segunda-feira, janeiro 30, 2012

Informalidade , conflito de interesses, crime

Dias atrás, Hernando de Soto, o economista peruano escrevendo no Financial Times, ressaltou a importância do conhecimento no capitalismo a par com factores como o capital e o crédito. Por conhecimento ele quis dizer toda a informação certificada sobre activos e passivos dos operadores económicos, a malha legal indispensável para garantir previsibilidade e confiança nas transacções e instituições para regular e dirimir conflitos. Com tal conhecimento, qualquer operador pode “localizar fornecedores, inferir valor, correr riscos” no processo de produção e distribuição de qualquer produto. Para Hernando de Soto, a crise actual é primeiramente uma crise do conhecimento. Começou quando se mostrou impossível saber o valor real de vários produtos financeiros detidos pelos bancos e dúvidas surgiram sobre a solvência dos mesmos. Seguiram-se a perda de liquidez, o aperto no crédito e os efeitos negativos de uma actividade económica mais restrita e básica e posteriormente a crise da dívida soberana em consequência das medidas para evitar uma grande depressão. Em países como Cabo Verde, as deficiências no factor conhecimento sentem-se no ambiente de negócios pouco propício a iniciativas empresariais e inibidor da actividade económica criadora de emprego. Manifesta-se também no espaço livre que deixa ao sector informal e também na marca de informalidade que imprime a certas interacções entre actores económicos e sociais e o sector público. Conflitos de interesse, por exemplo, parece que não existem. Os casos descritos na imprensa envolvendo a Bolsa de Valores são paradigmáticos a esse respeito. Alegadamente, o presidente da BVC fazia de consultor de empresas interessadas em lançar obrigações na bolsa e de promotor, logo a seguir à emissão das mesmas, junto de potenciais clientes. Quando é assim, facilmente se pode tornar um alvo de outros que vêm no circuito ou esquema estabelecido oportunidade para usar como veículo de transacções ilegais. Assim aconteceu com muitos rabidantes virados correios da droga, com funcionários dos TACV, em part time fornecedores de produtos de boutiques, aliciados para o tráfico e com elementos das autoridades nas fronteiras habituados ao pequeno contrabando que são envolvidos em corrupção já mais graúda. Pelo que foi dito, é evidente que para se conter a avalanche de crimes que ameaça o país há que dar à volta à cultura que desvaloriza regras e instituições, romantiza a actividade informal e o rabidante e aprova a ganância dos “ricos instantâneos”. Mas para isso é preciso, em simultâneo, construir alternativas de emprego digno e gratificante. Crescimento com emprego, porém, só é possível se como diz Hernando de Soto se se criar essa base de conhecimento que “valida informação sobre quem tem propriedade de terra, do trabalho, do crédito, do capital e da tecnologia e mostra como estão conectados e como podem lucrativamente serem combinadas”.

quinta-feira, janeiro 26, 2012

Restaurar valores

"A sociedade caboverdiana está descaracterizada", palavras de Dom Arlindo Furtado depois de um encontro com o Presidente da Câmara para discutir a problemática da segurança na Praia. A constatação do Bispo de Santiago vai ao encontro da percepção de muitos de que o tecido social do país mostra sinais graves de enfraquecimento e ameaça rasgar-se. Problemas mostram-se na falta de civismo, na fragmentação familiar e na violência crescente contra pessoas.

O sentimento de falta de amparo por parte da sociedade atinge particularmente os jovens. Alguns reagem saindo à cata de algum refúgio e julgam encontrá-lo na droga e nos "gangs" denominados thugs. Na busca de substâncias ilegais e na utilização da violência como forma de afirmação e identidade no espaço urbano, acabam por contribuir para o aumento da agressividade geral. Com isso alienam ainda mais a sociedade envolvendo a todos numa espiral de violência que cria mais insegurança, aprofunda o desnorte e revela impotência geral. Agrava-se a situação sempre que as autoridades e a sociedade deixam-se cair na tentação

de resolver os graves problemas sociais com acções excessivas das forças de segurança.

Várias razões estarão na origem da fragmentação social que se verifica actualmente. Mas, facto é, valores só se revigoram e se renovam num ambiente socioeconómico e cultural propício. Por exemplo, valores de dignidade, liberdade e autonomia dificilmente se afirmam, quando se toma como prioridade máxima a atracção e gestão da ajuda externa em detrimento da construção de estruturas produtivas no país. No ambiente criado de assistencialismo, tais valores vêem-se substituídos por subserviência, conveniência e oportunismo. No processo, a iniciativa individual também fica distorcida. Em vez do empreendedorismo capaz de congregar capacidades para atingir objectivos socialmente úteis, favorece-se quem sobe na carreira subtraindo outros ao longo do caminho via intrigas, relações especiais com poderes instalados e pertença a redes de influência.

A prática dos poderes públicos na distribuição da ajuda externa favorece, em primeiro lugar, quem é próximo e leal. Naturalmente que isso gera a marginalização do outro, crescente desigualdade social, discrepâncias profundas entre regiões do país e centraliza-ção nas decisões do país. As consequências ao nível individual e familiar são profundas. Os que se sentem abandonados, ou sem as oportunidades dadas a outros, podem descambar numa postura associal e procurar conforto em causas e organizações muitas vezes marginais.

A luta contra a pobreza, supostamente, deveria constituir um esforço de contenção desse resvalar para a miséria e a indigência de quem tem muito pouco a perder e que não acredita em nada. A actividade das ONGs e das associações comunitárias, ao propiciar espaços dignos de participação e oportunidades na construção autónoma da vida das pessoas, deveria ser um bálsamo para as chagas no tecido social. O desânimo não tomaria conta das pessoas e a esperança numa vida melhor poderia reacender-se com políticas públicas e encorajamento da actividade económica privada nacional e estrangeira propiciadoras de emprego.

O sequestro pelos poderes públicos da agenda de muitas das associações e ONGs no intuito de servir propósitos partidários e controlar cidadãos vulneráveis, escamoteia a missão nobre para a qual foram criadas.

Em vez de ajudarem a restaurar a dignidade e autonomia das pessoas, colocam-se no papel de instrumentos indutores da dependência e do espírito assistencialista. Como têm uma actuação abrangente, não há ponto do território nacional que escape ao efeito erosivo dos valores provocado por tais práticas.
Restaurar valores, ter instituições com sentido de serviço público e orientar o país para oferecer um emprego digno e gratificante a todos os caboverdianos é o caminho que deve ser trilhado para um futuro de paz, de segurança, de solidariedade e de prosperidade.
Editorial do Jornal “Expresso das Ilhas” de 25 de Janeiro de 2012

quinta-feira, janeiro 19, 2012

Memória e posteridade

As nações nos seus feriados, monumentos e símbolos como a bandeira, o hino e armas celebram a sua existência, avivam a memória e passam à posteridade o sonho de uma vida “até ao fim dos tempos”. O contrato social que une todos numa vivência comum é particularmente renovado nesses momentos em que todos se reúnem em comunhão. Faz-se então a reafirmação dos princípios basilares que norteiam a nação e justificam as instituições que medeiam a relação entre o indivíduo e o colectivo e entre governantes e governados.

Liberdade, Independência e Democracia são as grandes aspirações dos povos e nações em todo o mundo. Nos calendários nacionais são as grandes datas escolhidas para as comemorações em que toda a “polis” se reúne com uma só voz independente das suas divisões políticas ou outras no quotidiano da sua existência. Uma outra data de celebração colectiva que aparece em muitos calendários é a da Memória e Gratidão por actos superiores de indivíduos que tiveram papéis cruciais em momentos críticos da vida da nação ou, pelos seus feitos, trouxeram o reconhecimento universal da grandeza da nação. É a data dedicada aos heróis.

