-se as perdas em sede de responsabilização política, de prestação de contas, de transparência e de ética republicana. Daí pode ser um passo para se contestar o sistema político e exacerbar as tensões naturais que asseguram a sua dinâmica e estabilidade recorrendo aos posicionamentos anti-sistema que caracterizam muitos dos populismos em voga. É mais fácil isso acontecer quando disputas ideológicas remanescentes do velho regime de partido único continuam a ter vida própria, insuflada por instituições do Estado e actores políticos prominentes em colisão directa com os princípios e valores constitucionais.

Os trinta e dois anos da vigência da Constituição da República têm sido de estabilidade política, de governos a cumprir mandatos completos e já com duas alternâncias na governação sem crise. Na base deste sucesso está o sistema de governo de base parlamentar em que o presidente da república não governa e quem define e implementa as políticas interna e externa do país é o governo suportado pela maioria no parlamento perante o qual é exclusivamente responsável. Desde dos primórdios da II República certas contestações à ordem constitucional tomaram a forma de críticas dirigidas ao sistema de governo no sentido de acentuar os poderes presidenciais em detrimento do seu pendor parlamentar. Mesmo as décadas de estabilidade e de tensões sem grande impacto entre o PR e o Governo, somadas às alterações feitas nas revisões constitucionais de 1999 e 2010 no sentido dessas críticas, não atenuaram o teor do discurso produzido nesse sentido. Assiste-se agora ao seu recrudescimento nas actuais tensões entre esses dois órgãos de soberania.

Curiosamente, o momento de menor tensão terá sido quando José Maria Neves era primeiro-ministro e em entrevista publicada em Outubro de 2014 na revista Vozes das Ilhas revelava ser “contra o sistema presidencialista (…) para evitar a excessiva personalização do poder”. Justificava com o facto que podia abrir “espaços a clientelismos, a compadrios, a jogos de bastidores, a fragilização dos partidos políticos”. Na entrevista ainda mostrou-se a favor de um PR eleito pelo parlamento e defendeu a adopção de um regime de chanceler, supõe-se à imagem da Alemanha onde o chanceler é eleito pelo parlamento e seu peso na orientação das políticas do governo é maior do que o dos primeiros-ministros noutros países. De lá para cá, deve ter mudado de ideias e, pelo conteúdo do ante-projecto da presidência da república dado a conhecer ao público no Facebook pelo chefe da casa civil, percebe-se que se tornou desejável um protagonismo que vai mais além do verificado com os três presidentes que o antecederam.

É evidente que num sistema marcado pela separação de poderes os equilíbrios perdem-se quando à acção não é contraposta uma reacção igualmente forte e em sentido contrário. Nas legislaturas anteriores a 2016, a firmeza da relação entre o governo e a sua maioria parlamentar não deixavam margens para dúvidas. Nos últimos anos o aparente descaso do primeiro-ministro em agir como presidente do partido perante sinais de fractura na maioria parlamentar revelam fragilidades que tendem a acentuar tensões entre os órgãos de soberania no exercício das respectivas competências. É o que aconteceu entre o PR e o Governo, mas também entre o governo e a assembleia nacional que neste caso precipitou o pedido de demissão da direcção do grupo parlamentar do MpD face à atitude de governantes e instituições do Estado de se associarem oficialmente às comemorações sem aprovação legislativa prévia.

Uma outra pressão sobre o sistema democrático, a exemplo do que se tem verificado noutras democracias, tem vindo de manifestações de carácter populista que tem como alvo o poder judicial. Apoiando-se nas deficiências da justiça, em particular na morosidade e na falta de eficácia em certos casos, ataques dirigidos ao sistema no seu todo chegaram mesmo ao Tribunal Constitucional e estiveram à beira de pôr em confronto órgãos de soberania. Uma eventual colisão foi evitada a tempo pela decisão do PR em rejeitar liminarmente a petição apresentada. Infelizmente, algo similar parece estar a repetir-se em relação ao Tribunal de Contas. Apoiando-se no facto de que foi ultrapassado o tempo de mandato dos juízes do TdC, como aliás de vários órgãos para cuja nomeação participam órgãos do poder político, para falar de precariedade e transitoriedade, quando é sabido que os mandatos dos juízes só terminam com a posse de um novo juiz, pode configurar pressão sobre os tribunais.

Com questões sérias de prestação de contas e responsabilização política por resolver, a última coisa que podia acontecer é qualquer sinal vindo de actores políticos a procurar deslegitimar o TdC. A vítima maior disso seria a perda da confiança na democracia e nas suas instituições quando o que urge neste 25 de Setembro é que se reforce a confiança na ordem constitucional aprovada há 32 anos. Para que o país possa estar em melhor posição de enfrentar os enormes desafios que tem para frente. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1191 de 25 de Setembro de 2024.

sexta-feira, setembro 20, 2024

A paz passa pela justiça e pela verdade

 

No Festival Pela Paz, no Tarrafal, em comemoração do centenário de Amílcar Cabral, que terminou, sábado, dia 14, o abraço do presidente da república e do primeiro-ministro, na óptica dos organizadores, terá sido o ponto alto do evento. Estaria em linha com as declarações dos artistas no sentido de que a paz é um bem precioso. A encenação do acto trouxe à memória a iniciativa de Bob Marley em Abril de 1978 a chamar ao palco os dois protagonistas da violência política, em Jamaica, Michael Manley e Edward Seaga, para apertar as mãos num show de paz e unidade. A evocação pretendida, porém, não cola aqui. A diferença é que Cabo Verde não está em estado de guerra civil, nem há facções armadas ou se verificam distúrbios de monta na via pública como então acontecia nessa ilha das Caraíbas.

O PR e o PM apressaram-se a dizer isso mesmo, afirmando em uníssono que “sempre estivemos com a paz”, mas não desfizeram o equívoco criado. Pelo contrário, espalhou-se via os média e as redes sociais, como pretendido, substanciando a ideia do Tarrafal como um sítio de encontro espiritual em relação à paz. A verdade é que Bob Marley com base no rastafarianismo e na crença no Black Messiah pensou que através da música poderia unir e trazer paz para Jamaica. Não conseguiu como era óbvio. A repetição da sua iniciativa como uma espécie de farsa – em Cabo Verde não há violência política – procura trazer ao de cima, pela via da música e de iniciativas como Marcha Cabral Pela Paz, um certo espiritualismo, alimentando a idolatria de Cabral que caracteriza as comemorações do centenário.

Entretanto, na sociedade o efeito provocado é o de confirmar nas pessoas o cinismo e a hipocrisia que caracteriza muita da actuação da classe política. E é esse descrédito nas instituições e nos seus titulares que, quando criado, pode ser uma ameaça para a paz social. A Constituição de 1992 logo no seu artigo nº1 reconhece como fundamento para paz a inalienalibilidade e a inviolabilidade dos direitos humanos. De facto, sem os direitos, liberdades e garantias e o Estado de Direito não há forma de se viver na paz como um indivíduo livre, num ambiente plural e autónomo para perseguir interesses próprios. Sem uma ordem constitucional baseada nesses valores liberais, a alternativa é a ordem autocrática ou totalitária em que a maior ameaça à paz vem do próprio Estado que a qualquer momento e com total impunidade pode atirar-se contra indivíduos ou grupos despojando-os de direitos, de propriedade ou da própria vida.

Cabo Verde conhece isso da sua própria experiência dos primeiros quinze anos após a sua independência. Por isso que tem esse longo catálogo de direitos na constituição de 92. Por isso é que o país tem mais de um partido a concorrer nas eleições periódicas e o próprio poder do Estado é repartido pelos diferentes órgãos de soberania sem hierarquia entre eles e cada um exercendo as suas competências de acordo com o princípio da separação e interdependência dos poderes. Ameaça-se quebrar a paz quando por excesso ou omissão não se cumprem as competências próprias e se foge aos procedimentos democráticos instituídos a favor de arranjos e conluios paralelos sem possibilidade de escrutínio.

Ameaça-se ainda a paz usando poder do Estado para disseminar conteúdos ideológicos em directa colisão com os princípios e valores constitucionais. Nos países democráticos as ideias fluem naturalmente, mas a quem tem responsabilidades do Estado não lhe é permitido que no exercício das suas funções promova ideologias contrárias à democracia e ao Estado de Direito. Razão entre outras porque não há personificação do Estado num líder histórico. Isso só acontece actualmente na Coreia do Norte onde Kim-il Sung é considerado símbolo nacional e é tido como pai da nação. No passado, aconteceu com líderes na ex-União Soviética, Cuba, China. Por isso é que não faz nenhum sentido considerar Amílcar Cabral como símbolo nacional. O regime democrático não permite a personificação nacional senão como figuras alegóricas ou iconográficas como Marianne, em França, a imagem da república em Portugal ou o tio Sam nos Estados Unidos da América. Acresce ainda o facto da figura de Amílcar Cabral ter sido assumida pelo regime pós-independência de partido único como Fundador da Nacionalidade e Militante nº 1 do partido único, o PAIGC.

O artigo 8ª da Constituição da República estabelece quais são os símbolos da República: a Bandeira, o Hino e as Armas Nacionais. É evidente que sem uma revisão constitucional não é possível alterar ou acrescentar outros símbolos, algo que só pode acontecer com iniciativas de revisão pelos deputados e depois de uma votação por maioria qualificada de dois terços dos efectivos no parlamento. Nesse sentido, não se compreende a declaração do presidente da república no dia 12 de Setembro ao afirmar que “Amílcar Cabral é um símbolo da República e como tal merece a atenção de todas as instituições da República”. As instituições da república, assim como o próprio PR, estão, de facto, obrigados a cumprir os comandos da Constituição, que, neste caso particular dos símbolos nacionais, são de aplicação directa e tratam de valores de referência de toda a colectividade nacional. O normal funcionamento de todo o sistema político e a manutenção da paz social exige que não se deixem subordinar a qualquer conveniência político-ideológica, vinda de onde vier.

Os múltiplos momentos de tensão entre os órgãos de soberania, presidente da república, parlamento e governo, a que se vem assistindo, têm os elementos de um conflito ideológico que ainda opõe o antigo regime à democracia, mesmo trinta e dois anos depois. Perante a dificuldade de fazer valer certo tipo de argumentos hoje quase universalmente considerados retrógrados, recorre-se à figura de Amílcar Cabral para ainda manter uma ascendência sobre a sociedade cabo-verdiana. A sua morte prematura e trágica permitiu criar um mito quase messiânico à sua volta com mistérios à mistura, designadamente em relação ao seu assassinato e interrogações esperançosas de como seria se tivesse governado.

Daí as proclamações de “Cabral ka mori”, e lamentos de que é repetidamente morto e até há quem fale numa segunda vida. A idolatria não parece ter limites e no Tarrafal faz-se uma encenação de que em seu nome a paz pode chegar aos homens de boa vontade. O país é que não merece ficar numa situação de apanhado entre dois mundos enquanto quem outrora teve ascendência ideológica sobre o povo, a sua cultura e a sua história tudo faz para o manter cativo. A paz passa pela justiça e pela verdade. Cinismo e hipocrisia não podem ser normalizados como forma de fazer política. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1190 de 18 de Setembro de 2024.

