Várias acções do Governo nos últimos tempos,
designadamente a publicação da carta de política de Mobilidade Eléctrica
no BO, os benefícios inscritos no Orçamento de 2019 para facilitar
financiamentos no sector das renováveis, a introdução de lâmpadas LED na
iluminação pública e a utilização do Fuel 380 na produção de energia na
Praia têm demonstrado uma atenção crescente sobre a questão energética
no país.
Não é simples coincidência que
também em todo o mundo se fala com preocupação das alterações
climáticas, da descarbonização da economia, de se apostar nas energias
renováveis e da necessidade de mais eficiência energética. Está-se a ir
com o que o resto do globo, em particular depois dos Acordos de Paris,
de 2015, onde houve um comprometimento quase unânime de se tomar medidas
de contenção das alterações climáticas. A questão que se coloca é como o
país está a encarar a sua posição nesta matéria: se é para fazer como
no passado e simplesmente aproveitar-se dos projectos e dos recursos
disponibilizados sem preocupação real com os resultados e com a
sustentabilidade dos mesmos. Ou se vê o momento como oportunidade para
uma viragem séria numa questão fundamental como é a energia, a sua
disponibilidade e qualidade, o seu custo para as famílias e para as
empresas e o impacto que a reestruturação do sector poderá ter directa e
indirectamente na criação de novos empregos.
De facto, não é
novidade ver o governo abraçar projectos dirigidos para o aproveitamento
de energias renováveis, para poupança de energia ou para formação de
pessoas no sector. O problema é se os objectivos proclamados são
atingidos e se o potencial que o investimento supostamente cria é
desenvolvido e consegue produzir frutos permanentes. É sabido de há
muito que, neste como em outros sectores, Cabo Verde é em boa medida um
cemitério de projectos. Percorrendo as ilhas encontra-se por todo o lado
maquinarias, oficinas, laboratórios, instalações vazias e equipamentos
diversos adquiridos no âmbito de projectos, mas que findo os mesmos
ficaram subaproveitados ou simplesmente passaram a acumular poeira. O
desperdício não fica por aí. Também se verifica nas formações feitas com
a agravante de se tratar de pessoas que já tinham legitimamente criado
expectativas.
Compreende-se que tenha sido assim ao longo dos
tempos. A lógica de reciclagem de ajuda externa leva a estas situações.
Quem a gere fixa-se nos meios e tende a dar como cumpridos os objectivos
se os meios forem propiciados. É evidente que daí resultam frustrações
sucessivas das pessoas beneficiárias e baixo retorno dos investimentos
realizados. O problema são os países que se deixam apanhar nessa lógica e
em geral dão a aparência de conviver muito bem com esse modelo. Também
há quem beneficie e muito com isso. Invariavelmente cria-se uma elite
abastada à volta do Estado enquanto um desemprego “estrutural”
teimosamente perdura, mantendo vulneráveis segmentos da população,
curiosamente a população alvo dos projectos.
Uma outra
consequência indesejável de se deixar projectos de doadores ou de
parceiros passar por políticas públicas são os custos elevados que todos
acabam por arcar directamente nos preços de bens e serviços fornecidos
ou indirectamente através de impostos que depois os vão subsidiar. A
energia e a água, por exemplo, são demasiado caras em Cabo Verde. O
custo destes factores além de constituírem um peso nos rendimentos das
pessoas são um ainda maior obstáculo ao desenvolvimento de negócios e
contribuem para manter baixa a competitividade dos bens e serviços
cabo-verdianos. Opções em grande parte motivadas por questões
ideológicas impediram que uma gestão racional do sector fosse feita e
investimentos essenciais tivessem acontecido nos momentos certos. O
improviso, a incerteza e a imposição de soluções desadequadas
contribuíram para que o país hoje tenha dos custos mais elevados de
energia e água. Entrementes, esses dois bens essenciais por pressão de
doadores passaram a ser fornecidos por empresas separadas mas não é
líquido que globalmente se vá beneficiar com isso. Conseguem-se
financiamentos para as renováveis, mas ainda não se sentem os efeitos no
custo da energia. Por outro lado, as mesmas renováveis abrem a
possibilidade de descentralização da produção de energia e mesmo de
água, mas aparentemente ignora-se isso. Não se concilia o facto com a
opção pelas “centrais únicas” que realmente têm ganhos de escala na
produção, mas apresentam custos quase proibitivos no transporte e na
distribuição num território com a orografia e a dispersão da população
existente nas ilhas.
Agora envereda-se pelos carros eléctricos.
Até já se definiram benefícios fiscais para quem os compra e já há
postos de recarga disponíveis. Mas para além do óbvio que é o acesso
imediato aos muitos fundos de apoio internacional que vão surgindo em
nome das alterações climáticas não é claro o que realmente se pretende e
porque é prioritário. Compreende-se que países com indústria automóvel e
capacidade de inovação na produção de baterias, aerogeradores, painéis
solares e inteligência artificial se tenham apressado a definir etapas
para melhor se posicionarem no desenvolvimento de tecnologias do futuro e
dominarem os mercados nacionais e globais. Não é porém o caso de Cabo
Verde onde nem a poluição é pretexto para se apressar uma transição para
veículos limpos ou onde a perspectiva de vender “créditos de carbono”
pode revelar-se interessante. Até acção em contrário os carros deverão
ser movidos pela electricidade produzida por combustíveis fósseis. Para
que não se continue a agir simplesmente por impulsos de doadores
impõe-se que o país tenha a sua política própria e saiba negociar com os
parceiros e conciliar interesses nacionais com eventuais interesses que
manifestem.
É evidente que Cabo Verde tem as melhores condições
para exploração de energias renováveis como a solar e a eólica. Seria de
maior importância que o país definisse políticas claras de expansão do
aproveitamento dessas fontes de energia pelas famílias, empresas e
instituições no quadro de um esforço global de abaixamento dos custos de
energia e água. A pequenez do país, a fragmentação em ilhas e a
dispersão da população deviam ser incentivos poderosos para se encontrar
formas inovadoras de fazer chegar a todos energia barata. Também a
busca incessante para encontrar empregos de qualidade e sustentáveis
para os jovens e para a população em geral devia ser o maior incentivo
para se fazer promover a expansão das renováveis. Neste domínio,
paradigmático é o exemplo da Califórnia e também de outros países que
pela via legislativa e regulamentar criaram mercados para as renováveis
que depois se traduziram em empregos designadamente na instalação e
manutenção de equipamentos, em assessoria em matéria de eficiência
energética e em poupanças significativas para todos. No caso de Cabo
Verde elas poderiam incluir os consumidores com contas menos pesadas, a
Electra com menos pressa em fazer novos investimentos e o país com menos
importação de combustíveis fósseis. Desenvolver políticas estratégicas é
essencial para, a prazo, se baixar os custos, conseguir retorno
adequado dos investimentos, criar empregos e almejar melhor qualidade de
vida.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 897 de 6 de Fevereiro de 2019.
segunda-feira, fevereiro 11, 2019
segunda-feira, fevereiro 04, 2019
O Espectro do populismo
Ninguém já duvida que o panorama político mundial
está a alterar-se. Mudanças acontecem por todo lado, mas nas democracias
notam-se melhor porque são mais visíveis e têm maior impacto.
O
mundo olha fascinado e ao mesmo tempo apreensivo para o que se passa
nos Estados Unidos, no Reino Unido e na França. Também em outros países
como Itália, Hungria e o Brasil, cada um à sua maneira, a dinâmica de
certas forças postas em movimento aumenta as incertezas do mundo actual.
O mesmo se verifica na Espanha onde há muito muito dividiram o espaço
político que anteriormente era dominado por duas forças políticas e em
Portugal, onde recentemente no caso do Bairro da Jamaica deram sinais de
estar a emergir. Cabo Verde não fica fora desse “filme” que está a
desenrolar-se aos olhos de todos. As últimas manifestações de jovens em
vários municípios da ilha de Santiago e anteriormente dos Sokols em S.
Vicente sugere que algo está a mover-se. E se o que se passa noutras
partes sinaliza o que pode vir a acontecer aqui é bom que os actores
políticos e a sociedade se acautelem em relação às consequências de
certas derivas.
De facto, não se pode pensar que Cabo Verde esteja “blindado” contra esses fenómenos. Há quase 30 anos, em 1989, não ficou imune aos efeitos da derrocada dos países comunistas na Europa de Leste e dos partidos de inspiração leninista no resto do mundo. Depois da visita a 26 de Janeiro de 1990 do papa polaco João Paulo II que tanto contribuiu para essa derrocada também o país se pôs em movimento. Menos de um ano depois terminou o regime do partido único e os caboverdianos viram-se em Liberdade e na Democracia. Se agora está-se perante ao que alguns estudiosos chamam de recessão da democracia não é de estranhar que os seus efeitos perniciosos tarde ou cedo se façam sentir. É, por exemplo, de esperar que também aqui se manifeste a tendência notada lá fora da perda de influência dos grandes partidos, do reforço de forças extremistas e do descrédito das instituições. Ou então que aumente a polarização social e política em detrimento do pluralismo, que o diálogo seja substituído por manifestações de indignação e de ressentimentos e que a tolerância ceda lugar a sentimentos de exclusão por razões políticas e outras. Aliás, tudo isso de uma forma ou outra já está presente. Falta é aparecer novos actores, novas forças políticas e novas formas de agir e participar na esfera pública. Mas sente-se que isso também já está na forja e que é uma questão de tempo e de oportunidade para darem sinal da sua graça. As três eleições, uma atrás da outra que se vão realizar em 2020 e 2021 poderão vir a ser esse momento.
Vários factores contribuíram para a actual recessão democrática nas democracias europeias e norte-americana. Destacam-se entre eles a crise económica financeira de 2007/2008, os efeitos da globalização no mercado de trabalho, o aumento da desigualdade social e a percepção de que os governos nacionais se mostram quase impotentes aos ditames de instituições supra nacionais e ao poder económico e financeiro das multinacionais. Sobre essa base de descontentamento acenderam-se paixões de base nacionalista e xenófoba recorrendo ao fenómeno das migrações, ao relativo insucesso das políticas do multiculturalismo e às ameaças do terrorismo. Daí foi um passo para que o medo, a indignação e o ressentimento instigados passassem a ser os propulsores utilizados por demagogos e populistas para se instalarem na esfera pública e em vários casos a ganhar eleições, a ocupar o espaço dos grandes partidos e a constituírem-se em verdadeiras alternativas de governação. Muitos eleitores por não se sentirem representados nos partidos tradicionais e por falta de confiança nos seus governos optaram por apoiar extremistas e demagogos seduzidos pelas promessas de soluções fáceis e rápidas para problemas complexos do país e da sociedade.
No caso de países como Cabo Verde o desencanto com a democracia pode também vir do facto de os cidadãos e eleitores não se reverem nos partidos do arco da governação. Tendem a manter um estado de permanente crispação política impedindo o debate e dificultando muitas vezes que iniciativas positivas sejam tentadas ou continuadas. No mesmo sentido vai a adopção generalizada pelos poderes eleitos de um modus operandi em que se está em campanha permanente e em que se submete-se as pessoas a múltiplas visitas e auscultações que depois não são seguidas de resultados imediatos. Acresce-se a isso o recurso sistemático no discurso político a figuras de vitimização, de descriminação e abandono para justificar a situação das pessoas. Com isso reproduzem-se relações de dependência na relação entre o político e o eleitor/cidadão que deixa as pessoas susceptível a demagogos e populistas, precisamente porque é uma relação que só faz crescer frustração e ressentimento.
Também não ajuda que políticas apresentadas como estratégicas para o país como a educação e formação, regionalização e inserção na economia mundial com o turismo, investimento directo estrangeiro e exportações depois não recebam tratamento prioritário em recursos, atenção de governantes e disponibilidade da administração pública e seus agentes. Quem disso se queixa são principalmente os jovens que ressentem-se da qualidade do ensino, essencial para a produtividade e competitividade do país, sacrificada pela opção em massificar até o ensino universitário. São os mesmos que não vêm a economia a criar postos de trabalho em número e qualidade porque os governantes não conseguem focar-se na atracção de investimento externo que, como mostram os dados recentes do INE, permitem ao país exportar, fazer do turismo o motor da economia e empregar milhares de pessoas. Ainda são os mesmos que ficam perplexos quando vêm o Cardeal Dom Arlindo Furtado expor com simplicidade as fragilidades óbvias da política de regionalização que tanta atenção tem requerido do governo nos últimos anos.
A verdade é que a situação actual do país em que já não é mais possível manter-se o modelo da reciclagem de ajudas externas, em que a dívida pública também já não permite que se contraia grandes créditos para investimentos públicos e em que a economia ainda não cresce o suficiente para as pessoas verem o futuro com algum optimismo pode vir a revelar-se perigosa. Há que encontrar uma saída e há que preparar o país e a suas gentes para o enorme desafio que é o desenvolvimento sob pena de, num futuro próximo, as populações virem a ser seduzidas por algum demagogo ou populista. E a tragédia da Venezuela está aí para relembrar o que invariavelmente resulta dos exercícios de populismo, quando os povos se deixam tentar por caminhos pretensamente fáceis.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 896 de 30 de Janeiro de 2019.
De facto, não se pode pensar que Cabo Verde esteja “blindado” contra esses fenómenos. Há quase 30 anos, em 1989, não ficou imune aos efeitos da derrocada dos países comunistas na Europa de Leste e dos partidos de inspiração leninista no resto do mundo. Depois da visita a 26 de Janeiro de 1990 do papa polaco João Paulo II que tanto contribuiu para essa derrocada também o país se pôs em movimento. Menos de um ano depois terminou o regime do partido único e os caboverdianos viram-se em Liberdade e na Democracia. Se agora está-se perante ao que alguns estudiosos chamam de recessão da democracia não é de estranhar que os seus efeitos perniciosos tarde ou cedo se façam sentir. É, por exemplo, de esperar que também aqui se manifeste a tendência notada lá fora da perda de influência dos grandes partidos, do reforço de forças extremistas e do descrédito das instituições. Ou então que aumente a polarização social e política em detrimento do pluralismo, que o diálogo seja substituído por manifestações de indignação e de ressentimentos e que a tolerância ceda lugar a sentimentos de exclusão por razões políticas e outras. Aliás, tudo isso de uma forma ou outra já está presente. Falta é aparecer novos actores, novas forças políticas e novas formas de agir e participar na esfera pública. Mas sente-se que isso também já está na forja e que é uma questão de tempo e de oportunidade para darem sinal da sua graça. As três eleições, uma atrás da outra que se vão realizar em 2020 e 2021 poderão vir a ser esse momento.