Em Cabo Verde, o 13 de Janeiro, o dia da Liberdade e Democracia, o 20 de Janeiro, o dia dos heróis nacionais e o 5 de Julho, o dia da independência, são os três grandes feriados civis. A celebração desses dias nacionais ainda carece da unanimidade necessária para se tornarem momentos revigorantes da república. Este ano, pela primeira vez, o Presidente da República observou com solenidade o dia 13 de Janeiro. A Assembleia Nacional, porém, ainda se recusa a referenciar o dia que marca a sua própria existência como órgão de soberania plural constituída por deputados da nação eleitos livremente em listas pluripartidárias. Uma incongruência que urge pôr um fim definitivo.

O espectro do regime de partido único ainda ensombra os caminhos que ligam o desejo da Liberdade à conquista da Independência e à instauração da Democracia. Procura apresentar-se como necessidade histórica e justificar-se com indispensável para a defesa da independência. Nada mais falso. Foi uma opção que suprimiu por 15 anos a Liberdade.

Os vinte e um anos de democracia já provaram que a Liberdade e a Independência só são preservados se os direitos do indivíduo são respeitados, se a soberania popular legitima o Poder político e se há sucesso na construção do Estado de Direito. A tragédia da Guiné-Bissau onde se misturam golpes, guerras, invasões e permanência de tropas estrangeiras é elucidativa a esse respeito. A lealdade de todos os órgãos de soberania para com os princípios que regem a república e constituem o sustentáculo das instituições deve ser claro e inequívoco. A liberdade e a estabilidade do país assim o exigem.

O dia dos heróis nacionais completa os outros dois feriados nacionais. A comemoração do dia deve ser um momento de exaltação dos valores neles consubstanciados e que levaram indivíduos em momento diferentes da história do país a fazer os maiores sacrifícios e a realizar os maiores feitos para que a Nação fosse livre e o futuro pertencesse a todos os seus filhos. Deve ser também um momento de demonstração de gratidão para os que tanto deram para a sua colectividade sem expectativa de recompensa em riquezas e poder sobre os seus semelhantes.

Editorial do jornal "Expresso das Ilhas" de 18 de Janeiro 2012

quinta-feira, janeiro 12, 2012

Falar Verdade

É preciso falar verdade, é o grito que se ouve por todo o mundo. Movimentos sociais espontâneos com o nome de Indignados ou Occupy Wall Street descrevem-se a si próprios como movimentos de pessoas que falam a verdade. Muitos governantes além fronteiras já se aperceberam que só trazendo a real situação do país para discussão na esfera pública podem esperar receber algum suporte da população nas horas críticas que espreitam à frente.

O Presidente da República na sua mensagem de resposta à apresentação dos cumprimentos de Ano Novo pelo Governo fez também a recomendação ao executivo do Dr. José Maria Neves de “explanar toda a verdade dos factos, por mais duras que sejam” para que se torne “mais célere o engajamento de todos (…) no esforço de resistência e ultrapassagem da crise”. Claramente que o Primeiro-ministro não gostou do conselho, mas o mundo hoje não se compadece com posturas de governação que primam por apresentar a situação do país em tons róseos iludindo factos concretos. Só se adia a consciência pública das coisas e não se consegue evitar o encontro muitas vezes doloroso com a realidade.

Em Novembro passado, o PM não apreciou as sugestões de política feitas pelo governador do Banco de Cabo Verde. Reagiu mal e depois não foi consequente em traduzir para o Orçamento as medidas de política que com pompa e circunstância tinha anunciado uma semana antes para o país fazer face à crise. Entretanto, desde o 1º de Janeiro os caboverdianos deparam-se com uma outra realidade derivada das restrições ao crédito impostas pelo BCV com vista a preservar reservas externas e a garantir o Acordo Cambial. Já se sabe que a economia nacional vai abrandar devido a essas restrições com consequências no rendimento das famílias e no emprego. Não se tem conhecimento é como irá o Governo contrapor ao abrandamento considerando que já atingiu os limites do endividamento público e o FMI aconselha que se mantenha as reservas externas em três meses de exportação.

O nosso sistema de governo prevê a separação e a interdependência dos órgãos de soberania. O sistema só pode funcionar se houver respeito mútuo entre os órgãos de soberania, se forem preservados os papeis de cada um dos titulares dentro do sistema e se o exercício das respectivas competências forem aceites normalmente. A reacção agastada do Sr. Primeiro Ministro ao apelo do Sr. Presidente da República para ser franco com Nação obviamente não se justifica.

Este governo já demonstrou que investiu e muito na propaganda particularmente na televisão pública. O Centro de Imagem do Governo já teve verbas em montantes quase iguais aos destinados ao Cabo Verde Investimentos para realizar acções de promoção de Cabo Verde e de atracção do investimento externo. Por conseguinte, não é um Governo estranho à tarefa de tratar informações para que a mensagem que chega ao chega ao público lhe seja o mais favorável. É do mais puro interesse público, particularmente em tempo de crise, que do mais alto representante da nação venha o apelo de se falar a pura verdade aos caboverdianos.

A tirada do PAICV de acusar o presidente da república de ser líder da oposição demonstra falta de sentido de Estado. Não se pode pôr em causa a natureza suprapartidária do cargo do presidente da república só porque convém marcar alguns pontos políticos. Nem tão pouco com esse acto arrastar o PR para o buraco da bipolarização que esvazia o debate político e retira espaço aos que tão vivamente viveram as últimas movimentações políticas e sonham com uma esfera pública menos crispada, mais plural e mais respeitadora dos factos.

Editorial do Jornal “Expresso das Ilhas” de 11 de Janeiro de 2012

quarta-feira, janeiro 11, 2012

Os militares e a Guiné Bissau

A morte do Presidente da Guiné-Bissau recentrou outra vez a atenção na questão da estabilidade desse país. A transição para a democracia na Guiné-Bissau nunca realmente foi completada. Um aspecto essencial segundo Samuel Huntington para o sucesso das transições é a subordinação do poder militar ao controlo civil. Isso nunca aconteceu na Guiné, porque nota-se claramente que a narrativa legitimadora do poder político nesse país continua a ser a luta armada de libertação. As forças armadas sentem-se como instrumento central dessa luta e não se convencem de que têm de se submeter ao poder soberano do povo investido nos seus representantes no parlamento e na presidência da república. Historicamente os militares são tentados a manter uma espécie de tutela sobre a democracia quando tinham sido os protagonistas na mudança de regime. Em Portugal, na sequência da Revolução de 25 de Abril, instituiu-se a tutela militar que só veio a terminar em 1982 com a revisão constitucional que pôs fim ao Conselho da Revolução. Na Turquia, os militares desde os anos das reformas de Ataturk, nos anos 20, até muito recentemente exerceram uma tutela apertada sobre o regime secular turco. Na Guiné-Bissau, os militares consideram-se acima do Estado porque, na narrativa dominante das FARP, são anteriores ao Estado (Madina de Boé, 1964) e constituem os instrumentos fundamentais na forja da nação guineense. Nessa medida, nunca realmente aceitaram que a legitimidade popular se sobrepusesse à legitimidade revolucionária que se lhes reconhece. Nino governou mais tempo com estabilidade porque conseguiu reunir as duas legitimidades. Fora disso, a instabilidade reina, intercalada por momentos de calmaria, em que tudo parece normalizar-se. Basta porém que se manifestem interesses outros designadamente no acesso às riquezas e favores derivados do tráfico de armas ou drogas para que se deflagrem conflitos à vista de todos e o poder civil se mostre completamente impotente perante os acontecimentos. A narrativa da luta de libertação que confere direitos especiais aos combatentes, tornou reféns os países recém-independentes. A narrativa justifica os regimes de partido único e porque postula uma diferença como disse Amilcar Cabral entre o “povo” (todo aquele que está com o partido) e a “população” (tudo o resto) é a fonte principal do conflito interminável que reina na sociedade. A crispação resulta da pressão inexorável do “povo” em fazer-se coincidir com a “população”. Há aí margem para toda a espécie de violência, enquanto se procura convencer toda a gente. Quando o regime se torna multipartidário não há realmente a aceitação do outro, pois insiste-se nas prerrogativas dos “libertadores” e os princípios de legitimidade popular e de separação de poderes só são aceites com um grano salis e enquanto convenientes. A meio da luta política renhida todos podem ser alvos, as câmaras da oposição e o próprio presidente da república. Esses países, para realmente se estabilizarem, têm que se libertar da chantagem dos libertadores. O exemplo em discrição vem de há mais de 300 anos. George Washington retirou-se ao fim de um segundo mandato para que o peso da história que transportava não condicionasse a voz do povo nas urnas. Por essa e outras razões foi possível substituir a narrativa da luta pela independência pela a narrativa liberal e democrática da república dos homens livres cujos direitos são inalienáveis e onde a legitimidade do exercício do poder do Estado provém de eleições livres e plurais e do cumprimento da LEI. É o que a Guiné deve fazer para poder reinar sobre os seus militares e ganhar a estabilidade.