A paz passa pela justiça e pela verdade

 

No Festival Pela Paz, no Tarrafal, em comemoração do centenário de Amílcar Cabral, que terminou, sábado, dia 14, o abraço do presidente da república e do primeiro-ministro, na óptica dos organizadores, terá sido o ponto alto do evento. Estaria em linha com as declarações dos artistas no sentido de que a paz é um bem precioso. A encenação do acto trouxe à memória a iniciativa de Bob Marley em Abril de 1978 a chamar ao palco os dois protagonistas da violência política, em Jamaica, Michael Manley e Edward Seaga, para apertar as mãos num show de paz e unidade. A evocação pretendida, porém, não cola aqui. A diferença é que Cabo Verde não está em estado de guerra civil, nem há facções armadas ou se verificam distúrbios de monta na via pública como então acontecia nessa ilha das Caraíbas.

O PR e o PM apressaram-se a dizer isso mesmo, afirmando em uníssono que “sempre estivemos com a paz”, mas não desfizeram o equívoco criado. Pelo contrário, espalhou-se via os média e as redes sociais, como pretendido, substanciando a ideia do Tarrafal como um sítio de encontro espiritual em relação à paz. A verdade é que Bob Marley com base no rastafarianismo e na crença no Black Messiah pensou que através da música poderia unir e trazer paz para Jamaica. Não conseguiu como era óbvio. A repetição da sua iniciativa como uma espécie de farsa – em Cabo Verde não há violência política – procura trazer ao de cima, pela via da música e de iniciativas como Marcha Cabral Pela Paz, um certo espiritualismo, alimentando a idolatria de Cabral que caracteriza as comemorações do centenário.

Entretanto, na sociedade o efeito provocado é o de confirmar nas pessoas o cinismo e a hipocrisia que caracteriza muita da actuação da classe política. E é esse descrédito nas instituições e nos seus titulares que, quando criado, pode ser uma ameaça para a paz social. A Constituição de 1992 logo no seu artigo nº1 reconhece como fundamento para paz a inalienalibilidade e a inviolabilidade dos direitos humanos. De facto, sem os direitos, liberdades e garantias e o Estado de Direito não há forma de se viver na paz como um indivíduo livre, num ambiente plural e autónomo para perseguir interesses próprios. Sem uma ordem constitucional baseada nesses valores liberais, a alternativa é a ordem autocrática ou totalitária em que a maior ameaça à paz vem do próprio Estado que a qualquer momento e com total impunidade pode atirar-se contra indivíduos ou grupos despojando-os de direitos, de propriedade ou da própria vida.

Cabo Verde conhece isso da sua própria experiência dos primeiros quinze anos após a sua independência. Por isso que tem esse longo catálogo de direitos na constituição de 92. Por isso é que o país tem mais de um partido a concorrer nas eleições periódicas e o próprio poder do Estado é repartido pelos diferentes órgãos de soberania sem hierarquia entre eles e cada um exercendo as suas competências de acordo com o princípio da separação e interdependência dos poderes. Ameaça-se quebrar a paz quando por excesso ou omissão não se cumprem as competências próprias e se foge aos procedimentos democráticos instituídos a favor de arranjos e conluios paralelos sem possibilidade de escrutínio.

Ameaça-se ainda a paz usando poder do Estado para disseminar conteúdos ideológicos em directa colisão com os princípios e valores constitucionais. Nos países democráticos as ideias fluem naturalmente, mas a quem tem responsabilidades do Estado não lhe é permitido que no exercício das suas funções promova ideologias contrárias à democracia e ao Estado de Direito. Razão entre outras porque não há personificação do Estado num líder histórico. Isso só acontece actualmente na Coreia do Norte onde Kim-il Sung é considerado símbolo nacional e é tido como pai da nação. No passado, aconteceu com líderes na ex-União Soviética, Cuba, China. Por isso é que não faz nenhum sentido considerar Amílcar Cabral como símbolo nacional. O regime democrático não permite a personificação nacional senão como figuras alegóricas ou iconográficas como Marianne, em França, a imagem da república em Portugal ou o tio Sam nos Estados Unidos da América. Acresce ainda o facto da figura de Amílcar Cabral ter sido assumida pelo regime pós-independência de partido único como Fundador da Nacionalidade e Militante nº 1 do partido único, o PAIGC.

O artigo 8ª da Constituição da República estabelece quais são os símbolos da República: a Bandeira, o Hino e as Armas Nacionais. É evidente que sem uma revisão constitucional não é possível alterar ou acrescentar outros símbolos, algo que só pode acontecer com iniciativas de revisão pelos deputados e depois de uma votação por maioria qualificada de dois terços dos efectivos no parlamento. Nesse sentido, não se compreende a declaração do presidente da república no dia 12 de Setembro ao afirmar que “Amílcar Cabral é um símbolo da República e como tal merece a atenção de todas as instituições da República”. As instituições da república, assim como o próprio PR, estão, de facto, obrigados a cumprir os comandos da Constituição, que, neste caso particular dos símbolos nacionais, são de aplicação directa e tratam de valores de referência de toda a colectividade nacional. O normal funcionamento de todo o sistema político e a manutenção da paz social exige que não se deixem subordinar a qualquer conveniência político-ideológica, vinda de onde vier.

Os múltiplos momentos de tensão entre os órgãos de soberania, presidente da república, parlamento e governo, a que se vem assistindo, têm os elementos de um conflito ideológico que ainda opõe o antigo regime à democracia, mesmo trinta e dois anos depois. Perante a dificuldade de fazer valer certo tipo de argumentos hoje quase universalmente considerados retrógrados, recorre-se à figura de Amílcar Cabral para ainda manter uma ascendência sobre a sociedade cabo-verdiana. A sua morte prematura e trágica permitiu criar um mito quase messiânico à sua volta com mistérios à mistura, designadamente em relação ao seu assassinato e interrogações esperançosas de como seria se tivesse governado.

Daí as proclamações de “Cabral ka mori”, e lamentos de que é repetidamente morto e até há quem fale numa segunda vida. A idolatria não parece ter limites e no Tarrafal faz-se uma encenação de que em seu nome a paz pode chegar aos homens de boa vontade. O país é que não merece ficar numa situação de apanhado entre dois mundos enquanto quem outrora teve ascendência ideológica sobre o povo, a sua cultura e a sua história tudo faz para o manter cativo. A paz passa pela justiça e pela verdade. Cinismo e hipocrisia não podem ser normalizados como forma de fazer política. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1190 de 18 de Setembro de 2024.

sexta-feira, setembro 13, 2024

Para um ano lectivo sem sobressaltos

 

O novo ano lectivo arranca na próxima semana a partir do dia 16 de Setembro e já se anuncia que vai ser conturbado. Aliás, há meses que se vem preadivinhando que iria arrancar a meio de conflito aberto entre o governo e os sindicatos dos professores. A iniciativa governamental, após vários rounds de negociação, de avançar com um decreto-lei dando satisfação à parte significativa das reivindicações, em particular, quanto às requalificações e ao aumento do salário-base abriu a possibilidade de se evitar perturbações na abertura das aulas. Rapidamente, porém, as esperanças nesse sentido se desvaneceram.

Os sindicatos manifestaram imediatamente a sua oposição ao diploma e pediram ao presidente da república para o vetar. Na sequência, o PR acedeu a receber os sindicatos com o objectivo de “garantir paz social, favorecer a melhoria da qualidade do sistema educativo cabo-verdiano e garantir que o arranque do ano lectivo 2024-2025 seja feito com tranquilidade”. Pelas declarações dos sindicatos à saída dos encontros com o PR, a confessarem-se “intransigentes” em matéria de estatuto dos professores, percebeu-se logo que o mais provável era dar-se continuidade ao que acontecera no ano transacto, ou seja, paralisação de aulas, manifestações e ameaças de não publicação das notas dos alunos.

Nesse sentido, a audiência pelo PR apenas criou oportunidade para reiterar posições já conhecidas dos sindicatos. E com o veto, aparentemente em resposta ao pedido explicitamente feito pelos sindicalistas, claramente que não foram criadas as melhores condições para se ultrapassar as intransigências das partes envolvidas, com todas as consequências já conhecidas. É um exemplo clássico da razão por que o presidente da república não deve se colocar na posição de mediador de conflitos laborais, mormente quando em confronto se encontra o governo, que dirige superiormente a administração pública, e as classes profissionais. Pior ainda quando parece reforçar a posição negocial dos sindicatos.

De facto, é o governo quem conduz as políticas públicas e presta contas pelos resultados da governação perante o parlamento e o eleitorado. Nessa qualidade está em melhor posição de conhecer e gerir os recursos públicos, fazer as ponderações necessárias no uso dos recursos e estabelecer prioridades, responsabilizando-se no fim do dia pelas suas escolhas. Em se tratando de matéria complexa e potencialmente fracturante é de toda a importância que a comunidade nacional reforce o que a une para que o debate democrático no seu pluralismo não seja divisivo e, pelo contrário, ajude a iluminar os problemas e abrir caminhos para se encontrar soluções factíveis.

A educação, como sector fulcral para o desenvolvimento do capital humano do país, é uma dessas matérias complexas que a existência de um consenso geral, quanto à necessidade de preservar a sua estabilidade, de manter o foco na sua qualidade e de valorizar social e profissionalmente os seus quadros, é fundamental. Disrupções no sector têm repercussões que levam anos e às vezes gerações a reparar e a ultrapassar. Deficiências na qualidade põem em perigo a possibilidade de realização dos indivíduos e de ter um país produtivo, competitivo e próspero. A eventual falta de autoestima e de brio profissional dos seus quadros poderá revelar-se fatal, independentemente dos meios que venham a despejar sobre o sistema.

Para um país que praticamente não tem nenhum outro recurso que não a sua gente, os seus jovens e crianças, a educação não devia ser matéria para tricas político-partidárias, jogadas eleitoralistas e activismos ideológicos. O envolvimento do presidente da republica, enquanto figura suprapartidária e representativa da unidade da Nação à volta dos princípios e valores constitucionais, tem sentido se é visto como promotor desse consenso geral. Também se é tido como facilitador ao longo do processo de reformas muitas vezes árduo devido à escassez de recursos, à resistência a mudanças e ao lastro acumulado de medidas pouco avisadas e oportunidades perdidas. Não pode é ser tomado como parte, como mentor ou como activista de alguma causa fracturante.

A confiança nas instituições é fundamental em democracia. A sua manutenção depende em grande medida da vontade de todos os actores políticos em seguir as regras do jogo democráticos, em prestar contas e a se responsabilizarem pelos seus actos. Também essencial é haver um consenso geral quanto ao exigir dos detentores de cargos públicos o cumprimento das regras, uma exigência que não seja diminuída pela conveniência do momento, nem pelo cinismo. Como no futebol ou em qualquer outro desporto, considera-se que há bom jogo quando jogadores e os árbitros, cumprindo com as regras, permitem que a perícia individual e a estratégia da equipa sejam dirigidas espectacularmente para marcar pontos. O espírito desportivo que emerge daí até dá para aceitar resultados em que nem sempre os melhores em campo ganham. Algo similar devia acontecer em democracia com a assunção de uma cultura democrática tendo na base o cumprimento das normas e procedimentos democráticos. Menos crispação e mais resultados seriam obtidos.

