Os acontecimentos do 31 de Agosto de 1981, de há 29 anos atrás, são prova do que são capazes regimes políticos que não têm como base o princípio do respeito pela dignidade humana. A violação sistemática de direitos, consagrados na Carta Universal dos Direitos Humanos, pode ser desencadeada a qualquer momento e por qualquer razão, como se verificou em S.Antão nesse dia. Independentemente das leituras diversas que se pode fazer quanto às origens e ao desenrolar dos acontecimentos, a realidade nua e crua – porque factos são factos - é que homens e mulheres, famílias inteiras, foram apanhados num redemoinho em que ficaram completamente indefesas perante um Estado todo-poderoso
Tropas (FARP) dispararam sobre uma multidão que, na zona de Coculi, Ribeira Grande, se manifestava contra a reforma agrária. Adriano Santos morreu de imediato com uma bala no peito. A lei marcial foi instaurada sobre toda a ilha com a suspensão de todas as autoridades administrativas. Na noite de 31 de Agosto e até ao amanhecer tropas e milícias procederam à prisão de mais de duas dezenas de pessoas. Casas foram violadas e homens nus ou semi-nus viram-se arrastados dos seus quartos de dormir, espancados, metidos em camiões e transportados para S.Vicente no rebocador Damão. Do cais passaram para celas no Morro Branco, João Ribeiro e Alto de S.João, onde permaneceram longos meses, sob torturas múltiplas incluindo choques eléctricos, até o julgamento em Março de 1982 no Tribunal Militar de Instância. “Os presos, “.acusados de tentativa de alteração da Constituição por rebelião armada..” foram condenados a penas de seis meses a dez anos de cadeia por um tribunal militar constituído por juízes, promotor de Justiça e defensor oficioso, nomeados por despacho do Ministro da Defesa e Segurança. Posteriormente, Osvaldo Rocha, um dos presos, viria a falecer em consequência dos espancamentos recebidos
Nesses dias, direitos que hoje se toma como garantidos, eram negados aos caboverdianos:
- direito de expressão do pensamento (art. 47 da Constituição)
- direito de reunião e de manifestação (art. 52 da Constituição)
- direito à vida e à integridade física e moral (art. 27 da Constituição)
- direito à liberdade e segurança pessoal (art. 29 da Constituição)
- direito à inviolabilidade do domicílio particularmente durante à noite (art. 42 da Constituição)
- o direito às garantias penais de defesa ( presunção de inocência, presença do advogado nos interrogatórios, não submissão a torturas para extracção de provas, etc) (art. 34 da Constituição )
Também noutros pontos do país e noutros momentos, caboverdianos viram-se completamente despojados dos seus direitos enquanto cidadãos e pessoas humanas O atropelamento dos direitos humanos já se tinha verificado em S.Vicente, em 1977, com as prisões de 4 de Junho. Figuras muito conhecidas da vida mindelense e também personalidades de S. Antão estiveram mais de sete meses presos sem serem acusados, sofrendo maus tratos e mesmo torturas. Na Brava, em 1979, houve mortes a tiro em situações estranhas; na Praia, em 1980, alguns jovens foram presos e torturados; e, outra vez, em S.Vicente manifestações de estudantes em 1987 foram reprimidas com brutalidade.
Hoje, com o 13 de Janeiro e com a Constituição de 1992 vive-se numa democracia e num Estado de Direito. A natureza sagrada da dignidade humana e dos direitos fundamentais dos cidadãos é o pilar fundamental onde se assenta a Constituição da II República. Ninguém, nem nenhuma maioria pode restringir ou suprimir os direitos fundamentais dos cidadãos. Não há nenhuma razão do Estado que se sobreponha ao valor e ao princípio do respeito pelo indivíduo.
Relembrar o 31 de Agosto não deve, porém, ficar pela simples evocação da luta travada e dos extraordinários sacrifícios feitos para que, hoje, cada caboverdiano visse a sua dignidade respeitada. Deve também forçar uma atenção muito especial quanto a quaisquer tentativas de restrição dos direitos fundamentais, sob que pretexto for.
A democracia liberal continua a ter muitos inimigos. As grandes tragédias do século vinte tiveram origem essencialmente nas lutas entre, primeiro, o fascismo e a democracia como é caso da II Guerra Mundial e, depois, entre o comunismo e a democracia na chamada Guerra Fria. Felizmente para todos que a Democracia ganhou no confronto com as ideologias totalitárias. Por isso, hoje, a Democracia e os Direitos Humanos são valores universalmente reconhecidos. Isso, no entanto, não significa que se desarmaram todos os descontentes e os inimigos da Sociedade Aberta e do Estado de Direito Democrático
Em Cabo Verde, não obstante os avanços feitos, persistem ainda resistências aos valores da democracia liberal. Têm origem designadamente na deficiente cultura constitucional, na persistência de resquícios de culturas políticas totalitárias e na fragilidade institucional. As tentações iliberais do actual governo do Paicv, de violação da Constituição e outras Leis, de esvaziamento do papel da oposição e do parlamento no funcionamento do sistema político, de condicionamento da Justiça e de transformação dos media nacionais,. particularmente dos serviços públicos de comunicação social, em órgãos de propaganda e desinformação, põem um constante e perigoso desafio à consolidação da democracia porque tendem a perpetuar essas insuficiências.
Felizmente, os vários conflitos à volta do cumprimento da Constituição, nos últimos anos propiciaram oportunidades importantes para que todos os caboverdianos se apercebessem da importância da defesa da Constituição e dos direitos fundamentais. Mas as ameaças continuam, e não se pode baixar a guarda.
Neste dia 31 de Agosto deve-se renovar o empenho e compromisso de todos com a defesa da Liberdade e da Democracia, para que quaisquer tentativas de diminuir o que é de facto a maior conquista do caboverdiano – o seu direito de cidadania – não lhe seja retirado em nenhuma circunstância.