Vários factores contribuíram para a actual recessão democrática nas democracias europeias e norte-americana. Destacam-se entre eles a crise económica financeira de 2007/2008, os efeitos da globalização no mercado de trabalho, o aumento da desigualdade social e a percepção de que os governos nacionais se mostram quase impotentes aos ditames de instituições supra nacionais e ao poder económico e financeiro das multinacionais. Sobre essa base de descontentamento acenderam-se paixões de base nacionalista e xenófoba recorrendo ao fenómeno das migrações, ao relativo insucesso das políticas do multiculturalismo e às ameaças do terrorismo. Daí foi um passo para que o medo, a indignação e o ressentimento instigados passassem a ser os propulsores utilizados por demagogos e populistas para se instalarem na esfera pública e em vários casos a ganhar eleições, a ocupar o espaço dos grandes partidos e a constituírem-se em verdadeiras alternativas de governação. Muitos eleitores por não se sentirem representados nos partidos tradicionais e por falta de confiança nos seus governos optaram por apoiar extremistas e demagogos seduzidos pelas promessas de soluções fáceis e rápidas para problemas complexos do país e da sociedade.
No caso de países como Cabo Verde o desencanto com a democracia pode também vir do facto de os cidadãos e eleitores não se reverem nos partidos do arco da governação. Tendem a manter um estado de permanente crispação política impedindo o debate e dificultando muitas vezes que iniciativas positivas sejam tentadas ou continuadas. No mesmo sentido vai a adopção generalizada pelos poderes eleitos de um modus operandi em que se está em campanha permanente e em que se submete-se as pessoas a múltiplas visitas e auscultações que depois não são seguidas de resultados imediatos. Acresce-se a isso o recurso sistemático no discurso político a figuras de vitimização, de descriminação e abandono para justificar a situação das pessoas. Com isso reproduzem-se relações de dependência na relação entre o político e o eleitor/cidadão que deixa as pessoas susceptível a demagogos e populistas, precisamente porque é uma relação que só faz crescer frustração e ressentimento.
Também não ajuda que políticas apresentadas como estratégicas para o país como a educação e formação, regionalização e inserção na economia mundial com o turismo, investimento directo estrangeiro e exportações depois não recebam tratamento prioritário em recursos, atenção de governantes e disponibilidade da administração pública e seus agentes. Quem disso se queixa são principalmente os jovens que ressentem-se da qualidade do ensino, essencial para a produtividade e competitividade do país, sacrificada pela opção em massificar até o ensino universitário. São os mesmos que não vêm a economia a criar postos de trabalho em número e qualidade porque os governantes não conseguem focar-se na atracção de investimento externo que, como mostram os dados recentes do INE, permitem ao país exportar, fazer do turismo o motor da economia e empregar milhares de pessoas. Ainda são os mesmos que ficam perplexos quando vêm o Cardeal Dom Arlindo Furtado expor com simplicidade as fragilidades óbvias da política de regionalização que tanta atenção tem requerido do governo nos últimos anos.
A verdade é que a situação actual do país em que já não é mais possível manter-se o modelo da reciclagem de ajudas externas, em que a dívida pública também já não permite que se contraia grandes créditos para investimentos públicos e em que a economia ainda não cresce o suficiente para as pessoas verem o futuro com algum optimismo pode vir a revelar-se perigosa. Há que encontrar uma saída e há que preparar o país e a suas gentes para o enorme desafio que é o desenvolvimento sob pena de, num futuro próximo, as populações virem a ser seduzidas por algum demagogo ou populista. E a tragédia da Venezuela está aí para relembrar o que invariavelmente resulta dos exercícios de populismo, quando os povos se deixam tentar por caminhos pretensamente fáceis.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 896 de 30 de Janeiro de 2019.
segunda-feira, janeiro 28, 2019
Avisos que vêm de longe
O FMI, no World Economic Outlook, publicado no dia 21
de Janeiro reviu em baixa o crescimento da economia mundial para o ano
de 2019 e 2020. Como disse a presidente Christine Lagarde na
apresentação desses dados ainda não se pode falar de uma recessão
mundial, mas o risco de um declínio no crescimento económico global
claramente aumentou. Vários factores contribuem para isso entre os quais
se destacam a guerra comercial que opõe os Estados Unidos da América à
China, a baixa na taxa de crescimento da China para valores (6,6 % do
PIB) não vistos nos últimos 28 anos e a volatilidade dos mercados
financeiros que já aumentou os custos de acesso ao capital.
O
quadro poderá revelar-se ainda pior para a Europa se a tendência actual
de travagem do ritmo de crescimento se agravar com as incertezas
geradas pelo Brexit, as tensões sobre o Euro vindas da Itália e a
persistência da instabilidade na França. Considerando a proximidade da
economia nacional à Europa, não é difícil adivinhar as consequências
para Cabo Verde de uma conjuntura globalmente menos promissora e
particularmente má para os países europeus de onde partem os fluxos que
alimentam o turismo nacional.
A economia cabo-verdiana entrou numa trajectória de crescimento desde o último trimestre de 2015 atingindo taxas de crescimento do PIB de 4,7 % em 2016, 4,0 em 2017 e prevê-se 4,5 em 2018. O crescimento dos últimos anos apesar de contrariar as taxas à volta de 1,5% dos anos anteriores ainda não atingiu o mínimo de 7% desejável para colocar o país no caminho do desenvolvimento com impacto geral sobre o emprego, os rendimentos e a qualidade de vida dos caboverdianos. A conjuntura económica global e em particular da Europa tem sido favorável e já propiciou aumento nas exportações de bens e serviços e também no turismo que se tem revelado o principal motor de crescimento. A perspectiva do advento de tempos menos bons deve aumentar o nível de alerta de todos e em particular dos governantes quanto à urgência das reformas para elevar o potencial de crescimento, melhorar a competitividade e aumentar a produtividade. Christine Lagarde aconselha que face à conjuntura pouco favorável se aumente a resiliência aos choques externos com reformas, com uma gestão mais criteriosa dos recursos públicos e com investimentos dirigidos para mais crescimento. Insiste também na necessidade de maior inclusão para melhor se aproveitar as promessas da revolução digital em curso no mundo inteiro. A pertinência desses conselhos para Cabo Verde é por demais evidente.
Mais um ano de seca veio relembrar as vulnerabilidades do país e a precariedade da vida das populações nas zonas rurais. A insistência por demasiados anos num modelo económico que favorecia a reciclagem da ajuda externa e praticamente hostilizava a iniciativa privada, a atracção do investimento externo e a promoção do turismo não podia deixar de ter graves consequências. Perpetuou situações de pobreza e desesperança em vários pontos do país. E não se verificou a transformação da economia que deveria, por um lado, conduzir a uma agricultura mais produtiva, fornecedora de produtos de maior valor acrescentado e ligada a mercados, e, por outro, dirigir um número cada vez maior de pessoas para os sectores de maior produtividade na indústria e serviços.
O problema é que mesmo hoje não parece que, como colectivo, se tenha real consciência das consequências das opções do passado. Continua-se a querer mobilizar mais água sem que se explicite que agricultura praticar e que mercados atingir. Quer-se desenvolver o turismo e ao mesmo tempo fixar as populações no mundo rural. Entrementes as migrações acontecem porque o emprego está onde há investimento externo e desastres urbanos como as barracas acontecem e as pessoas sofrem porque, em matéria de políticas públicas, as prioridades estão trocadas. Promovem-se panaceias em workshops, fóruns e conferências para dar ideia de que algo vai mudar quando, de facto, as coisas continuam praticamente o mesmo. Mexe-se no lado da oferta porque é politicamente mais fácil e conveniente – os anúncios de milhões, as linhas de crédito abertas, as obras financiadas por doações e empréstimos concessionais – mas falha-se em antecipar que os mercados precisam ser desenvolvidos, regulados e às vezes complementados com intervenção pública estratégica. Demonstra-se que, apesar das promessas reiteradas de mudança, a administração pública continua a se fixar nos processos sem preocupação com os resultados e com o nível de serviço prestado ao cidadão e ao utente. Teima-se em não explorar a flexibilidade que abordagens diferentes em relação às ilhas poderiam propiciar na procura de vias para melhor ligar o país à economia mundial. E também em experimentar formulas outras de administrar o território que não repetissem a cultura centralizadora e burocratizada predominante. Pelo contrário, propõe-se que se aplique de Santo Antão à Brava a forma encontrada para a regionalização, sem se importar com as especificidades das ilhas.
A rigidez na implementação de políticas, consequência do modelo económico rentista e também de um certo tipo de exercício de poder que quando forçado a escolher entre “desenvolver” e “controlar” sempre optava por “controlar”, só podia fazer de Cabo Verde um país de oportunidades perdidas. Mesmo perante a realidade da perda progressiva da ajuda externa, a tendência foi agarrar-se a sucedâneos. As negociações na concretização de investimentos na Boa Vista e no Sal nem sempre foram devidamente preparadas. O resultado é que os investimentos públicos avultados exigíveis não se mostraram suficientes e muita carga para se manter o destino competitivo teve que ser arcada pelas pessoas vindas das outras ilhas que depois se deparavam com problemas não resolvidos de habitação, de sanidade pública, de saúde e de segurança e com preços inflacionados. Não estranha que com esta atitude também não houvesse muita preocupação em assegurar que o turismo tivesse um real efeito de arrastamento sobre o resto da economia nacional.
De 2001 a 2016 a ilha de São Vicente só beneficiou de 3% de todo o investimento directo estrangeiro chegado a Cabo Verde. Este facto é elucidativo do descaso das autoridades sobre a economia da ilha e também do país. Em São Vicente o Estado não precisa fazer tanto investimento público para acomodar investimento privado. Já existe em energia, água, rede de esgoto, porto e aeroporto e o défice do parque habitacional não é tão grande como noutras ilhas. População não falta e facilmente pode absorver trabalhadores vindos de outras ilhas. Outrossim, o efeito de arrastamento na economia local, na economia das ilhas vizinhas e no conjunto da economia nacional é mais facilmente conseguido do que em qualquer outro sítio. Com a participação no PIB nacional a diminuir – 15,9% em 2015 e 14,8 % em 2016 segundo os dados do INE – pergunta-se por que então não se fizeram esforços necessários de atracção de investimento para a ilha que beneficiaria extraordinariamente todo o país. Provavelmente falta de visão. Talvez as nuvens escuras que pairam sobre a economia mundial, os avisos de Christine Lagarde e as secas repetidas contribuam desta vez para finalmente se focar no que urgentemente se deve fazer para pôr o país no caminho que o leve ao desenvolvimento, reduza a vulnerabilidade das pessoas e propicie um futuro para todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 895 de 23 de Janeiro de 2019.
A economia cabo-verdiana entrou numa trajectória de crescimento desde o último trimestre de 2015 atingindo taxas de crescimento do PIB de 4,7 % em 2016, 4,0 em 2017 e prevê-se 4,5 em 2018. O crescimento dos últimos anos apesar de contrariar as taxas à volta de 1,5% dos anos anteriores ainda não atingiu o mínimo de 7% desejável para colocar o país no caminho do desenvolvimento com impacto geral sobre o emprego, os rendimentos e a qualidade de vida dos caboverdianos. A conjuntura económica global e em particular da Europa tem sido favorável e já propiciou aumento nas exportações de bens e serviços e também no turismo que se tem revelado o principal motor de crescimento. A perspectiva do advento de tempos menos bons deve aumentar o nível de alerta de todos e em particular dos governantes quanto à urgência das reformas para elevar o potencial de crescimento, melhorar a competitividade e aumentar a produtividade. Christine Lagarde aconselha que face à conjuntura pouco favorável se aumente a resiliência aos choques externos com reformas, com uma gestão mais criteriosa dos recursos públicos e com investimentos dirigidos para mais crescimento. Insiste também na necessidade de maior inclusão para melhor se aproveitar as promessas da revolução digital em curso no mundo inteiro. A pertinência desses conselhos para Cabo Verde é por demais evidente.
Mais um ano de seca veio relembrar as vulnerabilidades do país e a precariedade da vida das populações nas zonas rurais. A insistência por demasiados anos num modelo económico que favorecia a reciclagem da ajuda externa e praticamente hostilizava a iniciativa privada, a atracção do investimento externo e a promoção do turismo não podia deixar de ter graves consequências. Perpetuou situações de pobreza e desesperança em vários pontos do país. E não se verificou a transformação da economia que deveria, por um lado, conduzir a uma agricultura mais produtiva, fornecedora de produtos de maior valor acrescentado e ligada a mercados, e, por outro, dirigir um número cada vez maior de pessoas para os sectores de maior produtividade na indústria e serviços.
O problema é que mesmo hoje não parece que, como colectivo, se tenha real consciência das consequências das opções do passado. Continua-se a querer mobilizar mais água sem que se explicite que agricultura praticar e que mercados atingir. Quer-se desenvolver o turismo e ao mesmo tempo fixar as populações no mundo rural. Entrementes as migrações acontecem porque o emprego está onde há investimento externo e desastres urbanos como as barracas acontecem e as pessoas sofrem porque, em matéria de políticas públicas, as prioridades estão trocadas. Promovem-se panaceias em workshops, fóruns e conferências para dar ideia de que algo vai mudar quando, de facto, as coisas continuam praticamente o mesmo. Mexe-se no lado da oferta porque é politicamente mais fácil e conveniente – os anúncios de milhões, as linhas de crédito abertas, as obras financiadas por doações e empréstimos concessionais – mas falha-se em antecipar que os mercados precisam ser desenvolvidos, regulados e às vezes complementados com intervenção pública estratégica. Demonstra-se que, apesar das promessas reiteradas de mudança, a administração pública continua a se fixar nos processos sem preocupação com os resultados e com o nível de serviço prestado ao cidadão e ao utente. Teima-se em não explorar a flexibilidade que abordagens diferentes em relação às ilhas poderiam propiciar na procura de vias para melhor ligar o país à economia mundial. E também em experimentar formulas outras de administrar o território que não repetissem a cultura centralizadora e burocratizada predominante. Pelo contrário, propõe-se que se aplique de Santo Antão à Brava a forma encontrada para a regionalização, sem se importar com as especificidades das ilhas.