Um outro elemento importante para a confiança é a forma como são geridos pelo governo os recursos públicos e como são aplicados ao serviço do interesse geral. Princípios como os da justiça, da transparência, da imparcialidade e da boa-fé devem ser respeitados. A par disso, deve imperar a preocupação com os resultados e a necessidade de ter em atenção a relação custo/benefício nos investimentos e assegurar o equilíbrio das contas públicas. Projectando essa imagem da gestão pública, reforça-se a confiança e diminui-se a possibilidade de negociações em curso de vários interesses em jogo degenerarem em conflito aberto. Também será mais fácil para o público reconhecer quando há intransigência das partes e se fazer pressão para ultrapassar bloqueios. Por outro lado, é evidente que não contribui para a confiança desejada excessos de protagonismo, extravagâncias e falta de rigor e de sobriedade na condução dos assuntos públicos de parte de quem exerce cargos políticos.

Depois de todas as perturbações que marcaram o ano lectivo 2023/24 e das extenuantes e complicadas negociações entre o ministério da educação e os sindicatos, o governo produziu um decreto-lei que regula as requalificações dos professores. Certamente que não contempla tudo o que era reivindicado, mas, como em qualquer negociação, há que se chegar a compromissos, principalmente quando a questão é tão complexa, e pelo número de professores envolvidos, qualquer alteração tem custos enormes. O importante é que com o actual compromisso se reforce a base de confiança entre as partes para continuar a negociar, e de forma programada se chegue a acordo para resolver os problemas dos profissionais do sector.

A educação é demasiado importante para o futuro do país para ficar em situação de instabilidade, com os professores desmotivados e num conflito aberto que põe em causa o seu comprometimento com os alunos. O governo deve levar ao parlamento com urgência uma proposta de lei que já responda a reivindicações de requalificação e aumento salarial dos professores em linha com o negociado. Deverá haver abertura e boa-fé para continuar a negociar sem ser afectado pelo ciclo eleitoral que se inicia. Os alunos, as famílias e o país esperam um novo ano lectivo a funcionar com normalidade. 

Humberto Cardoso

sexta-feira, agosto 30, 2024

Comprometimento com a verdade é fundamental para a democracia

 

As reacções de vários quadrantes da sociedade face à situação criada pela publicação do relatório da inspecção das finanças à presidência da república, seguida dias depois pela comunicação do presidente da república, põem dúvida qual deve ser o grau de compromisso com a verdade por todos aceite.

De facto, não se está a orientar pelos valores de honestidade, transparência e responsabilidade quando se reage a alinhar um rol de culpas dirigidas para todas as direcções com excepção daquela onde reside o poder de decisão sobre a matéria em causa. Agrava-se ainda mais quando a resposta seguinte é destacar a “atitude pedagógica” do Presidente da República da devolução, do dinheiro pago à primeira-dama, aos cofres do Estado, como fez o presidente do maior partido da oposição. Se a questão não fosse tão grave até podia justificar Agosto como o mês da “silly season”.

Com acusações a recaírem sobre todos, a imitar uma barragem de artilharia, corre-se o risco de não haver escrutínio adequado dos actos, das decisões e das omissões do PR por quem o pode fazer: o povo, perante o qual é responsável, e a sociedade, via os média, as redes sociais e os partidos políticos, que podia censurar a sua conduta. Ao recorrer às mesmas tácticas que têm condicionado o ambiente político, acaba-se por partidarizar em extremo o debate, por passar a mensagem que “todos” fazem o mesmo e por fazer acreditar que cada um tem a sua verdade. No processo, ou se induz apatia nas pessoas ou se promove cinismo gereralizado.

Em consequência, diminui-se a participação cívica e política dos cidadãos, os mecanismos de prestação de contas são enfraquecidos e abre-se caminho à arbitrariedade e a discricionariedade. A própria política é prejudicada porque fracturas ideológicas e lealdades históricas não permitem que se consolide uma base comum de valores e uma disponibilidade para aceitação dos processos e procedimentos democráticos em todas as situações. A estabilidade da democracia é enfraquecida quando, da parte do árbitro e moderador do sistema, há relutância em prestar contas e forças partidárias passam uma imagem de “colagem” política.

De facto, o cargo de presidente da república é suprapartidário e no sistema constitucional só é possível uma responsabilização difusa do PR porquanto não presta contas ao parlamento e não pode por esse órgão de soberania ser censurado ou destituído. Mesmo em caso de crimes a acção penal terá que ser requerida pela assembleia nacional sob proposta de pelo menos 25 deputados e depois de votada por mais de dois terços dos deputados em efectividade de funções. Porque o PR não responde perante outros órgãos de soberania, é fundamental para o exercício pleno das suas funções e das suas competências que a todo o tempo lhe seja reconhecido uma autoridade acima de quaisquer suspeitas.

Não deve haver dúvidas quanto ao seu engajamento com os princípios e valores constitucionais e com a defesa do interesse público e do bem comum e quanto ao não permitir ser capturado por agendas partidárias. Para manter claras as linhas de responsabilidade democrática, evitar tensões entre órgãos de soberania e diminuir ineficiências no sistema, também é essencial que a sua magistratura de influência não extravase numa magistratura de interferência. Infelizmente, os sinais não são os mais auspiciosos nesse sentido. As tensões entre o PR e governo nesta legislatura têm sido maiores e mais problemáticas do que as que eventualmente aconteceram nas outras legislaturas da II República.

A gestão da actual crise é ilustrativa desse facto. A caracterização que o PR fez do caso no seu comunicado de sexta-feira, 19, é que “tudo foi feito com transparência e no convencimento de que, no âmbito da lealdade e cooperação institucionais, o necessário e completo quadro legal seria produzido com celeridade”. Hoje é ponto assente que não havia base constitucional nem legal para isso. Mesmo assim considera que se está perante uma “uma nódoa na história do relacionamento”, provavelmente a afectar relações futuras com impacto no país quando se devia estar a dar a garantia de cumprir os procedimentos democráticos em todas as circunstâncias. E isso não é muito tranquilizador. Também seria importante que para além do reconhecimento das “falhas do lado da presidência da república” houvesse sinais concretos que “não voltará a ser assim”.

Realmente, não interessa ao país que acusações mútuas de falta de lealdade e cooperação institucionais definam as relações entre órgãos de soberania num país em que um dos seus maiores activos é a sua estabilidade política. Essencial também para essa estabilidade é que nenhuma força política se sinta tentado a colar-se ao presidente da república para avançar a sua agenda partidária, nem procure subtraí-lo ao escrutínio popular e da sociedade e à prestação de contas com discurso político polarizante da sociedade. É uma atitude que só mina a autoridade moral e política do PR com perda para todos.

Manter a comunidade política comprometida com a verdade dos factos num ambiente de pluralidade de opinião é fundamental para se baixar a crispação e tornar a política mais construtiva. Ter e consolidar essa base comum de aceitação das regras do jogo democrático e de assunção plena de responsabilidade por parte dos actores políticos é o maior contributo para a confiança nas instituições democráticas e para construção da vontade necessária para se ganhar o futuro. Para isso, cada um deve fazer a sua parte. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1187 de 28 de Agosto de 2024.

segunda-feira, agosto 26, 2024

Ruptura de confiança é uma ameaça para a democracia

 Esta segunda-feira, 19, a Presidência da República através de um comunicado emitido pelo seu conselho de administração veio desresponsabilizar-se pelas irregularidades e ilegalidades apontadas no relatório da inspecção geral das finanças que tinha sido publicado uma semana antes. De passagem aproveitou para denunciar o que classificou de uma “clara tentativa de conspurcar, desgastar a imagem do Presidente da República e de fragilizar e condicionar a sua intervenção política e a sua capacidade de influenciação”. No fim do comunicado acabou por culpar tudo e todos pela crise criada e a dizer que aguarda serenamente o pronunciamento do Tribunal de Contas.

A propósito dos salários da primeira-dama a presidência deixou claro que “num quadro de explicitação das motivações todas as informações foram prestadas ao sr. primeiro-ministro”. E é assim porque é o entendimento da presidência que o estatuto da primeira-dama existe ainda que disperso e lacunoso. Uma das lacunas seria relativamente à compensação a atribuir à primeira-dama. Não parece interessar que compensação ou salário de primeira-dama não existe em nenhuma democracia por não ser um cargo público.

De qualquer forma ficou-se à espera que o governo avançasse com a legislação nesse sentido. Segundo o comunicado, o documento foi entregue em mãos pelo presidente da república ao primeiro-ministro. Começam os problemas quando se faz por ignorar como se legisla na democracia cabo-verdiana. Primeiro, a iniciativa só pode ser do governo ou dos deputados e grupos parlamentares. Sendo do governo, a proposta de lei teria que ser aprovada em conselho de ministros. Partindo dos deputados ou de um grupo parlamentar implicava uma consensualização prévia. Em qualquer dos casos teria que ser discutida e votada na Assembleia Nacional por se tratar de matéria absolutamente reservada.

Um outro aspecto central é que não se pode legislar contra a Constituição da República. O presidente da república é um órgão singular e não há qualquer referência à primeira-dama e às suas funções no texto constitucional. Também não seria de ignorar a actual lei orgânica de 2007 que na presidência da república limitou-se a criar um gabinete de apoio ao cônjuge do Presidente. Uma simples declaração pública do PR a apresentar a “primeira-dama” não devia ser suficiente para pôr o gabinete a funcionar e muito menos para desencadear requisição de quadro de origem ou processamento de salários. Por tudo isso, devia ser evidente que, enquanto uma nova lei orgânica da presidência não fosse aprovada, essas medidas, ainda que provisórias, não podiam ter como suporte bastante a Diretiva nº1/02023 assinado pelo Chefe da Casa Civil.

Nem é de argumentar como faz o comunicado que tais medidas não foram questionadas, nem foram sugeridos caminhos diferentes por outras entidades como o Fisco e a Previdência Social. Ou então que se procurou criar respaldo financeiro para uma nova lei orgânica a aprovar. Muito menos culpar o “sistema” por despesas injustificadas, mas autorizadas por quem tem o grau de autonomia administrativa e financeira próprio de uma estrutura de apoio ao órgão de soberania, o presidente da república. Aparecendo a apontar o dedo à volta e a disparar para todos os lados, sem assumir a responsabilidade primeira de ter executado despesas indevidas, pode ser entendido como sinal de quem se acha acima de qualquer dever de prestação de contas. A verdade é que nem se conseguiria atribuir as irregularidades e ilegalidades à inexperiência dos principais decisores considerando o longo currículo dos mesmos na governação do país e na direcção de estruturas do Estado.

A intenção manifestada na parte final do comunicado de aguardar serenamente o pronunciamento do Tribunal de Contas poderá ser entendida como mais um estender do tempo de não assunção de responsabilidades. Aliás, foi o que aconteceu durante o meio ano após as revelações de finais de Dezembro quando foram realizadas as inspecções e elaborado o relatório. Mas a realidade é que a responsabilidade política não se esgota na responsabilidade jurídica conformada no controlo dos actos pelo tribunal de contas ou tribunais administrativos. É de a exigir aos titulares de cargos políticos e deve ser assumida pelos próprios sempre que se verificar quebra nas relações de confiança. Não se pode num momento suspender salários indevidos e uso de viatura e depois, sem uma preocupação de regularização da condição de cônjuge, manter a participação em actividades oficiais do Estado no país e no exterior como se nada tivesse acontecido.