segunda-feira, janeiro 09, 2012

Estranhas opções

O actual Ministro das Infraestruturas e Economia Marítima, segundo relatos da imprensa, foi indigitado pelos colegas do partido para ser candidato à câmara de Santa Catarina. Há menos de um ano foi nomeado para presidir à criação de dois dos quais clusters propostos pelo governo. Eis que agora é chamado para a autarquia. A qualquer pessoa causa perplexidade esse aparente jogo de cadeiras em que todos parecem candidatos a tudo. Um jogo que absorve e distrai o país e as instituições fazendo-os mergulhar num frenesim primeiro pré-eleitoral e depois eleitoral. E estão em todas as eleições, sejam as suprapartidárias do presidente da república, sejam as locais para eleger presidentes de câmara. O Ministro já de saída para concorrer em Assomada, levou basicamente os primeiros meses do seu tempo no governo concentrado nas presidenciais como, aliás, todo o Governo, a começar pelo Primeiro-ministro. A pergunta que se coloca é onde fica a governação em tudo isto. Claramente que sofre com as mudanças, com a instrumentalização partidária dos meios e com a programação feita para responder a necessidades eleitorais imediatas e não as programadas para o fim da legislatura. É natural também que, sem programação e esforço continuado e sistemático para criar vontades políticas, a governação dependa cada vez mais da propaganda para fazer vingar os seus pontos de vista. É o que tem vindo a verificar. Questão porém outra é o que fazer desta remodelação já anunciada. Será simplesmente uma questão autárquica ou está-se à procura de um pretexto para afastar o Ministro? Independentemente das razões, o que se segue é paralisia ou, no mínimo, uma letargia num sector que todos consideram chave para a economia. Com o sector financeiro afectado pelos escândalos e agora com outros dois sectores considerados para a economia real a marcar passo é de se perguntar como o país vai enfrentar as dificuldades crescentes causadas pela crise.

domingo, janeiro 08, 2012

Delegado do Governo?

O Primeiro Ministro, na apresentação da Dra. Filomena Vieira como candidata a presidente da Câmara diz que São Vicente precisa de um discurso “competente e responsável” para reivindicar para a ilha. Curiosa essa noção do Poder Local que parece resumir-se à capacidade de reivindicar recursos de um poder centralizado. Não se sabe onde ficam a lealdade institucional e o respeito pela autonomia local que a Constituição impõe nas relações entre o governo e as câmaras, nem tão pouco a justa repartição dos recursos do Estado que deve acompanhar a assunção plena das atribuições e competências pelas autarquias. Mas, segundo o PM, o que importa é ter “bom discurso e boa ambição”. E a candidata esclarece o significado dessa frase dizendo que “São Vicente precisa mais do PAICV do que o PAICV precisa de São Vicente”. Ou seja, há que alinhar com o PAICV para que São Vicente ganhe. Nessas frases, fica clara a relação paternalista e de subjugação que o PAICV entende deva existir entre o governo e as câmaras e compreende-se muito do marasmo que passa por São Vicente na última década. Assim como também se compreende a perda de muitas oportunidades e a falta de investimentos no tempo certo e devidamente encadeados num quadro estratégico de restauro de dinâmica à ilha. O PAICV sempre quis que São Vicente soubesse que sofria com a sua teimosia em eleger câmaras de cor política diferente. Ao longo de todos estes anos em que se acendiam e se apagavam esperanças em São Vicente, decorria, de facto, um jogo de “gato e rato” para forçar as escolhas dos munícipes. Em 2000, o PAICV chamou de São Tomé ao trabalho gerado pelas fábricas do Lazareto. De seguida, já no governo, fez desaparecer por vários anos o investimento externo na ilha com perda de milhares de empregos. Para ganhar as eleições, em 2005, acenou com o projecto de porto de águas profundas e do aeroporto. Depois, em 2007, foram os projectos de hotéis e resorts no valor 3 biliões de dólares, segundo o então Ministro de Economia, José Brito. O porto prometido ficou pelas intenções, o aeroporto foi inaugurado quando já a bolha imobiliária tinha arrebentado e os projectos turísticos perderam-se nos múltiplos atrasos gerados pela inércia, ganância e a luta partidária do Governo nas eleições autárquicas de 2008. São Vicente terminou a década com a maior taxa de desemprego do país, uma situação social crítica e um espírito cansado pela falta de perspectiva do governo quanto ao desenvolvimento da ilha. Agora vem o primeiro-ministro dizer que a solução para ilha é simplesmente render-se a um “delegado do governo” cujas reivindicações, porque acompanhadas de “generosidade, do espírito da paz e de um bom sorriso” serão admitidas. Espantoso como, mais uma vez, se reforça a crença que o problema de Cabo Verde é redistributivo. Ou seja, que se trata simplesmente de relocalizar recursos que estão algures e cada um tomar o seu quinhão. Que para isso, dependente do ponto de vista, a solução passa por descentralizar ou por criar câmaras alinhadas com o Governo. Ao alimentar essa perspectiva indigente de desenvolvimento, o Governo procura fugir da responsabilidade de fazer crescer o país de forma a criar empregos sustentáveis e de qualidade, ao mesmo tempo que reproduz a mentalidade assistencialista e de dependência que tão bem serve os seus desígnios de poder. A partir desta posição, pode tranquilamente punir municípios sonegando recursos, criar poderes paralelos aos órgãos autárquicos eleitos nas entidades ad hoc que subsidia directamente e desencadear campanhas de sedução para atrair votantes. São Vicente depois da punição, vai agora ser submetida a ondas sucessivas de sedução para disfarçar a capitulação a quem, com as suas opções centralizadoras e controladoras, roubou à ilha oportunidades para desencadear a dinâmica, a autonomia e a voz própria necessárias para reequilibrar o país e acelerar o seu crescimento. A sequência de acontecimentos na última semana que culminou com apresentação da candidatura do PAICV relembra tácticas anteriores: a pressão perseguidora fez-se sentir outra vez sobre Isaura Gomes e acenou-se São Vicente com glórias passadas baptizando o navio Guardião na ilha, não obstante a sede da Guarda Costeira se situar na Praia, enquanto o PM deixava claro que só haverá progresso para ilha com unidade de todos “cristãos e protestantes” e “gentes de todas as cores” na candidatura do PAICV.

