segunda-feira, agosto 07, 2017

Perigos da pessoalização da política

No fim do ano parlamentar vê-se que divergem as opiniões sobre o estado da Nação mas em relação ao estado do Parlamento a posição é quase unânime que não está bem. Os trabalhos na plenária parecem desenvolver-se num registo quase caótico com múltiplas intervenções de deputados em todas as matérias e interrupções sucessivas com interpelações à mesa e defesas de honra. Demasiadas vezes funciona-se como se não houvesse uma estratégia de grupo parlamentar para, de forma mais eficaz e com economia de tempo, debater as questões. Passou a ser costume os sujeitos parlamentares dirigirem-se directamente aos que escutam na rádio ou assistem pela televisão num esforço de se apresentarem como representantes de interesses que supostamente estariam a ser postos em causa pelos argumentos dos colegas de outras bancadas ou como porta-vozes de recados enviados pelo eleitorado. Nestas circunstâncias é difícil para a Mesa da Assembleia Nacional mostrar que está efectivamente em controlo dos trabalhos. Não estranha que tenham acontecido ao longo deste ano parlamentar situações prejudiciais para a imagem do Parlamento e para a legalidade dos seus actos como as de dar como aprovadas matérias sem a maioria regimental exigida ou sem os votos de todos os deputados presentes na sala de sessões no momento de votação.
As reacções à esta percepção geral de fragilidade do Parlamento nesta legislatura têm levado vários observadores a propor alterações no sistema eleitoral e o fim do monopólio dos partidos na apresentação de candidatos a deputados. Outros vão mais longe e, além de pedirem a adopção do sistema uninominal em substituição do proporcional actualmente existente, querem acabar com a disciplina partidária que para eles tem impedido que os deputados sejam realmente representantes do povo. Para outros observadores, o problema estaria com os partidos políticos que monopolizam a vida política, alimentam a crispação e estando no governo vêem o adversário como quem não tem em conta os interesses do país e funciona numa lógica de “quanto pior, melhor”. Curiosamente, quem faz essas propostas não tem a preocupação de trazer à discussão os exemplos actuais e muitos outros do passado onde essas soluções foram adoptadas e as consequências em termos de configuração do quadro partidário e de estabilidade governativa, que se seguiram à sua implementação, foram desastrosas. Pode-se criticar muitos aspectos da chamada democracia de partidos, mas a história das democracias depois da segunda guerra mundial mostra como ela foi crucial para a estabilidade nas décadas de prosperidade quase ininterrupta e sem precedentes que se seguiram.
Percebe-se facilmente que parte desta reacção deriva da chamada crise de representação que aflige hoje muitas democracias avançadas na Europa em que as pessoas vêm como os seus governos são ultrapassados por forças exteriores de natureza económica criadas pela globalização e também por outras de natureza política no quadro da União Europeia. Outra parte dessa atitude porém tem uma base na realidade nacional e provém da reacção às décadas de regime autoritário no país que deixaram uma desconfiança profunda em relação à democracia representativa e justificam a postura ainda nostálgica de “democracias revolucionárias” que encontra alguma satisfação em privilegiar formas de democracia participativa sobre a representativa. Tendo isso como pano de fundo e no actual ambiente dominado pelo médias e com a internet e acesso às redes sociais a todo o tempo tudo parece convergir para que se caia na chamada pessoalização da política em que a acção política em vez de levar ao debate de temas e ideias focaliza-se no ataque pessoal. De facto, fica mais fácil e mais imediato mobilizar sentimentos e despertar emoções e paixões do que engajar-se na discussão de opções políticas num quadro do pluralismo em que se assume que todos procuram o melhor para o país.
A focalização nos políticos e em particular na sua imagem e notoriedade vem-se verificando progressivamente de algum tempo para cá na política cabo-verdiana. Em certos aspectos não é muito diferente do que se passa noutros países a braços com crises diversas incluindo a de representação, não identificação com as elites e protagonismo individual mais acentuado nas redes sociais. É um fenómeno que vem acompanhando o recrudescer do populismo nas democracias ocidentais com as consequências mais conhecidas do Brexit, da eleição de Donald Trump, reconfiguração dos partidos em Espanha com o Podemos e Ciudadanos e o colapso dos partidos franceses nas últimas eleições. Se nesses países de democracia consolidada tem-se contado com a resiliência das instituições e a influência dos órgãos de comunicação social e a presença de uma sociedade civil autónoma para conter os efeitos mais nefastos do fenómeno, não se pode dizer o mesmo nas novas democracias onde todos esses ingredientes essenciais ainda estão em estado embrionário. Em Cabo Verde foram também sentidos os ventos fortes do populismo no período pré-eleitoral tanto em movimentos da sociedade civil (MAC #114) como na dinâmica dos grandes partidos. Acabou por afectar profundamente a escolha de candidatos a deputados com as consequências já conhecidas para além de condicionar a relação que no pós-eleições viriam estabelecer entre os órgãos de soberania todos eles centrados nas pessoas.
Se não for devidamente contida, a pessoalização da política tem os efeitos que se conhecem, por exemplo, em fragilizar as instituições, esvaziar o debate público e promover candidatos a autocratas. A luta contra os efeitos nefastos da partidarização da política não deve conduzir à pessoalização da política que se nutre do populismo para manter a imagem e garantir níveis elevados de notoriedade. Cabo Verde é uma democracia ainda por consolidar e neste ano do vigésimo quinto aniversário da Constituição 1992 deve estar alerta para todos os perigos que podem ameaçar a democracia representativa, a única que historicamente garantiu a liberdade e abriu caminho à prosperidade. Os inimigos são muitos e, neste momento, no mundo inteiro, o populismo, em suas várias formas, é o pior de todos.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 818 de 02 de Agosto de 2017