Está com os titulares de cargos políticos a responsabilidade primeira de evitar o desgaste da sua imagem e o condicionamento da sua intervenção política. Em situações de perturbação na confiança não é ao público, à imprensa ou às redes sociais que se vai pedir responsabilidade. Particularmente, tratando-se do presidente da república que não pode ser destituído nem exonerado e não responde perante outros órgãos políticos, as exigências são maiores porque só está sujeito ao que os constitucionalistas chamam de responsabilidade difusa que realmente apenas significa censura pública. Ou seja, a sua imagem e a sua capacidade de influenciação dependem fundamentalmente de como desempenha o seu papel de árbitro e moderador do sistema político. A sua função de garante da unidade está associada à autoridade moral que advém da defesa activa dos bens e valores da ordem constitucional.

Um dos chamados deveres autónomos, o dever de pagar impostos, está ligado ao comprometimento do cidadão com a existência do Estado e na origem das democracias modernas foi traduzido na expressão da revolução americana de que há não tributação sem representação (no taxation without representation). Mas, assim como pela via do orçamento democraticamente aprovado, as receitas devem ser legais também tem que se assegurar a legalidade das despesas públicas. Ou seja, a sua conformidade em termos administrativos de competência e forma, e em termos financeiros de cabimento orçamental. É evidente que com qualquer falha, particularmente ao nível mais alto, no compromisso central de se ter receitas e despesas legais corre-se o risco de uma ruptura na confiança no Estado que deve ser assumido e reparado o mais rápido possível. Na Suécia, em 1996, a utilização indevida de um cartão de crédito governamental levou à demissão do vice-primeiro-ministro no chamado escândalo do Toblerone.

As crises recentes nas democracias têm demonstrado que disputas partidárias, conflitos institucionais e mesmo a ascensão de políticos populistas só conseguem criar instabilidade e abrir caminho para derivas iliberais e autocráticas se da parte da sociedade civil e da maioria das pessoas não houver uma defesa activa da ordem constitucional e dos procedimentos democráticos necessários para evidenciaram os ganhos da política e do pluralismo. Se, pelo contrário, os actores políticos se se limitarem ao tacticismo político, ao jogo de conveniência e à conquista e manutenção do poder, a todo o custo, a crise pode aprofundar-se com resultados imprevisíveis. Nesse sentido, a reacção de vários actores políticos quanto aos últimos acontecimentos na presidência da república não tem sido encorajador. Não é na busca de pequenos ganhos pessoais e de grupos que se serve o bem comum e se constrói um futuro de liberdade e prosperidade para todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1186 de 21 de Agosto de 2024.

sexta-feira, agosto 16, 2024

Responsabilidade não rima com arrogância

 

Um dos grandes desafios das democracias na actualidade é manter os titulares de cargos políticos accountable, ou seja, sujeitos à prestação de contas e obrigados a assumir a responsabilidade por decisões, actos e omissões produzidos no exercício das suas funções. Mais difícil é fazê-lo quando há uma tendência crescente para o protagonismo individual em simultâneo com exibições muitas vezes extravagantes de privilégios associados aos cargos.

Com normas e instituições sob permanente pressão ou a serem ultrapassadas por esse tipo de comportamento enfraquecem-se as condições para a responsabilização política, contribui-se para tornar os cidadãos ainda mais descrentes e cínicos e faz-se da política uma espécie de entretenimento perverso.

Pelo que se vê em outras paragens, daí não vem nada de bom. Em Cabo Verde também se nota que muito da luta política passa por desafiar práticas e posturas habituais. Já há quem queira ir além do normalmente aceitável e expectável para construir figuras públicas que se apresentam como autênticas, como agentes de mudança contra as elites e em colisão com normas e instituições vigentes. Perante essas incursões, os mecanismos de responsabilização política ou se mostram ineficazes como nas situações conhecidas de bloqueio municipal ou arrastam-se sem grandes possibilidades de se chegar a uma conclusão nas comissões de inquérito parlamentear dando azo a permanente chicana política. Em outros momentos fica-se com a percepção que cumplicidades cruzadas procuram dificultar que tudo seja esclarecido, que as responsabilidades sejam assacadas e que o país tenha a possibilidade de avançar para além das tricas políticas e para um debate mais construtivo.

Esta segunda-feira, dia 12 de Agosto, foi publicado finalmente o relatório da Inspecção das Finanças à presidência da república. O pedido para a sua realização tinha sido formulado pelo próprio presidente da república a 23 de Dezembro de 2023 na sequência da notícia vinda a público de pagamento de salários à “primeira-dama”. Também foi solicitado ao Tribunal de Contas uma auditoria, mas até agora não há conclusões publicadas. Pelo relatório da inspecção geral das finanças, após mais de seis meses, constata-se que o pagamento “é irregular e não tem suporte na legislação em vigor” e recomenda-se que se deve proceder à reposição do montante.

Isso, porém, é o óbvio considerando que não há nada na legislação que pudesse prever o pagamento, nem havia precedente na II República que o justificasse. Para além de tardio, o que espanta é que, meio ano depois, no exercício do contraditório ao relatório da inspecção geral das finanças, a casa civil da presidência ainda insista na mesma linha de argumentos expressa na Directiva nº 01/CCC/2023 que autorizou o pagamento “irregular”. O presidente da república publicamente poderá ter suspenso o pagamento de salário e retirado a viatura e segurança pessoal à “primeira-dama” num gesto de reconhecimento da falha, mas nos serviços da presidência da república parece que tudo o resto ficou como estava. O relatório veio dar conta de várias outras irregularidades e a condição de cônjuge não foi clarificada.

Aparentemente, enquanto se espera pelos resultados das inspecções e das auditorias, a atitude é de, no essencial, se continuar como antes mesmo que a percepção pública seja de perplexidade e mesmo de censura. E quanto maior for a demora na produção e homologação dos mesmos, melhor. O esclarecimento do público e a correcção dos procedimentos não parecem ser prioritários. Pelo contrário, como se vem tornando comum nos choques de protagonismo na democracia, a postura de muitos titulares de cargos públicos é de desafio da opinião pública, quando chamados à responsabilidade. Não é a que seria de esperar de, com humildade, cumprir o dever de defesa e promoção dos bens e valores da ordem constitucional.

Na semana passada viu-se um outro exemplo de como as expectativas das pessoas são goradas. Com dificuldades evidentes no domínio dos transportes e outros sectores-chave como energia e água muitos puseram a esperança nas mexidas no governo que há meses esperavam, desde que em Abril dois membros do governo foram designados candidatos a presidente de câmaras municipais. A postura típica de desafio prevaleceu e como disse o primeiro-ministro é ele “é que sabe em que momento e em que condições é que fará maior ou menor ajustamento ou eventualmente remodelação”.

Aparentemente não interessa a escolha do momento para os designar candidatos autárquicos com prejuízo para a performance dos sectores de actividade com ministro a prazo e o aumento de atrito político com os municípios por causa do anúncio. Mesmo quando o ministro por conta própria dá por findo o exercício, espera-se uma semana para produzir um titular. E mais uma vez ao invés de esperadas mexidas vai-se para os ajustamentos que se tornaram habituais sempre que, por qualquer razão, o governo perde algum membro. Não parece haver nem visão, nem estratégia por detrás das novas nomeações. Mas é de visão e estratégia que o país precisa se tem que melhorar a sua produtividade e sua competitividade. Segundo o relatório do Estado da Economia de 2023 do BCV, o menor contributo da produtividade total dos fatores (PTF) foi um dos determinantes para o abrandamento do crescimento do produto nacional (PIB) em 2023 e continua em média, a um nível considerado baixo, condicionando o potencial de crescimento da economia.

Espera-se de todos os titulares dos cargos políticos que exerçam as suas funções com foco na prossecução do interesse público procurando controlar a arrogância que naturalmente a proximidade do poder distila e mostrando humildade na busca de soluções que os problemas complexos do país aconselham. Para se manter nessa linha é fundamental que os mecanismos de responsabilização funcionem tempestivamente e os titulares dos cargos vejam nesse seu dever de preservar a ordem constitucional e no respeito pelo princípio democrático a expressão mais profunda da sua vontade de servir.

É possível ter protagonismo político, ganhar eleições e governar sem ir pelas vias tortuosas de excitação de medos e ressentimentos e sem transpirar teimosia e ideias fixas. Quando tudo parecia ir num caminho sombrio nas eleições americanas, a campanha de alegria de Kamala Harris veio lembrar que pode haver uma outra via. Há pois esperança para um outro tipo de política, mais sintonizado com as necessidades das pessoas e da comunidade, mais responsável e solidária e mais produtiva e construtiva. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1185 de 14 de Agosto de 2024.

segunda-feira, agosto 12, 2024

Estar atento às armadilhas no caminho do desenvolvimento

 

Na semana passada o Banco Mundial emitiu um alerta aos países de rendimento médio dizendo-lhes que estão numa corrida contra o tempo. Numa publicação intitulada “Armadilha dos países de rendimento médio” (Middle income trap) o BM deixa claro que os próximos tempos não são os melhores para se fazer a transição de país de rendimento médio-baixo para o grupo dos países de rendimento médio-alto e muito menos para os de rendimento alto. Desde 1990 só trinta e quatro países conseguiram escapar à armadilha e elevar-se para o grupo de rendimento alto. São actualmente 108 os países de rendimento médio a tentar e a situação internacional é muito pior.

De facto, segunda a publicação do BM, os países de rendimento médio vêem-se actualmente com espaço de manobra mais apertado. Além de já enfrentarem problemas de aumento da dívida pública e do envelhecimento da sua população com os custos inerentes estão ainda sobrecarregados com a pressão para acelerar a transição energética e com os entraves nas relações comerciais devido ao crescente proteccionismo das economias mais avançadas. Se anteriormente conseguir fazer a transição para país desenvolvido era difícil, agora os obstáculos são muito maiores.

De acordo com o documento referido, os países para ascenderam no seu nível de rendimento têm que com sucesso passar de uma estratégia inicial de crescimento baseada no investimento (1i) enquanto países de rendimento baixo para uma outra de investimento e infusão de tecnologia (2i) adequada para países de rendimento médio e posteriormente para uma estratégia, à que se acrescenta inovação, de 3i para atingirem o grupo dos países desenvolvidos. Se transitar de país de rendimento baixo para médio é mais directo bastando mobilizar capital o mesmo já não acontece em subir ao estádio superior de desenvolvimento.

Não é à toa que há apenas 25 países de rendimento baixo, mas, em contrapartida, há 108 de rendimento médio, a maioria deles entalados numa espécie de armadilha em que não conseguem fazer o 2i, investimento e infusão de tecnologia, e contribuir para criar riqueza suficiente que os pode lançar para os níveis mais altos de rendimento. Aliás, segundo o BM, os países de rendimento médio devem passar por duas transições, uma em que para além de continuar a investir são bem-sucedidas com a infusão da tecnologia, ou seja, com a difusão no país de tecnologias modernas e processos de negócios vindos de fora. Outra, em que depois de completada a absorção tecnológica ficam criadas as condições para começar a acrescentar valor com inovações que podem encontrar mercado global e tornar o país mais competitivo e produtivo.