sexta-feira, janeiro 06, 2012

Criminalidade sobe

O aumento em 7 porcento da criminalidade em Cabo Verde parece que apanhou o Governo de surpresa. O Primeiro-ministro desdobrou-se logo em visitas às polícias e outras estruturas de segurança e convocou o conselho de ministros especializado para discutir o aumento da criminalidade violenta e do crime organizado. Em declarações à imprensa, vai já fazendo as manobras políticas habituais de assumir a parte que pode reivindicar algum sucesso (crime organizado) e considerar que a outra parte (delinquência juvenil e violência urbana) é culpa dos outros ou então o governo compartilha responsabilidade com as famílias e a sociedade, mas vai relembrando logo que o Governo tem cumprido a sua parte. Posto assim, o problema é outra vez relegado para o segundo plano à medida que a notícia sobre o aumento da criminalidade perde novidade. Questões subjacentes são varridos para debaixo do tapete e tudo volta ao normal, até haver um nova revelação e se assistir a mais teatro. Entretanto, as forças de segurança continuam a adquirir mais meios físicos e humanos sem que se veja que os seus métodos são melhorados, os problemas identificados e há uma estratégia de intervenção que garante resultados permanentes. De facto, não inspira confiança quando mesmo medidas básicas de prevenção de suicídio falham como no caso de segunda-feira à noite de um preso por homicídio acabado de sair do hospital por tentar se matar. Também preocupam as denúncias de corrupção e de tráfico que podem indiciar infiltração das instituições de segurança e ainda os abusos de poder com violência sobre os cidadãos referenciados por organizações nacionais e estrangeiras. O Sr Presidente da República na semana passada chamou a atenção da polícia para a “violência que não obedece aos sempre exigidos critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade, praticada em algumas esquadras policiais”. O governo tem que cuidar da capacitação estratégica e organizacional da Polícia de forma a responder à complexidade dos problemas sem que tenha de enveredar pelo caminho dos excessos de violência, pela utilização indevida de unidades especiais e pela atitude confrontacional com a população. Há que conseguir eficácia no policiamento e na luta contra a criminalidade tendo sempre presente que os recursos são ilimitados e os direitos dos cidadãos não podem violentados.

quinta-feira, janeiro 05, 2012

2012: o ano do ajuste

2012 não vai se revelar o ano cataclísmico previsto no calendário dos Maias, mas certamente que será uma ano difícil. A crise mundial ainda não percorreu o seu curso completo e sobressaltos, surpresas e desenvolvimentos inesperados devem ser esperados. Em Cabo Verde o ano inicia-se com as restrições ao crédito impostas pelo Banco Central no intuito de preservar três meses de reservas externas e salvaguardar o Acordo Cambial.

Pelo mundo fora, nestes primeiros dias do ano, a mensagem que mais se ouve é que sacrifícios devem ser feitos para que as dívidas se tornem sustentáveis e os caminhos de crescimento sejam retomados. O previsto abrandamento da economia mundial poderá mais ser mais profundo em consequência de programas nacionais de austeridade, de convulsões sociais e de perturbações geopolíticas com efeitos no preço do petróleo e no comércio internacional. Adoptar a atitude adequada face às muitas incertezas é o grande desafio que se coloca a todos os povos e seus governantes.

Parece claro que o mundo entrou num “tempo de vacas magras” e sem ter feito as necessárias reservas nos momentos bons. Sobreviver e vencer no ciclo actual irá exigir contenção séria nos hábitos e nos gastos, procura fincada de eficiência e ganhos significativos de produtividade. Fundamental para que o esforço de todos resulte, é ter-se instituições de alta qualidade, um Estado comprometido com a economia, o crescimento e o emprego e, também, governantes com profundo sentido do serviço público que não se esgota no desejo de manter o poder a todo o custo.

A qualidade das instituições vê-se designadamente na sua capacidade de se manterem focalizados na sua missão, livres de conflitos de interesses e fiéis ao ambiente regulatório envolvente. Os acontecimentos recentes que já levaram à prisão do Presidente da Bolsa de Valores e prometem respingar em outras entidades públicas, interpelam a todos quanto ao real nível das nossas instituições. Deve preocupar a todos as persistentes notícias sobre a droga e tráfico envolvendo pessoas ligadas a vários serviços estatais. A aparente corrupção que é aí referida pode não ser tão pequena e até confirmar uma certa infiltração do aparelho do Estado a todos títulos indesejável.

O comprometimento do governo e do estado com a economia deve fazer sentir-se, em particular, no nivelar do terreno com oportunidades para todos, na fixação das prioridades e na preocupação de ter tributação justa de pessoas e empresas conjugada com esforço visível de melhoria da qualidade das despesas. Se, pelo contrário, as empresas nacionais sentem-se preteridas e também sobrecarregadas por uma administração fiscal com propósitos unidimensionais de cobrar e a lidar com serviços pouco sensíveis aos custos induzidos, quebra-se a solidariedade que o momento exige. Da parte dos trabalhadores tem que existir a percepção de que os sacrifícios consentidos irão resultar em crescimento do emprego tanto em número como em qualidade.

Vulgariza-se, em certas paragens, a ideia de que as tarefas de governação deviam ser entregues a tecnocratas. A Itália pós-Berlusconi seria o exemplo disso. A realidade é que não se pode sacrificar a democracia com a panaceia da tecnocracia. Os governantes têm mandatos fixos de quatro ou cinco anos para cumprir as promessas eleitorais e devem escalonar a sua actuação de forma a serem efectivos e eventualmente serem reeleitos. Não podem optar por estar em campanha eleitoral permanente e desculparem-se por não tomar medidas certas e atempadas por receio de alienação do eleitorado. O sentido do bem servir o interesse público deve poder sobrepor-se aos interesses partidários do momento.

As crises têm o condão de levar as pessoas, a sociedade e os governos a fazerem um ajuste com a realidade tanto nas expectativas como nas promessas. O ajuste que vem aí é inevitável e incontornável. Só se espera que não seja traumático e realmente eleve a contribuição de todos para um outro patamar. Do esforço que se vier a fazer dependerá a capacidade do país em enfrentar as dificuldades do momento e em singrar com sucesso no futuro próximo.

Editorial do jornal “Expresso das ilhas” de 4 de Janeiro de 2012

quarta-feira, janeiro 04, 2012

Mensagens díspares

As mensagens do fim do ano do Presidente da República e do Primeiro Ministro denotam duas atitudes distintas em relação aos problemas do país. O PM muito no seu timbre exacerba a percepção que, via vários indicadores, certos sectores da comunidade internacional convenientemente querem alimentar sobre Cabo Verde. Também quer que os caboverdianos aceitem a visão que os outros pretendem ter do país pondo de lado a sua vivência e a experiência colhidas no dia-a-dia. Assim, o Primeiro-ministro pretende que se engula a ideia de que Cabo Verde é uma democracia acima de Portugal, e outros países com instituições democráticas mais antigas e consolidadas e com um ambiente sócio-económico de longe mais propício para a dinâmica democrática. Quer que se acredite que há aqui maior liberdade de imprensa do que em países com uma sociedade civil possante e autónoma e com meios de comunicação privados que ao contrário do que se passa em Cabo Verde têm mais audiência do que os públicos. Quer ainda que se acredite que Cabo Verde passou ao lado da crise por sua capacidade endógena de crescimento, quando é ele próprio que extrapola as vantagens do MCA mesmo reduzido à metade do primeiro. E quando todos notam que, atingidos os limites do endividamento, o BCV impõe restrições ao crédito para conter a erosão das reservas externas. Já o Presidente da República afirma que a nação precisa saber onde está para poder saber como agir para o futuro. E aconselha ao Governo “comunicações francas para cabal informação da real situação do País”. Continua, dizendo que “numa altura como esta é preciso explanar toda a verdade dos factos, por mais duras que sejam”. O Presidente da República considera que só assim “se torna mais célere o engajamento de todos (…) no esforço de resistência e ultrapassagem da crise”. No passado recente, todos puderam ver repetidamente o filme de governos a pintar de cores róseas situações que depois vieram revelar-se problemáticas, se não mesmo catastróficas. O Portugal de Sócrates foi isso e agora o povo português como, aliás, o grego, o espanhol, o italiano e o irlandês pagam na pele euforias deslocadas. É preciso que se deixe de ver a política como uma espécie de jogo onde o que vale é fazer-se eleito não olhando a meios. E, quando a realidade cai em cima, afastar a responsabilidade com a desculpa de que “do lado do Governo fez-se tudo”mas que a sociedade, as empresas ou os trabalhadores falharam, como se, a par do governo da república, existisse um “lado dos outros”.

