Já na segunda metade do ano 2022 e ainda não é claro qual irá ser o futuro próximo. As incertezas tendem a manter-se, mas com contornos nem sempre previsíveis. Logo nos primeiros dias do corrente ano, no início de Janeiro, com mais um surto do SARS-Cov-2 na variante Ómicron já se tinha que lidar com incertezas quanto à retoma da economia devido a constrangimentos nas viagens, no turismo e nas cadeias de abastecimento.
Depois de 24 de Fevereiro e na sequência da invasão da Ucrânia e das sanções aplicadas à Rússia e da subida em flecha dos preços dos combustíveis e dos bens alimentares e, de modo geral, da inflação, a situação global agravou-se consideravelmente.
O facto de nesta matéria ainda não se ver um fim e, pelo contrário, de se correr o risco de uma escalada nas hostilidades entre a Rússia e o Ocidente, com impacto sócio económico profundo em particular nos países mais pobres e nas populações mais desprotegidas, mostra que o panorama geral não só não mudou como tende a priorar. Receia-se que o que aconteceu no Sri Lanka dias atrás com a destituição do governo por multidões nas ruas se venha a repetir em outros pontos do planeta. A ameaça de um alargamento brusco da insegurança alimentar e mesmo de situações de fome no mundo é real, se persistirem os estrangulamentos no abastecimento de cereais e no fornecimento de fertilizantes a partir da Ucrânia e da Rússia.
Entretanto, a pandemia não acabou e surtos de subvariantes do Ómicron cada vez mais contagiosos, mas aparentemente menos letais, continuam a acontecer. Em Cabo Verde apesar de na última semana se ter conseguido diminuir bastante o número de casos activos da Covid-19, registaram-se dezenas de hospitalizações e cinco mortos desde de Junho. De acordo com as autoridades sanitárias, constatou-se também a presença das subvariantes BA.4 e BA.5 que por serem particularmente capazes de evadir o sistema imunitário levam a reinfecções de pessoas já vacinadas e facilitam o contágio a partir de infectados, mas assintomáticos. Daí a necessidade de continuar a vacinar e a administrar “boosters” para evitar complicações principalmente entre os mais vulneráveis.
Não há ainda um regresso à normalidade. Mantém-se o estado de alerta e continua-se a impor algumas restrições que de uma forma ou outra interferem com a circulação e a concentração de pessoas e prejudicam a produtividade com as exigências de cinco ou sete dias em quarentena, em caso de infecção, afectando negativamente a possibilidade de uma plena retoma da economia. É verdade que as pessoas estão cansadas de quase dois anos de pandemia e estão ávidas de uma vida mais livre e espontânea, mas não se pode deixar cair a guarda. Para muitos especialistas o vírus ainda não acabou de evoluir e possibilidades de sequelas com o chamado Covid longo deviam aconselhar cautela e incentivar hábitos de uso de máscara em situações especiais, a par com regulamentação da ventilação e qualidade do ar em recintos fechados.
Num contexto de crises sucessivas, saber fazer as mudanças que se impõem para as enfrentar é fundamental. Também importante é adoptar a atitude certa que reforça a confiança, facilita a cooperação e traz ao de cima o espírito de solidariedade. Em qualquer país isso é inegável. Em Cabo Verde é crucial para se poder ultrapassar os extraordinários constrangimentos que se colocam a um pequeno país de parcos recursos naturais, diminuta população e baixa conectividade. De outra forma seria resignar-se com crescimento económico que não satisfaz, que não diminui as desigualdades e que não reduz as vulnerabilidades particularmente das pessoas no mundo rural. As projecções de crescimento do FMI, no documento que acompanha o crédito de 60 milhões de dólares assinado dias atrás, situam-se à volta de 5% nos restantes anos desta década, menos que os 7% consensualmente considerados pelos próprios partidos políticos como o mínimo necessário para um verdadeiro “take-off” do país.