sexta-feira, julho 28, 2017

Estado da Nação: Impaciência


A poucos dias do debate parlamentar sobre o Estado da nação é visível a impaciência das pessoas. Querem ver sinais claros de que os problemas candentes do país para os quais houve promessas eleitorais de resolução estão efectivamente a ser confrontados e ultrapassados. A manifestação de S. Vicente foi a forma mais expressiva dessa impaciência mas outras existem que se deixam revelar designadamente nas múltiplas sugestões de greves tanto no sector público como no privado, nas preocupações com a insegurança e na frustração dos agricultores que não conseguem fazer chegar os seus produtos aos mercados. A mesma inquietação, em grande medida passada nas redes sociais, sente-se nos milhares de jovens escolarizados, licenciados e profissionalmente preparados que anseiam por um emprego numa economia que ainda não cresce o suficiente e não apresenta a oferta diversificada capaz de atrair os mais diferentes talentos e competências. 
A impaciência tem razão de ser: vem da percepção profunda que o país não tem muito mais tempo a perder. Depois dos anos do ilusionismo, alimentado nos últimos tempos pelas benesses finais da ajuda externa no quadro de transição para país de desenvolvimento médio, o encontro com a realidade não tem sido fácil. Em 2016, os resultados das eleições legislativas e autárquicas mostrarem a urgência e a determinação da generalidade do eleitorado em mudar o rumo no país. Se houvesse alguma dúvida quanto ao estado em que se encontravam as instituições ela foi dissipada por uma sucessão de acontecimentos entre os quais o massacre de Monte Tchota, a situação de falência da TACV, a gestão incompetente da situação dos deslocados de Chã das Caldeiras e as falhas em cadeia das autoridades que levaram ao naufrágio do navio Vicente. Para a generalidade das pessoas tinha ficado claro que o modelo de desenvolvimento, uma forma de governar e um modo de estar na vida e no mundo até aí vigentes no país tinham-se esgotado completamente. Não espanta que agora as pessoas queiram resultados rápidos e talvez mais importante que aspirem a ser parte activa no desenvolvimento e que reclamem e se queixem se a letargia se mantém.
A verdade é que as coisas não mudaram no ritmo que seria de esperar considerando as expectativas existentes e o ponto de partida caracterizado pelo esgotamento dos modelos e de estratégias anteriores. De facto, diferentemente do que poderiam sugerir as intensas lutas partidárias em que, de um lado, se pressiona para ocupar lugares e, de outro, se resiste para manter lugares-chave no aparelho do Estado, as mudanças na sequências das eleições legislativas com impacto no ambiente de negócios e na relação com os utentes não têm sido extraordinárias. Podia-se argumentar que o governo está nos primeiros 15 meses de um mandato de cinco anos e há tempo para mudanças, mas este não é um mandato que se poderia chamar de normal. Segue a um período de estagnação económica e de colapso de visões de hubs, clusters, praças financeiras, e por isso mesmo espera-se mais, muito mais em termos de novas políticas, de novas estratégias e de resultados. O governo para ter sucesso deve reconhecer essa pressão e agir em consequência tendo sempre em perspectiva o muito que se vai exigir da sua prestação para estar à altura das expectativas. Evita-se a postura expectante das pessoas, oscilando entre conformismo e impaciência, com o envolvimento numa narrativa do país em que o ponto de partida e as dificuldades de percurso são conhecidas, os objectivos são traçados e espaço existe para a participação e afirmação de todos. 
A abordagem dos problemas do país seguida até agora não se tem revelado a mais adequada para diminuir a impaciência e manter as pessoas focadas no que as poderá levar além da propaganda e do ilusionismo que muito caracterizou a governação anterior. Pelo contrário, em certos sectores da governação do país, a tendência é manter como estava o essencial do que existia e esperar que os resultados sejam diferentes. No domínio da segurança pública esta opção é por demais evidente e o resultado vê-se na persistência do sentimento de insegurança que deixa toda a gente intranquila em relação ao futuro e em particular quanto ao impacto que algum incidente pode causar nas ilhas turísticas afectando toda a economia nacional. Em outros domínios, designadamente no que respeita ao ambiente de negócios, a enfâse é posta como antes no financiamento que, embora importante, não resolve o problema das empresas se não há mercado e se a administração pública e tributária continua a pesar mais como constrangimento – 41% vs. 22%, segundo os dados do BCV. No mesmo sentido de facilitação de financiamento, repetem-se as mexidas nas taxas directoras do Banco Central e os operadores constatam, como da outra vez, que não há grandes alterações porque o país vive uma situação de excesso de liquidez estrutural. Também não se compreendem as expectativas postas em discursos oficiais em relação ao comércio com a CEDEAO quando, como revela o relatório anual do BCV (2016), “a actual estrutura de exportação de Cabo Verde é incompatível com a estrutura de importação da região”.
Nas eleições de 2016 as pessoas deixaram bem claro que sabiam que o país estava numa encruzilhada e que não podia continuar no mesmo caminho. Todos os partidos políticos, mesmo o que suportava o governo, mostraram-se críticos em relação aos resultados da governação de então. Há que aproveitar o momento e engajar as pessoas e a sociedade para que o país consiga trilhar outros caminhos e não fique pelas fórmulas do passado que, já se sabe, não funcionam. Não se pode deixar que a impaciência se degenere em frustração que destrói confiança e solidariedade. Mais do que nunca o país precisa de liderança com qualidade e deve poder obtê-la do governo que escolheu para dar um outro impulso ao seu processo de desenvolvimento.  


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 818 de 02 de Outubro de 2017

sexta-feira, julho 21, 2017

Justiça responsável


Ontem tomou posse o novo presidente do Conselho Superior de Magistratura Judicial, Dr. Bernardino Delgado. É o segundo presidente do CSMJ conselho nomeado pelo presidente da república com base no novo quadro institucional criado pela revisão da Constituição de 2010. O reforço da legitimação democrática desse órgão de gestão e disciplina dos juízes que resultou desse acto de empossamento deve ser acompanhado também de um reforço de responsabilização como bem referiu o Presidente da República no seu discurso. Todos os integrantes do sistema judicial, magistrados, advogados e oficiais de justiça devem estar bem cientes disso e do papel que deles se espera para garantir o funcionamento normal da justiça.
A importância numa democracia de uma justiça independente, eficaz e feita em tempo útil é por demais evidente. A confiança que cada indivíduo deposita na justiça é o cimento essencial para uma comunidade se manter livre e solidária e conseguir prosperar. Se houvesse alguma dúvida a esse respeito os exemplos recentes de derivas iliberais ou de corrupção em certas democracias como nos Estados Unidos e no Brasil que só encontram travão efectivo no posicionamento firme do sistema judicial na defesa do primado da lei são elucidativos a esse respeito. Garantir que o sistema judicial se mantenha firme na defesa da legalidade é dever de todo o cidadão que quer ver os seus direitos fundamentais respeitados e o poder do Estado limitado pela exigência de cumprimento estrito da lei.
A confiança no sistema depende muito da percepção que se tiver da competência com que os juízes exercem o seu papel e da eficácia conseguida na realização da justiça. Um instrumento fundamental para se assegurar que critérios meritocráticos presidam todo o processo de classificação e promoção dos juízes é a Inspecção Judicial. As insuficiências notadas pelo PR na sua intervenção em relação à Inspecção Judicial devem ser sanadas sob pena de eternamente se continuar a despejar meios sobre o sistema judicial sem obter o retorno desejado em termos de justiça competente e eficaz. De facto, não se vê como o CSMJ pôde funcionar todos estes anos sem uma inspecção dotada de recursos humanos e materiais para efectivamente avaliar os juízes e funcionários judiciais de modo a ter os elementos necessários para fazer a gestão dos mesmos e exercer disciplina sobre eventuais prevaricadores.
Há quem atribua as dificuldades em conseguir uma inspecção judicial útil e efectiva à proximidade pessoal, familiar ou corporativa inibidora de uma avaliação objectiva. É um facto que Cabo Verde é um pequeno país com uma população também diminuta. Nada se pode fazer para contornar isso, mas também é facto que se tem de encontrar uma solução como, por exemplo, de contractar assessoria no exterior como fazem países pequenos como Timor-Leste e São Tomé e Príncipe. Aliás, magistrados cabo-verdianos durante vários anos prestaram-se a oferecer assessoria jurídica em Timor. Não deveria haver muito problema em procurar apoio externo em algo que provadamente se sabe que até agora após 26 anos de democracia não se conseguiu pôr de pé: uma inspecção judicial capacitada para induzir melhoria significativa na prestação dos magistrados e de todo o sistema judicial. Afinal, até o poderoso e orgulhoso Reino Unido recorreu a um economista canadiano para preencher o cargo de governador do seu banco central.
A defesa do sistema judicial como garante do respeito dos direitos individuais e da legalidade por todos e particularmente pelas instituições do Estado passa também por dissuadir ataques dirigidos aos tribunais com acusações que favorecem a impunidade e são pouco severos nas penas dadas aos criminosos. Tensões entre partes de um sistema induzidas pelo esforço de cada uma delas em exercer o seu papel seguindo as regras e mantendo em perspectiva a finalidade do sistema são em geral positivas e aumentam a eficácia global do sistema. Se pelo contrário se entra pelo jogo de culpar o outro e encontrar bodes expiatórios é  todo o sistema que sofre. A prestação de todas as partes tende a cair, ficando desprotegido e sem serviço quem do sistema mais precisa. O discurso que se ouve, vindo de sectores da polícia e às vezes com eco de autoridades políticas, é que os tribunais soltam criminosos e dão sentenças leves para os condenados e que isso seria um factor de desmoralização da polícia,. 
É um discurso não traz vantagens para ninguém porque põe pressão sobre os tribunais e mina  a sua independência. Cria desconfiança nos cidadãos em relação aos tribunais, quando se sabe que a independência dos tribunais, é a última linha de defesa dos cidadãos contra abusos, particularmente dos abusos da polícia. Afecta a própria polícia, porque encontrando nos tribunais um bode expiatório para as suas falhas em conseguir condenação dos que acredita serem criminosos, não melhora os seus métodos de acção e de investigação pondo com isso em causa a eficácia de todo o sistema de justiça. Depois, é própria polícia – como força de intervenção primeira por razões de distúrbios ou crime – que sofre com a impunidade assim criada ou com criminosos tornados mais perigosos com estadias prolongadas nas escolas do crime das prisões superlotadas devido a penas excessivas. 
Um novo presidente do Conselho Superior de Magistratura Judicial inicia as suas funções. Espera-se que saiba motivar todo o sistema no sentido de maior eficácia e com vista à renovação da confiança dos cidadãos na justiça. Ninguém hoje duvida que a independência dos tribunais é fundamental para a preservação da democracia e do Estado de direito e que uma justiça competente e em tempo útil é essencial para se construir o desenvolvimento que todos almejam.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 816 de 19 de Julho de 2017

