Os encontros semi-anuais do governo com o Grupo de
Apoio Orçamental (GAO) têm-se revelado momentos interessantes para se
confrontar a visão oficial sobre a situação do país com o olhar dos
parceiros que financeiramente suportam o Orçamento do Estado.
É
claro que o foco da atenção dos parceiros incide fundamentalmente sobre
a questão do défice orçamental, do nível de endividamento público e da
sustentabilidade da dívida a prazo. Mas acabam por fazer uma análise
global sobre o estado da economia nacional, salientando resultados
positivos e registando evoluções promissoras na implementação de
políticas. Normalmente completam o seu comunicado final com
recomendações sobre caminhos a seguir em cuja formulação, muitas vezes,
deixam implícitas constatações menos positivas, questionamentos de
prioridades e alertas em relação a certos desenvolvimentos. Num ambiente
sócio-político em que, para além do confronto entre os partidos com
todas as suas limitações e tendência para o sectarismo, não são muitas
as oportunidades de debate sistemático sobre a economia, a apreciação
que o GAO faz da situação do país influencia e ajuda a condimentar o
discurso dos diferentes interlocutores. E como os encontros, em geral,
acontecem em Novembro, nas vésperas da apresentação ao parlamento da
proposta de Orçamento do Estado, ou então em Junho, um pouco antes do
debate parlamentar sobre o estado da Nação, o impacto é ainda maior.
Uma das recomendações que chamaram a atenção da imprensa foi a do eventual impacto de novos incentivos fiscais dirigidos a investidores nas futuras zonas económicas especiais (ZEE). Subjacente está a preocupação em não se ter receitas derivadas das actividades desses operadores que compensem a perda fiscal com os incentivos dados logo à cabeça. Daí que aconselhem a ter em devida conta critérios de custo-benefício na projecção de novos esquemas de incentivos para as ZEEs. Acrescentam ainda que “antes da formulação de políticas é importante entender quais as categorias de investidores que potencialmente se localizariam na Zona e quais os mercados que eles almejariam alcançar”. Com tais alertas procura-se evitar que se repita o que aconteceu no princípio da década quando se endividou o país para financiar os investimentos públicos que iriam dar corpo aos clusters e depois não houve o retorno prometido. O “crowding in” do investimento privado, que viria na sequência do investimento público, não se verificou e Cabo Verde acabou por acumular uma dívida externa que o colocou na posição de um dos países mais endividados do mundo. Agora já não com “clusters” mas com “plataformas” ninguém deseja que aconteça o mesmo.
A verdade é que lendo os parceiros nas entrelinhas do comunicado não há por aí muita confiança que apareça alguma coisa que, pelo menos a médio prazo, se sobreponha ao turismo como motor da economia nacional. Neste aspecto parecem estar em linha com o que diz o Banco Mundial nos seus últimos estudos vindos a público sobre a economia de Cabo Verde. Não obstante, mostram-se optimistas em relação ao crescimento do PIB, que projectam em 5% no médio prazo, estão cientes dos vários factores que o poderão comprometer e também afectar a sustentabilidade da dívida. Vêem uma saída para as incertezas e uma forma de amortecer choques externos em políticas de investimento e uma estrutura de promoção consistente, focada na sustentabilidade, ligada ao desenvolvimento local e à diversificação económica. Apelam a que reformas sejam feitas e conduzam a mais coordenação e maior competitividade do país para que se concretize o objectivo de ter o turismo a impactar positivamente os outros sectores económicos e a contribuir para prosperidade geral.
A preocupação central do GAO com a dívida pública, actualmente no valor correspondente a 120% do PIB, faz com que avalie e siga com especial atenção os possíveis riscos orçamentais que o Estado pode vir a incorrer por causa das dificuldades financeiras do sector empresarial público, de outras participações empresariais ou ainda da eventual má gestão municipal. Nesse sentido há, por um lado, pressão para se prosseguir com as privatizações e as vendas de participação do Estado e a recomendação para fortalecer nos municípios a gestão dos aumentos dos recursos orçamentais. Por outro lado, nota-se alguma apreensão quanto às recentes aquisições do Estado na telecom e na banca e incentiva-se o governo a esclarecer os planos de alienação das acções compradas. Fica por saber é se as razões para isso são de natureza ideológica ou se advêm dos constrangimentos da dívida pública. De qualquer forma, a orientação parece ser a que Estado deve libertar-se de toda e qualquer intervenção em empresas públicas ou participadas. Já está a acontecer na ENACOL e, em princípio, o mesmo vai verificar-se com a venda de 39% das acções da Cabo Verde Airlines e mais tarde com a ELECTRA.
O problema com esta abordagem da gestão económica do país é que se fixa demasiado na questão da dívida e nos riscos de endividamento, subalternizando tudo o resto. O nível de rigidez que tende a impor deixa qualquer governo sem a necessária flexibilidade para responder a desafios e situações que revelem alguma complexidade. Num país pequeno e arquipelágico como Cabo Verde, onde a intervenção estatal se mostra muitas vezes indispensável para responder a mercados imperfeitos, falhas de mercado e dificuldades em conseguir economias de escala, deve haver sempre espaço para a discussão sobre qual deve ser o papel do Estado. Há que poder questionar, sempre, qual deve ser o escopo da sua actuação e inquirir dos níveis de eficiência e eficácia que deverá demonstrar enquanto prestador de serviços aos utentes e promotor da iniciativa individual e empresarial, vital para o país prosperar. Este é um componente do debate político que o país não pode abdicar mesmo quando conjunturalmente está sob forte pressão externa devido aos constrangimentos da dívida.