terça-feira, janeiro 03, 2012

Símbolos e regimes

Na reportagem da tomada de posse do Chefe de Estado Maior das Forças Armadas a câmara da RTC não deixou de parar por um breve instante sobre o quadro de Amílcar Cabral no salão nobre da presidência da República. O retrato mostra Amílcar Cabral vestido de camuflado militar com pistola à cintura. O poder simbólico do quadro mostrou-se mais uma vez, talvez mais por se destoar completamente dos princípios actuais da república. Foi colocado na presidência da república quando vigorava o regime de partido único. A legitimidade do regime derivava da luta armada do PAIGC na Guiné cujo líder tinha sido Amílcar Cabral. Natural que, de entre os muitos retratos dele com outras indumentárias, se escolhesse a da imagem do militar. Condiz com a ideologia revolucionária que, segundo Mao Tse Tung, proclama que o “poder político está na ponta da espingarda”. Na II República porém o poder político emana da vontade soberana do povo expressa de forma livre e plural. A presença do símbolo no coração da presidência não faz sentido particularmente no acto de nomeação do Chefe das Forças Armadas pelo presidente eleito pelo povo. A nomeação do CEMFA é um acto de extrema importância porque afirma, perante toda a nação, a subordinação dos militares à autoridade civil legitimamente constituída. Mais, transmite aos militares a mensagem que não constituem uma milícia ou braço armado de quem quer que seja e que devem lealdade absoluta à Constituição. Os símbolos da República e da soberania nacional são a Bandeira, o Hino e a Armas nacionais, assim como está estabelecido no artigo 8º da Constituição. De acordo com a tradição republicana, a única imagem permitida nas estruturas do Estado é a do Presidente, porque só ele representa interna e externamente a República. Há que repor a legalidade e a coerência de princípios.

sexta-feira, dezembro 30, 2011

2011 em perspectiva

2011 ficou marcado por três fenómenos de grande impacto: a primavera árabe, o agravamento da crise da dívida soberana e o protagonismo dos países emergentes. Os movimentos para a dignidade e contra a corrupção nos países árabes derrubaram tiranos e agora ensaiam passos de democracia, lidam com islamistas e reorientam-se para confrontar problemas existenciais colocados pelos dois estados teocráticos da região: o Irão e a Arábia Saudita, e também por Israel. A dívida soberana na Europa conheceu outros desenvolvimentos que ameaçam a economia mundial e o euro como moeda da União Europeia. A dinâmica dos BRIC´s aliviou os efeitos globais do abrandamento económico na Europa, América e Japão mantendo um volume expressivo do comércio internacional e estimulando exportações e investimentos em muitos países, designadamente, africanos.

De permeio, os Estados Unidos abriram espaço para um outro reposicionamento do país no mundo com a restauração da credibilidade perdida nos anos Bush, a retirada dos soldados do Iraque e do Afeganistão e o uso de novos métodos e alianças na luta contra o terror e o narcotráfico demonstrados no caso de Bin Laden. O Médio Oriente ficou refém das pretensões nucleares do Irão e da arrogância do novo governo de Israel que o impossibilita a qualquer tipo de negociações com os palestinianos. E a Europa tida como o exemplo de diminuição da desigualdade social e de promoção do Estado Social depara-se com um dilema: ou faz regredir o projecto europeu com uma Europa a duas velocidades; ou, em sentido inverso, aprofunda-o avançando para uma união fiscal com emissão de títulos de dívida europeus (eurobonds) e o estabelecimento pleno de um banco central europeu.

Em Cabo Verde, 2011 poderá vir a revelar-se um ano charneira em como o país vê-se a si próprio ou é visto pelos outros. As duas eleições nacionais, legislativas e presidenciais, desfasadas em seis meses, abriram portas que fazem antever novas dinâmicas no futuro.

O PAICV conseguiu um inédito terceiro mandato que rapidamente se tornou venenoso quando ficou evidente que não trazia soluções frescas em particular para os problemas de energia e água. A perda de capital político acelerou-se com o envolvimento do governo nas eleições do presidente da república e com a gestão desastrosa das ambições de colegas do partido a esse cargo suprapartidário. O descrédito maior surgiu quando promessas eleitorais reiteradas, o 13º mês e ajustes salariais, feitas em plena crise internacional não foram cumpridas. Por pura conveniência, invocam-se razões da crise anteriormente negada.

O MpD procura ainda encontrar-se na sequência de umas eleições legislativas que podia ter ganha. Os sinais de cansaço da governação do PAICV neste terceiro mandato, em retrospectiva, deixam transparecer que o país já pedia um governo mais fresco. Os resultados das presidenciais demonstram que era possível mobilizar o descontentamento popular para renovar a liderança e a orientação do país.

O aprofundamento da crise internacional faz notar que os remédios do antigamente, presentes nos donativos, empréstimos concessionais e ajudas em geral não são suficientes para garantir o crescimento com emprego de qualidade. A redução para quase metade dos fundos do MCC constitui um aviso sério. Também sério é a dificuldade em atrair investimentos privados nacionais e estrangeiros. A falta de competitividade externa aí revelada obriga a que sejam revistas orientações e medidas de política e definidas outras prioridades nos investimentos públicos para se garantir eficiência e eficácia na consecução de objectivos nacionais traçados.

Espera-se que em 2012 se inaugure uma nova atitude face aos extraordinários desafios que se colocam ao país nesta crise sem fim à vista. Tapar o sol com a peneira e deixar-se enganar pela imagem sedutora do país que se projecta lá fora não são opções a continuar. As pessoas, a sociedade e o país só irão unir-se para responder aos desafios se sentirem que a clareza de objectivos, a verdade e a honestidade irão prevalecer sobre o imperativo de manter o Poder a todo o custo.

Editorial do jornal “Expresso das ilhas” de 28 de Dezembro de 2011

quarta-feira, dezembro 28, 2011

Conflito de interesses e fraqueza institucional

O Primeiro Ministro declarou à RTC, referindo-se à prisão de Veríssimo Pinto, o Presidente da Bolsa de Valores, que esse “facto engrandece Cabo Verde porque apresentamo-nos ao mundo como um país onde as instituições funcionam, onde ninguém está acima da Lei”. Não é esse o pronunciamento que se esperava do sr. PM. Há vinte anos que Cabo Verde é um Estado de Direito e ninguém está acima da lei. Por aí não há nenhuma novidade. O problema que o país confronta hoje e que do exterior também se coloca é como o dirigente máximo da instituição Bolsa de Valores alegadamente envolveu-se em situações que a olhos do público estarão relacionadas com o narcotráfico e a lavagem de capitais. A fuga em frente do Sr. Primeiro-ministro não colhe. Há que dizer o que correu mal e assumir as responsabilidades. As instituições no sector, seja pela imaturidade, inadequação das salvaguardas quanto a conflitos de interesses ou ainda pela fragilidade de supervisão e de regulação, deixaram-se envolver em situações pouco claras. O escândalo do BPN e do Banco Insular parece não ter sido suficiente para fazer as autoridades exigir mais rigor, evitar conflitos de interesses e apertar a supervisão sobre o sistema financeiro. O Governo simplesmente preferiu seguir os conselhos do FMI para pôr “em banho-maria” os offshore e a praça financeira porque havia o risco de o país perder mais em imagem do que ganhava com esse projecto. Mas ficou por aí. Com a crescente dinâmica da Bolsa de Valores deixou-se levar pela euforia e não acautelou situações potencialmente complicadas. Um exemplo é a presença de membros do governo e do próprio PM em momentos de lançamento de obrigações de empresas privadas. Um outro aspecto curioso é que aparentemente não obrigou que se cumprisse o disposto nos artigos 10 e 11 do decreto-lei 49/98 quanto à conduta do pessoal da bolsa. “Devem exercer a actividade profissional com observância dos mais rigorosos princípios de integridade, isenção…” e estão impedidos de prestar a terceiros “consultadoria no âmbito de valores mobiliários”. O presidente da Bolsa de Valores também não pode “exercer qualquer actividade pública ou privada, ainda que meramente consultiva, à excepção de actividade docente...”. É facto público e notório o protagonismo do presidente da bolsa na promoção das emissões de obrigações. Como também é público a sua participação na administração de uma empresa privada. Comprometidas as salvaguardas legais no domínio do conflito de interesses, fica pouca margem para se prevenir situações mais graves. Falta perguntar o que tem sido a intervenção do Banco de Cabo Verde enquanto autoridade de supervisão e regulação do sector financeiro. Será que a sua actuação também esteve comprometida? Como explicar o facto de os mandatos dos administradores do BCV e do próprio governador só terem sido renovados em Maio de 2010, depois de terminados os respectivos mandatos 3, 2 anos antes para alguns administradores e nove meses depois para o Governador. Que razões justificam a inacção do governo nestes casos e também no caso do pedido de demissão de Veríssimo Pinto? Não se pode ignorar que assim fragilizam-se instituições das quais todos – cidadãos, operadores económicos e investidores esperam que ajam com independência e no respeito pelo interesse público. Tais acções e omissões não podem ser consideradas inocentes e responsabilidades devem ser assacadas.