A rigidez na implementação de políticas, consequência do modelo económico rentista e também de um certo tipo de exercício de poder que quando forçado a escolher entre “desenvolver” e “controlar” sempre optava por “controlar”, só podia fazer de Cabo Verde um país de oportunidades perdidas. Mesmo perante a realidade da perda progressiva da ajuda externa, a tendência foi agarrar-se a sucedâneos. As negociações na concretização de investimentos na Boa Vista e no Sal nem sempre foram devidamente preparadas. O resultado é que os investimentos públicos avultados exigíveis não se mostraram suficientes e muita carga para se manter o destino competitivo teve que ser arcada pelas pessoas vindas das outras ilhas que depois se deparavam com problemas não resolvidos de habitação, de sanidade pública, de saúde e de segurança e com preços inflacionados. Não estranha que com esta atitude também não houvesse muita preocupação em assegurar que o turismo tivesse um real efeito de arrastamento sobre o resto da economia nacional.
De 2001 a 2016 a ilha de São Vicente só beneficiou de 3% de todo o investimento directo estrangeiro chegado a Cabo Verde. Este facto é elucidativo do descaso das autoridades sobre a economia da ilha e também do país. Em São Vicente o Estado não precisa fazer tanto investimento público para acomodar investimento privado. Já existe em energia, água, rede de esgoto, porto e aeroporto e o défice do parque habitacional não é tão grande como noutras ilhas. População não falta e facilmente pode absorver trabalhadores vindos de outras ilhas. Outrossim, o efeito de arrastamento na economia local, na economia das ilhas vizinhas e no conjunto da economia nacional é mais facilmente conseguido do que em qualquer outro sítio. Com a participação no PIB nacional a diminuir – 15,9% em 2015 e 14,8 % em 2016 segundo os dados do INE – pergunta-se por que então não se fizeram esforços necessários de atracção de investimento para a ilha que beneficiaria extraordinariamente todo o país. Provavelmente falta de visão. Talvez as nuvens escuras que pairam sobre a economia mundial, os avisos de Christine Lagarde e as secas repetidas contribuam desta vez para finalmente se focar no que urgentemente se deve fazer para pôr o país no caminho que o leve ao desenvolvimento, reduza a vulnerabilidade das pessoas e propicie um futuro para todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 895 de 23 de Janeiro de 2019.
segunda-feira, janeiro 21, 2019
Memória não é história
Todos os anos com o feriado nacional de 13 de
Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia, o discurso político no país
divide-se. De um lado agressivamente posicionam-se os que aproveitam o
evento para realçar a importância da independência sobre todo o resto.
Do outro lado, ficam os que numa postura às vezes quase defensiva
procuram mostrar o quanto a liberdade e a democracia são essenciais para
afirmação do princípio constitucional de respeito pela dignidade da
pessoa humana. Desde 2017, quando o Dia da Liberdade e da Democracia
passou a ser celebrado com uma sessão solene da Assembleia Nacional,
tornou-se mais visível o confronto sobre qual deve prevalecer:
independência ou dignidade da pessoa humana. Na sessão solene deste ano o
líder parlamentar do PAICV na sua intervenção deixou claro que não
devia haver dúvidas. Os caboverdianos foram informados por ele que o 13
de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia, foi praticamente uma
dádiva dos que “trouxeram” a independência e governaram sozinhos durante
quinze anos até que o povo ganhasse “maturidade” e pudesse
autogovernar-se.
O confronto anual não
fica porém só pelo 13 de Janeiro. Como o feriado dos heróis nacionais é
no dia 20 de Janeiro proliferam actividades durante toda a semana que
centradas na figura mítica de Amílcar Cabral na prática em nada diferem
do que acontecia antes da implantação da democracia. Assim, nas escolas e
em conferências e palestras promove-se a historiografia da luta de
libertação na Guiné com os mesmos elementos e pressupostos que sempre
constaram da propaganda oficial do PAIGC. As forças armadas celebram com
pompa e circunstância o seu aniversário a 15 de Janeiro que,
referenciando-se a uma data anterior à própria independência do país,
revela-se de facto como pretexto para homenagear o grupo de dirigentes
que manteve o país preso num regime ditatorial. Aliás, foram eles
próprios que instituíram a data. Também como o 20 de Janeiro é dia da
nacionalidade reafirma-se Amílcar Cabral como fundador da nacionalidade
num país em há mais de um século já se tinha plena consciência da nação
como é bastamente provada pela literatura e música cabo-verdianas e
várias fontes externas.
Tanta incongruência não pode deixar de gerar conflitos. Mesmo que não se faça a apologia do partido único como o regime ideal para Cabo Verde neste momento, ao insistir em manter viva a ideologia a ele subjacente, não se está de facto perante a sua rejeição. Procura-se apresentar o regime como uma etapa necessária talvez para se conseguir a “maturação” de que fala o líder do grupo parlamentar do PAICV na sua intervenção. No processo dilui-se a incompatibilidade ideológica com os princípios da democracia liberal, com perda evidente para o exercício da cidadania e concomitante descaso com a defesa da democracia. Ao mesmo tempo no subconsciente colectivo reforça-se a gratidão para com os que primeiro “trouxeram” a independência e quando chegou o tempo próprio “brindaram ” o povo com a democracia.
É claro que tudo isso é possível porque não há verdadeiramente muitos estudos históricos sobre o Cabo Verde independente. Aparentemente o interesse oficial tem privilegiado estudos sobre a escravatura e manifestações de resistência contra o poder colonial e até a busca de quilombos escondidos no interior das ilhas. A preferência reflecte a preocupação com o reforço da historiografia oficial da luta pela independência. Já para compreender a história recente todos os anos na chamada semana da república não poucas vezes convidam-se antigos dirigentes do regime a partilhar as suas memórias em palestras dirigidas a estudantes nos liceus e escolas e em conferências por todo o país. Mas a verdade é que a memória não é história principalmente quando não é memória pluralista. A objectividade dos factos, do contexto e das circunstâncias é sempre prejudicada no relato de memórias cuja motivação principal é justificar acções passadas e defender a legitimidade de um regime, hoje universalmente rejeitado e visto como contrário à liberdade e um entrave ao desenvolvimento.
A situação mantém-se 28 anos após o 13 de Janeiro e a adopção da Constituição de 1992 só porque, como diria Gramsci, a guerra ideológica não foi ganha pelo novo regime democrático. O núcleo essencial da ideologia do regime anterior mantém-se dominante e é defendido e reproduzido pelas instituições do Estado, pelo sistema educativo e propagado pelos órgãos públicos da comunicação social. Por isso até agora não houve desculpas do Estado nem reparações para as vítimas do partido único enquanto até há pouco tempo se via ainda crescer o número de “combatentes” da independência que do Estado queriam compensação. E rituais do Estado como a deposição de flores na estátua de Amílcar Cabral foram instituídos sem o respaldo da lei aprovada no parlamento como é prática nas democracias. Também alterações na lei militar consagrou antigos dirigentes em posições cimeiras, em total desacordo com as tradições republicanas. Para todos o protagonismo dos antigos dirigentes na defesa do seu legado ideológico é visível e muito presente e conta com o total apoio dos órgãos de soberania.
Não se pode nestas circunstâncias estranhar que a crispação política e a excessiva partidarização ainda sejam a norma no país apesar de serem deploradas aparentemente por todos. Resultam em grande parte do conflito inevitável de se ter uma democracia permeada por uma ideologia que justificou uma ditadura. Em face de qualquer contestação a este estado de coisas o consenso entre os dois maiores partidos sobre a democracia liberal e constitucional, essencial para se manter vivo e construtivo a dinâmica democrática desaparece e em seu lugar gera-se desconfiança. Daí é só um passo para no exercício do contraditório se proceder a deslegitimação das posições do outro. Com isso quantas vezes se deixou de reflectir e decidir sobre os problemas do país só porque se tem de salvaguardar os protagonistas de ontem e as suas opções de política.
A via para se ver livre desta situação passa por expurgar das instituições do Estado essa ideologia e obriga-las a cumprir a lei e a se abster de impor “ideologias, correntes filosóficas ou estéticas” particularmente aos mais jovens. É o que determina a Constituição e os órgãos de soberania e os seus titulares têm especial responsabilidade em fazer com que seja cumprida. Não se pode esquecer que se celebra o 13 de Janeiro justamente para renovar e reforçar o compromisso de todos com os princípios e valores da Liberdade e da Democracia que estão plasmados na Constituição de 1992.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 894 de16 de Janeiro de 2019.
Tanta incongruência não pode deixar de gerar conflitos. Mesmo que não se faça a apologia do partido único como o regime ideal para Cabo Verde neste momento, ao insistir em manter viva a ideologia a ele subjacente, não se está de facto perante a sua rejeição. Procura-se apresentar o regime como uma etapa necessária talvez para se conseguir a “maturação” de que fala o líder do grupo parlamentar do PAICV na sua intervenção. No processo dilui-se a incompatibilidade ideológica com os princípios da democracia liberal, com perda evidente para o exercício da cidadania e concomitante descaso com a defesa da democracia. Ao mesmo tempo no subconsciente colectivo reforça-se a gratidão para com os que primeiro “trouxeram” a independência e quando chegou o tempo próprio “brindaram ” o povo com a democracia.
É claro que tudo isso é possível porque não há verdadeiramente muitos estudos históricos sobre o Cabo Verde independente. Aparentemente o interesse oficial tem privilegiado estudos sobre a escravatura e manifestações de resistência contra o poder colonial e até a busca de quilombos escondidos no interior das ilhas. A preferência reflecte a preocupação com o reforço da historiografia oficial da luta pela independência. Já para compreender a história recente todos os anos na chamada semana da república não poucas vezes convidam-se antigos dirigentes do regime a partilhar as suas memórias em palestras dirigidas a estudantes nos liceus e escolas e em conferências por todo o país. Mas a verdade é que a memória não é história principalmente quando não é memória pluralista. A objectividade dos factos, do contexto e das circunstâncias é sempre prejudicada no relato de memórias cuja motivação principal é justificar acções passadas e defender a legitimidade de um regime, hoje universalmente rejeitado e visto como contrário à liberdade e um entrave ao desenvolvimento.
A situação mantém-se 28 anos após o 13 de Janeiro e a adopção da Constituição de 1992 só porque, como diria Gramsci, a guerra ideológica não foi ganha pelo novo regime democrático. O núcleo essencial da ideologia do regime anterior mantém-se dominante e é defendido e reproduzido pelas instituições do Estado, pelo sistema educativo e propagado pelos órgãos públicos da comunicação social. Por isso até agora não houve desculpas do Estado nem reparações para as vítimas do partido único enquanto até há pouco tempo se via ainda crescer o número de “combatentes” da independência que do Estado queriam compensação. E rituais do Estado como a deposição de flores na estátua de Amílcar Cabral foram instituídos sem o respaldo da lei aprovada no parlamento como é prática nas democracias. Também alterações na lei militar consagrou antigos dirigentes em posições cimeiras, em total desacordo com as tradições republicanas. Para todos o protagonismo dos antigos dirigentes na defesa do seu legado ideológico é visível e muito presente e conta com o total apoio dos órgãos de soberania.
Não se pode nestas circunstâncias estranhar que a crispação política e a excessiva partidarização ainda sejam a norma no país apesar de serem deploradas aparentemente por todos. Resultam em grande parte do conflito inevitável de se ter uma democracia permeada por uma ideologia que justificou uma ditadura. Em face de qualquer contestação a este estado de coisas o consenso entre os dois maiores partidos sobre a democracia liberal e constitucional, essencial para se manter vivo e construtivo a dinâmica democrática desaparece e em seu lugar gera-se desconfiança. Daí é só um passo para no exercício do contraditório se proceder a deslegitimação das posições do outro. Com isso quantas vezes se deixou de reflectir e decidir sobre os problemas do país só porque se tem de salvaguardar os protagonistas de ontem e as suas opções de política.
A via para se ver livre desta situação passa por expurgar das instituições do Estado essa ideologia e obriga-las a cumprir a lei e a se abster de impor “ideologias, correntes filosóficas ou estéticas” particularmente aos mais jovens. É o que determina a Constituição e os órgãos de soberania e os seus titulares têm especial responsabilidade em fazer com que seja cumprida. Não se pode esquecer que se celebra o 13 de Janeiro justamente para renovar e reforçar o compromisso de todos com os princípios e valores da Liberdade e da Democracia que estão plasmados na Constituição de 1992.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 894 de16 de Janeiro de 2019.
segunda-feira, janeiro 14, 2019
Populismo não é solução
O populismo é no início deste ano de 2019 a grande
preocupação nas democracias tanto novas como consolidadas. Uma das
razões é o facto de – na sequência das suas irrupções no espaço público,
emblematicamente verificadas no Reino Unido com o Brexit, na América
com eleição de Trump e também na Itália em 2018 – se ter tornado notório
que o populismo apesar das suas promessas não traz soluções. Vê-se, por
exemplo, no desorientamento gerado pelo processo da saída da
Grã-Bretanha da União Europeia, ou então no caos que a administração
Trump tem criado nos Estados Unidos e na arena internacional e no
desnorte que se vive na Itália.
Onde,
porém, se mostra mais pernicioso é na forma como mina a democracia
representativa, desacredita o parlamento e a classe política, fragiliza o
sistema partidário até ao ponto de quase colapso dos partidos
tradicionais em alguns casos (França, Itália, Grécia) e abre caminho a
soluções políticas autocráticas. Curiosamente isso acontece trinta anos
depois do que para todos parecia imparável a vaga democrática que se
iniciara com as movimentações populares na Europa de Leste ao longo de
todo o ano de 1989 e que culminou com a queda do Muro de Berlim e no
derrube do comunismo e de ditaduras de partido único em todo o mundo.
