sexta-feira, dezembro 04, 2015

Entre o discurso e a prática

O governo fez aprovar na Assembleia Nacional algumas alterações à lei dos benefícios fiscais que tinha entrado em vigor em 2013. A ministra de Finanças justificou a proposta de lei com o argumento, entre outros, que irá beneficiar mais de 80% das pequenas e microempresas. A reacção das câmaras de comércio foi rápida e contundente. A de Sotavento foi categórica em afirmar que “os resultados da aplicação da lei foram nulos”. A de Barlavento assegurou que as alterações agora apresentadas “não estimulam o investimento”. 
A racionalização do sistema de benefícios fiscais serve fundamentalmente dois propósitos: permite, por um lado, que o Estado tenha imediatamente mais receitas com a eliminação dos benefícios fiscais já demostrados desnecessários e também daqueles outros cuja lógica para a sua criação perdeu-se há muito no tempo. Por outro lado, permite criar estímulo a actividades em sectores chaves da economia na perspectiva de atrair investimento externo, ganhar mercados, conseguir economia de escala e abrir-se para a inovação de produtos e processos. A ideia é o Estado perder inicialmente em receitas com os benefícios que estender à actividade económica e ganhar a prazo com mais vencimentos a serem tributados, mais lucros das empresas a serem declarados e mais IVA recebidos das múltiplas transacções em ambiente de crescimento acelerado e de baixo desemprego.
Naturalmente que para se obter melhor efeito dos benefícios fiscais a proposta de lei devia dirigir-se aos sectores com maior potencial de crescimento e de empregabilidade. Exportações e turismo saltam logo à vista. A realidade porém é muito diferente. Nota-se por exemplo que, quando instada a exemplificar aplicações da lei, a ministra das Finanças escolhe o caso da senhora do Paul que queria adquirir um fogão e um frigorífico para as suas produções caseiras de doces, frutas cristalizadas e licores. Ora, não é concentrando os benefícios fiscais nos sectores não transaccionáveis que se vai conseguir que os seus efeitos multiplicadores tenham o maior impacto na economia nacional.
Aliás, uma das supostas vantagens que a nova lei tem em relação às leis anteriores é de não distinguir entre investidor nacional e investidor estrangeiro. Mas é um falso problema até porque o quadro das leis de investimento criado nos anos noventa da estruturação da economia do mercado serviu bem até ser substituído pela actual lei de 2013. Grandes investimentos na indústria e no turismo foram feitos nesse quadro. A questão central é se o governo deve de forma privilegiada incentivar o sector de bens e serviços transaccionável ou não. Sabe-se das experiências de outros países que é dinamizando esse sector que o país tem possibilidade de crescer rápido e criar um número de postos de trabalho que efectivamente baixe o desemprego para níveis aceitáveis. Portanto, é uma questão de opção política do governo determinar qual dos sectores quer efectivamente incentivar: o transaccionável ou não transaccionável. De onde vem o capital, se do nacional ou do estrangeiro não interessa realmente.
Um outro factor que contribuiu também para a falta de resultados é a alta rotatividade dos ministros da Economia – sete ministros numa década e meia, nos governos do PAICV. Dificilmente se conseguiu a articulação necessária com outras medidas de política para ter resultados palpáveis. Os sucessivos ministros não eram pesos pesados da política no seio do governo e face à rigidez das posições vindas da ministra das Finanças dificilmente podiam fazer prevalecer as suas posições. A postura considerada pouco dialogante da ministra das Finanças por diversos representantes do sector privado certamente que não ajudou.
Porém, a maior dificuldade poderá ser de natureza ideológica. Para os grandes investimentos em geral de capital estrangeiro foram criadas “barreiras” que inicialmente eram de 20 milhões de contos e sucessivamente passaram a 10 milhões e agora a 5 milhões de contos para ter acesso a benefícios fiscais. Para as pequenas e microempresas não há preocupação real em saber de onde vem o investimento e disponibilizam-se benefícios fiscais sem verificar a dimensão dos eventuais ganhos na economia nacional. A preocupação com o crescimento rápido da economia não parece ser real. Até agora as autoridades têm-se mostrado confortáveis com o crescimento anémico que desde 2011 o país tem registado. Quando confrontados com a quase estagnação, culpam a crise mas mantêm o mesmo rumo que até agora lhes permitiu tirar dividendos eleitorais.
   Editorial do jornal Expresso das Ilhas do dia 2 de Dezembro de 2015

