A conversa do Presidente da República José Maria Neves com os seus antecessores, Jorge Fonseca e Pedro Pires, organizada na semana passada no âmbito de uma iniciativa PresidTalk - Inovação Política em Cabo Verde, foi certamente inédita, mas de acto politicamente inovador terá muito pouco.O PR já ouve os ex-presidentes nas reuniões do Conselho da República sobre matérias que a Constituição estipula e, naturalmente, que os pode receber em audiências privadas. Normalmente é esse o quadro porque discrição nas consultas e nas conversas é essencial. O país só tem um presidente da república de cada vez. Um exemplo de referência é a discrição de Bento XVI durante o pontificado do Papa Francisco. De outra forma, podem surgir ruídos e tentações de “eminências pardas” que prejudicam uma das funções fundamentais do PR que é a de garante da unidade da Nação e do Estado.
Um resultado da conversa que fez manchete em todos os órgãos de comunicação social foi o posicionamento das três personalidades sobre a não aprovação pela Assembleia Nacional da resolução sobre a celebração oficial do centenário de Amílcar Cabral. Em aparente contraposição ao Parlamento, defenderam uma comemoração condigna do centenário e procurou-se justificar a falta de um voto maioritário para passar a resolução com excessiva partidarização (PR) e divisão do país em duas representações colectivas, uma com referência à Independência e outra com referência à Democracia (JCF). Quanto ao ex-presidente Pedro Pires, segundo a Inforpress, foi claro a explicar que a proposta levada à Assembleia Nacional não é uma iniciativa do PAICV e sim da fundação [Amílcar Cabral], que consultou todos os líderes parlamentares e o presidente da Assembleia Nacional, e o grupo parlamentar PAICV foi escolhido para levar a proposta.
É evidente que as opiniões expressas nesse encontro, num momento tão próximo da decisão parlamentar, praticamente uma semana depois, não serviram para tranquilizar os ânimos. Enquanto “inovação política”, terá sido tomado como uma espécie de instância em discordância com o Parlamento, como aliás já o PR, por si só, tinha deixado entender. Não será simples coincidência que, na sequência, tenha surgido uma iniciativa de petição para levar a questão outra vez ao Parlamento. Provavelmente a iniciativa terá o mesmo chumbo mas agravando ainda mais a polarização social e política que parece preocupar todos. Mesmo sabendo isso, insiste-se em ir por esse caminho. Não se explica que Cabo Verde é uma democracia e, como tal, é um país livre e plural em que comemorações de centenário ou homenagens a personalidades diversas não são proibidas. Não têm que, necessariamente, serem oficiais ou do Estado e, quando o são, é por decisão da maioria no órgão próprio, o Parlamento, que é aquele que representa os cabo-verdianos no pluralismo das suas ideias e na diversidade dos seus interesses.
A partir da Constituição de 1992 Cabo Verde passou a ser uma comunidade de princípios e valores, uma república que garante o respeito pela dignidade humana e reconhece a inviolabilidade e inalienabilidade dos direitos humanos como fundamento para a paz e justiça e que assenta na vontade popular. Para trás ficaram regimes baseados na legitimidade histórica e em que o exercício do poder não era baseada na legalidade democrática. Se ainda hoje a polarização e a crispação política são extremas, tal não resulta de uma excessiva partidarização que teria nascido com a democracia, como muitas vezes se deixa entender. De facto, não há nada mais partidário do que a administração pública do regime de partido-Estado. Se continua na mesma senda é porque nunca se conseguiu consenso para, depois dos quinze anos de regime e na democracia, se proceder à sua despartidarização. Havia sempre quem se beneficiasse com o status quo e, em fazendo isso, enraizava ainda mais essa cultura de partidarismo na função pública e a transportava para outros sectores da vida na sociedade.
Também não há “separação entre o povo da independência e da democracia”, como foi aventada. O que se nota assemelha-se a uma colisão de sistemas políticos diferentes que se perpetua por causa da relutância do Estado, das instituições públicas e dos actores políticos em assumir por inteiro os princípios e valores da república. Ainda pesam as narrativas históricas que constituíam o núcleo essencial de legitimação do Estado pós independência. O Estado actual, com os seus tentáculos nas instituições, no sector educativo e no sector público da comunicação social, que é hegemónico no país, faz de guardião delas. O resultado é que impedem a assunção plena do presente com outros princípios e valores e constrangem o futuro porque não se consegue fazer política focada na procura de prosperidade geral e na criação de condições para realização pessoal de todos. Todo o imbróglio à volta do centenário de Amílcar Cabral é mais um dos momentos em que essa colisão se torna mais evidente.
Um outro ponto em que recorrentemente se sinaliza essa colisão de sistemas é na questão dos poderes do presidente da república. Da história sabe-se que em Setembro de 1990 o PAICV, ainda único na Assembleia Nacional Popular, impôs o semipresidencialismo que lhe parecia mais familiar com o regime anterior. As eleições de 13 de Janeiro de 1991 deram a maioria qualificada ao MpD que lhe permitiu mudar esse sistema de governo e adoptar um outro de cariz mais parlamentar. Essa mudança, apesar de, ao longo de mais de três décadas ter demonstrado garantir estabilidade governativa, sempre se manteve como um ponto de conflito. De tempo em tempo reaparece.
Na conversa da semana passada sobre o tema de inovação política falou-se do semipresidencialismo e da coabitação. Como não está prevista qualquer revisão constitucional e um novo ciclo eleitoral está à porta pode-se estar a anunciar um tempo de tensões acrescidas e pergunta-se com que objectivo. O país é que, positivamente, não precisa disso, particularmente na nova era de incertezas e em que mesmo uma ameaça de guerra entre grandes potências não é uma possibilidade tão remota como antes. Falar de coabitação no semipresidencialismo francês tem sentido porque o presidente é líder partidário e tem programa de governação. Já em Cabo Verde, o cargo é suprapartidário e os candidatos são propostos por grupos de cidadãos.
Não tendo programa próprio e não sendo o governo responsável politicamente perante o PR, com “inovações” na relação entre os órgãos de soberania pode-se correr o risco de ir por caminhos que fragilizem o essencial no que respeita à garantia da unidade da nação e do Estado e ao normal funcionamento das instituições. Por outro lado, pode prejudicar o papel de árbitro e moderador do sistema político quando se mostra necessário fazer cumprir as regras do jogo democrático e assegurar que as instituições de regulação, de fiscalização e de controlo de legalidade funcionem plenamente. Em particular, em questões de política externa, nas quais para obter vantagens e ser respeitado importa que a posição do país seja única e inequívoca, concertação e discrição na relação deve ser a regra. O mesmo deve acontecer com a política de defesa considerando a necessidade de garantir a unidade na relação com as forças armadas.
Fala-se muito dos movimentos populistas que, de baixo para cima, enfraquecem a democracia desacreditando as instituições. Acontecimentos no Brasil, nos Estados Unidos e no Reino Unido deixam entender que, nesses casos, os avanços do populismo podem ser revertidos. Parece mais difícil conter os estragos quando a fragilização do sistema vem de cima para baixo, como é o caso da Turquia, da Hungria e de Israel. Definitivamente, Cabo Verde não deve deixar-se tentar por essas aventuras.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1146 de 15 de Novembro de 2023.