Na época o politólogo Francis Fukuyama até prognosticou um Fim da História no qual a democracia liberal ganharia ascendência universal sobre todos os outros regimes políticos. Hoje sabe-se que não foi assim e que regimes autocráticos em directa competição com as democracias mostraram possuir vitalidade inesperada para crescer e ganhar peso económico a ponto de poder rivalizar em influência política com as potências ocidentais nos diferentes continentes, em particular na África. Como seria de esperar nem sempre o resultado das rivalidades nascentes se mostrou benigno. Pelo contrário, o mundo acabou por se tornar um lugar mais perigoso de viver à medida que todos se acotovelavam para criar ou para manter o seu espaço de influência. Nota-se isso no aumento das tensões geopolíticas ligado a protagonismos de cariz populista e nacionalista dos estados e de entidades sub-estatais. Sente-se no impacto das incertezas no plano económico global criadas pela guerra comercial das grandes potências. Também constata-se no cansaço democrático e na incapacidade em inflectir a tendência de crescente desigualdade social nos países desenvolvidos e em confrontar o problema das migrações internacionais cujo potencial de destabilização é conhecido. Tudo isso concorre para que a democracia liberal não seja o íman todo-poderoso que todos almejaram quando no fim da guerra fria parecia agregar todos.
A democracia cabo-verdiana também é tributária dessa terceira vaga que trinta anos atrás tinha varrido regimes totalitários e autocráticos em todos os continentes. No próximo domingo, 13 de Janeiro, vai-se comemorar os 28 anos do dia que em Liberdade e num ambiente de pluralismo pela primeira vez o povo cabo-verdiano pôde exercer o seu poder soberano para escolher os seus governantes. Uma forma de o fazer é aproveitar a data para avaliar o estado da nossa democracia que tanto custou a conquistar e que certamente também tem sido afectada pelas pulsões e derivas populistas às vezes de forma subtil outras vezes de forma clara. Vários sinais como, por exemplo, as tentativas de minimização do parlamento, os ataques aos partidos políticos, a fragilização das instituições em geral e o extremar dos discursos com consequente degradação do debate político, recurso a promessas demagógicas, e negação do adversário deixam entender que os efeitos do populismo já se se fazem sentir com força no meio político e social cabo-verdiano. E não é porque o sistema partidário continua formalmente o mesmo que garante que ainda não foi penetrado pelas tácticas e ideologia populistas. Aliás, o facto dos sintomas já se manifestarem na postura das instituições, na actuação de elementos da classe política e mesmo em movimentos inorgânicos que aqui e acolá vão surgindo à procura de causas para um activismo mais robusto é revelador já do impacto causado pelo populismo na vida nacional.
Nos tempos de hoje dificilmente a sociedade e os indivíduos vão poder escapar à influência populista que grassa pelo mundo. O empoderamento dos indivíduos via redes sociais acessíveis a todos assim como a sua manipulação por algoritmos dessas mesmas redes que os induzem a agrupar-se numa base identitária que os opõe a outros na base de raça, etnia, religião, preferência política, etc., tem pelo menos dois efeitos devastadores: primeiro, extrema posições e eleva o nível de crispação dos discursos com perda significativa e crescente para a importância que se dá aos factos, à procura da verdade e à exigência de honestidade na tomada de posições. Segundo, o acesso aparente a todos via rede social cria a falsa ideia de se ser ouvido, de estar a participar e de uma proximidade a governantes que lhe pode dar uma satisfação mesmo que ilusória e efémera que dificilmente vai encontrar num quadro de funcionamento normal da democracia representativa.
Ninguém vai poder evitar os males causados à cidadania e à participação política provocados pela utilização de certas tecnologias que tendem a exacerbar as piores tendências nas pessoas. O tempo, a educação no uso e possivelmente a regulação da internet vão um dia conseguir isso. Até lá é fundamental que se dê atenção às instituições democráticas, às suas normas e às regras de funcionamento. A desilusão de muitos com o sistema político não é uma simples produção das redes sociais ou resultado da má influência de alguns demagogos isolados. A classe política em geral e várias lideranças nos partidos tradicionais têm contribuído para isso. Infelizmente demasiados têm caído na tentação de cavalgar a onda populista juntando-se ao coro dos que põem em causa o pluralismo, que desacreditam o parlamento, hostilizam a comunicação social e apresentam-se com discursos anti-partido e anti-política para melhor combater as elites.
Em mais um aniversário do 13 de Janeiro a resposta a todas essas derivas, que escondem ambições de poder inconfessáveis, deve ser o de defender de forma consequente os princípios e valores da democracia liberal. Também é o de exigir utilização rigorosa dos recursos do Estado para melhor combater a corrupção. Ainda é o de insistir numa ética e num ethos de serviço público que valorize quem se preste a ser político e consolide juntos dos cidadãos e de toda a sociedade a confiança na honestidade e compromisso dos seus governantes com a defesa do interesse público e com a procura do bem geral. A luta contra o populismo fundamentalmente passa por isso.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 893 de 9 de Janeiro de 2019.
Na época o politólogo Francis Fukuyama até prognosticou um Fim da História no qual a democracia liberal ganharia ascendência universal sobre todos os outros regimes políticos. Hoje sabe-se que não foi assim e que regimes autocráticos em directa competição com as democracias mostraram possuir vitalidade inesperada para crescer e ganhar peso económico a ponto de poder rivalizar em influência política com as potências ocidentais nos diferentes continentes, em particular na África. Como seria de esperar nem sempre o resultado das rivalidades nascentes se mostrou benigno. Pelo contrário, o mundo acabou por se tornar um lugar mais perigoso de viver à medida que todos se acotovelavam para criar ou para manter o seu espaço de influência. Nota-se isso no aumento das tensões geopolíticas ligado a protagonismos de cariz populista e nacionalista dos estados e de entidades sub-estatais. Sente-se no impacto das incertezas no plano económico global criadas pela guerra comercial das grandes potências. Também constata-se no cansaço democrático e na incapacidade em inflectir a tendência de crescente desigualdade social nos países desenvolvidos e em confrontar o problema das migrações internacionais cujo potencial de destabilização é conhecido. Tudo isso concorre para que a democracia liberal não seja o íman todo-poderoso que todos almejaram quando no fim da guerra fria parecia agregar todos.
A democracia cabo-verdiana também é tributária dessa terceira vaga que trinta anos atrás tinha varrido regimes totalitários e autocráticos em todos os continentes. No próximo domingo, 13 de Janeiro, vai-se comemorar os 28 anos do dia que em Liberdade e num ambiente de pluralismo pela primeira vez o povo cabo-verdiano pôde exercer o seu poder soberano para escolher os seus governantes. Uma forma de o fazer é aproveitar a data para avaliar o estado da nossa democracia que tanto custou a conquistar e que certamente também tem sido afectada pelas pulsões e derivas populistas às vezes de forma subtil outras vezes de forma clara. Vários sinais como, por exemplo, as tentativas de minimização do parlamento, os ataques aos partidos políticos, a fragilização das instituições em geral e o extremar dos discursos com consequente degradação do debate político, recurso a promessas demagógicas, e negação do adversário deixam entender que os efeitos do populismo já se se fazem sentir com força no meio político e social cabo-verdiano. E não é porque o sistema partidário continua formalmente o mesmo que garante que ainda não foi penetrado pelas tácticas e ideologia populistas. Aliás, o facto dos sintomas já se manifestarem na postura das instituições, na actuação de elementos da classe política e mesmo em movimentos inorgânicos que aqui e acolá vão surgindo à procura de causas para um activismo mais robusto é revelador já do impacto causado pelo populismo na vida nacional.
Nos tempos de hoje dificilmente a sociedade e os indivíduos vão poder escapar à influência populista que grassa pelo mundo. O empoderamento dos indivíduos via redes sociais acessíveis a todos assim como a sua manipulação por algoritmos dessas mesmas redes que os induzem a agrupar-se numa base identitária que os opõe a outros na base de raça, etnia, religião, preferência política, etc., tem pelo menos dois efeitos devastadores: primeiro, extrema posições e eleva o nível de crispação dos discursos com perda significativa e crescente para a importância que se dá aos factos, à procura da verdade e à exigência de honestidade na tomada de posições. Segundo, o acesso aparente a todos via rede social cria a falsa ideia de se ser ouvido, de estar a participar e de uma proximidade a governantes que lhe pode dar uma satisfação mesmo que ilusória e efémera que dificilmente vai encontrar num quadro de funcionamento normal da democracia representativa.
Ninguém vai poder evitar os males causados à cidadania e à participação política provocados pela utilização de certas tecnologias que tendem a exacerbar as piores tendências nas pessoas. O tempo, a educação no uso e possivelmente a regulação da internet vão um dia conseguir isso. Até lá é fundamental que se dê atenção às instituições democráticas, às suas normas e às regras de funcionamento. A desilusão de muitos com o sistema político não é uma simples produção das redes sociais ou resultado da má influência de alguns demagogos isolados. A classe política em geral e várias lideranças nos partidos tradicionais têm contribuído para isso. Infelizmente demasiados têm caído na tentação de cavalgar a onda populista juntando-se ao coro dos que põem em causa o pluralismo, que desacreditam o parlamento, hostilizam a comunicação social e apresentam-se com discursos anti-partido e anti-política para melhor combater as elites.
Em mais um aniversário do 13 de Janeiro a resposta a todas essas derivas, que escondem ambições de poder inconfessáveis, deve ser o de defender de forma consequente os princípios e valores da democracia liberal. Também é o de exigir utilização rigorosa dos recursos do Estado para melhor combater a corrupção. Ainda é o de insistir numa ética e num ethos de serviço público que valorize quem se preste a ser político e consolide juntos dos cidadãos e de toda a sociedade a confiança na honestidade e compromisso dos seus governantes com a defesa do interesse público e com a procura do bem geral. A luta contra o populismo fundamentalmente passa por isso.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 893 de 9 de Janeiro de 2019.
segunda-feira, dezembro 31, 2018
Ninguém ganha com ataque aos mediadores
As manifestações quase periódicas de tensão entre o
poder político, os jornalistas e os seus órgãos representativos vieram
outra vez à tona na sequência das declarações do Ministro da Cultura e
das Indústrias Criativas que tem sob a sua alçada o sector da
comunicação social.
Abraão Vicente na
comemoração dos trinta anos da agência de notícias estatal teria dito
que a Inforpress tem sido a base de toda a produção jornalística da
imprensa escrita. Teria acrescentado ainda que mais de 50% das notícias dos outros jornais privados são notícias da Inforpress.
Um juízo de valor sobre o trabalho dos jornalistas ficou implícito
quando afirmou que o aproveitamento das notícias da Inforpress são
feitas “sem nenhum esforço de reescrita e muitas vezes sem a necessária citação da fonte”.
Como seria de esperar, houve imediata reacção da associação dos
jornalistas. A AJOC num comunicado disse que há “um total
desconhecimento por parte da tutela das condições materiais de produção
de informações nos OCS privados e do próprio funcionamento do campo
mediático de Cabo Verde”.
Um primeiro aspecto que salta à vista neste imbróglio é o que pretende o ministro com essas declarações. Começou por dizer que o maior contributo que o Estado pode dar ao sector privado é uma agência de notícias para logo depois passar a impressão de estar a destratar os jornais privados por alegadamente estarem a usar o fornecido pela Inforpress em cerca de 50% da sua produção. Aparentemente contradiz-se. Afinal quer ou não canalizar as notícias da agência para os outros órgãos de comunicação social? O sucesso das agências avalia-se pelo número de órgãos que fazem uso da matéria disponibilizada. Não deriva da competição directa com eles. As agências comerciais beneficiam da publicidade no uso do material fornecido às vezes gratuitamente para construírem uma reputação e vender produção exclusiva. As agências estatais, em regra criadas para passar uma imagem favorável do país no exterior e veicular a perspectiva oficial dos acontecimentos, certamente que ficam felizes quando a imprensa repassa as suas notícias. Por ai vê-se a gratuitidade e o contra-senso das afirmações feitas tanto em relação aos jornalistas como aos jornais privados.
E a grande verdade é que o governo não tutela a comunicação social e muito menos exerce sobre ela e sobre os seus profissionais uma tutela de mérito. Se do ponto de vista orgânico e funcional tal pretensão é despropositada, do ponto de vista político é contraproducente. Tudo o que de essencial diz respeito à comunicação social está directamente na Constituição da República no capítulo dos direitos fundamentais, em particular nos artigos sobre liberdade de expressão, direito de informação e liberdade de imprensa. A legislação ordinária não os pode esvaziar e mesmo em sede de revisão constitucional não podem ser limitados. Pode-se acrescentá-los, como aconteceu na revisão de 2010 em que se criou uma autoridade para a comunicação social, eleita pelo parlamento por maioria qualificada, para regular o sector. Procurou-se com isso afastar ainda mais a possibilidade de interferência a coberto do papel que sempre tem o Estado de assegurar as garantias fundamentais para o exercício das liberdades, no caso específico, de promover o pluralismo, impedir a concentração dos órgãos e cuidar da independência dos jornalistas.
Quanto à intervenção directa do Estado na comunicação social, a Constituição estipula tão-somente que deve existir um serviço público de rádio e televisão. Exigências específicas são feitas em relação ao ambiente no serviço público. Insiste-se no pluralismo interno nas notícias, reportagens e entrevistas em concordância com o princípio segundo o qual o Estado não deve impor uma corrente filosófica, estética ou política aos cidadãos. Outrossim, garante-se a independência dos jornalistas perante os vários poderes e impõe-se que os directores dos órgãos do serviço público sejam nomeados com parecer prévio favorável da entidade reguladora. Com este enquadramento restrictivo na intervenção estatal e muito aberto em relação à iniciativa privada o que pode causar estranheza é o facto de após largos anos de regime democrático o sector da comunicação social continue a ser esmagadoramente dominado pelos órgãos públicos. Para isso certamente que conta a história pós-independência em que o regime de partido único praticamente acabou com os privados no sector, como aliás aconteceu noutros sectores. Mais difícil de compreender é porque a hegemonia do público manteve-se até hoje. Só pode ter sido resultado de opções feitas, sendo uma delas certamente o acesso privilegiado dos órgãos públicos ao diminuto mercado publicitário cabo-verdiano deixando em desvantagem o sector privado. Parece que agora algo similar se pretende numa suposta competição entre agência de notícias e jornais online privados, beneficiando a parte estatal de vantagem inicial de investimentos públicos num jogo claramente de cartas marcadas.