Deixar-se apanhar por razões ideológicas, ou sujeitar-se a amarras para receber dádiva externa, não é a melhor via para quem, com a realidade difícil e complexa que tem, devia sempre poder orientar-se pelo realismo e o pragmatismo na sua actuação. O facto não o ter feito por demasiado tempo explica muito as dificuldades com que hoje se depara e o nível mais baixo de desenvolvimento, em comparação com realidades insulares similares. Sabe-se que nem sempre será possível contornar as pressões, mas também se conhecem as consequências de capitular perante elas. Todo o país está hoje a pagar por opções de desenvolvimento mais apostadas na sobrevivência do dia a dia do que no investimento no futuro. As recomendações da GAO vêm relembrar com força que é urgente uma mudança de atitude.
Uma das recomendações que chamaram a atenção da imprensa foi a do eventual impacto de novos incentivos fiscais dirigidos a investidores nas futuras zonas económicas especiais (ZEE). Subjacente está a preocupação em não se ter receitas derivadas das actividades desses operadores que compensem a perda fiscal com os incentivos dados logo à cabeça. Daí que aconselhem a ter em devida conta critérios de custo-benefício na projecção de novos esquemas de incentivos para as ZEEs. Acrescentam ainda que “antes da formulação de políticas é importante entender quais as categorias de investidores que potencialmente se localizariam na Zona e quais os mercados que eles almejariam alcançar”. Com tais alertas procura-se evitar que se repita o que aconteceu no princípio da década quando se endividou o país para financiar os investimentos públicos que iriam dar corpo aos clusters e depois não houve o retorno prometido. O “crowding in” do investimento privado, que viria na sequência do investimento público, não se verificou e Cabo Verde acabou por acumular uma dívida externa que o colocou na posição de um dos países mais endividados do mundo. Agora já não com “clusters” mas com “plataformas” ninguém deseja que aconteça o mesmo.
A verdade é que lendo os parceiros nas entrelinhas do comunicado não há por aí muita confiança que apareça alguma coisa que, pelo menos a médio prazo, se sobreponha ao turismo como motor da economia nacional. Neste aspecto parecem estar em linha com o que diz o Banco Mundial nos seus últimos estudos vindos a público sobre a economia de Cabo Verde. Não obstante, mostram-se optimistas em relação ao crescimento do PIB, que projectam em 5% no médio prazo, estão cientes dos vários factores que o poderão comprometer e também afectar a sustentabilidade da dívida. Vêem uma saída para as incertezas e uma forma de amortecer choques externos em políticas de investimento e uma estrutura de promoção consistente, focada na sustentabilidade, ligada ao desenvolvimento local e à diversificação económica. Apelam a que reformas sejam feitas e conduzam a mais coordenação e maior competitividade do país para que se concretize o objectivo de ter o turismo a impactar positivamente os outros sectores económicos e a contribuir para prosperidade geral.
A preocupação central do GAO com a dívida pública, actualmente no valor correspondente a 120% do PIB, faz com que avalie e siga com especial atenção os possíveis riscos orçamentais que o Estado pode vir a incorrer por causa das dificuldades financeiras do sector empresarial público, de outras participações empresariais ou ainda da eventual má gestão municipal. Nesse sentido há, por um lado, pressão para se prosseguir com as privatizações e as vendas de participação do Estado e a recomendação para fortalecer nos municípios a gestão dos aumentos dos recursos orçamentais. Por outro lado, nota-se alguma apreensão quanto às recentes aquisições do Estado na telecom e na banca e incentiva-se o governo a esclarecer os planos de alienação das acções compradas. Fica por saber é se as razões para isso são de natureza ideológica ou se advêm dos constrangimentos da dívida pública. De qualquer forma, a orientação parece ser a que Estado deve libertar-se de toda e qualquer intervenção em empresas públicas ou participadas. Já está a acontecer na ENACOL e, em princípio, o mesmo vai verificar-se com a venda de 39% das acções da Cabo Verde Airlines e mais tarde com a ELECTRA.
O problema com esta abordagem da gestão económica do país é que se fixa demasiado na questão da dívida e nos riscos de endividamento, subalternizando tudo o resto. O nível de rigidez que tende a impor deixa qualquer governo sem a necessária flexibilidade para responder a desafios e situações que revelem alguma complexidade. Num país pequeno e arquipelágico como Cabo Verde, onde a intervenção estatal se mostra muitas vezes indispensável para responder a mercados imperfeitos, falhas de mercado e dificuldades em conseguir economias de escala, deve haver sempre espaço para a discussão sobre qual deve ser o papel do Estado. Há que poder questionar, sempre, qual deve ser o escopo da sua actuação e inquirir dos níveis de eficiência e eficácia que deverá demonstrar enquanto prestador de serviços aos utentes e promotor da iniciativa individual e empresarial, vital para o país prosperar. Este é um componente do debate político que o país não pode abdicar mesmo quando conjunturalmente está sob forte pressão externa devido aos constrangimentos da dívida.
Deixar-se apanhar por razões ideológicas, ou sujeitar-se a amarras para receber dádiva externa, não é a melhor via para quem, com a realidade difícil e complexa que tem, devia sempre poder orientar-se pelo realismo e o pragmatismo na sua actuação. O facto não o ter feito por demasiado tempo explica muito as dificuldades com que hoje se depara e o nível mais baixo de desenvolvimento, em comparação com realidades insulares similares. Sabe-se que nem sempre será possível contornar as pressões, mas também se conhecem as consequências de capitular perante elas. Todo o país está hoje a pagar por opções de desenvolvimento mais apostadas na sobrevivência do dia a dia do que no investimento no futuro. As recomendações da GAO vêm relembrar com força que é urgente uma mudança de atitude.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 939 de 27 de Novembro de 2019.