sexta-feira, julho 14, 2017

Contra o centralismo

Milhares de pessoas saíram às ruas em S. Vicente no dia 5 de Julho para se manifestarem contra a centralização. A concentração excessiva na capital do poder de decisão sobre matéria de desenvolvimento é considerada por muitos como a principal razão do declínio económico da ilha e de outros pontos do território nacional. Para um crescente número de pessoas é urgente alterar o processo de tomada de decisões para se poder aproveitar melhor as oportunidades. Também é preciso evitar burocracias excessivas para se deixar florir iniciativas individuais e empresariais e há que saber priorizar investimentos no quadro de uma visão estratégica de forma a trazer maiores e melhores ganhos para o conjunto nacional.
A ansiedade quanto ao futuro depois de anos de estagnação económica já em 2016 se tinha traduzido no redireccionamento massivo do voto popular num governo novo e com forte agenda de regionalização. Quinze meses depois manifesta-se na impaciência face às promessas adiadas da regionalização e as acções governamentais que tardam em causar efeitos significativos no plano individual em termos de emprego e de dinâmicas das empresas. Sair à rua surgiu como a opção lógica para ventilar frustrações, clamar mais rapidez nas reformas e lembrar aos governantes as suas promessas. Uma outra coisa bem diferente será mudar a cultura centralista nas instituições e nas pessoas, cortar a ligação umbilical entre a forma de exercício do poder e o centralismo e substituir uma economia de reciclagem de ajuda externa que reforça a centralização por uma outra muito diferente suportada pela livre iniciativa e pela autonomia das decisões económicas.
Centralizar decisões, recursos e serviços sempre foi entendida como forma de exercício do poder em Cabo Verde. Viu-se reforçada nos quarenta e oito anos do regime de Salazar/Caetano e atingiu o seu auge no regime de partido único em que se procurou fazer com que mesmo as decisões de natureza pessoal, familiar e de grupos tanto sociais, económicas ou culturais fossem assumidas exclusivamente pelo partido e pelas suas organizações de massa. A lógica é simples: quem manda, quer ser quem faculta os recursos, permite os acessos e escolhe os beneficiários. Nada pode acontecer sem o seu consentimento e à sua volta devem gravitar clientelas e gente grata a quem depois, no momento certo, poderá exigir lealdade traduzida muitas vezes em votos.   
É evidente que tal centralismo não existe só a nível central do Estado ou manifesta-se somente nas relações entre a Capital e as Ilhas. Tende a reproduzir-se, de facto, em todos as instâncias de poder. Neste aspecto vai a contracorrente com a Constituição de 1992 que consagrou a autonomia das pessoas e das comunidades com interesses específicos, que impôs aos órgãos de soberania o princípio da separação e interdependência dos poderes e obrigou o Estado a organizar-se, seguindo o princípio da descentralização para além de garantir o direito de propriedade e liberdade de actividade económica. O problema é que passadas décadas com a economia de base em ajuda externa dificilmente as pessoas ou empresas ganham autonomia em relação ao Estado. Pelo contrário, tendem a aumentar a dependência e, num processo de reforço mútuo, o poder é cada vez mais exercido na perspectiva de manter as pessoas e empresas dependentes e sem possibilidade de se escapulirem.
Neste aspecto, é paradigmático o que se passa nos municípios. A figura central do presidente da câmara é visível em todos os actos do município quase fazendo esquecer que tanto a câmara como a assembleia municipal são órgãos colegiais e pluripartidários. Em vez de facilitador ou promotor de actividade dos munícipes, a tendência é o presidente se apresentar como o grande protagonista dos eventos criados. Em matéria de receitas próprias, enquanto se reclama mais e mais recursos do Estado para serem administrados directamente pelas câmaras, relativamente pouca atenção é dada à colecta de receitas de base local que deveriam justificar o princípio de no taxation without representation. Foge-se à responsabilidade perante os munícipes não os onerando com impostos, mas faz-se todo o possível e o impossível para passar a imagem de quem vai lá fora ou junto ao governo conseguir recursos para o município. No jogo político que se abre, criam-se espaços para tudo, a começar por discursos de vitimização que culpam os outros pelos males ou insuficiências encontradas. Na sequência eleições sucessivas são ganhas, mas, como o exemplo de S.Vicente mostra, a tendência é o aumento das frustrações e da ansiedade em relação ao futuro,
Cultura de centralismo tem os efeitos nefastos que se conhecem. Combatê-la devia constituir um desígnio nacional. Tem custos enormes porque retira eficiência e eficácia às instituições, impede que haja flexibilidade na abordagem dos problemas, dificulta que se dê continuidade a trabalhos e iniciativas anteriores no afã de tudo fazer de novo e não poucas vezes facilita a irresponsabilização de quem dirige. Há que estar ciente de que a criação de riqueza essencial para o país prosperar não se compadece com restrições à liberdade económica, com o exercício de poder que procura tornar cidadãos mais dependentes e com a gestão do estado que cria clientelas de qualquer espécie, seja ela partidária, familiar ou de base territorial. O grito contra o centralismo vindo de S.Vicente deve ser ouvido com atenção porque também é um apelo à liberdade, à justiça e à solidariedade.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 815 de 12 de Julho de 2017