As dificuldades dos países de rendimento médio devem-se ao facto de nenhuma das duas transições ser fácil e, em consequência, mesmo que escapem de cair numa das armadilhas não há certeza que consigam ultrapassar a segunda. Também, como acrescenta o documento do BM, não é possível saltar etapas, fazer o leapfrogging. Tentar por exemplo investir em inovação sem passar pela infusão – com tudo o que em termos institucionais e de atitude acarreta de absorpção de tecnologia, de desenvolvimento de capacidades e de mobilização de talentos com reconhecimento do mérito e incentivos à iniciativa e à criatividade – não resulta. Deixa-se o país ficar num nível de crescimento que não lhe permite acompanhar e muito menos alcançar os mais avançados.

Os dramas vividos por esses países também se colocam a Cabo Verde enquanto país de rendimento médio-baixo. Guiando-se pelo exposto no documento do Banco Mundial, o país tem que se mostrar capaz de escapar às duas armadilhas. Infelizmente, os dados de crescimento em 2023 que foi de 5,1% do PIB, de acordo com o BCV, e as projecções do FMI/Banco Mundial para o resto da década à volta dos 5% poderão estar a indiciar que a armadilha já é real. A baixa da produtividade da economia e os resultados decrescentes dos investimentos públicos já são sinais disso designadamente no incentivo que deviam representar para investimentos privados.

Por outro lado, as medidas de política e a retórica do governo suportadas por enormes recursos que vêm sendo dirigidos para fazer da inovação um motor da economia parecem colidir com as constatações do BM. No documento alerta-se para o risco de tornar pior o clima de investimentos e atrasar o país em anos ou décadas como já aconteceu com vários países em particular na América Latina se a fase da infusão de tecnologia não for devidamente cimentada. E para isso, primeiro, a abertura a novas ideias e tecnologias tem que ser cultivada na sociedade e nas empresas. Também vontade e recursos para aumentar a capacidade de formação de técnicos, engenheiros e cientistas, a começar por bons liceus e escolas vocacionais, têm que ser procurados. E uma especial preocupação deve-se ter com as instituições que garantem livre expressão de ideias e propriedade intelectual e promovem a iniciativa empresarial.

Sem um planeamento adequado de todo um processo de modernização tecnológica pode-se chegar a uma situação em que não se sabe claramente quais os principais objectivos pretendidos. Percebe-se que iniciativas são tomadas, mas parecem silos quase fechados sobre si próprios criando ineficiências e com prestação deficiente de serviços. Outras pretendem diminuir a burocracia e a morosidade e aumentar a acessibilidade, mas nota-se que os serviços aos utentes e às empresas fica aquém do que é apregoado na inauguração de janelas e balcões únicos.

Aparentemente é a constatação dessa situação que levou à posse dada pelo primeiro-ministro a uma Equipa de Serviço Digital. O objectivo, segundo ele, é ampliar e diversificar os serviços online oferecidos de forma a que passem de cerca de 18 a 20% para próximo dos 100%. De passagem, reconhece que as múltiplas plataformas e portais existentes precisam ser integrados, eliminando redundâncias e custos desnecessários para os cidadãos e empresas. A questão que se coloca é por que isso levou tanto tempo para fazer e certamente implicou muito desperdício de dinheiro, tempo e oportunidades.

Há vinte anos que o país passou a dispor de banda larga e todo o processo de digitalização deveria ter sido conduzido para precisamente diminuir os enormes constrangimentos para as pessoas e para economia que um país com nove ilhas, população dispersa e uma cultura estatal burocrática e centralizadora representa. Países como a Estónia iniciaram a sua digitalização praticamente no mesmo tempo que Cabo Verde, mas souberam potenciar os desafios resultantes da sua condição de pequeno país para criar um serviço unificado e vender a sua experiência para o mundo. Aqui em Cabo Verde, duas décadas depois, “com várias plataformas e portais, redundâncias e custos desnecessários” quer-se fazer melhor trazendo a experiência do consulado em Lisboa.

Por aí fica aparentemente claro que a infusão de tecnologia que o Banco Mundial preconiza para que se faça a primeira transição não está completa. Também que investir na inovação quando ainda se está atrasado pode significar desperdício de recursos. É fundamental que se reflicta aprofundadamente sobre o processo de desenvolvimento para evitar armadilhas que podem atrasar o país ou impedi-lo de conseguir o nível de crescimento da economia que pode trazer prosperidade para todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1184 de 7 de Agosto de 2024.

segunda-feira, agosto 05, 2024

Mais solidariedade e união para melhor estado da Nação

 Passado o choque causado pela pandemia da covid-19, seja na violenta contracção da economia de 14,8% do PIB, seja na retoma que veio a seguir com taxas de crescimento do PIB de 7,1% em 2021 e 17,7% em 2022 e 5,1 em 2023, o país tende a normalizar-se aquém dos 7% desejados ou prometidos. O FMI no último Economic Outlook projecta taxas de crescimento anual até 2029 que não chegam aos 5%.

Entretanto, ainda persistem alguns efeitos da crise pandémica e de acontecimentos seguintes como a guerra na Ucrânia, os constrangimentos na cadeia de abastecimentos e alguns recuos na globalização que afectam em particular a população com menor poder de compra e com dificuldades em conseguir emprego.

É o caso da inflação, da alta de preços dos combustíveis e de alimentos e da dívida pública acumulada. Acrescem ainda as medidas restritivas para se ter a taxa de inflação em linha com a da União Europeia e as exigências de consolidação orçamental para recuperar os equilíbrios macroeconómicos. O impacto imediato na economia não deixa de ser significativo apesar de contrabalançado pelo fluxo turístico que já ultrapassa os valores pré-pandémicos de 2019.

Juntam-se a isso as dificuldades manifestas em encontrar solução para os problemas dos transportes, apesar de tentativas múltiplas. Minam a confiança na capacidade de resolver problemas não só nesse sector como noutros também vitais como a segurança, educação e saúde. E é assim porque se nota que, em termos práticos, as sucessivas gestões do sector dos transportes têm quase sempre a mesma abordagem e propósitos não obstante os repetidos falhanços. Ontem o novo PCA da TACV situou-se no mesmo comprimento de onda ao dizer que “há um compromisso do Governo de termos uma ligação ainda este ano (...), a comunidade cabo-verdiana no Brasil e nos Estados Unidos da América podem estar cientes de que vamos ter ligação ponta a ponta”.

Curiosamente, a partir das declarações das forças da oposição e dos círculos na sociedade percebe-se que também a vontade geral é ir pelos mesmos caminhos, mas esperar resultados diferentes. Claro que com uma postura típica de Lampedusa “mudar para que tudo continue como está” não há confiança que aguente. Só se aumenta o stock de cinismo em relação às políticas públicas com consequências negativas para a competitividade e produtividade do país.

Num outro registo, há dias, o ministro da Administração Interna pôs em cerca de 33 mil o número de balas apreendidas pela polícia nos portos e aeroportos do país nos últimos seis anos. Ficou-se sem saber que percentagem da totalidade das balas entradas corresponderia esse número de balas. Também ficou-se sem saber qual é a dimensão do mercado de munições no país e porque é atractivo para os remetentes de pequenas encomendas. E ainda se o mercado está a crescer, ou não, e se isso é devido a maior quantidade de armas artesanais em circulação ou a uma maior procura de balas. Sem respostas para essas questões, fica-se aparentemente pela posição mais conveniente de colocar mais scanners, mas o problema de fundo da insegurança continua a pairar sobre todos.

Na educação parece que todos já finalmente despertaram para o problema da qualidade. A realidade é que, depois de tanto tempo a ignorá-lo, dificilmente se vai conseguir mobilizar a sociedade, as famílias e a própria máquina estatal para a promover. Não ajuda que os critérios de mérito de há muito que foram secundarizados e que o gosto pelo conhecimento, o brio profissional e o espírito crítico tenham sido desincentivados a favor de quem tem mais lata, faz carreira com base em intrigas, autopromoção e favores e opta pelo conformismo para ser aceite e singrar.

O protagonismo sindical recente dos professores independentemente do eventual mérito das suas propostas dificilmente significará algum foco na qualidade do ensino. A disrupção das aulas que vem acompanhando essa luta, que provavelmente será longa considerando os custos envolvidos e a intransigência das partes, não será propícia a que se crie o ambiente que poderá fazer da escola, mais do que um instrumento de mobilidade social, um centro de conhecimento onde a curiosidade e a imaginação serão estimuladas e a perseverança na procura da verdade será cultivada.

Na saúde, debate-se com vários problemas um sector que devia ter sido visto como estratégico por entre outras razões pelo facto de: primeiro, o país ser arquipelágico, pequena população e perfil demográfico que aponta para custos crescentes dos cuidados de saúde; e segundo, ter o turismo como motor da economia o que exige serviços de saúde de qualidade para a sua sustentabilidade, diversificação e expansão. Uma aposta compreensiva na saúde poderia criar as condições para o aumento e estabilidade do fluxo turístico ao longo do ano, para diversificar a oferta com exploração de nichos e imobiliária turística nas diferentes ilhas para estrangeiros aposentados, emigrantes e nómadas digitais.

Concomitantemente, essas condições iriam servir a população. Também para além dos investimentos a serem realizados ter-se-ia que promover uma formação a todos os níveis dos cuidados de saúde de qualidade e com certificação europeia para os garantir, formação essa que serviria a muitos jovens tanto no país como numa eventual emigração para conseguirem empregos de qualidade e com alta procura. O facto de não se agir numa perspectiva estratégica e com acções encadeadas faz com que o impacto dos investimentos realizados fique aquém do prometido, ineficiências acumulem e a satisfação dos utentes seja deficiente. Depois também fica a questão de pagar os custos de saúde da população que tendem a tornar-se incomportáveis sem que se tenha uma economia à altura de os suportar.

A complexidade dos desafios que se colocam a Cabo Verde exige um nível de debate público aprofundado e fulcralmente uma capacidade de federar vontades para tornar as reflexões em realidade prática. Esse debate só é possível em democracia e só se consegue a mobilização da vontade para enfrentar os desafios se houver um sentido geral de pertença a uma comunidade político nacional, não obstante a diversidade de interesses e a pluralidade das opiniões. O que pode bloquear o debate plural e frustrar uma vontade geral é a polarização da sociedade a um ponto tal que ao tomar adversários políticos como inimigo ou antipatriotas e ao assegurar que as regras do jogo democrático não são aceites a todo o momento por todos, não permite que a nação se una.

Cabo Verde é uma sociedade de uma certa forma mais simples, porque sem clivagens étnicas, linguísticas ou religiosas significativas. Não deveriam existir razões para uma polarização social e política que pusesse em risco o sentido de pertença à nação que já data de mais de um século de existência. Apesar disso, nota-se sinais de um nível de polarização similar ao das democracias em crise que impede o diálogo frutífero e a construção de vontades para enfrentar os desafios existenciais. Viu-se o efeito disso durante a pandemia da covid-19 e nos anos seguintes de recuperação.