sexta-feira, novembro 27, 2015

A demissão

A ministra Sara Lopes demitiu-se. O Primeiro-ministro alegou questões pessoais, mas o mais provável é que questões políticas sérias estejam por detrás dessa decisão. Vêm logo à mente a crise por que passa a TACV ou a tragédia que foi a morte dos 15 passageiros e tripu­lantes do navio Vicente.
Na véspera, dia 23 de Novembro, discutiu-se na Assembleia Na­cional o relatório da Comissão de Inquérito sobre o desaparecimento do navio Rotterdam e o afundamento do navio Vicente. Os partidos da oposição nas suas intervenções desfilaram uma sucessão de erros ou falhas cometidas por várias instituições do Estado que deviam cui­dar da regulação e da segurança marítima e exigiram que o governo e particularmente a titular da pasta assumisse a responsabilidade pelo acontecido. O governo apoiado pela sua maioria insistiu no erro hu­mano como se a constatação de falha humana em alguma manobra específica ilibasse as autoridades do facto de não terem sido atentas e rigorosas em momentos anteriores. No dia seguinte houve aparente­mente um volte face. O PM comunicou a demissão da ministra. Sabia como esse facto seria interpretado politicamente. As explicações pos­teriores de que as razões foram pessoais não colhem.
Pode-se é pensar que os motivos por trás da resignação da minis­tra não ficam por aí. Ocorre imediatamente o que se passa na TACV. Sara Lopes tinha sob a sua tutela sectores importantes como as infra­-estruturas, a economia do mar e os transportes aéreos assim como os chamados cluster do mar e de aeronogócios e a TACV. Todos sectores sensíveis e susceptíveis de neles se desenvolverem situações politica­mente complicadas considerando o impacto que têm na vida das pes­soas e na economia nacional e o facto de terem na sua direcção pessoas politicamente bem posicionadas. O caso da TACV é paradigmático. O facto de nos últimos tempos de muito escrutínio público e crítica à TACV a ministra da tutela ter-se primado pela ausência foi sintomáti­co. Algum braço de ferro estaria a acontecer em que parece ter saído vencida a ministra.
A disputa pela liderança no PAICV deixou sequelas no governo. Di­ficilmente poderia ter sido diferente. Eram candidatas duas ministras. Cristina Fontes Lima tinha o apoio da maioria dos membros do go­verno, mas quem ganhou foi a ministra Janira Hopffer Almada. Na sequência da eleição, José Maria Neves deixou de ser líder do partido, mas continuou Primeiro-ministro e manteve os ministros nas mesmas pastas entre as quais a nova líder do partido. Todos pretenderam que nada tinha acontecido, mas, na realidade, algo mudou radicalmente. O PM deixou de ser quem legitimamente dá direcção política ao partido que suporta o governo. E essa separação do PM e do líder do parti­do não podia deixar de causar tensões no governo com consequências para a sua coesão e eficácia.
Uma moção de confiança poderia ter sido uma via para se contornar a insólita situação de substituir o líder do partido a mais de um ano do fim da legislatura. Segundo os especialistas, uma moção de con­fiança “é um instrumento de reforço político da posição do governo e da coesão e solidariedade da maioria parlamentar-governamental”. Optou-se porém por deixar a mesma equipa mas já sem a solidarie­dade de outrora e sem os instrumentos de coesão. Naturalmente que nessas circunstâncias as tensões tendem a aumentar, a eficácia gover­nativa diminui consideravelmente e mais cedo ou mais tarde alguns ficam pelo caminho. Os ministros têm provavelmente evitado esse des­fecho pelo menos até agora com espírito de militância e engajando-se a maioria num frenesim de viagens pelas ilhas e aparições na comuni­cação social que mais parece configurar uma campanha eleitoral an­tes de tempo. Entretanto, os problemas vão-se acumulando e tensões internas acabam por vir à superfície. Talvez terá sido o que se passou com Sara Lopes.
Com a saída de Sara Lopes, o PM assumiu a pasta e chamou Maria de Jesus Mascarenhas para o coadjuvar. Não nomeou um outro mi­nistro como seria de esperar, tratando-se de sectores tão importantes para o país. Com isso mostra que realmente todo o governo já está em modo de gestão. E não deve ser de hoje. De facto, sem uma direcção política focalizada no PM pode-se gerir, mas não se pode realmente go­vernar de forma plena. Ou seja, provavelmente esteve-se todo este ano de 2015 com o governo a meio gás. Não é aceitável que um país com os problemas tem se veja com um governo com problemas de coesão interna, com solidariedades divididas, com eficácia reduzida e com a direcção política algures entre o primeiro-ministro e a líder do partido.