O ministro em vários momentos usou expressões como “informação de qualidade”, “qualidade jornalista”, “qualidade de jornalismo” e “imprensa privada de qualidade”. Talvez isso queira transmitir uma preocupação com os chamados “fake news” e exprimir a urgência de os combater. O problema é que o epíteto de “fake news” popularizado por Donald Trump tem sido atirado contra os jornais e outros médias por autocratas e candidatos a autocratas em reacção ao escrutínio apertado em que na democracia estão sujeitos. Se se quiser fazer diferente não é aconselhável que se tenha posicionamentos que podem configurar ataques à imprensa privada e aos jornalistas. Já bem-vindas serão acções concretas no sentido de aumentar o mercado para as publicações com a aquisição para as bibliotecas e outras estruturas públicas e no quadro de campanhas da luta contra a iliteracia funcional. Quanto à questão se há bons ou maus produtos jornalísticos é melhor deixar o cidadão e o consumidor decidir por si próprio em ambiente de liberdade e pluralismo.
Hoje é notório um discurso partilhado por certos políticos e com eco em alguns sectores da sociedade que tende a pôr em questão todas as instituições de mediação, entre as quais os médias, que até agora viabilizaram as democracias, promoveram o desenvolvimento científico e mantiveram os poderes político e económico sob escrutínio. Podem estar desiludidos com a situação actual, mas o facto é que a alternativa – que já se pode vislumbrar na ascensão de autocratas, no crescimento de sentimentos de ódio e ressentimento e de racismo e xenofobia e no tipo de violência espontânea que se assistiu na França nas últimas semanas – não é a mais aconselhável. Há quem pense que plataformas como as redes sociais e formas de democracia directa poderão substituir a democracia representativa e a imprensa livre e plural com o seu papel de mediadores na relação entre o estado e os cidadãos. A história passada e recente mostra que não é assim tão simples. A verdade que dificilmente se pode ter diálogo sem mediadores é particularmente relembrada nesta época natalícia. Celebra-se o nascimento de Jesus Cristo, o mediador enviado por Deus, para restabelecer o diálogo com os homens.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 891 de 24 de Dezembro de 2018.
Um primeiro aspecto que salta à vista neste imbróglio é o que pretende o ministro com essas declarações. Começou por dizer que o maior contributo que o Estado pode dar ao sector privado é uma agência de notícias para logo depois passar a impressão de estar a destratar os jornais privados por alegadamente estarem a usar o fornecido pela Inforpress em cerca de 50% da sua produção. Aparentemente contradiz-se. Afinal quer ou não canalizar as notícias da agência para os outros órgãos de comunicação social? O sucesso das agências avalia-se pelo número de órgãos que fazem uso da matéria disponibilizada. Não deriva da competição directa com eles. As agências comerciais beneficiam da publicidade no uso do material fornecido às vezes gratuitamente para construírem uma reputação e vender produção exclusiva. As agências estatais, em regra criadas para passar uma imagem favorável do país no exterior e veicular a perspectiva oficial dos acontecimentos, certamente que ficam felizes quando a imprensa repassa as suas notícias. Por ai vê-se a gratuitidade e o contra-senso das afirmações feitas tanto em relação aos jornalistas como aos jornais privados.
E a grande verdade é que o governo não tutela a comunicação social e muito menos exerce sobre ela e sobre os seus profissionais uma tutela de mérito. Se do ponto de vista orgânico e funcional tal pretensão é despropositada, do ponto de vista político é contraproducente. Tudo o que de essencial diz respeito à comunicação social está directamente na Constituição da República no capítulo dos direitos fundamentais, em particular nos artigos sobre liberdade de expressão, direito de informação e liberdade de imprensa. A legislação ordinária não os pode esvaziar e mesmo em sede de revisão constitucional não podem ser limitados. Pode-se acrescentá-los, como aconteceu na revisão de 2010 em que se criou uma autoridade para a comunicação social, eleita pelo parlamento por maioria qualificada, para regular o sector. Procurou-se com isso afastar ainda mais a possibilidade de interferência a coberto do papel que sempre tem o Estado de assegurar as garantias fundamentais para o exercício das liberdades, no caso específico, de promover o pluralismo, impedir a concentração dos órgãos e cuidar da independência dos jornalistas.
Quanto à intervenção directa do Estado na comunicação social, a Constituição estipula tão-somente que deve existir um serviço público de rádio e televisão. Exigências específicas são feitas em relação ao ambiente no serviço público. Insiste-se no pluralismo interno nas notícias, reportagens e entrevistas em concordância com o princípio segundo o qual o Estado não deve impor uma corrente filosófica, estética ou política aos cidadãos. Outrossim, garante-se a independência dos jornalistas perante os vários poderes e impõe-se que os directores dos órgãos do serviço público sejam nomeados com parecer prévio favorável da entidade reguladora. Com este enquadramento restrictivo na intervenção estatal e muito aberto em relação à iniciativa privada o que pode causar estranheza é o facto de após largos anos de regime democrático o sector da comunicação social continue a ser esmagadoramente dominado pelos órgãos públicos. Para isso certamente que conta a história pós-independência em que o regime de partido único praticamente acabou com os privados no sector, como aliás aconteceu noutros sectores. Mais difícil de compreender é porque a hegemonia do público manteve-se até hoje. Só pode ter sido resultado de opções feitas, sendo uma delas certamente o acesso privilegiado dos órgãos públicos ao diminuto mercado publicitário cabo-verdiano deixando em desvantagem o sector privado. Parece que agora algo similar se pretende numa suposta competição entre agência de notícias e jornais online privados, beneficiando a parte estatal de vantagem inicial de investimentos públicos num jogo claramente de cartas marcadas.
O ministro em vários momentos usou expressões como “informação de qualidade”, “qualidade jornalista”, “qualidade de jornalismo” e “imprensa privada de qualidade”. Talvez isso queira transmitir uma preocupação com os chamados “fake news” e exprimir a urgência de os combater. O problema é que o epíteto de “fake news” popularizado por Donald Trump tem sido atirado contra os jornais e outros médias por autocratas e candidatos a autocratas em reacção ao escrutínio apertado em que na democracia estão sujeitos. Se se quiser fazer diferente não é aconselhável que se tenha posicionamentos que podem configurar ataques à imprensa privada e aos jornalistas. Já bem-vindas serão acções concretas no sentido de aumentar o mercado para as publicações com a aquisição para as bibliotecas e outras estruturas públicas e no quadro de campanhas da luta contra a iliteracia funcional. Quanto à questão se há bons ou maus produtos jornalísticos é melhor deixar o cidadão e o consumidor decidir por si próprio em ambiente de liberdade e pluralismo.
Hoje é notório um discurso partilhado por certos políticos e com eco em alguns sectores da sociedade que tende a pôr em questão todas as instituições de mediação, entre as quais os médias, que até agora viabilizaram as democracias, promoveram o desenvolvimento científico e mantiveram os poderes político e económico sob escrutínio. Podem estar desiludidos com a situação actual, mas o facto é que a alternativa – que já se pode vislumbrar na ascensão de autocratas, no crescimento de sentimentos de ódio e ressentimento e de racismo e xenofobia e no tipo de violência espontânea que se assistiu na França nas últimas semanas – não é a mais aconselhável. Há quem pense que plataformas como as redes sociais e formas de democracia directa poderão substituir a democracia representativa e a imprensa livre e plural com o seu papel de mediadores na relação entre o estado e os cidadãos. A história passada e recente mostra que não é assim tão simples. A verdade que dificilmente se pode ter diálogo sem mediadores é particularmente relembrada nesta época natalícia. Celebra-se o nascimento de Jesus Cristo, o mediador enviado por Deus, para restabelecer o diálogo com os homens.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 891 de 24 de Dezembro de 2018.
quarta-feira, dezembro 26, 2018
Diálogo plural das ilhas
Bastas vezes ouve-se repetida a frase “Cabo Verde no
seu processo de desenvolvimento encontra-se numa encruzilhada”. Em
traços largos quer-se com isso dizer que o modelo de desenvolvimento até
agora adoptado já se esgotou e há que encontrar outro caminho; que o
país está sobrecarregado por uma dívida pública acima dos 125% do PIB e
ainda não consegue crescer a taxas que seriam desejáveis para assegurar a
sustentabilidade do desenvolvimento; e que se tornam cada vez mais
notórias as deficiências estruturais em sectores-chave como a
administração pública e a educação que afectam negativamente o ambiente
de negócios, a empregabilidade e a competitividade do país.
Completa
a fotografia o facto notório que o turismo mesmo sendo o grande
impulsionador da economia fica muito aquém do desejável no efeito
positivo de arrastamento sobre o conjunto da economia que mostra ter
noutras paragens. Perante a percepção, mais ou menos disseminada desde
há alguns anos, de se estar quase a “patinar” sem poder ultrapassar os
constrangimentos principais do país, a questão que se coloca é, como
avisa o Banco Mundial no relatório-diagnóstico de Cabo Verde (SCD), se
tudo isso não irá conduzir à exclusão social com possível impacto na
criminalidade e à perda de coesão social com eventuais efeitos nocivos
na estabilidade das instituições, na confiança no futuro e na crença na
democracia.
Entretanto algo mais complicado poderá verificar-se. Quebra nas expectativas futuras das populações pode ter efeitos erosivos no que une a todos nas ilhas se se deixar que disputas por recursos se alimentem de frustrações e ressentimentos, uns apresentando-se como vítimas do centralismo e outros como alvo de discriminações passadas. Uma das consequências de o país nunca ter-se libertado da ajuda externa foi o agravamento das assimetrias regionais e a macrocefalia da capital. Uma outra, com repercussão ainda maior, foi a criação de uma mentalidade hostil a negócios, refractária quanto ao investimento privado e em particular ao investimento directo estrangeiro e de aceitação relutante do turismo. Virada para dentro, centralizadora e rentista, a atitude prevalecente das autoridades não permitiu que se completasse a reorientação da economia para atrair investimento estrangeiro e promover a exportação, precisamente a formula que permitiu a muitos pequenos países crescer, resolver o problema do desemprego e a se desenvolverem. A história passada e recente do país demonstra claramente a ligação causal entre a prosperidade nas ilhas com a ligação que se fizer com o mundo via exportações, serviços prestados ou turismo. Por isso fechar o país mesmo quando se faz conversa para inglês ouvir de atracção de investimento externo, significa de facto condenar as pessoas nas ilhas à uma pobreza estrutural da qual dificilmente têm conseguido escapar.
Da mesma forma simplificar a problemática do desenvolvimento reduzindo-a à questão da centralização sem perceber por que ela existe e o que a mantém, não ajuda. Pode-se abrir caminho para discussões intermináveis à volta da descentralização, da regionalização ou da simples desconcentração dos recursos, mas o facto é que mantendo o quadro actual dificilmente se conseguirá descentralizar. Pelo contrário, o mais provável é que a cultura administrativa burocrática e centralizadora prevalecente ao nível central se reproduza a nível municipal como todos podem verificar que já acontece e no futuro se manifeste a nível regional, se se efectivar a regionalização. É interessante que haja quase unanimidade entre os políticos em designar a centralização como a origem dos problemas. É evidente que convém a muitos políticos locais que os problemas com que se debatem na sua comunidade possam ser imputadas à acção de outras pessoas e resultam do poder estranho e distante. A forma mais primária de fazer política é socorrer-se de armas identitárias e incitar uns a resistir na luta contra o “outro”. Entra-se num jogo em que eleições são ganhas por quem for mais exímio em apresentar e manipular essas paixões. Para os votantes abre-se depois um longo caminho semeado de frustrações e ressentimentos e em que cada vez mais vão-se dar conta dos tiques de cacique e de autoritarismo dos políticos eleitos e em que o desenvolvimento prometido vai continuar a ser mais uma miragem.
É evidente que num país arquipélago como Cabo Verde permitir que se proceda desta forma não deixará de conduzir a situações em que todos perdem. O diálogo que deve existir entre ilhas é substituído por reivindicações extremadas em que cada vez mais haverá menos pejo em fazer uso de cartas identitárias para as justificar. Inversamente, menos enfase será posto no desenvolvimento a partir de uma perspectiva nacional, numa base estratégica do país e sempre com atenção que Cabo Verde é mais do que o somatório das suas ilhas. De uma convivência de séculos as ilhas participaram todas na produção do cadinho cultural de onde veria a emergir a ideia da caboverdianidade e a consciência da nação. O contracto social subsumido na Constituição reconhece isso e afirma a igualdade das ilhas. Não se pode deixar sem contestação a política que – em vez de fazer da diversidade das ilhas uma fonte de enriquecimento cultural e do diálogo plural em busca dos melhores caminhos para o desenvolvimento – se enverede pela vitimização, pelo ressentimento e por exigências de privilégios baseadas em razões dúbias e divisivas.
Na luta pelo desenvolvimento, um dos grandes combates a ser travado deve resultar na inflexão da tendência para se olhar para dentro como se o país tivesse dimensão para sustentar sozinho a dinâmica económica necessária. Ninguém tem, muito menos Cabo Verde que pelos seus números irrisórios em quase tudo, designadamente população, água disponível, terra arável e outros recursos não tem base para economias de escala. Mesmo que tivesse não seria suficiente. A ligação com o mundo em termos de capitais, tecnologia e mercados continuaria a ser imprescindível. Ficar pela bitola baixa que é a oferecida pela ajuda externa só podia conduzir a encruzilhadas difíceis de ultrapassar. Este é um tema que S. Vicente com a sua formação e desenvolvimento ligado ao mundo deveria sempre manter bem vivo no diálogo entre as ilhas. Como se vê, no Sal e na Boa Vista, dinâmica económica ganha-se com ligações das mais variadas e vantajosas com a economia mundial que se puder estabelecer. Mas considerando os aspectos negativos já conhecidos e ainda o facto do impacto do turismo ficar aquém do possível é fundamental que se deixe de ser passivo na relação com os investidores. Há que ser proactivo e estratégico na atracção do investimento estrangeiro e firme, seguro e exigente na qualificação das pessoas.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 890 de 19 de Dezembro de 2018.