O país não saiu da gravíssima crise com o sentido apurado de solidariedade e uma maior consciência das suas vulnerabilidades como seria de esperar. Nem o país, nem os seus governantes e a sua classe política mostram-se dispostos a assumir a nova atitude que a realidade actual impõe devido às tensões geopolíticas, às transformações em curso no mundo. Permite-se que a polarização social e política se acentue com recurso a políticas identitárias e a ressentimentos imaginados, sapando as energias da nação e quebrando a sua vontade. Não espanta que no carnaval já se preconiza um modo de estar “de tud manera, ê ba devagar”. Há que inflectir caminho com solidariedade e responsabilidade.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1183 de 31 de Julho de 2024.

segunda-feira, julho 29, 2024

O estado dos partidos e da política

 Em vésperas do debate sobre o estado da Nação importa que também se reflicta sobre o estado dos partidos e da política e seu impacto na qualidade das políticas públicas. As democracias pressupõem a existência de partidos políticos.

E é assim porque se tem na base a ideia de que com liberdade e pluralismo as virtualidades de um debate no contraditório podem traduzir-se em conhecimento da realidade complexa do país e em acção governativa responsável dirigida para a consecução do interesse público. Também essencial é a existência de mais de um partido para se ter alternância na governação e os eleitores estarem na posição de escolher visões alternativas do futuro do país. Nesse sentido, a “boa saúde” dos partidos políticos é vital para as democracias.

Sem um bom desempenho dos partidos políticos, as promessas da democracia dificilmente são cumpridas e a crise em diferentes roupagens poderá instalar-se, aumentando o cinismo público e abrindo a porta a populismos demagógicos. A crise prevalecente na generalidade das democracias, expressa na forma de crise de representação, na deriva para posições iliberais, na normalização de posições extremas, nas guerras identitárias e culturais e na ascensão de actores políticos narcisísticos e anti-sistema, afecta destrutivamente os partidos e paradoxalmente é potenciada pela actuação dos próprios. A cavalgar e a aprofundar as crises das democracias estão “alegremente” os partidos políticos, mesmo que no desfecho final da crise, sejam eles também vítimas a procurar sobreviver num ambiente de mais autocracia e de menos liberdade, menos criatividade e mais seguidismo, menos capacidade de transformar o país e mais submissão aos ditames de quem ainda financia o país.

Por todo o mundo, neste ano de todas as eleições, o drama que reflecte essa crise aguda da democracia repete-se. Em alguns casos, como recentemente na França e na Índia ainda se vai driblando o que parecia desfecho certo de regressão no sistema democrático liberal. Nos Estados Unidos encontra-se tudo em aberto para o que poderá ser um grande ponto de viragem na relação desse país com o resto do mundo com consequências nefastas para a paz, para a prosperidade global das nações e para se enfrentar os desafios das alterações climáticas e da transição energética que se impõe.

Em Cabo Verde, os sinais de crise nos partidos de há muito que se fizeram sentir. Como praticamente nada foi feito num período relativamente longo de 2021-2024 sem confrontos eleitorais para corrigir tendências desestruturantes no seio das organizações partidárias, não será agora, em cima de um novo ciclo eleitoral, a iniciar com as eleições autárquicas de Novembro/Dezembro, que isso vai acontecer. É por causa disso, que mesmo com uma maioria parlamentar, não se conseguiu transmitir uma imagem de solidez na articulação entre o governo e a sua maioria que tivesse um efeito estabilizador do sistema e proporcionasse espaço para compromissos em questões essenciais. Iniciado o novo ciclo eleitoral, o resultado, de não se ter feito atempadamente mudanças nos partidos e no estilo das suas lideranças, será provavelmente de tornar ainda mais disfuncional o sistema democrático a começar pelo poder autárquico.

Na origem disso vão-se encontrar comportamentos facciosos e protagonismos individuais com características narcisísticas que cada vez mais fazem escola impulsionados pelas redes sociais e que tendem a normalizar-se dentro dos partidos. Como se viu nas últimas semanas, no drama vivido no seio do maior partido da oposição, tais tendências podem servir até para sacrificar ou cancelar dirigentes, militantes e as suas ideias, mas não se prestam para conseguir a unidade necessária para garantir, por exemplo, uma direcção parlamentar e evitar tendências autocráticas nas duas principais câmaras do país. Na sequência das novas eleições nos municípios e com o eventual realinhamento autárquico, outras situações semelhantes às das câmaras de S. Vicente e da Praia poderão aparecer. Não é de esperar que os partidos, no actual estádio de conflitualidade interna, venham a estar em posição de as resolver.

À medida que os problemas nos partidos vão-se aprofundando, podem transferir-se para as instituições e para o funcionamento do sistema provocando impasses e bloqueios. Já se viu como podem derramar-se sobre o parlamento afectando negativamente a qualidade do debate político, impedindo a eleição de órgãos externos à AN e diminuindo a eficácia da fiscalização do governo. Também essas omissões e desencontros no uso de competências constitucionais criam tensões entre órgãos de soberania como parece ter sido a questão das chamadas linhas vermelhas do presidente da república e outros “casos e casinhos” que amiudamente aparecem.

Aliás, é de notar que nunca antes durante as três décadas de democracia as tensões entre o PR e governo tiveram a publicidade de hoje. Governos de maioria absoluta não deixam muito espaço para o PR ganhar o hábito de “bordejar” os limites das competências constitucionalmente estabelecidas e mesmo ultrapassá-las. O facto de só ter acontecido nos dois mandatos do governo de Ulisses Correia e Silva e com diferentes PRs pode querer sinalizar quem não se está a guardar bem no exercício das suas funções.

As situações anómalas criadas não beneficiam o funcionamento do sistema político porque entre outros factores abrem portas para tentações. Tanto os partidos de oposição podem procurar instrumentalizar as intervenções do PR como, pior ainda, na proximidade das eleições, elas podem ser vistas como orientadoras da oposição. Evidentemente que com tais posicionamentos os partidos subalternizam-se ou são subalternizadas deixando de ser os protagonistas principais no processo que leva a mudanças de governo para se apresentarem como uma espécie de clique à procura de poder a todo o custo.

Não menos prejudicada é a preocupação com a produção de políticas para o presente e futuro do país particularmente quando as dificuldades se acumulam em certos sectores-chaves como (transportes, educação, saúde). É preciso uma busca conjunta que conduza ao debate profícuo entre as partes e a entendimentos estratégicos para as ultrapassar. Busca essa que claramente é prejudicada por disfunções nos partidos.

No caso do partido da maioria, a gestão delas leva a uma espécie de imobilismo no governo que anos seguidos continua praticamente o mesmo independentemente se está ou não a enfrentar com sucesso os desafios. Não espanta que as projecções do FMI para o crescimento da economia para os próximos anos até 2029 continuam a situar-se à volta de 4,5%. Por seu lado, a oposição também a nivelar-se por baixo na gestão das ambições de curto prazo de indivíduos e grupos não consegue ser muito diferente em termos de substância. Junta-se à caravana que tem soluções simples para problemas complexos, que toma como ideal fazer de todos um empreendedor e que não se furta à perspectiva de ter mais apertadas as malhas da dependência. Afinal, é aí o campo privilegiado para se fazer os jogos do poder.

O ano parlamentar vai terminar na próxima semana e claramente que os partidos não se prepararam para a produção de políticas públicas nem para a formação de dirigentes para os desafios que o novo ciclo eleitoral vai trazer. O mundo, porém, está a mudar rapidamente e não basta em relação às políticas seguir simplesmente a agenda das organizações internacionais. Nem tão-pouco para as lideranças ficarem pelo mais ambicioso, ou o mais narcisista, ou o mais fechado em si próprio. Seguindo exemplos recentes de outras democracias há que inflectir a tendência para a degradação da política e dos partidos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1182 de 24 de Julho de 2024.

segunda-feira, julho 22, 2024

Entendimento precisa-se para melhor gestão do Sector Empresarial do Estado

 

No parlamento na semana passada, o VPM e ministro das Finanças em resposta à pergunta dos deputados sobre os objectivos pretendidos com uma melhor gestão do Sector Empresarial do Estado (SEE), pôs enfase na necessidade de reduzir o risco para o orçamento do Estado e no papel de acelerador da diversificação da economia e do crescimento económico. A oposição, em outro momento da mesma sessão parlamentar, chamou a atenção para o que líder parlamentar do PAICV chamou de elevado risco representado por pelo menos seis empresas públicas de acordo com um quadro da UASE.

Em debate na Assembleia Nacional estava uma proposta de alteração na governança do SEE com a criação de uma nova entidade de gestão de participações do Estado na perspectiva de se obter uma melhoria na eficiência do funcionamento das empresas estatais. Quer-se com um novo modelo de gestão que as empresas deixem de ser sugadores dos recursos públicos e de passarem a contribuir de forma mais efectiva para a melhoria do ambiente de negócios, para diminuir custos de factores como água e electricidade e outros custos transaccionais ligados aos transportes e à conectividade interilhas e entre o país e o mundo. A melhoria da gestão das empresas que constituem o SEE tem sido uma recomendação permanente de organizações internacionais como o FMI e o Banco Mundial e também do GAO.

A iniciativa legislativa do governo visa aparentemente dar uma resposta à essa insistência das organizações internacionais. Espera-se é que não se fique por aí e haja consequências práticas com real impacto na redução dos riscos, na melhoria dos serviços prestados e na facilitação da iniciativa privada em vários sectores. O cepticismo em relação a isso revelado nas intervenções da oposição tem a ver com as enormes dificuldades em realmente mudar a situação no SEE como se pode constatar de outras iniciativas do actual governo e dos anteriores para melhoria da gestão dessas empresas que não tiveram o sucesso esperado. O resultado em muitos casos viu-se na dívida pública acumulada, na excessiva exposição do Estado devido a garantias e avales e nas dificuldades acrescidas em novos custos e em maiores resistências às reformas que globalmente tornam os problemas de certos sectores públicos quase intratáveis.

Pode-se considerar que o cepticismo é transversal. Hoje é expresso pela actual oposição que já foi governo e amanhã poderá ser a atitude assumida por uma diferente oposição. As dificuldades em determinar o papel do Estado e em particular do SEE num pequeno país arquipélago de parcos recursos e reduzida população e com mercado fragmentado por nove ilhas são enormes. Também não ajuda o facto de não existir entendimento quanto à natureza das dificuldades e em como as ultrapassar. E não poucas vezes essas dificuldades tornaram-se maiores por razões ideológicas, por insistência em mitos diversos e por imposição de soluções pela cooperação internacional.

Assim, já se teve a estatização da economia com um SEE dominante nos primeiros quinze anos e não resultou. A estagnação económica que acabou por produzir juntamente com a escassez e falta de diversidade de produtos e o desincentivo à iniciativa empresarial e aos investimentos serviram de motor para a mudança para uma economia de mercado que veio a verificar-se nos anos noventa. Seguiu-se a liberalização económica, atracção de investimento directo estrageiro e privatizações que aumentaram extraordinariamente o potencial de crescimento do país e levaram a taxas elevadas do PIB.

Desde a crise financeira de 2008 que se nota que, com o pouco crescimento da produtividade e a diminuição da competitividade do país, não obstante o grande crescimento do fluxo turístico, não tem sido possível elevar de forma sustentada as taxas de crescimento do PIB a mais de 7%, a taxa que consensualmente se acha necessário para o país prosperar, criar emprego e garantir rendimento às pessoas. Entretanto, a dívida pública vem aumentando e depois do salto devido à Covid-19, ainda não regressou, segundo os últimos relatórios do FMI, aos níveis pré-pandémicos de 2019. Tem sido feito um esforço de consolidação orçamental e conseguiu-se um saldo primário positivo em 2023, mas segundo o FMI foi com o aumento das receitas fiscais, baixa execução do orçamento de investimentos e pagamento pontual do fee da concessão dos aeroportos. A contenção efectiva de riscos orçamentais e a obtenção de saldos primários positivos terá que passar necessariamente por uma melhor gestão e adequação do SEE.