sexta-feira, julho 07, 2017

Disputa de recursos não é a única via

Nas vésperas do 42º aniversário da independência nacional sente-se pela primeira vez que as pessoas em todos os recantos do país se mostram mais dispostas em exteriorizar inquietação relativamente ao que se passa à sua volta e alguma intranquilidade quanto ao futuro. Percebe-se o fenómeno no dia-a-dia e em particular nas redes sociais, como manifestações de frustração, ressentimento e fúria muitas vezes dirigidas contra governantes e contra os partidos. Também sinal disso é o entusiasmo com que recentemente foi abraçada a luta contra os estatutos dos titulares de órgãos de soberania ou com que presentemente se discute a regionalização como se fosse o paliativo para todos os males do país. Outrossim, a derrota pesada do partido no governo desde 2001 poderá ter sido outro sinal forte da urgência em mudar o rumo do país que avança mais lento que o desejado e ainda, para mais, a diferentes velocidades. E mesmo com a mudança na governação parece que paciência não é muita como mostra a mobilização para a manifestação prevista para o 5 de Julho em S.Vicente contra o centralismo e as suas consequências para o resto do país. 
Para toda esta insatisfação devem estar a contribuir os sucessivos anos a partir de 2009 em que o crescimento da economia ficou por valores baixíssimos, em média 1,2 % ao ano, apesar dos grandes investimentos públicos que prometiam resultado diferente. Também tem sido desanimador o persistente desemprego e o novo fenómeno de milhares de jovens com licenciatura mas desempregados devido à inadequação da sua formação às necessidades do mercado e à incapacidade em pôr de pé os famosos clusters que iriam dinamizar sectores da indústria dos transportes, telecomunicações e dos serviços. Em acréscimo, a visível degradação do ambiente social com o aumento das incivilidades e da criminalidade tem sido um outro factor que não tem ajudado a manter a confiança numa melhoria a curto prazo. Parece que a “gota de água” que fez transbordar o copo foi a percepção cada vez mais acentuada do aumento das desigualdades sociais e das desigualdades entre as ilhas, com concentração das oportunidades na Capital. 
O que está a passar em Cabo Verde não é muito diferente do que acontece por este mundo fora. Nestes últimos anos tem-se assistido em várias democracias a manifestações diversas que têm demonstrado o profundo descontentamento das populações com a estagnação do rendimento acompanhado do aumento da desigualdade e da insegurança em relação ao futuro. O Brexit e a eleição de Donald Trump são as consequências mais visíveis da reacção de sectores da população a isso. Em vários outros países, o ressentimento e a frustração das pessoas têm levado ao colapso de partidos tradicionais, a reacções anti-elites, à exaltação do nacionalismo anti-globalização e ao recrudescer da xenofobia. Em Cabo Verde também já se fazem sentir nas instituições, nos partidos e na atitude dos líderes os efeitos do populismo que bebe do ressentimento, da frustração e da vitimização. E assim como noutras democracias esses fenómenos não trazem nada de valor e não têm nada de positivo mas, como podem mobilizar paixões poderosíssimas, quem as provoca com mestria tem fortes probabilidades de chegar ao poder e de o conservar. 
É um facto que 42 anos após a independência a vulnerabilidade do país é ainda por demais evidente. Apesar disso, todos os anos por altura do 5 de Julho ouve-se o estafado discurso que relembra o quanto estavam errados todos aqueles que pensaram que Cabo Verde não era viável. Retórica dos políticos à parte, não é com a certeza da viabilidade do país que se fica depois de ler o último comunicado do GAO, um texto mais musculado do que 0 habitual, que subordina a ajuda orçamental à reestruturação da TACV e à apresentação de um plano de redução da dívida pública. A realidade das ilhas e arquipélagos é que, devido à sua pequenez, fragmentação e distância de mercado, são de difícil viabilidade se separados de grandes espaços económicos. A maioria faz como a Ilha da Madeira, os Açores, as Canárias e várias outras ilhas e arquipélagos das Caraíbas: prefere a autonomia mas mantendo a ligação económica e política que garante acesso aos mercados, livre circulação e benefícios de fundos estruturais. As excepções com sucesso, como Singapura e as Maurícias, distinguiram-se desde cedo com lideranças que optaram logo à partida por vencer as fragilidades com a criação de riqueza e por não cair na tentação de explorar a precariedade da vida das populações para se manterem no poder. 
Lee Kuan Yew famosamente chorou quando Singapura foi forçada a se tornar independente com a sua expulsão da Federação da Malásia. As Maurícias não vacilaram com a sua independência apesar do diagnóstico de James Meade, prémio Nobel da Economia, segundo o qual o país não seria viável. Mas nenhum deles fechou o país ao investimento externo e optou pela reciclagem da ajuda externa como forma de ter a população controlada. Pelo contrário, crescimento rápido, mais emprego e sucesso na criação de riqueza passaram a ser as bases para a legitimação do poder. Infelizmente, ainda em Cabo Verde o poder não é visto como forma de optimizar a máquina do Estado para melhor servir a população e as empresas que vão produzir riqueza. O poder faz-se sentir na redistribuição de recursos e é essa lógica de disputa por parcos recursos que predispõe todos a não cooperarem entre si e a usar todas as artimanhas, entre as quais, a arma da vitimização, para aumentar o rendimento pessoal.
Na actual encruzilhada importa agir decisivamente para evitar os erros anteriores. Há que compreender, por exemplo, que a dinâmica do centralismo em Cabo Verde resulta de entre outros factores do modelo de reciclagem das ajudas. Também que a marginalização de S.Vicente tem muito a ver com opções de política que fecharam o país e não privilegiaram a ligação à economia mundial com atração de investimento externo e foco na exportação de bens e serviços. Assim como S.Vicente no passado, Sal e Boa Vista hoje estão a provar aos olhos de todos que é com capacidade de resposta à procura externa que se constroem as bases da autonomia dos indivíduos, das empresas e da própria ilha. Não é a pela disputa de recursos do Estado. A energia de todos deve ser dirigida no sentido de fazer com que todas as ilhas beneficiem directamente de uma ligação com a economia mundial. Esse é o objectivo actual do governo arquipélago vizinho das Canárias. Também devia ser o nosso.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 814 de 4 de Julho de 2017

sexta-feira, junho 30, 2017

Défice de diálogo democrático

Como já foi bastas vezes dita, o debate é a essência da democracia. Pressupõe liberdade de expressão, conta com o pluralismo de pontos de vista e exige respeito pelas regras do jogo democrático cingindo-se aos factos e à verdade. A fragilidade do debate em Cabo Verde, infelizmente não por poucas vezes despida de objectividade, de fair play e de substância, acaba por indiciar que há ainda muito a caminhar para se poder afirmar com propriedade que a democracia em Cabo Verde está em terreno sólido. Os debates parlamentares pela sua propensão em se desviar do objecto, em resvalar para ataques ad hominem e em se constituir vias para se mobilizar apoios de sectores do eleitorado mesmo quando as eleições estão distantes são paradigmáticos do que sempre se deve evitar em democracia. Em geral, termina sem um esclarecimento sobre as matérias em discussão, sem qualquer base de trabalho conjunto, e sem, de facto, um engajamento em questões muitas vezes prementes do país. 
O último debate parlamentar sobre o agronegócio não foi excepção. Aliás, sobre o próprio conceito de agronegócio não há qualquer consenso. Foi introduzido na última década como a actividade que iria justificar a mobilização monumental da água através de barragens e na sequência criar muitos postos de trabalho, aumentar o rendimento da população rural e fornecer produtos para o turismo em dinâmica crescente no país. Iludiu-se o facto que noutras paragens o agronegócio para ter escala e poder adoptar tecnologias e processos mais produtivos concentra propriedade e liberta população para as cidades e outros sectores da economia. Mesmo quando a realidade da persistência da pobreza nas zonas rurais, com o interior de Santiago a ter o mais baixo rendimento per capita do país, e com a generalidade das ilhas agrícolas a perder população, ficou difícil, em sede de debate parlamentar, reconhecer a necessidade de ruptura com as políticas do passado.
Em competição uns com os outros, os partidos continuam a prometer levar todas as infraestruturas e todos os serviços a todos os pontos do território, sejam elas cidades, vilas e povoados ou simples lugarejos. Não se vislumbra é a concomitante preocupação de saber se já há ou se é possível construir uma economia que dê às pessoas de forma sustentável recursos para aí viverem, pagarem energia, água e telecomunicação, fazerem a manutenção da casa e acederem à educação e à saúde sem subsídios estatais de uma forma ou outra. O resultado é que, na ausência de uma estratégia de promoção de uma economia que não a tradicional, a actuação do Estado tem sido a utilização de doações ou capital concessionado para fazer obras muitas vezes com prioridades questionáveis, mas sempre proclamando que trarão melhorias significativas. Entretanto o país endivida-se, a pobreza e o êxito rural para as periferias das cidades persistem, mas a resposta parece que não é outra senão a de anunciar ainda mais projectos. Espantoso que o nem com o grogue, um produto não perecível e com mercado real e potencial expressivo, consegue-se efectivamente regular a sua produção, estabelecer os seus circuitos de distribuição e garantir a sua qualidade. 
Hoje sabe-se que é fundamental para que a democracia funcione em pleno que os seus actores se sintam guiados pelo princípio de responsabilidade incluindo a preocupação com a integridade do sistema político e a sua conservação e sobrevivência mesmo perante a crise. Também é essencial que se deixem guiar pelo princípio de convicção que obriga a coerência e consistência nas posições que se confrontam na esfera pública. Perigos para as democracias existem quando são ignorados esses princípios e substituídos por actuações polarizantes da sociedade designadamente com base em nacionalismos exacerbados, sentimentos contra imigrantes e frustrações com o aumento das desigualdades e com o distanciamento das elites. Sempre que assim acontece corre-se o risco de esvaziar a democracia da sua natureza inclusiva, propiciando a divisão entre nós e eles e, em vez do diálogo, esgrimem-se paixões, medos e ressentimentos. Também sacrifica-se o diálogo quando se vai no sentido de praticamente substituir discursos alternativos por uma pretensa verdade tecnocrática que se autoproclama como solução única e científica para os complexos problemas da política e da vida em sociedade. 
O défice de diálogo entre as forças políticas em Cabo Verde tem sido prejudicial ao país em vários momentos nestes 26 anos de regime democrático. Muitas reformas profundas e reorientações atempadas poderiam ter sido conseguidas se em matérias cruciais se tivesse chegado a compromissos salvaguardando os interesses de ambas das partes. As últimas eleições legislativas bem poderiam ter aberto um outro período na relação partido no governo e oposição. A consciência de que o país se encontrava numa encruzilhada parecia ser partilhada por todos e podia-se ter aberto caminho mais cedo. Infelizmente rapidamente o país voltou aos hábitos políticos anteriores mas agora com um potencial de perturbações porque tudo leva a crer que o foco da actividade reivindicativa vai ser a administração pública e o sector empresarial do estado e, sem crescimento expressivo, não há muita margem para uma resposta positiva.
O futuro de Cabo Verde irá depender muito da capacidade do governo e de outras forças políticas chegarem a acordo em matéria do futuro do país e de garantir a paz social. Questões como a Segurança, a reforma da administração pública, a pobreza em geral, mas particularmente no mundo rural, a reforma do ensino, reforma laboral e uma estratégia para o Turismo deviam merecer um diálogo mais construtivo com participação efectiva de todos. Há que fazer mais para isso com carácter da urgência do agora.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 813 de 28 de Junho de 2017