segunda-feira, dezembro 26, 2011

Limites da estratégia de “fazer para inglês ver”

O MCC decidiu, no dia 15 de Dezembro, por um segundo donativo a Cabo Verde no valor de 66,2 milhões dólares, quase metade dos 110 milhões de há sete anos. O montante ficou muito abaixo ainda das expectativas do Sr. Primeiro Ministro que peremptoriamente, há um ano atrás, afirmava que o II compacto do MCA não seria nunca inferior ao valor do primeiro. Pela imprensa na época, em plena campanha eleitoral, circulou que o valor iria situar-se à volta dos 200 milhões de dólares, havendo quem aventurasse em possíveis 300 milhões. A quebra nas expectativas levou o PM a procurar razões na crise como habitualmente faz quando as coisas não correm de feição ou certas promessas eleitorais ficam por cumprir. A baixa no donativo não impediu porém o PM de persistir na ideia de que boa “governação” é o petróleo de Cabo Verde. Toma-se o que é instrumental (governance) como fim a atingir (desenvolvimento). Na realidade crescimento implica funcionamento adequado das instituições que transmita confiança, obriga à prestação de contas, assegura justiça em tempo útil e garante que o processo de tomada de decisões respeite o processo democrático. Desconfia-se que não há muita boa governança quando, o país mesmo, em tempo de boom mundial (2006-2007) aproveita tão pouco e o governo já tem mais de 11 anos a tentar pôr o sector de água e energia a funcionar. Também algo vai mal se o espírito assistencialista aumenta no país e se o Governo deliberadamente põe à frente das instituições que servem vulneráveis ou grupos sociais relevantes (FICASE, ICIEG, FCS, Juventude, Luta Contra a Pobreza, programa de Coesão Social, etc.) futuros candidatos a deputado ou a presidente da câmara, ex- membros do governo, ex-deputados e notórios activistas partidários. A Sra. Petra Lantz certamente dirá que não foram com essas práticas que a Suécia se tornou um país desenvolvido. Governar “para inglês ver” e comparando-se com os piores para melhor aproveitar do relativismo paternalista dos doadores que faz comparação com os piores nunca foi o caminho certo para se chegar ao porto da desejada sustentabilidade e dinâmica económica. Mais cedo ou mais tarde virão os cortes na ajuda. Até lá perde-se tempo e oportunidade crucial para se construir uma base sólida para o futuro, enquanto se utilizam doações para ganhar eleições, consolidar o poder e reproduzir o espírito de dependência nas populações.

domingo, dezembro 25, 2011

Cesária: A revelação de Cabo Verde ao mundo

Morreu a Cesária. Cabo Verde está em choque. De todos os continentes e culturas das mais diversas vêm gestos de pesar e de tristeza pelo passamento da cantora.

Compreende-se que assim seja. É um facto que pessoas das mais diferentes vivências, culturas e níveis de exposição ao Mundo sentem-se tocadas profundamente pela voz sublime da Cesária e gratas pela experiência única de a escutar. Em muita gente cons¬tate-se que, ao deslumbre nas actuações da Cesária, segue-se uma curiosidade, quase fascínio, por conhecer a cultura e alma do povo Caboverdiano. Querem saber de que húmus emanam as suas can¬ções e de onde retirou a vivência profunda e marcada que a sua voz tão bem transmite.

Com Cesária as pessoas comuns em todo o mundo passaram a saber da existência de Cabo Verde e dos caboverdianos. Através dela e da morna, o seu género musical de eleição, intuíram a experiência humana verificada durante séculos nas ilhas de Cabo Verde. Umas Ilhas periodicamente fustigadas pela fome e não poucas vezes dei¬xadas isoladas no meio do Atlântico a caldear os ingredientes de uma nova Nação. Europeus, asiáticos, americanos japoneses, latinos e africanos no final dos concertos ou após ouvir um CD sentiam-se tocados pela Cesária e pela morna. Com isso os caboverdianos pas¬saram a saber que tinham sido capazes de produzir no seu cadinho de civilização algo universalmente válido.

Em 1987 com o festival da World Music (música do mundo) foi desencadeado um processo que caminhando, a par e passo com a aceleração da globalização, abriu sensibilidades das mais díspares a géneros musicais vindos de todo o planeta.

Instrumental para isso foram os novos produtores. Surgiram para ajudar muitos artistas na realização do sonho de atingir audiências variadas e universais. A Cesária teve a sorte extraordinária de ter o caboverdiano Djô da Silva como seu produtor. No album "Miss Perfumado" a convergência de talentos na Cesária e no Djô já produzia resultados surpreendentes cujo retorno para o país, para os artistas e para a nação caboverdiana se revelariam incalculáveis.

Nos 20 anos de carreira artística internacional, Cesária Évora encheu de orgulho os corações dos caboverdianos. A sua voz fez o mundo inteiro apreender as nuances da vivência caboverdiana, como era testemunhada por homens simples nas décadas 40, 50, 60 e 70 que nas horas de lazer cantavam as alegrias, as tristezas, os amores, a vontade partir e a sodade da terra, da mãe e da cretcheu. No meio cosmopolita de São Vicente germinaram as mornas de B.Leza, Amândio Cabral e Lela de Maninha e as coladeras de Ti Goi, Frank Cavaquinho e Manuel d'Novas que Cesária levaria a todos os grandes palcos e revelaria Cabo Verde ao mundo.

No momento de tristeza de despedida da Cesária é fundamental lembrar a sua alegria de viver apesar das terríveis provações que teve de passar ao longo da vida. Lembrar que apesar do muito que lhe foi retirado, conservou sempre a capacidade de dar. A sua oferta maior ao mundo é o Cabo Verde de todos nós e de todas as gerações antes de nós.

Com Cesária e Djô da Silva devemos retirar a convicção de que temos algo de novo e valioso a dar desde que potenciemos o talento e a criatividade das nossas gentes. E que o sucesso estará ao nosso al-cance se aproveitarmos devidamente as oportunidades que surgem e criarmos o nível de organização com sentido de eficácia para extrair o maior retorno de todas as iniciativas e empreendimentos.

O momento é de celebração da vida da Cesária que hoje sobe ao panteão dos intelectuais, de homens e mulheres simples que con¬tribuíram para a nação caboverdiana se sinta digna, una, dinâmica e com confiança no devir.