Editorial do jornal expresso das Ilhas de 24 de Novembro de 2015

sexta-feira, novembro 20, 2015

Liberté, Egalité, Fraternité

O horror da noite de 13 de Novembro em Paris veio mais uma vez relembrar o poder crescente de indivíduos, agindo ou não em grupos, de semear destruição e de provocar perda de vidas inocentes nas sociedades de hoje cada vez mais urbanizadas. Protagonistas nos actos de terrorismo são em geral jovens perturbados ou alienados que, por razões várias, se deixam levar por uma ideologia de morte que deles pode fazer, a qualquer momento, um bombista suicida ou um assassino sem piedade. Confrontadas com uma violência inaudita, as sociedades com uma tradição liberal e democrática sentem-se pressionadas para encontrar o equilíbrio certo entre o exercício da liberdade e a necessidade de segurança.
O de terrorismo procura, pela força do medo que inspira, demostrar que afinal a civilização e o apego aos valores da liberdade não passam de um verniz ténue. Pode-se fazê-lo estalar a qualquer momento, revelando a barbárie igual para todos. Neste braço de ferro, justifica-se que por todo o mundo vozes se façam ouvir em uníssono e mãos se interliguem numa cadeia universal proclamando solidariedade com os que sofrem e reafirmando que nenhum acto de terrorismo será capaz de deitar abaixo os ganhos civilizacionais da liberdade, dos direitos humanos e da democracia.
O acelerado passo da globalização nas últimas décadas tem transformado a vida de muitos milhões de pessoas em todo o planeta. Tensões diversas têm surgido em consequência das mudanças na sociedade, designadamente em matéria de género, advento da modernidade e das migrações que põem povos, culturas e religiões em contacto próximo. Situações de guerra, pobreza, desigualdade social e discriminação tendem a exacerbar essas tensões, abrindo caminho para reacções de natureza violenta que encontra justificativos em interpretações fundamentalistas das religiões.
Cada vez mais se constata que uma espécie de fundamentalismo islâmico manifestando no jihadismo tem tomado o papel do inimigo principal dos valores liberais defendidos nas democracias modernas. Assume o papel que outrora ideologias da extrema-esquerda levaram ao terrorismo na Europa e na primeira metade do século conduziram ao fascismo, ao nazismo e ao comunismo no seu ódio à liberdade e à democracia. Também como elas no passado, o fundamentalismo islâmico constitui um atractivo grande para jovens desesperançados deixados de lado, seja nas políticas de assimilação cultural adoptadas pela França ou na aposta feita pelo Reino Unido no multiculturalismo. São esses e outros de outros países com problemas similares que andam a engrossar as fileiras do chamado Estado Islâmico e que já se provou participam em actos horrendos de terrorismo nos seus países de origem ou de acolhimento como aconteceu na sexta-feira, 13 de Novembro, em Paris.
Procurando explicações para o falhanço, em maior ou menor grau das políticas de integração social de comunidades diferentes em termos étnico- políticos praticadas na Europa e noutros países, consta-se que muitas geram nos jovens uma atitude que tende a extrapolar exigências e reivindicações em detrimento de responsabilidade. Políticas de assistencialismo e outras que favorecem a dependência quando associadas a acções ideológicas intoxicantes que se concentram em temas de humilhação histórica, escravatura e opressão colonial, racial, religiosa ou civilizacional favorecem o desenvolvimento de um forte sentimento de vitimização. O caminho da vitimização acaba, a prazo, por levar ao desespero, à perda da auto-estima e ao desenvolvimento de um sentimento de impotência e tem um potencial enorme de se transformar no viveiro perfeito para o surgimento de esse tipo de guerreiro frio e sem piedade.
Porque as condições são reproduzíveis em todo o mundo, nenhum país está imune, e a possibilidade de surgimento de potenciais jihadistas no seu seio é algo sempre a dar a devida consideração. Em Cabo Verde grassa uma cultura em certos círculos que extrapola temas de vitimização. Também mesmo na comunidade islâmica há quem ache complicado que alguns jovens cabo-verdianos convertidos ao islamismo se mostrem atraídos pelas versões mais radicais do Islão. A via para sair da situação deve ser uma de inclusão efectiva e de fazer as pessoas sentirem-se responsáveis pelas suas vidas e não enredá-las em sistemas de dependência que hoje as faz grata e amanhã as deixa no desespero.  
Neste momento de solidariedade para com as vítimas do massacre de Paris é de maior importância não ceder à tentação de sacrificar a liberdade em nome da segurança. Com uma deriva securitária ganhariam todos os inimigos da liberdade, mas nem a própria segurança ficaria beneficiada.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 17 de Novembro de 2015