sexta-feira, junho 23, 2017

Ampliar os ganhos da concertação social

Na segunda-feira, dia 19 de Junho, o Governo e os parceiros sociais, os sindicatos e o patronato chegaram a um compromisso para assinar em Julho um acordo tripartido para mais crescimento, mais emprego, mais rendimento e para um esforço maior na luta contra a pobreza. A convergência de posições pode vir a revelar-se de maior importância se conseguir traduzir-se em vontade para fazer as reformas profundas que o país carece, em confiança na possibilidade de vida para além da ajuda externa e em paz social indispensável para se trabalhar o presente de forma a que o futuro seja de todos. Na encruzilhada em que Cabo Verde se encontra neste momento, a braços com incertezas internacionais, com uma excessiva dívida pública e um crescimento económico ainda insuficiente, é fundamental uma atitude geral marcada pela perseverança, produtividade e solidariedade para se atingir os objectivos de prosperidade desejada.
Tal acordo só peca por ser tardio. De há muito que se devia ter concluído que, a exemplo de vários países, alguns insulares como Cabo Verde, só com uma dinâmica económica suportada por investimento privado nacional e estrangeiro e por uma população profissionalmente qualificada e orientada para exportação de bens e serviços incluindo o turismo se pode almejar uma melhoria significativa e sustentável nos rendimentos e na qualidade de vida das populações. O crescimento rápido verificado ao longo dos anos 90, na sequência das reformas económicas, demonstrou claramente isso. Um crescimento similar posterior nos anos entre 2005 e 2008 devido ao impacto do investimento externo na economia veio confirmá-lo. Infelizmente, as melhores ilações não foram retiradas dessas experiências e rapidamente se perderam oportunidades, num caso, para explorar o potencial oferecido pela industrialização voltada para exportação e, no outro caso, para construir uma base mais alargada para o turismo.
Como sempre, por um lado, pensava-se que se tinha todo o tempo do mundo para tomar decisões e, por outro, caia-se na tentação de querer ganhar à cabeça e deixar-se apanhar por rendas fáceis. Tal atitude para além dos seus malefícios evidentes ainda não contribui para o espírito de pertença a uma causa comum que é o desenvolvimento do país e para a solidariedade que é essencial para garantir que todos beneficiem dos avanços conseguidos. Em ambiente de jogo de soma nula não há cooperação para se conseguir o bem comum mas sim competição nociva em que uns procuram ganhar subtraindo aos outros. Não estranha que seguindo por esse caminho se acabe simplesmente por aumentar a dívida, por ver grande parte da economia implodir ou regredir para a informalidade enquanto o tecido social ameaça desfazer-se em crescentes incivilidades e violência. As pessoas acotovelam-se cada vez mais à volta dos recursos públicos do Estado e dos que giram em torno dos investimentos externos no turismo.
Como sugerimos no editorial de 5 de Maio de 2017 o país precisa gerar alguns “consensos necessários” para poder encontrar o seu caminho de volta para a cooperação e para a produtividade, condições necessárias para  a restauração da confiança, para maior civismo e para maior solidariedade. Mas o pacto para o crescimento e emprego que foi proposto não devia ficar pelos interesses representados no Conselho de Concertação Social que tendem a fixar-se mais nas políticas de rendimentos e preço, de emprego, formação profissional e segurança social. Pelas suas implicações em todos os aspectos da vida do país, a sua discussão e aprovação devia ser mais abrangente e verificar-se numa sede mais alargada.
O Conselho Económico Social e Ambiental previsto na Constituição como órgão auxiliar da república parece ser a sede própria para isso. É o órgão máximo de concertação social no país e é nele que os interesses das ilhas expressos através do Conselho de Assuntos Regionais são contemplados, a vontade de participação das comunidades emigradas via Conselho das Comunidades pode ser acomodada e outros grupos sociais e profissionais como organizações de consumidores, ONGs, activistas ambientais, profissionais liberais também encontram representação adequada. Impõe-se simplesmente que passe a funcionar. A sua lei de organização e funcionamento já existe desde Setembro de 2014 e convinha que a Assembleia Nacional começasse por eleger o seu presidente.
No mesmo sentido com os mandatos parlamentares e nas assembleias autárquicas renovados nas eleições do ano passado seria da maior importância que a eleição dos dois representantes para cada ilha para constituir o Conselho de Assuntos Regionais se verificasse. Curioso que com tanta paixão aflorando aqui e acolá à volta da situação vivida em algumas ilhas e os muitos debates sobre a regionalização não há um esforço concertado para se instalar esse conselho. Com as suas competências, designadamente de parecer obrigatório sobre os orçamentos do Estado, sobre leis das autarquias e finanças locais e sobre a divisão administrativa do país o seu funcionamento regular poderia contribuir positivamente para uma maior racionalidade dos recursos no país e ajudar a dissipar tensões entre as populações das diferentes ilhas que não servem a ninguém e que pelo contrário só alimentam o ressentimento e a desconfiança.
 Os ganhos conseguidos na última reunião do Conselho de Concertação Social devem ser ampliados para poderem afectar globalmente o país de forma positiva. O Conselho Económico Social e Ambiental é a sede própria para isso. Há que pô-lo de pé e a funcionar o mais breve possível.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 812 de 21 de Junho de 2017.