Entretanto algo mais complicado poderá verificar-se. Quebra nas expectativas futuras das populações pode ter efeitos erosivos no que une a todos nas ilhas se se deixar que disputas por recursos se alimentem de frustrações e ressentimentos, uns apresentando-se como vítimas do centralismo e outros como alvo de discriminações passadas. Uma das consequências de o país nunca ter-se libertado da ajuda externa foi o agravamento das assimetrias regionais e a macrocefalia da capital. Uma outra, com repercussão ainda maior, foi a criação de uma mentalidade hostil a negócios, refractária quanto ao investimento privado e em particular ao investimento directo estrangeiro e de aceitação relutante do turismo. Virada para dentro, centralizadora e rentista, a atitude prevalecente das autoridades não permitiu que se completasse a reorientação da economia para atrair investimento estrangeiro e promover a exportação, precisamente a formula que permitiu a muitos pequenos países crescer, resolver o problema do desemprego e a se desenvolverem. A história passada e recente do país demonstra claramente a ligação causal entre a prosperidade nas ilhas com a ligação que se fizer com o mundo via exportações, serviços prestados ou turismo. Por isso fechar o país mesmo quando se faz conversa para inglês ouvir de atracção de investimento externo, significa de facto condenar as pessoas nas ilhas à uma pobreza estrutural da qual dificilmente têm conseguido escapar.
Da mesma forma simplificar a problemática do desenvolvimento reduzindo-a à questão da centralização sem perceber por que ela existe e o que a mantém, não ajuda. Pode-se abrir caminho para discussões intermináveis à volta da descentralização, da regionalização ou da simples desconcentração dos recursos, mas o facto é que mantendo o quadro actual dificilmente se conseguirá descentralizar. Pelo contrário, o mais provável é que a cultura administrativa burocrática e centralizadora prevalecente ao nível central se reproduza a nível municipal como todos podem verificar que já acontece e no futuro se manifeste a nível regional, se se efectivar a regionalização. É interessante que haja quase unanimidade entre os políticos em designar a centralização como a origem dos problemas. É evidente que convém a muitos políticos locais que os problemas com que se debatem na sua comunidade possam ser imputadas à acção de outras pessoas e resultam do poder estranho e distante. A forma mais primária de fazer política é socorrer-se de armas identitárias e incitar uns a resistir na luta contra o “outro”. Entra-se num jogo em que eleições são ganhas por quem for mais exímio em apresentar e manipular essas paixões. Para os votantes abre-se depois um longo caminho semeado de frustrações e ressentimentos e em que cada vez mais vão-se dar conta dos tiques de cacique e de autoritarismo dos políticos eleitos e em que o desenvolvimento prometido vai continuar a ser mais uma miragem.
É evidente que num país arquipélago como Cabo Verde permitir que se proceda desta forma não deixará de conduzir a situações em que todos perdem. O diálogo que deve existir entre ilhas é substituído por reivindicações extremadas em que cada vez mais haverá menos pejo em fazer uso de cartas identitárias para as justificar. Inversamente, menos enfase será posto no desenvolvimento a partir de uma perspectiva nacional, numa base estratégica do país e sempre com atenção que Cabo Verde é mais do que o somatório das suas ilhas. De uma convivência de séculos as ilhas participaram todas na produção do cadinho cultural de onde veria a emergir a ideia da caboverdianidade e a consciência da nação. O contracto social subsumido na Constituição reconhece isso e afirma a igualdade das ilhas. Não se pode deixar sem contestação a política que – em vez de fazer da diversidade das ilhas uma fonte de enriquecimento cultural e do diálogo plural em busca dos melhores caminhos para o desenvolvimento – se enverede pela vitimização, pelo ressentimento e por exigências de privilégios baseadas em razões dúbias e divisivas.
Na luta pelo desenvolvimento, um dos grandes combates a ser travado deve resultar na inflexão da tendência para se olhar para dentro como se o país tivesse dimensão para sustentar sozinho a dinâmica económica necessária. Ninguém tem, muito menos Cabo Verde que pelos seus números irrisórios em quase tudo, designadamente população, água disponível, terra arável e outros recursos não tem base para economias de escala. Mesmo que tivesse não seria suficiente. A ligação com o mundo em termos de capitais, tecnologia e mercados continuaria a ser imprescindível. Ficar pela bitola baixa que é a oferecida pela ajuda externa só podia conduzir a encruzilhadas difíceis de ultrapassar. Este é um tema que S. Vicente com a sua formação e desenvolvimento ligado ao mundo deveria sempre manter bem vivo no diálogo entre as ilhas. Como se vê, no Sal e na Boa Vista, dinâmica económica ganha-se com ligações das mais variadas e vantajosas com a economia mundial que se puder estabelecer. Mas considerando os aspectos negativos já conhecidos e ainda o facto do impacto do turismo ficar aquém do possível é fundamental que se deixe de ser passivo na relação com os investidores. Há que ser proactivo e estratégico na atracção do investimento estrangeiro e firme, seguro e exigente na qualificação das pessoas.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 890 de 19 de Dezembro de 2018.
segunda-feira, dezembro 17, 2018
Voluntarismos e omissões
Os problemas de S. Vicente e do seu desenvolvimento
sofreram redobrada atenção do público depois de, no dia 5 de Dezembro, o
Primeiro-Ministro Ulisses Correia e Silva ter dito que a retoma dos
voos internacionais a partir dessa ilha não é uma decisão administrativa
ou política do Governo. Reacções de incredulidade multiplicaram-se na
comunicação social e nas redes sociais vindas de partidos da oposição,
de operadores económicos, de cidadãos comuns e do próprio presidente da
câmara. Ninguém esperava que o chefe do governo reduzisse a problemática
dos transportes da ilha ao “interesse e à viabilidade comercial”, ou
dito de outra forma, a uma simples resposta do mercado.
Se,
de facto, não é bom para o país que seja a TACV a ser o único
instrumento de política dos transportes aéreos do país, com as
consequências que se conhecem da derrapagem económico-financeira da
empresa, também não é de aceitar que o Estado e o governo se omitem em
matéria de ligações inter-ilhas e internacionais. Em última instância
serão sempre decisões políticas e administrativas do governo em matéria
de conectividade do país, de atracção do investimento externo, de
promoção das exportações e do turismo que irão determinar se haverá
aumento suficiente de passageiros e de carga para viabilização comercial
de eventuais rotas. Ou seja, a bola estará sempre do lado do governo.
Tem é que mostrar vontade e foco para a pôr em movimento.
Em situações de falha de mercado ou de mercados imperfeitos como acontece em particular nas realidades insulares o governo não pode abster-se de uma intervenção qualificada e estratégica ficando à espera que o mercado funcione. Algo similar aconteceu com o transporte marítimo inter-ilhas e as consequências são conhecidas. As autoridades durante demasiados anos deixaram o sector praticamente ao sabor do que o mercado oferecia sem a regulação que se impunha, sem uma política de facilitação da ligação inter-ilhas e de diminuição dos custos inerentes em taxas e outras barreiras burocráticas e sem o apoio consistente e estratégico à iniciativa privada nacional no sector. Veja-se agora a situação dos armadores e o custo dos transportes que penaliza todos e desencoraja operadores económicos. Recorde-se as perdas em vidas humanas e em bens materiais de alguns anos atrás.
São visíveis na história do país as consequências dos voluntarismos e omissões dos sucessivos governos ditados às vezes por questões ideológicas, outras vezes pelos constrangimentos impostos pela ajuda externa e outras vezes ainda por falta de visão estratégica. Em vários sectores, inconsistências várias têm impedido que se potencie os investimentos feitos, que se aproveite devidamente as oportunidades e que mesmo os ganhos conseguidos se acumulem e se conjuguem para um maior impacto a todos os níveis e, em particular, para maior dinâmica de crescimento e de criação de emprego. Por isso sabe-se hoje que o país juntou dívida pública crescente com crescimento baixo, que o sistema educativo ficou desajustado para as necessidades do mercado de trabalho e que o turismo comparativamente não traz os benefícios para o resto da economia expectáveis noutras economias insulares similares a Cabo Verde.
Todas as ilhas perderam com políticas desajustadas e incoerentes, mas em S. Vicente a perda provavelmente é maior. É verdade que ao longo dos anos fizeram-se muitos investimentos públicos que se juntaram ao legado acumulado de experiência, de cultura e cosmopolitismo. Mas, sem uma estratégia consistente, o retorno de todo esse potencial tem ficado muito aquém do esperado com prejuízos para a economia do país e para a manutenção de equilíbrios demográficos, socioeconómicos e culturais que convém perservar num país arquipelágico. Um indicador crucial que mostra essa falha de políticas e de estratégia para a ilha e para o país é a percentagem de investimento directo estrangeiro (IDE) que chega a São Vicente. O relatório de UNTACD sobre o IDE apresentado em Génova no dia 4 de Dezembro coloca-a no período entre 2000-20016 em 3%, muito abaixo do que é recebido na Ilha do Sal (50%), na ilha de Santiago (33%) e na Boa Vista (8%). Sem o capital, o know-how, a tecnologia e os mercados que vêm com o IDE, compreende-se que a economia de S. Vicente tenha praticamente estagnado com consequências graves para todo o país.
O padrão de distribuição do IDE pelas ilhas não resultou das acções de promoção e atracção do investimento externo. Segundo o relatório da UNCTAD a posição do país às manifestações de interesse em investir tem sido simplesmente reactiva. Ou seja, não houve um esforço dirigido e estratégico para levar o investimento onde fosse mais proveitoso para o país e ficou-se por onde mais interessava aos investidores. Não estranha que a escolha recaísse sobre o que o país tem de mais valioso em termos de sol, praia e mar, o que implicou custos extraordinários designadamente em migrações internas e em investimentos públicos em estradas, energia, água, saneamento e habitação. A falta de capacidade negocial e também de visão das autoridades não permitiu que, por um lado, se procurasse potenciar o que já estava investido e, por outro, que aceitando investimentos nas ilhas menos povoadas e mais desprovidas de infraestruturas que se insistisse na co-participação dos investidores em remediar a situação particularmente em relação à habitação para os futuros empregados, na maioria vinda de outras ilhas. Nos bairros da Ilha do Sal e da Boa Vista vêem-se os sacrifícios que as pessoas foram forçadas a fazer porque não se soube negociar. Já em São Vicente depara-se com excessivo desemprego porque o governo não se empenhou em levar o IDE para onde o retorno podia ser maior e com menos investimento público e menos sacrifícios para as pessoas.
A TACV foi reestruturada em Maio de 2017 acabando com o serviço doméstico de voos e criando a Cabo Verde Airlines com um modelo de negócios reduzido a um hub situado na Ilha do Sal que procuraria interligar passageiros dos diferentes continentes com possível stopover na ilha. No novo esquema aparentemente ficaram de fora os voos para Lisboa a partir da Praia e de S.Vicente e os voos para Senegal. Não se deu talvez a devida atenção ao facto que a ligação directa com Lisboa a partir de vários pontos do território nacional era vital para a dinâmica económica de várias ilhas e para a conexão com o mundo assim como também o era a ligação com Dakar. Decisões políticas do governo foram entretanto tomadas com consequências directas para as perspectivas de desenvolvimento das ilhas afectadas e em particular para S. Vicente, que tem grande parte da sua economia dependente do nível da sua conectividade com o mundo. Quando há uma inflexão na política de transportes e a TACV retoma os voos para Senegal e para Lisboa a partir da Praia, o governo não pode pura e simplesmente omitir-se. Legitimamente tanto a população como os operadores económicos devem poder exigir que o governo reavalie a situação e tome a medida certa que melhor potencie o desenvolvimento da ilha e do país.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 889 de 12 de Dezembro de 2018.
Em situações de falha de mercado ou de mercados imperfeitos como acontece em particular nas realidades insulares o governo não pode abster-se de uma intervenção qualificada e estratégica ficando à espera que o mercado funcione. Algo similar aconteceu com o transporte marítimo inter-ilhas e as consequências são conhecidas. As autoridades durante demasiados anos deixaram o sector praticamente ao sabor do que o mercado oferecia sem a regulação que se impunha, sem uma política de facilitação da ligação inter-ilhas e de diminuição dos custos inerentes em taxas e outras barreiras burocráticas e sem o apoio consistente e estratégico à iniciativa privada nacional no sector. Veja-se agora a situação dos armadores e o custo dos transportes que penaliza todos e desencoraja operadores económicos. Recorde-se as perdas em vidas humanas e em bens materiais de alguns anos atrás.
São visíveis na história do país as consequências dos voluntarismos e omissões dos sucessivos governos ditados às vezes por questões ideológicas, outras vezes pelos constrangimentos impostos pela ajuda externa e outras vezes ainda por falta de visão estratégica. Em vários sectores, inconsistências várias têm impedido que se potencie os investimentos feitos, que se aproveite devidamente as oportunidades e que mesmo os ganhos conseguidos se acumulem e se conjuguem para um maior impacto a todos os níveis e, em particular, para maior dinâmica de crescimento e de criação de emprego. Por isso sabe-se hoje que o país juntou dívida pública crescente com crescimento baixo, que o sistema educativo ficou desajustado para as necessidades do mercado de trabalho e que o turismo comparativamente não traz os benefícios para o resto da economia expectáveis noutras economias insulares similares a Cabo Verde.