Não havendo, porém, entendimento quanto à natureza das dificuldades que as empresas estatais enfrentam e quanto ao papel ou função que podem desempenhar, fica tudo muito difícil. Há quem pense que o mercado de per si pode resolver. Viu-se nos transportes marítimos em como de um concurso público e da procura de navios novos se chegou a um concessionário, a navios sob leasing e à subsidiação expressiva. Acontece algo similar nos transportes aéreos e noutros sectores como água e energia. De facto, o mercado do país não é realmente unificado, em vários sectores o mercado é imperfeito e noutros há falhas de mercado. Globalmente há um problema de escala que cria ineficiências graves com os custos correspondentes e ineficácias na prestação de serviços.

Claramente que a iniciativa privada e o empresariado público devem poder se conjugar para obter os melhores resultados no processo de criação de riqueza no país. Para isso é fundamental que haja um esforço dirigido do Estado para conseguir uma gestão altamente qualificada e competente para o sector público. Uma política de atracção e formação de quadros seguindo critérios meritocráticos seria o desejável. É o que Singapura fez, mas que no ambiente de crispação política que se vive em Cabo Verde dificilmente se conseguiria, particularmente quando cada vez mais a lógica da militância partidária orienta-se pela procura e disponibilização de lugares no Estado.

Porém, sem gestão competente do SEE não há como fazê-lo cumprir os objectivos de contenção do risco e de acelerador. Pode-se avançar com mudanças no modelo de governança, mas dificilmente se vai criar cultura organizacional adequada e ganhar competência executiva. De facto, nomeações determinadas pelo jogo político-partidário podem acabar por distorcer os propósitos de gestão. Nota-se, por exemplo, como nas empresas a colegialidade dos órgãos de administração é enfraquecida com o empoderamento e voto de qualidade dos PCAs. Também a relação entre governantes, entidades reguladoras independentes e as empresas estatais pode ser condicionada pela excessiva centralização dos poderes de nomeação e de tutela num único membro do governo, o que claramente não favorece o ambiente de negócios propício a investimentos e à actividade empresarial. Por outro lado, privatizações por si só não vão resolver o problema, como já se sabe dos fracassos passados.

Cepticismo de hoje em relação a melhorias na gestão do SEE será o mesmo de amanhã, como já foi o de ontem, se não se assumir uma outra atitude. É preciso que haja um entendimento geral quanto à necessidade fulcral de se ter uma administração pública e um SEE competentes. É fundamental para desenvolver um país. A par com uma educação de excelência foi a opção ganhadora de Singapura. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1181 de 17 de Julho de 2024.

sexta-feira, julho 12, 2024

Traçar linhas vermelhas, uma prática potencialmente perigosa

 O presidente da república no seu discurso do 5 de Julho fez um apelo à união e foi peremptório ao dizer que “face à turbulência do mundo actual e à velocidade das mudanças, só juntos conseguiremos manter este Cabo Verde de todos nós na rota do desenvolvimento, da modernidade”. É um apelo esperado considerando que o PR é constitucionalmente o garante da unidade da nação e do Estado. Infelizmente não é a imagem que actualmente projecta no país e na sociedade.

Gira demasiada controvérsia à volta da relação do PR com os outros órgãos de soberania. Em causa na maior dos casos está o exercício das competências respectivas no quadro do princípio da separação dos poderes. Para quem tem funções de vigiar o cumprimento da Constituição e, enquanto tal, fazer o papel de árbitro e moderador, a introdução de agendas próprias num estilo activista e populista não augura bons resultados. Comprometer-se, por exemplo, com a promoção do legado histórico da nossa jovem Nação num registo indistinguível daquele que suportou o regime claramente divisivo de partido único (é só ouvir as canções de intervenção dos tempos da independência) não se coaduna com o apelo de união lançado pelo PR

Tão-pouco a prática de estabelecimento de “linhas vermelhas” vai ajudar no desenvolvimento do diálogo indispensável para se ter convergência na realização dos desígnios nacionais. Quando se pensava que as competências dos órgãos de soberania estão plasmadas na Constituição e não podiam ser aumentadas ou diminuídas, o país é surpreendido com novas regras. Em Portugal, uma linha vermelha ad hoc compeliu o presidente da república a dissolver o parlamento na sequência da demissão do primeiro-ministro mesmo tendo o partido no governo uma maioria parlamentar confortável. As consequências viram-se na instabilidade governativa e na reformulação do espectro político com ganhos para os partidos radicais e extremistas.

Em Cabo Verde, ficou-se a conhecer, via um comunicado da presidência da república, a existência de linhas vermelhas para a nomeação dos chamados embaixadores políticos. Isso na sequência de revelações de propostas do governo que receberam negas do PR e que depois serviram de material nas lutas partidárias e intrapartidárias para se sugerir que alguém terá escorregado numa casca de banana ou levado para o outro lado partidário a troco de cargos.

A questão dos embaixadores políticos é pontualmente agitada na praça pública e sempre excita paixões em certos sectores. Depois dos anos noventa só voltou em força a partir de 2016. De qualquer forma não deixa de ser curioso que isso aconteça quando se sabe que a grande maioria dos embaixadores nomeados principalmente para os postos diplomáticos mais importantes nos 49 anos de independência pode ser vista como enquadrada nessa categoria.

De facto, tirando de lado os primeiros quinze anos de regime de partido único em que todas as nomeações eram partidárias, mesmo as mais recentes, já do século XXI, tiveram um forte viés político. Em retrospectiva as linhas vermelhas agora proclamadas impediriam as nomeações de aposentados e de personalidades do regime anterior que se verificaram na primeira década deste século. Também com os actuais “critérios”, ex-ministros e deputados não seriam nomeados embaixadores porquanto, como membros do governo ou do parlamento, estiveram “no furacão da política”. Muito menos deveriam ser propostos os diplomatas de carreira, que imediatamente antes serviram como ministros ou conselheiros de membros do governo e logo de seguida como embaixadores, por duas razões: uma por terem estado no tal furacão da política e sofrerem a devida contaminação; e outra para não deixar a impressão que, pela nomeação na sequência de uma passagem pelo governo, terão sido privilegiados na carreira diplomática em relação aos outros.

Nos primeiros quinze anos deste século nove diplomatas serviram no governo e de seguida foram nomeados embaixadores. E há repetentes. Pela proximidade dessas práticas não se pode considerar que, com o trazer a público as linhas vermelhas, se está a agir por convicção. Mais parece um pretexto para mais um episódio de guerrilha institucional. É verdade que o país teria tudo a ganhar com uma classe profissional de diplomatas de carreira altamente qualificada e pronta a implementar a política externa de qualquer governo independentemente da cor política. Mas não se pode é ignorar a história institucional do que actualmente existe, as distorções a que foi sujeito e a cultura organizacional que gerou. E não é certamente com o excitar do espírito corporativista que se vai ultrapassar a actual situação.

Aliás, se há algo que se devia evitar é a transformação das reivindicações, muitas vezes justas das classes profissionais da administração pública, em armas de arremesso político. A convergência de interesses à qual o PR se referiu no seu discurso do 5 de Julho deve ter como um dos focos as reformas na Administração Pública indispensáveis para se conseguir baixar os custos de contexto, aumentar a produtividade e a competitividade do país. Isso só será possível se se puder evitar que o partidarismo incite ao entrincheiramento de interesses corporativos existentes que já dificultam as reformas essenciais e podem vir a ser tentados a manter refém os serviços públicos com anúncios quase permanente de greves.

Nesse sentido, há que restaurar o diálogo essencial para a democracia estar em posição de mostrar as suas virtualidades na procura de soluções com abertura a negociações e espírito compromissório. Para isso, porém, vai se ter que reunir consensos sobre as regras do jogo democrático, o sistema de governo que se tem no país e sobre as funções e competências de todos os órgãos num quadro que garanta os checks and balance, a prestação de contas e a responsabilização política. Também há que procurar manter o consenso sobre a necessidade de manter em devido controlo as pulsões populistas que, como se tem visto em vários países, são alimentadas pelo excitar de sentimentos com base na intolerância e no ressentimento e são protagonizadas por personalidades narcisísticas com tendências autoritárias e iliberais.

A experiência recente de alguns países democráticos demonstra quão frágil é a democracia se faltar o sentido de decência, se se limitar a liberdade de expressão e o pluralismo com cancelamentos do Outro e se permitir que actores políticos atropelem as regras democráticas e a própria lei e exibam uma aura de impunidade. A insistência em legados históricos intrinsecamente divisivos e exclusivos que se referenciam agora na propalada “hora zero da república” ao mais alto nível do Estado não incentivam à união que o país tanto precisa, não obstante os apelos em sentido contrário que se possam fazer em simultâneo. O actual panorama nacional demonstra isso claramente.

A possibilidade de conseguir a união que o país precisa só pode vir do aprofundamento do sentido de pertença à república como está definida na Constituição de 1992, porque tem como pressupostos a liberdade, a dignidade e a possibilidade de livre escolha dos governantes. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1180 de 10 de Julho de 2024.

segunda-feira, julho 08, 2024

Pela continuidade da construção da independência

 

O 5 de Julho, Dia da Independência, aproxima-se e é já na sexta-feira. Em antecipação já está em marcha o que se tem feito ao longo dos 49 anos de país independente: aproveitar a data não para reforçar a unidade da comunidade político-nacional, mas fundamentalmente para prestar homenagem aos autoproclamados libertadores e à ditadura de quinze anos a que estão intrinsecamente ligados.É só ouvir os discursos proferidos na sessão solene da Assembleia Nacional por altura das comemorações para se perceber as consequências disso.

Anualmente, no 5 de Julho, ao invés de se afirmar a unidade da nação indispensável para enfrentar os grandes desafios do país, cavam-se mais as divisões no seu seio. Nem os 33 anos de democracia conseguiram frear o impulso de considerar alguns “os melhores filhos” ou “a geração mais moral” e relegar os outros para uma postura de eterna gratidão para com o “bem maior” que é a independência. Tende-se a reproduzir com nuances a divisão original professada por Amílcar Cabral de que o povo é todo aquele que está com o partido e a população é o resto.

No preâmbulo do decreto presidencial de condecoração da OMS publicado na semana passada encontra-se uma das variações dessa divisão. No documento contrapõem-se os “questionamentos dos filhos da terra” quanto à viabilidade do país com a “postura audaciosa dos dirigentes” de lançar mão da solidariedade internacional na procura de afirmação do Estado. Como se ao forçar uma unidade com a Guiné não se estaria também a mostrar preocupação com a viabilidade, se não do país, pelo menos do regime que pretendiam instalar. A insistência em reproduzir fracturas no tecido da nação continua a ser uma forma de impedir que a independência realmente represente a autodeterminação que se quer de uma colectividade nacional suportada na cidadania plena com direitos fundamentais garantidos e capacidade livre e plural de escolher governos e governantes.