sexta-feira, junho 16, 2017

Precisa-se de maior agilidade governativa

As fragilidades de Cabo Verde vêm de tempos em tempos dramaticamente à superfície e toda a sociedade queda-se em choque perante as suas consequências, tanto aquelas que  se materializaram como as que poderiam ter-se verificado. Aconteceu na semana passada com o desastre da viatura na ilha do Fogo e a necessidade urgente de transportar doentes em estado grave para o Hospital da Praia. O facto de um ATR da TACV ter deixado de voar para o Fogo pôs a nu mais uma vez as dificuldades  de um país arquipélago em agir de forma efectiva a emergências a qualquer momento do dia ou da noite nas ilhas e no mar circundante. Outros acidentes e outras situações similares e até mais graves já tinham revelado a fragilidade existente, mas a reacção das autoridades tem sido de uma passividade confrangedora. Passada  a fase das recriminações públicas em que partidos e pessoas atacam uns aos outros e procuram fazer aproveitamento político da situação, não se notam mudanças significativas nas políticas, nas instituições ou nos comportamentos. Espera-se que desta vez não se repita o mesmo.
Devia ser óbvio que uma das principais prioridades de um país – com dez ilhas, uma enorme linha da costa e um mar vasto por controlar – fosse capacitar-se para fiscalizar o mar e a sua zona costeira e munir-se de recursos aéreos e marítimos, entre os quais helicópteros, para responder às emergências designadamente no que respeita a busca e salvamento no mar, evacuações médicas e respostas a desastres naturais. A responsabilidade do Estado de assim fazer é acrescida ainda com a gestão da FIR oceânica e o apoio que é obrigado prestar na eventualidade de alguma emergência aérea. O crescimento rápido do turismo deveria ser um incentivo para se acelerar nessa capacitação, considerando que é vital para o aumento do fluxo turístico que certas garantias principalmente de natureza médica estejam sempre asseguradas. Estranha pois que decorridos 42 anos desde da  independência e mais de uma década de aposta no turismo as respostas que o país por si só dá às emergências de toda espécie sejam ainda tão incipientes. Até parece que naufrágios, acidentes de aviação, desastres automóveis, cheias catastróficas e erupções vulcânicas com as sempre significativas perdas humanas e materiais não tenham sido suficiente incentivo para provocar uma mudança de atitude para além das proclamações de circunstância que no momento de choque e de dor se fazem.
Nota-se que passado o momento difícil, a tendência é voltar quase sem alteração à situação anterior. Exemplo notório é o que se passa no domínio do mar. A autoridade marítima continua dispersa entre o instituto marítimo e portuário, a capitania dos portos, a polícia marítima na polícia nacional e a guarda costeira nas forças armadas. Vários documentos oficiais entre os quais o plano estratégico de segurança interna de Agosto de 2014 e a prática já demonstraram que esta estrutura de forças não tem a eficácia desejável na consecução dos objectivos do país em matéria de policiamento dos mares e costas, de garantia de serviços de busca e salvamento e de outras emergências no país. Não se consegue coordenar devidamente as forças, não se consegue aproveitar adequadamente a cooperação internacional e mantem-se um quadro de desperdício de recursos tanto humanos como materiais por falta de foco e de estratégias consequentes.
O que se passa no mar com a autoridade marítima também verifica-se noutros sectores da vida do país. Sabe-se que algo não vai bem, mas para além das recriminações políticas de costume sempre que alguma coisa de excepcional acontece, as críticas ao status quo mantêm-se no mínimo. Procura-se não ferir susceptibilidades de grupos ou de interesses corporativos à volta do sector e o resultado é a inércia político-institucional que deixa quase tudo como estava. É o que acontece, por exemplo, com a segurança, a justiça e a educação, mas também é o que se constata noutros domínios com os transportes e a saúde. A factura que o país vai pagando com a incapacidade de definitivamente resolver os seus problemas de segurança ou de se conseguir uma justiça eficaz e ter uma educação de excelência não é desprezível. No caso da TACV já se sabe dos 120 milhões de dólares a pagar por omissões em matéria de política de transporte e por decisões erradas na gestão. Na educação é o próprio GAO há dias a apontar “as fraquezas do capital humano” como um dos principais constrangimentos ao crescimento económico apesar dos milhões gastos todos os anos no sector. A persistência do sentimento de segurança que limita a liberdade das pessoas em todo o país particularmente na Cidade da Praia e retira-lhes tranquilidade de espírito é o custo pago por todos por se continuar a pensar que se pode despejar meios sobre os problemas e eles se resolverão por si. 
A importância da alternância nas democracias é que abre o caminho para se mudar de políticas, para fazer novos arranjos institucionais, para definir outras prioridades e para congregar novas vontades na tarefa de construir um futuro de prosperidade e com superior qualidade de vida. Cabo Verde precisa libertar-se do colete-de-forças em que, de um lado, se tem entidades internacionais a impor políticas e reestruturação de sectores económicos sob pena de perda de ajuda orçamental e, do outro, se tem interesses corporativos que se servem de qualquer fragilidade ou hesitação na governação para seu próprio benefício sem preocupação com a eficácia global da actividade do Estado e com o impacto no ambiente geral dos negócios. Alinhar as prioridades com os recursos existentes e com uma nova agilidade institucional e governativa é fundamental para se dar o tipo de resposta segura e efectiva que há muito os cabo-verdianos esperam em matérias tão vitais como a segurança, a justiça, a educação, a saúde e os transportes. O Futuro depende do sucesso que se granjear nesse empreendimento.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 811 de 14 de Junho de 2017.

sexta-feira, junho 09, 2017

Dever de reparação do Estado

Várias convenções internacionais entre as quais a Resolução das Nações Unidas 60/147 de 2005 estabelecem o direito das vítimas de atropelos graves dos direitos perpetrados pelo Estado a uma reparação condigna. É um direito que o Estado de Cabo Verde ainda não reconheceu às dezenas de pessoas que durante os quinze anos do regime de partido único foram sujeitas pelas autoridades a abusos, sevícias e torturas. Em Cabo Verde quem goza de uma espécie de direito de reparação  são os reconhecidos por lei como “combatentes” e “ex-presos políticos”. Para estes a lei em vigor desde de Março 2014 enumera regalias e honras de Estado e estipula um subsídio vitalício no valor de setenta e cinco mil escudos.
Mais de vinte cinco anos após a instituição da democracia, continua-se à espera que o Estado assuma as suas responsabilidades pelo sofrimento físico, psicológico e moral infligido àqueles que simplesmente quiseram exercer os direitos fundamentais que universalmente se consideram  invioláveis e inalienáveis. Por causa disso, vive-se no país uma contradição profunda. Deixa-se cair no esquecimento as vítimas de atropelo sistemático de direitos do homem enquanto se glorificam os dirigentes do regime baseado na ideologia da luta de libertação que instituiu a opressão no país. Prova disso é que hoje o marco dos quarenta anos após as prisões e torturas em S.Vicente pode ser ignorado pelas instituições do Estado e pela comunicação social estatal mas há umas duas semanas atrás recebeu-se com pompa e circunstância em todas as instância da república e com cobertura mediática plena a iniciativa de um simpósio dedicado a Aristides Pereira, o presidente da república durante o regime de partido único. A questão que se coloca é: com tais omissões e preferências, onde fica o Estado de Direito democrático que proclama que tem no seu cerne o respeito pela dignidade da pessoa humana quando há reverência oficial por protagonistas e símbolos dos tempos da ditadura?
A realidade do que se passou em Cabo Verde não deve ser escondida. As marcas persistem ainda nas pessoas e familiares que em várias ocasiões, designadamente em S. Vicente e Santo Antão em 1977, na Brava em 1979, na cidade da Praia em 1980 e outra vez em Santo Antão em 1981 e S.Vicente em 1987, por razões políticas foram objecto da sanha das autoridades. Os relatos dos acontecimentos vivenciados podem ser encontrados em jornais e revistas da época assim como as reacções dos dirigentes de então. Também existem documentos oficiais - e estão disponíveis a  qualquer pessoa - que trazem as leis e as directivas governamentais que desde da independência até a sua revogação em Maio e Setembro de 1990 deram cobertura à brutalidade das autoridades quando violentamente punham peias à liberdade de expressão, de reunião e de manifestação, negavam o direito de propriedade e condicionavam a circulação livre para o exterior. Ignorar isso e não dar aos mais novos a possibilidade de as conhecer e por essa via saber qual o real valor da liberdade e da democracia é um mau serviço que se presta ao Estado de Direito democrático.
A experiência recente de derivas iliberais demonstra que se não houver um consenso firme quanto aos princípios e valores pelos quais a democracia se rege e uma vontade colectiva de seguir com rigor os procedimentos que regulam o jogo político em ambiente de pluralismo, as instituições democráticas rapidamente perdem credibilidade e eficácia. E, na esteira desse enfraquecimento, criam-se condições para a ascensão de líderes autocráticos, para o ressurgimento de políticas populistas irresponsáveis e para o acerbar de paixões designadamente nacionalistas e xenófobas e de intolerância em relação ao outro. Não é pois de se tomar a democracia e a liberdade por algo certo e inalterável como quando após a queda do Muro de Berlim se anunciou o fim da história e tudo parecia fazer crer que o processo democrático tinha-se praticamente tornado irreversível e que a democracia tinha ficado sem uma alternativa real e viável.
A persistência em Cabo Verde de um quadro muitas vezes confuso em termos simbólicos e de valores é um factor que dificulta a consolidação da cultura democrática, contribui para a excessiva polarização da luta política e alimenta hostilidades em relação ao regime democrático,  impedindo que consensos necessários para o desenvolvimento sejam construídos e mantidos. Crucial para se ultrapassar a confusão de valores é a assunção do Estado das suas responsabilidades para com as vítimas dos seus atropelos durante o regime de partido único e da necessidade de reparar dentro das possibilidades existentes o mal que foi feito. Fazendo isso os valores da liberdade, da democracia e do respeito pela dignidade humana serão vistos como os fundamentais a orientar o funcionamento  do Estado de Cabo Verde, como bem comanda a Constituição da República, não se sobrepondo a eles nenhuns outros. Uma outra era de concórdia poderá ser possível no país porque baseada na verdade, na justiça e no profundo amor à liberdade.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 810 de7 de Junho de 2017.

