O conselho da república
foi convidado a debruçar-se sobre a segurança no país e sobre a situação de
seca. Para o efeito o PR endereçou convites ao ministro da Administração
Interna e ao ministro da Agricultura, e também a especialistas em segurança e
ao conselheiro de segurança do
primeiro-ministro, como se pode ver no seu “post” no Facebook. Com a
iniciativa, o PR rompeu com a tradição das reuniões do conselho da república
viradas quase que exclusivamente para a marcação de eleições e alargou o escopo
de actuação desse órgão auxiliar do presidente da república para matérias de
política interna normalmente sob a alçada e direcção do governo. Também nos
procedimentos inovou ao convidar directamente ministros para expor sobre temas
da governação, tarefa que constitucionalmente cabe ao PM no cumprimento do seu
dever de informar regular e completamente o presidente da república sobre os
assuntos da política interna e externa do Governo e como membro do Conselho
da República.
Na sua página do Facebook o PR disse que a
reunião serviu para reforçar convicções, reavaliar políticas e medidas,
mobilizar energias e vontades, acelerar procedimentos, alterar práticas e
atitudes. O problema é que as recomendações para terem utilidade prática
deveriam ser dirigidas ao governo, mas o conselho é órgão de consulta do PR no
exercício das suas funções e não de consulta do governo. Os constitucionalistas
portugueses referem-se à possibilidade em Portugal do PR, pela via de submissão
de matérias diversas ao conselho do estado, de transformar esse órgão numa
instituição de apreciação da vida política e da direcção política do governo e
enquanto tal num “meio indirecto” de efectivar a responsabilidade do governo.
Há aí essa possibilidade porque o governo é politicamente responsável perante o
presidente da república e perante o parlamento. Não é o caso de Cabo Verde em
que o PM só é politicamente responsável perante a Assembleia Nacional e os
ministros são responsáveis perante o primeiro-ministro e no âmbito do governo
perante a AN e por conseguinte os contactos directos dos ministros com o PR
devem ser feitos com assentimento do PM.
O presidente português
Marcelo Rebelo de Sousa inaugurou as audições no Conselho de Estado de figuras
exteriores ao órgão com os convites dirigidos ao governador do Banco Central
Europeu Mario Draghi na primeira reunião e recentemente ao presidente da
Comissão Europeia Jean-Claude Juncker e ao director da Organização Mundial do
Comércio. Para politólogos citados pela imprensa portuguesa os convites do
presidente constituem actos de marketing institucional dirigidos para dar mais
centralidade no debate político à Presidência da República. Mas
certamente que convites dirigidos á figuras de instituições supra nacionais da
União Europeia e internacionais não é mesma coisa que convidar membros do
governo para discutir matéria de governação do país. Desde 2005 que no artigo 5
do regimento do conselho da república está prevista essa possibilidade que por
sinal não resulta da Constituição mas não há notícia que alguma vez tenha sido
aplicada nem pelos presidentes anteriores nem pelo actual presidente da
república no seu primeiro mandato. E não é por acaso.
Nas democracias
parlamentares a relação entre o presidente da república e o governo é muitas
vezes de geometria variável. Se o governo é minoritário ou se num momento é
politicamente enfraquecido a influência do PR tende a aumentar, mas se os
governos gozam de uma maioria absoluta no parlamento não há grandes alterações
no que se espera do PR nas suas múltiplas funções. Quando há governos
maioritários, como é o caso de Cabo
Verde nestes 27 anos de democracia, a norma é a estabilidade política sem
grandes sobressaltos nas relações entre órgãos de soberania. Os equilíbrios
existentes, porém, podem mudar se factores diversos já conhecidos de populismo
e demagogia convergirem no enfraquecimento das instituições democráticas, como
está a acontecer. Um sinal disso é a descredibilização do parlamento que vem de
há vários anos e já alterou visivelmente a relação entre o governo e o
parlamento. Nota-se na submissão deste àquele assim como nas ausências do
primeiro-ministro do parlamento em momentos de fiscalização política, acto
sempre criticado pelo actual partido maioritário quando era oposição
parlamentar. A outra face da moeda é um relacionamento nunca visto entre o
governo e a presidência da república no qual é palpável a crescente influência
do PR.
Derivas na relação entre os órgãos de
soberania acabam por mexer com o sistema político e afectar em particular a
confiança das pessoas nas instituições. A falta de coerência e de consistência
na actuação da classe política pode tornar-se
norma como se viu no folhetim das alterações das taxas aduaneiras para
proteger produtos locais em que a fuga à responsabilidade por eventuais
prejuízos aos consumidores e à economia nacional foi generalizada. Poderá vir a
verificar-se outra vez designadamente na questão da regionalização. Na proposta de lei apresentada ao parlamento já se
viu que o apego à ideia de ilha/região caiu para o caso de Santiago que ficou
com duas regiões ao mesmo tempo que se manteve no caso de ilhas com fraca base
populacional e económica como Brava e
Maio e que se obrigam ilhas efectivamente integradas como S. Vicente e S. Antão
a serem regiões separadas. Em 2014 na discussão da composição do Conselho
dos Assuntos Regionais o actual partido maioritário, então oposição, forçou o
então governo a abandonar a proposta de fazer Santiago ser representado nesse
órgão por dois elementos de Santiago
Norte e dois de Santiago Sul. O MpD argumentou na altura que o total de quatro
representantes de Santiago iria contrastar com o número de dois por cada ilha e
estaria em contramão com o princípio que sempre vigorou na Constituição de 1992
de igualdade de representação das ilhas.
Hoje vê-se em vários sinais que o
comprometimento em manter o sistema político no seu traço básico original não
está garantido. Surgem forças a propor alterações no sistema do governo com
reforço dos poderes presidenciais e outras a querer minimizar o parlamento e a
democracia representativa. Com uma revisão da Constituição no horizonte é de
evitar derivas que tragam desequilíbrios e aumentem a desconfiança das pessoas
nas instituições. Há, por outro lado, que conter o impulso para o protagonismo
exacerbado e, pelo contrário, preparar-se com integridade para servir, ciente
de que a manutenção de um ambiente de paz e tranquilidade, funcionamento normal
das instituições e o exercício competente das funções de cada um é fundamental
para se ter liberdade e prosperidade.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição
impressa do Expresso das Ilhas nº 833 de 04 de
Abril de 2018.