terça-feira, novembro 17, 2015

Renovação e listas de deputados

Ulisses Correia e Silva em declarações ao jornal asemana diz que tem mandato para renovar as listas dos deputados e que está determinado e firme a fazê-lo. Muito bem. Não explica quais os objectivos dessa renovação para além de preenchimento de quotas de mulheres e jovens e de se ver livre de “veiguistas” que causam quezílias internas. Diz-se ainda que a renovação vai trazer uma nova estirpe de deputados chamados de tecno–políticos. Com essa inovação esdrúxula vê-se logo que os restantes deputados, os não tecnos, vão ter de fazer um esforço maior para não cair nos estereótipos maledicentes de deputados que só levantam o braço ou bebem água engarrafada. Também com tecno-políticos na bancada provavelmente poder-se-à dispensar com o quadro de conselheiros e assessores que a Assembleia Nacional põe à disposição dos grupos parlamentares para fornecer aconselhamento e suporte técnico-político aos deputados.

Mas navegar em clichés complicados que alimentam uma cultura anti-parlamentar é o resultado da absorção de partes da narrativa do PAICV pelo MpD . O PAICV sempre teve problemas com a democracia representativa e não perde oportunidade para descredibilizar o seu centro vital que é o parlamento. Faz isso provocando crispação política, exacerbando a polarização partidária e pondo em questão o modelo de representação. O MpD engoliu o isco e pôs-se a questionar o modelo de representação existente e os seus próprios deputados. Curioso que a vontade de renovar não chegou ao líder parlamentar Fernando Elísio que deve ser o único líder parlamentar no mundo a trabalhar com  três lideranças diferentes do partido (Jorge Santos, Carlos Veiga e Ulisses Correia e Silva). Por aí pode-se ver que a deriva contra os actuais deputados não é tão inocente. E que a contestação do actual grupo parlamentar, um dos centros fundamentais da integridade do legado do partido e da sua defesa, serve alguma dinâmica faccionista. Só assim é que se justifica que o processo político de substituição dos actuais deputados fosse aberto há pelo menos dois atrás, com efeitos devastadores na coesão e eficácia do grupo parlamentar.

Inicialmente, para o processo de renovação falou-se de eleições primárias mas acabou-se por ficar com as sondagens para escolha de deputados. Primárias implicariam debate e concorrência aberta dentro partido e isso claramente não interessa. De qual maneira, a opção pelas sondagens faz do MpD o único partido que recorre a elas para preencher lugares de deputados em listas plurinominais.

Sondagens que, por um lado, não são úteis nem são sérias. Não são úteis porque além de custosas não se aplicam a cabeças de lista onde talvez alguma notoriedade e empatia do candidato poderiam trazer benefícios eleitorais. Não são sérias porque sabe-se à partida que para o eleitor num sistema eleitoral de listas fechadas e de disciplina partidária o que conta é o partido e o candidato a primeiro-ministro.

Por outro lado as sondagens propostas constituem uma farsa e escondem um cambalacho. É uma farsa como forma de selecção de deputados quando logo a partida a escolha directa do presidente recai sobre 40 candidatos a deputado (10 cabeças de lista nos círculos nacionais,  6 nos círculos da emigração,  15 candidatos com competências tecno-políticas, 6 nas listas de Santiago Norte e 3 nas listas do Fogo), muitos deles presumivelmente em posições legíveis. Se acrescentarmos ainda os dirigentes que também por escolha da direcção não devem ser sondados, constata-se que, de facto, só uma minoria dos deputados eleitos resultará das sondagens. É um cambalacho porque é evidente que por detrás da suposta escolha pessoal directa do presidente irão estar todos os interesses obscuros que vem deixando o MpD no desnorte e ineficaz na luta contra a hegemonia do PAICV.

Conclusão, a renovação que se está a fazer é um embuste. A renovação que o partido precisa para que continue capaz de servir o país em todas conjunturas só podia ser feita num quadro de respeito pela diversidade e o pluralismo nas estruturas partidárias.