segunda-feira, junho 05, 2017

Atenção à estratégia dos outros

Um artigo na revista Economist de 25 de Maio trouxe a público mais um falhanço nas negociações entre a União Europeia (UE) e a África no quadro do estabelecimento dos chamados Acordos de Parceria Económica (APE). Desde de 2012 que a UE tenta assinar pactos regionais para substituir o acordo de Cotonou com os países da África, Caraíbas e Pacífico. Encontrou sempre resistências mas as objecções têm sido maiores na África Ocidental, vindas em particular da Nigéria, e na África Oriental onde a Tanzânia retirou-se das negociações na semana passada. O facto de, segundo artigo da Economist, os acordos de parceria económica já assinados não terem trazido, como prometido, nem mais desenvolvimento, nem mais cooperação regional faz diminuir as expectativas inicialmente levantadas das vantagens de um regime de comércio mais aberto entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento. 
O problema é que, diferentemente do que estipulavam os acordos anteriores, no novo pacto exige-se reciprocidade e os países em desenvolvimento terão que abrir os seus mercados a bens e serviços da Europa para continuarem a beneficiar do acesso livre ao mercado europeu. Com tal abertura ficam sem muita margem para acarinhar indústrias e serviços nascentes deixando-os expostos à concorrência aberta de produtos dos países estrangeiros. Por outro lado, perdem receitas com a redução de tarifas exigidas pelos acordos e não têm como contrabalançar porque ainda não puseram de pé uma administração tributária capaz de cobrar todos os impostos e grande parte da economia continua a ser informal. Compreende-se a relutância de muitos países em seguir o caminho do comércio cada vez mais livre como preconizado pela OMC até porque na generalidade dos casos não têm os instrumentos nem peso próprio para contornar a rigidez das imposições da OMC, como fazem os países desenvolvidos. 
Fundos são disponibilizados no âmbito desses acordos para facilitar e materializar as parcerias económicas, mas não compensam o facto de o mercado interno ficar completamente descoberto, de a promoção do empreendedorismo local tornar-se quase impossível e de dificilmente o país conseguir implementar uma estratégia própria de desenvolvimento. Por todas essas razões acaba por passar ao lado as novas possibilidades de negócio criadas pelo comércio livre. A pretendida substituição da ajuda pelo comércio - Aid for Trade – acaba por não resultar, pelo menos no nível que seria desejável para garantir desenvolvimento sustentado e prosperidade futura. Vários factores contribuem para isso, a começar pelos interesses criados e comportamentos induzidos na sociedade e no Estado pelo modelo de reciclagem de ajuda. Junta-se a essa resistência à mudança o impacto no país da acção muitas vezes estratégica de outros estados e seus actores económicos no aproveitamento de oportunidades de negócio que surgiram com a nova economia aberta. 
Em Cabo Verde há anos que se houve que a economia deve deixar de se basear na ajuda externa para passar a ter o sector privado como força motriz. Pelos resultados, constata-se que passar das palavras aos actos tem sido extremamente difícil. O estado actual do sector privado nacional, depois de anos de endividamento para construir infra-estruturas que viabilizassem o investimento privado, linhas de crédito para empoderamento das famílias, programas para promoção do empreendedorismo, projectos do Banco Mundial e das Nações Unidas para melhorar a competitividade do país e o seu ambiente de negócios, diz tudo. São exemplos a fragilidade do sector de construção civil, as deficiências dos transportes marítimos, as dificuldades dos operadores económicos nacionais em fornecer bens e serviços aos hotéis e outras estruturas de turismo e a incipiência da actividade privada nas TICs e a incapacidade de encontrar caminhos para uma agricultura mais produtiva e uma indústria com potencial de crescimento. Até no comércio a retalho ao nível das mercearias nota-se uma retirada de nacionais passando a impressão de que a porta está completamente escancarada. 
Diz-se que isso resulta das regras da OMC, mas na realidade e em boa medida é consequência de não se contrapor à estratégia dos outros uma estratégia própria, de não haver um esforço para se ter uma regulação compreensiva dos vários sectores de actividade e também porque é mais fácil, de facto, continuar a governar o país como sempre foi. Ontem assumia-se que se estava a gerir a ajuda externa numa perspectiva de redistribuição de rendimentos e de luta contra a pobreza. Hoje a tentação é de recorrer aos mesmos empréstimos de organismos multilaterais, às mesmas linhas de créditos do tipo Casa para Todos, e às ofertas dos bancos Export-import em nome do sector privado, do desenvolvimento inclusivo e da modernização. Esquece-se que a acompanhar muitas dessas ofertas “generosas” há políticas de internacionalização de empresas, de subsidiação de exportações e de penetração de mercado. 
Cabo Verde precisa fundamentalmente de investimento estrangeiro que traz capital, tecnologia, know-how e mercados e não daquele que primariamente tem o seu foco no mercado interno. O país precisa produzir riqueza, criar emprego e exportar. O Estado no quadro de uma política “industrial” compreensiva deve poder articular o desenvolvimento do sector privado nacional com a atracção do investimento externo e a oferta de um turismo com qualidade e diversificado. Para isso, há que ter uma estratégia própria para se contrapor à estratégia de quem vem, porque a economia é aberta e o mundo globalizado. De outra forma sucumbe-se para dar lugar ao outro.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 809 de 31 de Maio de 2017.

segunda-feira, maio 29, 2017

O perigo da crença em almoços grátis

Um sem número de vezes já se ouviu falar em discursos oficiais da necessidade de passar de uma economia de reciclagem da ajuda externa para uma economia baseada na iniciativa privada que dê garantia de sustentabilidade futura. A repetição continuada dessa mensagem e a urgência todas vezes nela posta sugerem que não é tarefa fácil fazer essa transição. E compreende-se porque, como se sabe do adágio popular, “não há almoços grátis”. Assim como indivíduos e grupos podem habituar-se à dependência dos outros e dificilmente conseguem recuperar a sua autonomia e libertar-se definitivamente da pobreza também com maioria de razão o mesmo acontece com países e economias nacionais. Os custos do almoço que se pensou grátis acabam por constituir um travão extraordinário a quaisquer esforços no sentido de escapar da armadilha do apoio de fora.
Elucidativo do quadro de dependência do país e das enormes dificuldades em se libertar dela é o que se passou nos últimos dias com a TACV. O governo, em comunicado datado de 23 de Maio, veio dizer que entregava os voos domésticos à Binter e que tinha planos de reestruturação e privatização para o segmento internacional da TACV e para o negócio de Manutenção e Engenharia. Acrescentou que ao longo do primeiro ano de governação desenvolveu esforços no sentido de minimizar a situação financeira mas que ficou inevitável avançar noutro sentido. Do texto do comunicado fica-se a saber que teriam concorrido para essa “inevitabilidade” os parceiros internacionais (GAO, BAD, Banco Mundial, etc.) ao condicionarem apoios orçamentais ao país se não deixasse de injectar dinheiro na TACV. Em consequência de tal pressão ficaram pelo caminho os objectivos de regularizar e reforçar o serviço dos transportes domésticos num ambiente de concorrência que presidiram ao licenciamento da Binter pois que, outra vez, o país encontra-se na situação de ter uma única companhia aérea a operar internamente com a diferença de agora ser uma empresa privada. A tentar ir além de um monopólio público abriu-se caminho para um monopólio privado.
 Do caso, claramente se retira que a liberdade dos governos em gerir o país e até em geri-lo mal  como aconteceu durante décadas no caso da TACV não é real. Não há almoços grátis. Os parceiros internacionais até podem ser complacentes como foram anos a fio em que o país pesadamente se endividava e em simultâneo a economia teimava em manter-se estagnada. Faziam alguns reparos enquanto vinham milhões para Casa para Todos, enterravam-se milhões nos TACV, no Fast Ferry e na ELECTRA, ou perdiam-se milhões no Novo Banco, mas no essencial mantinham a ajuda. Por razões que nem sempre são claras nem transparentes chega um dia em que de todos os quadrantes vem a pressão para reestruturações forçadas, quase sempres dolorosas e poucas vezes efectivas na perspectiva do desenvolvimento mas suficientes para retomar a ajuda externa nas mesmas ou em novas modalidades.
O problema é que voltando-se ao aparente equilíbrio rapidamente os governos agarram-se às promessas de ajuda fácil e outra vez engajam-se na construção de clusters, hubs e economias coloridas de há muito prometidas mas que na prática têm servido para aumentar a dívida do país. Os ganhos políticos imediatos que retiram dos anúncios dos milhões que irão ser investidos não poucas vezes obscurecem o facto que tais linhas de crédito foram criadas para subsidiar  exportações e financiar a internacionalização das empresas dos países que as disponibilizam. A diferença entre o prometido no início da construção de barragens, estradas, portos e aeroportos e o que realmente se verifica em termos de rendimento e perspectiva de futuro não justificam os constrangimentos nas escolhas que soberanamente o país deveria fazer - caso da TACV - mas que a dívida e a dependência crescentes não permitem. Entretanto, questões essenciais como a unificação do mercado interno e transportes marítimos ficam por resolver e não se vislumbra uma estratégia para atrair investimento externo capaz de criar rapidamente empregos e aumentar as exportações. Mesmo no turismo, apesar do discurso oficial de suporte ao sector, tarda-se em ver acções consequentes e encadeadas para melhorar o ambiente de negócios e  em desenvolver uma estratégia para alargar a sua base para além de sol e praia e também para impactar mais a economia nacional com o arrastamento de múltiplas actividade nos sectores de produção, transportes e serviços.
A crença em almoços grátis, de facto, desarma tanto as pessoas como os governos. Deixa-se de se preocupar com os resultados e fixa-se nos fluxos externos sejam eles em forma de doações, empréstimos ditos concessionais, financiamentos de estudos, workshops, ateliers, socializações etc. Ninguém parece importar-se que com isso vai aumentando a desigualdade social, ilhas perdem população, a centralização aumenta e os governos parecem todos condenados a fazer o mesmo sem muita hipótese de ir além dos sonhos futuros tantas vezes repetidas não obstante as nuances. E não é porque houve avanços no país com toda essa infusão de apoio externo que se justifica o modelo. Tais avanços mostram-se verdadeiramente diminutos quando se compara com os obtidos em realidades similares, realidades insulares como Cabo Verde, que fizeram a opção de, mesmo aproveitando a ajuda externa, ir consistentemente para além da ajuda e construir uma economia diversificada voltada para o mercado externo. Muito mais se poderia ter feito e estar-se-ia a fazer se não mais acreditássemos em almoços grátis.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 808 de 24 de Maio de 2017.