O jornal Expresso das Ilhas apresenta as suas sentidas condolências à família, aos amigos e colaboradores da Cesária.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 21 de Dezembro de 2011

quinta-feira, dezembro 15, 2011

Direitos humanos: avanços e resistências

O Presidente da República, no dia da comemoração do 63º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, fez um apelo ao abandono da arquitectura de indiferença que ainda impede o pleno respeito pela dignidade humana independentemente de quem é o seu portador. Um apelo que relembra a todos que a luta pelos direitos fundamentais do indivíduo não terminou, não obstante os avanços extraordinários já conseguidos pela humanidade desde a declaração francesa dos direitos humanos e do cidadão de 1789, da Bill of Rights americana de 1791 e da proclamação dos direitos humanos pela ONU em 1948. Para o PR, a defesa dos direitos humanos, nos dias de hoje, significa manter a capacidade humana de projectar uma sociedade universalmente inclusiva face aos perigos de erosão que, sob múltiplos disfarces, espreitam para atacar.

A conquista dos direitos humanos e civis ao longo dos dois últimos séculos não tem sido fácil. Caminhos tortuosos foram percorridos, guerras travadas, vidas sacrificadas e actos de heroísmo inacreditáveis cometidos. A saga pela realização plena dos direitos civis nos Estados Unidos, desde a adopção da Carta de Direitos, onde se inclui uma guerra civil brutal, o fim da escravatura e processos muitas vezes dolorosos e violentos de conquista de direitos de cidadania pelas mulheres e por grupos minoritários, ilustra, de forma dramática, o esforço da humanidade em todos os continentes para colocar, no centro de tudo, o respeito pela dignidade do indivíduo.

Por outro lado, a ascensão de regimes totalitários de inspiração comunista ou fascista no século vinte chama a atenção para o perigo extraordinário de se colocar a "razão" do Estado acima da dignidade e dos direitos inerentes à condição humana. Os muitos milhões de vítimas do comunismo e do fascismo que sofreram privação da condição de cidadão, prisões arbitrárias, torturas, mortes na prisão e genocídios são testemunhas eloquentes do que acontece quando o indivíduo fica completamente à mercê do Estado.

A adopção da Constituição de 1992, na sequência das eleições multipartidárias de 13 de Janeiro, consagrou, pela primeira vez na Lei Fundamental caboverdiana, os ganhos de civilização no domínio dos direitos humanos acumulados pela humanidade em mais de duzentos anos de experiência democrática. Iniciou-se aí um processo de alteração na relação entre o Estado, o indivíduo e o cidadão que, embora já tenha percorrido muito caminho, falta muito para atingir o ideal estabelecido na Carta Magna. Resistências múltiplas de natureza institucional, comportamental e de cultura política ainda inquinam a relação do Estado com o indivíduo, o cidadão e a sociedade.

Cabo Verde, nos setenta anos que antecederam o advento da democracia, sofreu o impacto de dois regimes ditatoriais: o salazarismo e o partido único pós-independência. O aparelho do Estado ainda apresenta as marcas da cultura política do passado. O paternalismo, a promoção activa do assistencialismo, a violência policial e a insensibilidade na prestação de serviço público a utentes são reminiscentes desse passado autoritários e de reduzido espaço individual. O combate hoje pelos direitos humanos passa por vencer a inércia instalada, por mostrar indignação perante abusos de Poder, por alargar a participação cidadã e por desenvolver uma estrutura produtiva que elimine a pobreza, viabilize uma classe média e sustente uma sociedade civil realmente activa e autónoma.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 14 de Dezembro de 2011

terça-feira, dezembro 13, 2011

O dilema; “receber” ou "ser"

Na sexta-feira passada a União Europeia (UE) garantiu a produtos caboverdianos acesso preferencial ao seu mercado no quadro do Sistema Geral de Preferências GSP+. Cabo Verde teve acesso sem quota e a tarifas zero ao mercado europeu até o ano 2008 em foi que foi graduado a País de Rendimento Médio. Seguiram-se três anos de transição que terminam no fim deste mês de Dezembro. Com o GSP+ as prerrogativas vão continuar. A questão que se coloca é o que se fez durante todos esses anos de acesso privilegiado ao vastíssimo e rico mercado europeu. O Governo não fez o balanço no sentido de como se têm comportado as exportações caboverdianas no quadro das facilidades anteriores nem muito menos revelou uma estratégia de aproveitamento das vantagens ora proporcionadas. Bem no seu estilo tomou a oferta como um ganho na competitividade externa do país mesmo sabendo que não resulta do aumento da produtividade nacional mas sim da generosidade de quem se abstém de cobrar tarifas de produtos caboverdianos importados. Os países mais desenvolvidos encaram os acessos preferenciais aos seus mercados como uma forma dinâmica de ajuda ao desenvolvimento. A Europa e o Japão depois da segunda guerra mundial e os países do sudeste asiático posteriormente nas décadas de setenta e oitenta beneficiaram extraordinariamente do acesso privilegiado ao enorme mercado americano. Hoje são todos países desenvolvidos. A própria China que há três décadas vegetava na pobreza extrema agora é a segunda economia do mundo graças à reorientação do sector produtivo para exportação. È a constatação do sucesso desses países e a esperança de que pode acontecer a outros que anima a União Europeia em garantir estatutos GSP e GSP+ e os Estados Unidos em criar programas como o AGOA. A dificuldade porém surge quando os governos estão realmente interessados em donativos e não em comércio, exportações e acesso a mercados. Viu-se a alegria como o Governo do Dr. José Maria Neves tomou o donativo do MCA e a frieza com que sempre tratou o AGOA. A inércia do Governo no caso da FRESCOMAR é ilustrativo. Os operadores na empresa fizeram o investimento porque a UE garante acesso preferencial que torna os produtos competitivos. Mas põe a condição do peixe a ser enlatado ser pescado por caboverdianos explorando os recursos marinhos do países. Até se conseguir fornecer a fábrica com pescado caboverdiana permite por um período certo que importem peixe da China, Marrocos e outros países. Satisfeito com o que lhe é dado o Governo não desenvolve a actividade pesqueira no país não estimula empresas locais nem capacita pescadores. Resultado 15 toneladas de peixe por dia que a FRESCOMAR processa por dia e que podia ser comprado a operadores nacionais são em grande parte importado do exterior porque não há oferta local de peixe. Um dia o prazo dado pela EU chega ao fim e soam todos os alarmes e outra vez vai-se pedinchar para provavelmente continuar a fazer o mesmo. De forma muito diferente comportaram-se alguns países africanos beneficiados no quando de AGOA. Aproveitaram o acesso privilegiado para lançarem um programa de atracção de capitais externos interessados na colocação dos seus produtos nos mercados certos. Potencia-se o investimento externo se em simultâneo densifica-se o tecido empresarial nacional fornecendo bens e serviços às empresas instaladas. Entretanto criam-se as condições para privados nacionais tomarem conta do negocio a exemplo do aconteceu noutras paragens designadamente as Maurícias. O que não se pode ad aeternum esperar que benefícios de hoje sejam substituídos por benefícios de amanhã porque “exportamos credibilidade”.