No preâmbulo de um outro decreto presidencial de condecoração de artistas e conjuntos de música de intervenção nos tempos da independência nacional constata-se que pré-existia a “determinação de um povo em ser dono e senhor do seu destino”. Também acrescenta que nas canções da época se reconhecia o desejo do povo em abrir “nos camin pa flicidad” e em “gritá nos liberdad”. O que no citado preâmbulo não se encontra é que nos primeiros quinze anos pós-independência não se conseguiu liberdade, nem as pessoas viram-se com opções próprias no seu caminho para a felicidade. Ou seja, a expectativa do que seria a independência não se realizou.

Sendo os decretos presidenciais de 26 e 27 de Junho de 2024 em que a ordem constitucional referencia-se pelos princípios e valores da liberdade e dignidade humana e assenta na vontade popular, certamente que se está pela via das condecorações a reconhecer que o que foi então cantado encontra-se agora mais próxima da realidade. A comemoração da independência é a celebração de tudo quanto a independência representa de autonomia, de liberdade dos indivíduos e do exercício do poder no estrito respeito pela Constituição e pelas leis democráticas. Não pode resumir-se à glorificação de um momento no passado que significou muito pouco para a liberdade e para a felicidade das pessoas.

Nem mesmo significou total soberania no sentido estrito de independência do Estado. A transferência de poder que aconteceu no dia 5 de Julho de 1975 foi das autoridades portuguesas para o PAIGC, um partido que já governava um outro país, a Guiné-Bissau. O Estado de Cabo Verde nasceu já comprometido com uma união com a Guiné-Bissau a ser formalizada no futuro como se pode ver no Texto da Proclamação da Independência e no nº 2 do artigo 2º da LOPE que estabelece uma comissão presidida pelo presidente da Assembleia Nacional Popular para elaborar “um projecto de Constituição da Associação dos dois Estados”. Na prática a união era real porque eram dirigidos por um único partido.

Só que isso colocava logo um problema de como seria o processo decisório nos órgãos superiores do PAIGC em relação a cada Estado considerando a sua composição binacional. No Conselho Superior de Luta de entre 85 membros só 13 eram cabo-verdianos e no Comité Executivo de Luta havia cinco cabo-verdianos num total de 25 membros. A desproporção era grande e não deixava de afectar Cabo Verde considerando a importância decisional hierárquica dos órgãos do PAIGC nas decisões do Estado como está evidenciado no Boletim Oficial de 5 de Julho de 1975. No sumário desse BO vem primeiro a Declaração do Conselho Superior de Luta do PAIGC de 25 de Junho seguido do Texto da Proclamação da Independência. Só depois é que o BO traz a Lei de Organização Política do Estado (LOPE) aprovada pela Assembleia Nacional Popular e finalmente diplomas da Presidência da República e do Governo. Para aprovação da bandeira a ser adoptada no 5 de Julho uma delegação cabo-verdiana teve que se deslocar a Bissau para conseguir a concordância do secretário-geral adjunto e presidente da Guiné, Luís Cabral.

Claramente que a independência, na forma de passagem de poder para o PAIGC como se verificou, não podia ser completa. Da dependência de Portugal passou para uma espécie de soberania compartilhada com a Guiné através do PAIGC, o qual é apresentado no Texto da Proclamação da Independência como “expressão da vontade soberana do povo na Guiné e em Cabo Verde” e força dirigente da sociedade e do Estado. A reforçar esse estatuto ainda no mesmo Texto se considera que as forças armadas revolucionárias do povo (FARP) são o braço armado do partido e não uma instituição do Estado como seria de esperar.

Neste particular, compreende-se por que sempre em momentos de tensão vividos nos anos entre 1975/80 se notava a presença de governantes guineenses das áreas de Segurança e Defesa em Cabo Verde. Aconteceu em 1977 nos dias logo após as prisões em S. Vicente e Santo Antão e outra vez em 1979 na sequência das dissidências no seio do PAIGC. Neste último caso, cinco dias depois do choque interno no PAIGC o então ministro da defesa da Guiné-Bissau, logo à chegada à Praia, anunciou exercícios militares das FARP para o mês de Maio. Depois do golpe de Estado na Guiné, o então primeiro-ministro Pedro Pires veio explicar que afinal a unidade com a Guiné era uma questão de defesa e segurança interna de Cabo Verde. Ou seja, a ligação com a Guiné tinha a função primeira de garantir uma retaguarda enquanto o regime criava raízes sólidas em Cabo Verde.

Com o fim do projecto da unidade depois do golpe na Guiné, Cabo Verde recuperou parte da sua soberania como Estado independente, mas não ainda como uma república soberana. Continuava a ser governado por um partido com a mesma postura ideológica de negação da autodeterminação, ou seja, da capacidade autónoma de decisão quanto aos destinos da colectividade nacional. Isso só viria a acontecer depois do 13 de Janeiro e com a Constituição de 1992.

No 5 de Julho é a independência completa e total que deve ser celebrada. Em particular, porque é fundamental criar o espírito de unidade da comunidade nacional para que, para além da independência política, se continuar focado em construir a independência socio-económica e também a independência cultural que o país tanto precisa. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1179 de 3 de Julho de 2024.

sexta-feira, junho 14, 2024

Aposta na solidariedade e na aquisição de competências

 Na apresentação do relatório Cabo Verde Economic Update 2024 o Banco Mundial veio relembrar as vulnerabilidades do país que a pandemia da Covid-19 pôs a claro. Citou, designadamente a grande dependência do turismo, as fragilidades face a choques externos e os riscos representados pelas empresas estatais com fraco desempenho. Um reviver pertinente de memória de todos considerando a tendência oficial para declarações auto congratulatórias do tipo: foi conseguido “a maior taxa de crescimento de sempre em 2022”. Quase se omite que tal só se verificou após a maior forte contracção conhecida da economia nacional.

Também um oportuno recordar para não obscurecer que os problemas estruturais permanecem e que, mesmo com o regresso dos turistas, ainda em 2024 não se aproveita adequadamente a procura externa gerada pelo turismo para arrastar e diversificar o resto da economia. A ilustrar isso, na avaliação da economia azul, o Banco Mundial, no mesmo documento, chama a atenção para o facto de que os operadores turísticos têm que importar peixe para consumo nos hotéis. Justificam com o facto de nem o manuseamento do pescado e nem a armazenagem no frio dos produtos do mar seguirem rigorosamente os procedimentos exigidos para garantir a segurança alimentar.

Ainda no quadro do esforço para a diversificação da economia o BM aponta a falha na criação de capacidade nacional de captura de peixe que está a pôr em perigo a indústria conserveira do país e as exportações de produtos do mar. Com o fim em vista da derrogação dos direitos de origem garantida pela União Europeia, são as exportações, que já atingem o valor de 32 milhões de dólares e 3,4% do PIB e também milhares de postos de trabalho, em particular de mulheres nas fábricas, que ficam em perigo. E é toda uma via, a da economia azul, para se evitar a chamada monocultura do turismo e as suas dependências que se arrisca a desperdiçar por falta de visão e de políticas adequadas. Também por negligência, porque não faltaram avisos das consequências do fim das derrogações.

Por outro lado, não é obvio, pelo menos no relatório do Banco Mundial, que existam à mão outras vias para diversificar a economia e criar rapidamente postos de trabalho. A quebra do fluxo turístico por causa da Covid-19 mostrou o quanto o país depende do turismo. Viu-se também que mesmo com toda a ajuda internacional, o endividamento externo e as remessas dos emigrantes a economia caiu mais de 20% e só recuperou com o regresso dos turistas. A constatação desse facto deveria ter levado a uma reflexão nacional profunda sobre as vulnerabilidades do país e em como as contornar e amortecer para melhor prepará-lo para enfrentar choques externos. Não aconteceu.

Os estrangulamentos na cadeia de abastecimento, a inflação, a guerra na Ucrânia e os aumentos do preço dos combustíveis que vieram logo a seguir parece que também não foram suficientes para devidamente focar a atenção nos problemas do país. A percepção que o mundo de hoje, com a globalização em retirada, com o regresso do proteccionismo, aumento de tensões geopolíticas e mesmo a possibilidade de guerras, não é o dos anos anteriores, aparentemente não impede que se queira continuar a fazer o mais do mesmo. Tanto é assim que no parlamento onde deviam-se discutir essas grandes questões do país o mais certo é que não recebam a devida atenção e se prefira ficar pelas tricas da pequena política.

Curiosamente não poucas vezes elas reaparecem ostensivamente em encontros, fóruns e workshops preparados com pompa e circunstância. Milhões acompanham os projectos que na sequência são anunciados. Depois, quando avaliados como agora acontece com a blue economy, percebe-se que, não obstante os muitos financiamentos feitos na pesca ao longo de quase cinco décadas, o sector caracteriza-se pela informalidade, por baixa produtividade e pelos níveis de pobreza de muitos que dele vivem. Por outro lado, considerando que se baseia num dos raros recursos naturais do país, o facto de não realizar o seu potencial prejudica directamente a economia não só pelo impacto directo limitado como pelos efeitos de arrastamento noutros sectores que ficam aquém dos possíveis. E é menor o papel que podia ter na diversificação da economia e em garantir ao país maior resiliência face aos choques externos.

Neste momento em que o mundo parece estar no limiar de mudanças profundas a vários níveis, Cabo Verde devia ser capaz de confrontar criticamente muitos dos pressupostos e mitos que têm estado subjacente às políticas de desenvolvimento adoptadas ao longo de décadas no pós-independência. Um deles, por exemplo, é da importância estratégica de Cabo Verde que historicamente parece mais pontual do que permanente. Quantos investimentos em projectos de hubs, transhipments e outros serviços sem o retorno esperado já foram feitos com o pressuposto que o interesse no país não é conjuntural. Um outro problema é o de escala num país arquipélago e de pequena população e relativamente remoto. Não há como moldar mercados e impor-se como útil e indispensável. O que deve existir é agilidade e criatividade no aproveitamento das oportunidades. De outra forma criam-se elefantes brancos e aumenta-se a dívida.

O ponto em que o país actualmente se encontra, com uma dívida pesada, com um sector público que comporta muitos riscos de aumentar mais essa dívida e com a dependência excessiva do turismo, não podia ser mais preocupante, mesmo que a conjuntura externa não fosse tão complicada como a actual. A predisposição para emigrar de muitos jovens e não jovens é sinal que esse sentimento de preocupação com o futuro está generalizado. A questão que se coloca é se há suficiente motivação interna para uma abordagem crítica e construtiva do que tem sido feito e para se dar os passos em frente que se impõem. Ou se se deve ficar apenas pelos sobressaltos que periodicamente os relatórios de organizações internacionais podem provocar, como foi o de Julho do ano passado sobre o esgotamento do modelo de desenvolvimento de Cabo Verde apresentado pelo Banco Mundial ou o actual apresentado na segunda feira passada.

O que o país não devia delapidar é o grande activo de ter uma população homogénea sem problemas de identidade e uma grande predisposição das famílias para investir na educação dos filhos. Há que, pelo contrário, reforçar ainda mais o sentido da cabo-verdianidade, investir compreensivamente, com o engajamento de toda a sociedade, na aquisição de competência linguística, científica e tecnológica e apostar na solidariedade como valor básico da comunidade. Está ao alcance de todos fazer esse comprometimento para vencer as extraordinárias dificuldades que se colocam ao país. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1176 de 12 de Junho de 2024.