segunda-feira, maio 22, 2017

Sinais complicados

Na semana passada o Governo deu o dito por não dito. O custo dessa inversão de marcha foi logo contabilizado em cerca de 45 mil contos anuais a serem permanentemente acrescidos ao orçamento do Estado a partir de 2018. O volte-face do governo surgiu no dia seguinte à ameaça de greve de zelo seguido de greve geral a partir de Junho por parte do sindicato dos oficiais de justiça. Na declaração pública, o governo voltou a afirmar que “é a favor da não generalização do subsídio de exclusividade” mas em vez de ponderar como agir na sequência do pronunciamento do Tribunal Constitucional e do veto presidencial, como prometera menos de 24 horas antes, apressou-se em concordar em incluir o subsídio, deixando forte impressão que o fazia por pressão do sindicato.
 Em Março último acontecera algo similar. O sindicato da polícia tinha ameaçado greve geral de três dias no fim desse mês se as reivindicações salariais feitas não fossem cumpridas. Era uma ameaça que não se justificava, considerando que o governo já tinha feito aprovar no orçamento de 2017 mais de 178 mil contos para resolver velhas disputas salariais na polícia nacional. Mesmo assim a imagem do sindicato saiu reforçada do confronto porque ficou a impressão de que o acordo de entendimento teria sido conseguido sob pressão da ameaça, sem precedentes na história do país, de deixar as ruas inseguras durantes três dias. Ninguém ganha com a percepção de que o governo, perante a mínima pressão, cede a interesses corporativos ou sindicais ou que é forçado a agir por causa de manifestações de indignação nas redes sociais como se viu no caso do passaporte diplomático do desportista  Matchu Lopes.
A reforma da administração pública é fundamental para se construir o futuro do país. Há um consenso geral que para que Cabo Verde dê saltos de produtividade e se torne competitivo é de maior importância que haja ganhos de eficiência na gestão dos recursos do Estado e que a relação com os cidadãos e com as empresas se deixe guiar por objectivos, agindo com eficácia para conseguir os melhores resultados. Sabe-se que após anos sucessivos de estagnação de carreiras e da falta de perspectiva na função pública muitos trabalhadores anseiam por recuperar o tempo perdido e naturalmente que se apressam logo a avançar com as suas reivindicações. Cabe ao novo governo transmitir a real situação do pais, definir as prioridades e saber criar a vontade geral que permita que se faça hoje sacrifícios para que o potencial de crescimento seja elevado e o país possa produzir riqueza e criar empregos sustentáveis.
Este é o momento errado para permitir que cada classe ou interesse corporativo se fixe nos seus interesses exclusivos ignorando o panorama geral de falta de dinâmica da economia nacional ou fingindo não ver os milhares de desempregados e os outros milhares de jovens que todos os anos chegam ao mercado de trabalho sem grande esperança de arranjar um emprego. Já é evidente que trabalhos do Estado não podem empregar todos assim como soluções de auto-emprego ou de actividade informal não resolvem o problema do desemprego. Dificilmente mostram-se  sustentáveis ou com potencial para fazer crescer o rendimento das pessoas e criar mais postos de trabalho. Para além do Estado, praticamente só o turismo e as actividades de exportação a partir de investimentos que trazem consigo tecnologia e mercados é que já provadamente demonstraram que podem rapidamente contratar milhares de pessoas e criar empregos permanentes.
Para poderem resultar é preciso porém que o país tenha uma administração pública ágil e eficiente e com consciência das suas prioridades e uma cultura de prestação de serviço. Para se conseguir isso é fundamental a liderança do Governo. Mas se em vez de lançar a administração do Estado para o patamar que hoje se exige de um país dinâmico, inovador e inserido na economia global,  o governo deixar-se ir a reboque ou capitular perante interesses ou reivindicações vindos dos sectores públicos será mais uma oportunidade perdida de se fazer as reformas essenciais que se impõem. E ninguém ganhará com isso, nem mesmo os sindicatos que poderão até passar, por algum tempo, a imagem de poderosos com as vitórias tornadas fáceis na administração pública e nos sectores públicos empresariais com a politização das causas e a deriva para o populismo de certos actores políticos. Vão verificar rapidamente que embora a curto prazo aparentam cuidar dos interesses dos seus associados, a longo termo todos serão prejudicados com a falta de produtividade e de competitividade da economia e com a incapacidade geral em criar empregos em número significativo.
O governo já deixou passar um ano sem que em relação à administração pública e com vista à melhoria significativa do ambiente de negócios fossem tomadas medidas práticas ou conhecidos os seus planos e estratégia para reforma profunda do sector. Não aproveitou o aparente consenso nesse sentido que vinha do período eleitoral de 2015/2016 e deixou-se desviar dos objectivos com a questão politicamente polarizante do concurso público e com a questão das incompatibilidades. Também não ajuda a imagem que se vai criando que o governo cede perante pressões de interesses corporativos e sindicais no sector público. Certamente que está a tempo de recuperar e fornecer uma liderança efectiva da administração pública e fazer as reformas que o país precisa, mas o tempo urge.
Olhando para as experiências dos outros países, constata-se que não é fácil mudar estruturas, criar uma outra cultura de organização e reorientar um aparelho estatal construído para controlar tudo e todos num modelo de reciclagem de ajuda externa, de forma a se transformar num instrumento dinâmico do desenvolvimento. Mas terá que ser feito se se quiser deixar definitivamente estes anos de crescimento raso e ir além das previsões do FMI em Abril deste ano que projectam para Cabo Verde em 2017 e 2018 taxas de crescimento do PIB de 4% e 4,1% respectivamente.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 807 de 17 de Maio de 2017.