segunda-feira, dezembro 12, 2011

Memórias convenientes

Na controvérsia à volta da decisão da Universidade do Mindelo em homenagear o professor doutor Adriano Moreira com o título de doutor “honoris causa” esgrimiram-se memórias. Os ex-presos políticos lembraram-se de quem assinou a reabertura da prisão do Tarrafal como campo de trabalho. O Primeiro Ministro desviou o assunto com lembranças de quem ajudou na aproximação à Europa no quadro da parceria especial. O Presidente da República absteve-se de pronunciar só recordando que estudou num liceu na Praia com o nome do agraciado. Ficou claro para quem ainda tinha dúvidas que memória em Cabo é matéria de conveniência dos que pretendem ser donos da narrativa histórica do país. O país parece comportar-se como um paciente de Alzheimer esquecendo eventos próximos e deleitando-se com coisas do antigamente. Assim, a memória é curta se se trata de acontecimentos recentes do regime de partido únicos. As biografias de dirigentes homenageados do PAIGC/PAICV, Aristides Pereira e o Pedro Pires são apresentadas com “buracos de 15 anos de profundidade”. A memória já é longa se a conversa é sobre o regime colonial, Salazar e seus ministros. E há uma confusão de memórias se a discussão incide sobre a década de noventa. Fica-se sem saber se os anos noventa, também qualificados de negros e tenebrosos pelos dirigentes do PAICV, seguiram-se à noite colonial de 500 anos ou se vieram depois dos 15 anos de partido único e duraram até que o país fosse uma outra vez resgatada das trevas pela “força, luz e guia”. As aparentes memórias cheias de buracos e desarticuladas servem um propósito: deixam os adversários fora da história e só os recupera se posteriormente se mostrar conveniente para reforço da narrativa histórica. Fez-se isso com personalidades portuguesas anteriormente acusadas de “agentes do colonialismo” mas que hoje são amigas e professam admiração pelos “libertadores” . Continua-se a fazer com muitos que no passado foram consideradas ovelhas tresmalhadas do PAIGC/PAICV e agora são reencontrados na associação dos combatentes da liberdade da pátria. Em tudo isto porém sabe-se onde mora a coerência. Pedro Pires, questionado no dia 12 de Dezembro, sobre a existência de regimes ditatoriais actualmente em Africa, disse: “Esta é uma ideia "perigosa" importada do exterior e que pode minar a estabilidade de um país”. "É preciso cuidado, é preciso evitar taxar este ou aquele como ditador, ou como ditador perigoso, ou como ditador que não aceita mudanças. Acho que é preciso cuidado porque, além da ditadura, há um elemento importante que é a estabilidade e mais o Estado. Precisamos de estabilidade para, na estabilidade, construirmos então as instituições do Estado de Direito".

sexta-feira, dezembro 02, 2011

Europa na encruzilhada. Fim do euro?

A crise da dívida soberana iniciada em Maio de 2010 caminha rapidamente para um desenlace final. Perspectiva-se ou uma maior integração dos países europeus numa união fiscal ou o desaparecimento da zona euro e o eventual reaparecimento das moedas nacionais. O que recentemente considerava-se impensável, hoje é tida como possível se não provável que aconteça nos próximos dias. As consequências para Europa e para o mundo num cenário ou noutro serão profundas. Receia-se uma monumental recessão capaz de constranger por muitos anos o crescimento da economia mundial.

Nos últimos dias acontecimentos vários vieram demonstrar que o problema aparentemente só dos gregos e de outros países periféricos era afinal algo sistémico que, por contágio, acabaria por atingir o coração da União Europeia. De repente não era só a Grécia e Portugal a pagar taxas de juro elevadas nos títulos da dívida. A Espanha e a Itália também já pagavam acima dos 7% considerados pelos especialistas como limite para a sustentabilidade da dívida. Entrementes o rating AAA da França começou a tremelicar, a Bélgica viu o seu ser rebaixado e os mercados recusaram-se a absorver todos os títulos de dívida colocados pela poderosa Alemanha. O sentimento actual é que o tempo para acção enérgica e efectiva está a esgotar-se.

Há algum tempo que o mundo vem assistindo com estupefacção à incapacidade dos europeus em pôr cobro a uma situação potencialmente destrutiva dos ganhos acumulados na construção da União Europeia. Planos de austeridade radicais em vários países foram adoptados. Partidos no Governo na Irlanda, em Portugal e em Espanha perderam eleições e na Grécia e na Itália dirigentes políticos foram substituídos por tecnocratas. Mesmo assim os mercados não se mostraram convencidos. Acham que restrições e rigor na gestão das finanças pública, por si sós, não garantem crescimento suficiente para pagar a dívida se paralelamente não houver ganhos significativos na competitividade externa.

Cabo Verde tem um peg unilateral ao euro no quadro do Acordo Cambial de Março de 1998. O peg confirma a estreita ligação da economia caboverdiana com a Europa. De facto, o grosso do comércio de importação e exportação faz-se com países europeus e é deles que vêm o essencial dos investimentos, dos donativos e dos empréstimos concessionais. A Europa é o principal emissor de turistas para Cabo Verde e boa parte das remessas dos emigrantes tem aí a origem. Um resfriado na Europa pode traduzir-se em algo muito mais grave em Cabo Verde.

Num cenário de desaparecimento do euro, os desafios seriam ainda maiores. Uma ligação subsequente a qualquer das moedas nacionais submeteria o escudo caboverdiano às vicissitudes que sofreria no mercado no momento em ficasse solta para flutuar. O nível de vida dos caboverdianos não deixaria de ser afectado com isso. A recessão económica que se seguiria na Europa tornaria mais difícil o retorno aos níveis desejáveis de crescimento com impacto no emprego e na diminuição da pobreza.

Espera-se que este momento crucial na história da União Europeia seja ultrapassada com sucesso para que os povos em dificuldades vejam luz no fim do túnel, os mercados sejam acalmados e renove-se a confiança no crescimento futuro. Países pequenos como Cabo Verde precisam de um mundo estável e em expansão para poderem alijar os hábitos de dependência de ajuda externa e construir uma economia dinâmica. A própria democracia depende disso.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 30 de Novembro de 2011

quinta-feira, dezembro 01, 2011

Opacidade de regime e morte de Renato Cardoso

Renato Cardoso foi assassinado no dia 29 de Setembro de 1989. Amanhã, dia 1 de Dezembro, seria o seu 60º aniversário. O crime nunca foi resolvido e o autor ou autores descobertos e punidos. As circunstâncias em que foi cometido perderam-se ou foram engolidas pela opacidade que caracterizava o regime político então vigente em Cabo Verde. O partido único PAIGC/PAICV desde de cedo criou um regime de excepção para se defender de eventuais manifestações de revolta e indignação individuais ou colectivas dos caboverdianos contra o seu domínio. Logo em 1975 fez a lei de boatos (decreto-lei 36/75) que punia autores de rumores contra o Estado e seus dirigentes. Em 1976 com o decreto-lei 95/76 as forças de segurança e a polícia podiam prender qualquer pessoa durante um total de cinco meses sem culpa formada. Em 1977 avançou com o tribunal militar (decreto-lei 121/77) constituído por juízes nomeados sob proposta do ministro da Defesa que podia julgar civis classificados pela polícia como subversivos. Essas leis só foram revogadas pela Assembleia Nacional Popular em Maio de 1990. Sob o chapéu legal assim criado durante quinze anos o exército e a polícia constituíram-se como força de protecção do regime e dos seus dirigentes e todos os métodos, incluindo tortura, foram utilizados para reprimir dissidências e crimes. A vontade do regime em usar de todo este aparato nunca foi posta em causa. Sempre que se sentiu ameaçado agiu forte e duro. Por isso toda a gente estranha que o assassínio de um membro do governo tenha ficado por resolver. É crença geral, e a História confirma, que não são encontrados culpados nos assassinatos de graúda em regimes autoritários ou totalitários (Humberto Delgado, Sergey Kirov,) quando os crimes têm ramificações políticas. No caso de Renato Cardoso, o porta-voz do regime apressou-se logo no dia seguinte a garantir que não havia motivação política. O programa de viagens dos dirigentes não se alterou. O Primeiro Ministro Pedro Pires manteve a viagem para os Estados Unidos e o Presidente da República Aristides Pereira acompanhado do Ministro das Forças Armadas e Segurança partiu para Angola dois dias depois. Segundo relatos vindos a público, a polícia judiciária portuguesa chamada para investigar concluiu que a cena do crime não foi convenientemente salvaguarda e possíveis indícios do crime perderam-se. A sociedade caboverdiana, como bem ilustra a folha de jornal até hoje presente na montra do Djibla em S.Vicente, ainda pergunta “quem matou Renato Cardoso"? A angústia perante o hediondo crime contudo não impede que se celebre a vida desta figura marcante da vida politica, cultural e intelectual de Cabo Verde.