Todas as ilhas perderam com políticas desajustadas e incoerentes, mas em S. Vicente a perda provavelmente é maior. É verdade que ao longo dos anos fizeram-se muitos investimentos públicos que se juntaram ao legado acumulado de experiência, de cultura e cosmopolitismo. Mas, sem uma estratégia consistente, o retorno de todo esse potencial tem ficado muito aquém do esperado com prejuízos para a economia do país e para a manutenção de equilíbrios demográficos, socioeconómicos e culturais que convém perservar num país arquipelágico. Um indicador crucial que mostra essa falha de políticas e de estratégia para a ilha e para o país é a percentagem de investimento directo estrangeiro (IDE) que chega a São Vicente. O relatório de UNTACD sobre o IDE apresentado em Génova no dia 4 de Dezembro coloca-a no período entre 2000-20016 em 3%, muito abaixo do que é recebido na Ilha do Sal (50%), na ilha de Santiago (33%) e na Boa Vista (8%). Sem o capital, o know-how, a tecnologia e os mercados que vêm com o IDE, compreende-se que a economia de S. Vicente tenha praticamente estagnado com consequências graves para todo o país.
O padrão de distribuição do IDE pelas ilhas não resultou das acções de promoção e atracção do investimento externo. Segundo o relatório da UNCTAD a posição do país às manifestações de interesse em investir tem sido simplesmente reactiva. Ou seja, não houve um esforço dirigido e estratégico para levar o investimento onde fosse mais proveitoso para o país e ficou-se por onde mais interessava aos investidores. Não estranha que a escolha recaísse sobre o que o país tem de mais valioso em termos de sol, praia e mar, o que implicou custos extraordinários designadamente em migrações internas e em investimentos públicos em estradas, energia, água, saneamento e habitação. A falta de capacidade negocial e também de visão das autoridades não permitiu que, por um lado, se procurasse potenciar o que já estava investido e, por outro, que aceitando investimentos nas ilhas menos povoadas e mais desprovidas de infraestruturas que se insistisse na co-participação dos investidores em remediar a situação particularmente em relação à habitação para os futuros empregados, na maioria vinda de outras ilhas. Nos bairros da Ilha do Sal e da Boa Vista vêem-se os sacrifícios que as pessoas foram forçadas a fazer porque não se soube negociar. Já em São Vicente depara-se com excessivo desemprego porque o governo não se empenhou em levar o IDE para onde o retorno podia ser maior e com menos investimento público e menos sacrifícios para as pessoas.
A TACV foi reestruturada em Maio de 2017 acabando com o serviço doméstico de voos e criando a Cabo Verde Airlines com um modelo de negócios reduzido a um hub situado na Ilha do Sal que procuraria interligar passageiros dos diferentes continentes com possível stopover na ilha. No novo esquema aparentemente ficaram de fora os voos para Lisboa a partir da Praia e de S.Vicente e os voos para Senegal. Não se deu talvez a devida atenção ao facto que a ligação directa com Lisboa a partir de vários pontos do território nacional era vital para a dinâmica económica de várias ilhas e para a conexão com o mundo assim como também o era a ligação com Dakar. Decisões políticas do governo foram entretanto tomadas com consequências directas para as perspectivas de desenvolvimento das ilhas afectadas e em particular para S. Vicente, que tem grande parte da sua economia dependente do nível da sua conectividade com o mundo. Quando há uma inflexão na política de transportes e a TACV retoma os voos para Senegal e para Lisboa a partir da Praia, o governo não pode pura e simplesmente omitir-se. Legitimamente tanto a população como os operadores económicos devem poder exigir que o governo reavalie a situação e tome a medida certa que melhor potencie o desenvolvimento da ilha e do país.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 889 de 12 de Dezembro de 2018.
segunda-feira, dezembro 10, 2018
A Morna que nos une
A primeira celebração do Dia da Morna a 3 de
Dezembro revestiu-se de um simbolismo especial nestes tempos divisivos
que se vivem actualmente. Materializou-se a vontade unânime do
parlamento de estabelecer por lei a data de nascimento de B.Léza como o
dia para exaltar a expressão musical caboverdiana universalmente
conhecida por morna e para homenagear os seus compositores e
intérpretes. Também serviu para mobilizar a energia da nação para a
tarefa ingente de conseguir a consagração da morna como Património
Imaterial da Humanidade, uma pretensão de Cabo Verde que já foi entregue
à UNESCO, desde Março deste ano. Ao juntar os caboverdianos, a morna,
essa criação do povo das ilhas com mais de um século de existência,
reafirma mais vez o seu papel identitário de primeira grandeza. A par
com a literatura com dos pré-claridosos e dos Claridosos e também com a
língua crioula na qual se expressa, confirma-se como um dos ingredientes
essenciais na emergência da consciência da nação.
Interessante como a reunião à volta da morna
é universal no mundo cabo-verdiano. Aliás, como também é a língua
crioula. Abrange todas ilhas, perpassa todos os extractos sociais, chega
a todas as idades e é acarinhada em todas as comunidades emigradas.
Neste aspecto difere por exemplo do reggae que há poucos dias foi reconhecida pela Unesco como Património Imaterial da Humanidade. Segundo a nota da Unesco, o reggae
era voz dos marginalizados na ilha de Jamaica que depois foi adoptada
por vários outros grupos étnicos e religiosos contribuindo para o
discurso internacional em matéria de injustiça, resistência, amor e
humanidade. Já a morna não é evidente que tivesse uma origem em
algum extracto da sociedade e expressasse algum tipo de resistência.
Era cantada e sentida por toda gente. Reflectia a condição humana nas
ilhas com as suas dificuldades e aspirações e também os dilemas postos
por uma vivência num ambiente de escassez, de falta de oportunidades e
de futuro incerto. Apropriada por todos, conferia uma identidade, uma
ideia de pertença que não se afirmava em contraposição a outros próximos
ou menos próximos mas que pelo contrário unia a todos num destino
comum.
Nestes tempos em que por todo o mundo nações ameaçam fracturar-se na busca incessante por identidades na base étnica, religiosa e racial, género é reconfortante para o cabo-verdiano perceber que a sua morna é um cimento forte que mantém intacta a ideia de pertença à caboverdianidade, não interessando onde a pessoa se encontra no momento, seja no país, nas comunidades emigradas ou em qualquer parte do mundo. Até tem o conforto de que o que o agarra à sua música não é uma idiossincrasia particular de alguém cuja existência como povo brotou de algumas ilhas no meio do oceano Atlântico. Depois da Cesária nas mornas por ela cantadas ter levado o sentimento do cabo-verdiano a audiências entusiásticas da França ao Japão, dos Estados Unidos ao Tadjiquistão e do Brasil á China não lhe resta dúvida quanto à universalidade da música criada por B.Léza e outros compositores populares em todas as ilhas. Mais uma razão para se promover a morna com vigor junto às novas gerações, levá-la às escolas, difundi-la na comunicação social ciente de que constitui um factor de unidade nacional fortíssimo que não se pode dispensar nestes tempos em que matérias fracturantes e lógicas de vitimização criam tensões e ressentimentos que com o tempo fragilizam e até ameaçam rasgar o tecido social.
Aliás, às vezes parece que não há uma preocupação muito grande em manter a nação e a consciência nacional protegidas de eventuais forças centrífugas que as podem enfraquecer. E isso pode constituir uma falha prenhe de consequências. É um facto que, por exemplo, nas democracias o dissenso só é possível se houver consenso quanto à questões fundamentais como o pluralismo, a liberdade de expressão, a separação de poderes e a independência dos tribunais. Da mesma forma que a diversidade só é possível numa comunidade nacional se houver a aceitação geral do essencial que une todos os membros. Por analogia, pode-se ver a importância de se reforçar os elementos identitários que ajudam a manter a ideia da nação e a importância do destino comum e compartilhado quando se interage num mundo global com povos, culturas e hábitos diferentes. Ninguém desconhece que a estabilidade política é importante para o país se manter atractivo, mas não se deve perder de vista que é também fundamental não deixar enfraquecer a consciência nacional essencial para que a relação do país como o mundo se estabeleça numa base segura, ousada e com espírito cosmopolita e nunca de vítima, de timidez e baseada no assistencialismo.
A ideia da nação cabo-verdiana é muito anterior à independência. Não é uma identidade conseguida em oposição ao outro como poderiam sugerir as noções hoje datadas de “nação forjada na luta contra o colonialismo”. Nem é uma identidade que se reforça em resistências intermináveis e patéticas contra a língua portuguesa com as consequências que já são conhecidas de todos. Nem muito menos no resgate de um passado escravocrata que só serve para inverter o percurso já feito há quase um século de emergência da consciência da caboverdianidade tão bem expressa na morna e na literatura dos claridosos. Quem produziu as canções, os livros, contos e poemas e também quem reconheceu toda essa obra como sua e dela se apropriou não quis apresentar-se ao mundo como vítima ou como descendentes de escravos. Quiseram sim, ser vistos como um povo que apesar das agruras da existência nas ilhas nunca perdeu o alento, nem alegria de viver e nem tão pouco a esperança no futuro enfrentando as dificuldades da vida no país e no estrangeiro com o orgulho de ter nascido cabo-verdiano. Este é o legado que eles nos deixaram e que todos os anos deve ser renovado no Dia Nacional da Morna que nos faz sentir cabo-verdianos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 888 de 05 de Dezembro de 2018.
Nestes tempos em que por todo o mundo nações ameaçam fracturar-se na busca incessante por identidades na base étnica, religiosa e racial, género é reconfortante para o cabo-verdiano perceber que a sua morna é um cimento forte que mantém intacta a ideia de pertença à caboverdianidade, não interessando onde a pessoa se encontra no momento, seja no país, nas comunidades emigradas ou em qualquer parte do mundo. Até tem o conforto de que o que o agarra à sua música não é uma idiossincrasia particular de alguém cuja existência como povo brotou de algumas ilhas no meio do oceano Atlântico. Depois da Cesária nas mornas por ela cantadas ter levado o sentimento do cabo-verdiano a audiências entusiásticas da França ao Japão, dos Estados Unidos ao Tadjiquistão e do Brasil á China não lhe resta dúvida quanto à universalidade da música criada por B.Léza e outros compositores populares em todas as ilhas. Mais uma razão para se promover a morna com vigor junto às novas gerações, levá-la às escolas, difundi-la na comunicação social ciente de que constitui um factor de unidade nacional fortíssimo que não se pode dispensar nestes tempos em que matérias fracturantes e lógicas de vitimização criam tensões e ressentimentos que com o tempo fragilizam e até ameaçam rasgar o tecido social.
Aliás, às vezes parece que não há uma preocupação muito grande em manter a nação e a consciência nacional protegidas de eventuais forças centrífugas que as podem enfraquecer. E isso pode constituir uma falha prenhe de consequências. É um facto que, por exemplo, nas democracias o dissenso só é possível se houver consenso quanto à questões fundamentais como o pluralismo, a liberdade de expressão, a separação de poderes e a independência dos tribunais. Da mesma forma que a diversidade só é possível numa comunidade nacional se houver a aceitação geral do essencial que une todos os membros. Por analogia, pode-se ver a importância de se reforçar os elementos identitários que ajudam a manter a ideia da nação e a importância do destino comum e compartilhado quando se interage num mundo global com povos, culturas e hábitos diferentes. Ninguém desconhece que a estabilidade política é importante para o país se manter atractivo, mas não se deve perder de vista que é também fundamental não deixar enfraquecer a consciência nacional essencial para que a relação do país como o mundo se estabeleça numa base segura, ousada e com espírito cosmopolita e nunca de vítima, de timidez e baseada no assistencialismo.
A ideia da nação cabo-verdiana é muito anterior à independência. Não é uma identidade conseguida em oposição ao outro como poderiam sugerir as noções hoje datadas de “nação forjada na luta contra o colonialismo”. Nem é uma identidade que se reforça em resistências intermináveis e patéticas contra a língua portuguesa com as consequências que já são conhecidas de todos. Nem muito menos no resgate de um passado escravocrata que só serve para inverter o percurso já feito há quase um século de emergência da consciência da caboverdianidade tão bem expressa na morna e na literatura dos claridosos. Quem produziu as canções, os livros, contos e poemas e também quem reconheceu toda essa obra como sua e dela se apropriou não quis apresentar-se ao mundo como vítima ou como descendentes de escravos. Quiseram sim, ser vistos como um povo que apesar das agruras da existência nas ilhas nunca perdeu o alento, nem alegria de viver e nem tão pouco a esperança no futuro enfrentando as dificuldades da vida no país e no estrangeiro com o orgulho de ter nascido cabo-verdiano. Este é o legado que eles nos deixaram e que todos os anos deve ser renovado no Dia Nacional da Morna que nos faz sentir cabo-verdianos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 888 de 05 de Dezembro de 2018.
segunda-feira, dezembro 03, 2018
É a hora do sector privado?
Há anos que governantes de todos os quadrantes
políticos vêm prometendo delegar para o sector privado um papel
preponderante na economia nacional. Uns talvez façam a promessa com
convicção e outros nem tanto. E assim é porque após a queda do muro de
Berlim e do desmoronar das economias estatizadas e de planificação
central já ninguém defende a marginalização ou o aniquilamento da
economia privada. Também há que ter em conta os incentivos para se estar
em sintonia, pelo menos formalmente, com os relatórios das organizações
multilaterais que insistem na importância do sector privado e põem
ênfase particular no empreendedorismo e no seu papel na criação de
empregos e no crescimento económico.
Não
fica, pois, nada fácil escapar ao “discurso” dominante, ou pretender
que não se o absorve nos programas de governação quando os tempos, o
envolvente externo e as dependências múltiplas o favorecem. O problema é
que os anos e os governos passam e, independente de mais ou menos
convicção na promoção do sector privado, o panorama global
fundamentalmente não se muda muito e a centralidade do Estado na
economia mantém-se.
De facto, na prática, não se nota evolução significativa no sector privado capaz de desencadear a transformação estrutural essencial para o desenvolvimento sustentado do país. A conexão com o investimento externo ainda não é suficientemente expressiva. Nichos ou segmentos dinâmicos do mercado interno e externo estão por ser identificados. Os investimentos públicos não se têm mostrado particularmente vantajosos para o empresariado nacional. O aprovisionamento do Estado em bens e serviços não dá sinais claros de fazer parte de uma política compreensiva de apoio e estímulo à actividade económica local e nacional. A preocupação com o financiamento tem dado resultados na facilitação de crédito bancário, mas muito aquém do esperado. As dificuldades das empresas são múltiplas e não se resumem ao financiamento, mas têm também a ver com a relação com a administração pública burocratizada, os custos de factores, os problemas de transportes, concorrência desleal e falta de regulação, o que facilita a actividade informal.