A conjuntura internacional actual marcada por incertezas devia imprimir uma maior urgência na adopção de uma nova atitude. Momentos de crise são de grandes mudanças e não há crise mais claramente explícita do que a da Ucrânia que resulta de uma guerra aberta que, querendo ou não, vai pelas suas repercussões provavelmente desconstruir a actual ordem mundial e criar outras mutuamente hostis ou pouco colaborantes. Não é talvez muito arriscado pensar que poderão emergir mundos separados na base de segurança, de comércio, de ordem monetária e financeira, de energia e mesmo de internet. No processo quase que se vai forçar cada país a tomar partido. Saber adaptar-se às novas exigências vai ser crucial.
Entrementes todos vão sentir o choque provocado pelas placas geopolíticas em movimento na espiral inflacionista alimentada pelos altos preços dos combustíveis e dos bens alimentares, no aumento das taxas de juro, no movimento de capitais para fora dos países emergentes, na alta do dólar e no agravamento da situação dos países devedores. Outras consequências mais graves poderão vir de um agravamento do conflito na Ucrânia provocado pelo avanço das tropas russas no território ucraniano que iria obrigar a uma reacção mais robusta dos Estados Unidos e da Europa. No sentido contrário o eventual sucesso das tropas ucranianas com armamento fornecido pelo ocidente também iria colocar à Rússia um dilema de alargar a guerra ou de chegar a um cessar-fogo provavelmente difícil de manter, porque em território ucraniano ocupado. As próximas semanas dirão da sua justiça relativamente às duas hipóteses e se o pior cenário de uma guerra interminável e destruidora continuará a provocar os seus efeitos nefastos sobre todo o mundo.
A percepção de que a conjuntura internacional marcada por crises sucessivas e por incertezas várias dificilmente mudará para melhor a curto e médio prazo terá levado o governo de Cabo Verde a tomar a iniciativa de mobilizar confissões religiosas, organizações da sociedade civil, ONGs, câmaras municipais e outras instituições para o “Fórum Nacional – Emergência de uma Frente Comum para Enfrentar e Vencer as Crises”. A iniciativa peca por vir tardia. Há muito que se devia ter chamado a atenção da nação cabo-verdiana pelos particulares desafios que enfrentava. Já aquando da seca e das profundas consequências que teve no mundo rural devia-se ter interrogado como tão facilmente as vulnerabilidades das populações vieram à tona apesar de anos de investimento e crescimento económico. Não aconteceu.
Depois veio a pandemia, os “lockdown” e a violenta contracção da economia e não foi acompanhada de uma reflexão que levasse a focar a nação no que claramente era uma antevisão de problemas futuros de natureza global que careciam de um especial engajamento de todos para serem enfrentados. Continuou-se a fazer o mesmo e a desvalorizar a crise com anúncios de retoma que depois ficavam pelo caminho. Finalmente veio a guerra na Ucrânia e só quase cinco meses depois se está a alertar para as profundas consequências do conflito. Durante crises sucessivas o país deixou-se embalar na política altamente polarizada que não deixa muito espaço para compromissos e tende a fazer do discurso político um exercício estéril. Não se elegem os órgãos externos da competência da Assembleia Nacional, não se consegue chegar a entendimentos em matérias fulcrais para o país como a segurança, educação e transportes e deixa-se passar ao lado os múltiplos projectos financiados pela cooperação internacional sem uma discussão sobre os objectivos pretendidos e os resultados obtidos.
É de perguntar se ainda se vai a tempo de construir a vontade comum necessária para se enfrentar os extraordinários desafios que se colocam. Dizia-se que era preciso ultrapassar o ciclo eleitoral para se ter tranquilidade e serenidade para fazer reformas do Estado. Passaram as eleições, mas aparentemente não se aproveitou o período da suposta acalmia eleitoral para se construir consensos que podiam advir de uma responsabilidade constitucional partilhada por todos os partidos. Nem as crises sucessivas conseguiram criar tal milagre. A questão é saber o que é que o impede. Provavelmente não se vai descobrir e as próximas eleições já não estão tão distantes. Cabo Verde certamente que apreciaria a oportunidade de demonstrar que é, de facto, uma nação resiliente e com sentido de futuro.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1076 de 13 de Julho de 2022.