Não espanta que após longos anos de discurso, supostamente a favor de uma economia de iniciativa privada, o que se constata no país é que se estará perante um sector em algumas áreas estagnado, noutras em retirada e noutras ainda com alguma dinâmica e mesmo mostrando potencialidade, mas já sem evidente possibilidade de ir mais além. A agricultura sem muitos produtos de alto valor acrescentado e com limitações de mercado – entre outras razões por causa de transportes, standards de segurança alimentar e deficiências nas redes de distribuição – dificilmente consegue sair do nível de subsistência, com toda a precariedade que acarreta. No comércio a retalho é visível como a presença de lojas ligadas a grupos estrangeiros vêm ganhando espaço em todo o território nacional, chegando ao ponto de, em algumas ilhas, terem atitudes monopolistas. Foi notório como o empresariado nacional na construção saiu beliscado dos investimentos nas obras públicas durante a primeira metade desta década devido às opções que objectivamente favoreceram outros operadores.
Também a falta de uma política adequada para os transportes marítimos não privilegiou a classe dos armadores e, pelo contrário, contribuiu para os deixar numa situação em que poderão vir a ficar de fora da solução encontrada para garantir as ligações inter-ilhas. No sector da pesca, mesmo com o Frescomar e outras oportunidades que surgiram, não se chegou a focalizar com determinação no aumento da capacidade nacional de captura de peixes e no que poderia representar para a consolidação de privados nacionais no sector. Faltou uma estratégia deliberada nesse sentido, como faltou noutros sectores designadamente os ligados às tecnologias de informação e comunicação em que o foco na NOSI impediu que oportunidades outras, designadamente nas chamadas Business Processing Operations (BPOs), fossem consideradas e apoiadas. A ausência de uma estratégia para o sector privado nacional mostrou-se ainda mais quando investimentos de grande dimensão se realizavam no turismo e não houve preocupação sistemática para procurar pontos de entrosamento com a actividade empresarial nacional na perspectiva de a fortalecer, de a incentivar a ser competitiva e de a elevar em qualidade. Devia ser a oportunidade, há muita esperada, de dar o salto na actividade privada do país sob estímulo de uma procura externa intensa, permanente e próxima, ou seja de “exportar cá dentro”. As situações caóticas permitidas na ilha do Sal e da Boavista são consequência dessa ausência de políticas que ainda mais sacrificam as pessoas que vão ali trabalhar, negando-lhes qualidade de vida e os meios para se valorizarem e crescerem com a expansão do turismo nas suas vertentes possíveis.
A UNCTAD do sistema das Nações Unidas, no seu último relatório de Novembro de 2018 sobre a importância do empreendedorismo na transformação estrutural dos países menos desenvolvidos (LCD), foi clara em dizer que muitas vezes o discurso do empreendedorismo é feito só na perspectiva de auto emprego, de combate à pobreza e de melhoria de qualidade de vida. Ou seja, a acção do Estado, e de outras entidades próximas, fica pela promoção do empreendedorismo de necessidade e não dá a devida atenção ao empreendedorismo de oportunidade, aquele que pode operar transformações estruturais passíveis de garantir sustentabilidade futura ao desenvolvimento do país. No relatório insiste-se nas políticas industriais dirigidas, para fazer crescer o sector privado nacional em áreas chave e estratégicas, na perspectiva de exportação ou de criar aglomerados de empresas conexas. Aconselha-se que se optimize o impacto dos investimentos externos com uma maior articulação com empresas nacionais fornecedoras de bens e serviços. Diz-se claramente que o Estado não deve ficar pelo financiamento, deve ir mais além e apoiar o empreendedor em várias fases do seu negócio, designadamente no desenvolvimento do produto e dos mercados e em ganhar dimensão, como aliás fazem os fundos de capital de risco em vários países. Outro instrumento que aconselham a usar para estimular é o aprovisionamento em bens e serviços no quadro de uma política clara e transparente e que revele opções, sofisticação de procura e visão de futuro, como fez a Costa Rica para dar espaço e incentivar o sector privado a desenvolver-se no sentido escolhido.
Os países bem sucedidos na luta pelo desenvolvimento não foram certamente os que que se deixaram ficar por slogans como start ups e adopção de modismos à volta da inovação e empreendedorismo. Já se teve disso no passado recente e vê-se onde o país e o seu sector privado se encontram neste momento. Como frisa o relatório citado há que se ultrapassar esses discurso e mover-se decididamente com políticas compreensivas e abrangente para a transformação estrutural do país, a exemplo do que os países bem sucedidos fizeram. Continuar a falar do sector privado e vê-lo a mirrar todos os dias, a perder oportunidade, a não ser competitivo e a frustrar-se com a indiferença do Estado não é o que certamente se pretende. O país é pequeno e amiúde revela falhas de mercado, ou insuficiência no funcionamento, que o mercado por si só não consegue desenvolver. Aí precisa do Estado empreendedor de que fala Mariana Mazzucatto e encontra respaldo no exemplo de vários países desenvolvidos. Nesses países, o Estado teve um papel decisivo para darem o salto em frente, crescerem e internacionalizarem-se. Por ai é que se tem que caminhar, para que finalmente o sector privado possa desempenhar esse prometido papel preponderante.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 887 de 28 de novembro de 2018.
De facto, na prática, não se nota evolução significativa no sector privado capaz de desencadear a transformação estrutural essencial para o desenvolvimento sustentado do país. A conexão com o investimento externo ainda não é suficientemente expressiva. Nichos ou segmentos dinâmicos do mercado interno e externo estão por ser identificados. Os investimentos públicos não se têm mostrado particularmente vantajosos para o empresariado nacional. O aprovisionamento do Estado em bens e serviços não dá sinais claros de fazer parte de uma política compreensiva de apoio e estímulo à actividade económica local e nacional. A preocupação com o financiamento tem dado resultados na facilitação de crédito bancário, mas muito aquém do esperado. As dificuldades das empresas são múltiplas e não se resumem ao financiamento, mas têm também a ver com a relação com a administração pública burocratizada, os custos de factores, os problemas de transportes, concorrência desleal e falta de regulação, o que facilita a actividade informal.
Não espanta que após longos anos de discurso, supostamente a favor de uma economia de iniciativa privada, o que se constata no país é que se estará perante um sector em algumas áreas estagnado, noutras em retirada e noutras ainda com alguma dinâmica e mesmo mostrando potencialidade, mas já sem evidente possibilidade de ir mais além. A agricultura sem muitos produtos de alto valor acrescentado e com limitações de mercado – entre outras razões por causa de transportes, standards de segurança alimentar e deficiências nas redes de distribuição – dificilmente consegue sair do nível de subsistência, com toda a precariedade que acarreta. No comércio a retalho é visível como a presença de lojas ligadas a grupos estrangeiros vêm ganhando espaço em todo o território nacional, chegando ao ponto de, em algumas ilhas, terem atitudes monopolistas. Foi notório como o empresariado nacional na construção saiu beliscado dos investimentos nas obras públicas durante a primeira metade desta década devido às opções que objectivamente favoreceram outros operadores.
Também a falta de uma política adequada para os transportes marítimos não privilegiou a classe dos armadores e, pelo contrário, contribuiu para os deixar numa situação em que poderão vir a ficar de fora da solução encontrada para garantir as ligações inter-ilhas. No sector da pesca, mesmo com o Frescomar e outras oportunidades que surgiram, não se chegou a focalizar com determinação no aumento da capacidade nacional de captura de peixes e no que poderia representar para a consolidação de privados nacionais no sector. Faltou uma estratégia deliberada nesse sentido, como faltou noutros sectores designadamente os ligados às tecnologias de informação e comunicação em que o foco na NOSI impediu que oportunidades outras, designadamente nas chamadas Business Processing Operations (BPOs), fossem consideradas e apoiadas. A ausência de uma estratégia para o sector privado nacional mostrou-se ainda mais quando investimentos de grande dimensão se realizavam no turismo e não houve preocupação sistemática para procurar pontos de entrosamento com a actividade empresarial nacional na perspectiva de a fortalecer, de a incentivar a ser competitiva e de a elevar em qualidade. Devia ser a oportunidade, há muita esperada, de dar o salto na actividade privada do país sob estímulo de uma procura externa intensa, permanente e próxima, ou seja de “exportar cá dentro”. As situações caóticas permitidas na ilha do Sal e da Boavista são consequência dessa ausência de políticas que ainda mais sacrificam as pessoas que vão ali trabalhar, negando-lhes qualidade de vida e os meios para se valorizarem e crescerem com a expansão do turismo nas suas vertentes possíveis.
A UNCTAD do sistema das Nações Unidas, no seu último relatório de Novembro de 2018 sobre a importância do empreendedorismo na transformação estrutural dos países menos desenvolvidos (LCD), foi clara em dizer que muitas vezes o discurso do empreendedorismo é feito só na perspectiva de auto emprego, de combate à pobreza e de melhoria de qualidade de vida. Ou seja, a acção do Estado, e de outras entidades próximas, fica pela promoção do empreendedorismo de necessidade e não dá a devida atenção ao empreendedorismo de oportunidade, aquele que pode operar transformações estruturais passíveis de garantir sustentabilidade futura ao desenvolvimento do país. No relatório insiste-se nas políticas industriais dirigidas, para fazer crescer o sector privado nacional em áreas chave e estratégicas, na perspectiva de exportação ou de criar aglomerados de empresas conexas. Aconselha-se que se optimize o impacto dos investimentos externos com uma maior articulação com empresas nacionais fornecedoras de bens e serviços. Diz-se claramente que o Estado não deve ficar pelo financiamento, deve ir mais além e apoiar o empreendedor em várias fases do seu negócio, designadamente no desenvolvimento do produto e dos mercados e em ganhar dimensão, como aliás fazem os fundos de capital de risco em vários países. Outro instrumento que aconselham a usar para estimular é o aprovisionamento em bens e serviços no quadro de uma política clara e transparente e que revele opções, sofisticação de procura e visão de futuro, como fez a Costa Rica para dar espaço e incentivar o sector privado a desenvolver-se no sentido escolhido.
Os países bem sucedidos na luta pelo desenvolvimento não foram certamente os que que se deixaram ficar por slogans como start ups e adopção de modismos à volta da inovação e empreendedorismo. Já se teve disso no passado recente e vê-se onde o país e o seu sector privado se encontram neste momento. Como frisa o relatório citado há que se ultrapassar esses discurso e mover-se decididamente com políticas compreensivas e abrangente para a transformação estrutural do país, a exemplo do que os países bem sucedidos fizeram. Continuar a falar do sector privado e vê-lo a mirrar todos os dias, a perder oportunidade, a não ser competitivo e a frustrar-se com a indiferença do Estado não é o que certamente se pretende. O país é pequeno e amiúde revela falhas de mercado, ou insuficiência no funcionamento, que o mercado por si só não consegue desenvolver. Aí precisa do Estado empreendedor de que fala Mariana Mazzucatto e encontra respaldo no exemplo de vários países desenvolvidos. Nesses países, o Estado teve um papel decisivo para darem o salto em frente, crescerem e internacionalizarem-se. Por ai é que se tem que caminhar, para que finalmente o sector privado possa desempenhar esse prometido papel preponderante.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 887 de 28 de novembro de 2018.
segunda-feira, novembro 26, 2018
Verdades sem rebuço
De tempos em tempos ouvem-se vozes a insistir que o
país “caía na real”. Com tal apelo pretende-se que se vá para além da
cacofonia diária, em que tudo parece girar à volta de conferências,
workshops, auscultações da população e socializações entremeadas de
celebração de datas internacionais, e se procure ter uma abordagem
estratégica para os problemas do país.
Uma recente chamada à realidade é o Diagnóstico Estratégico do País (SCD) produzido pelo Banco Mundial e apresentado numa cerimónia pública presidida pelo Vice-Primeiro Ministro e Ministro de Finanças. O ponto de partida do documento é a constatação que a crise financeira de 2008 com os seus efeitos súbitos, dramáticos, e sustentados no crescimento económico deixou a nu o esgotamento do modelo de desenvolvimento de Cabo Verde. Perante isso a questão que se coloca é em que medida os governantes nos anos seguintes à crise se aperceberam que o país teria que adoptar um outro modelo e reconheceram a urgência das reformas a serem feitas para que o crescimento económico fosse retomado.
A realidade do crescimento raso que se abateu sobre o país nos oito anos pós-crise acompanhado do crescimento da dívida pública em mais de 70 pontos percentuais segundo o texto do diagnóstico SCD indicia que no essencial não se arrepiou caminho do outro modelo. Simplesmente continuou-se a injectar mais recursos agora provenientes do endividamento externo na economia de forma mais ineficiente e com menos retorno (20%). Em relação ao turismo, mesmo com o aumento do número de turistas não houve uma reorientação estratégica do sector e o resultado é o que diz o BM: “embora a chegada de turistas continuou a crescer, o lucro por visitante diminuiu para quase metade entre 2007 e 2015”. Não se conseguiu que o tecido económico e empresarial cabo-verdiano se articulasse suficientemente com os investimentos estrangeiros de forma a dinamizar globalmente a economia nacional. Contribuiu para isso, entre outros factores, a preocupação dos operadores turísticos com a “falta de confiabilidade do abastecimento local e da segurança alimentar”.
Felizmente nos últimos dois anos, em boa parte devido à dinâmica do espaço europeu e da economia mundial e também devido à mudança para um governo mais amigo da actividade empresarial, o país já está a crescer a taxas entre 4 e 5 por cento do PIB que, segundo os especialistas, correspondem ao nível do potencial de crescimento. Mas como reconhecem todos, o país precisa crescer muito mais e para isso tem que fazer as reformas para elevar o potencial. O SCD aconselha que tem que mudar de paradigma e adoptar um novo modelo económico. O outro esgotou-se há muito, em 2008, como foi referido anteriormente. No documento do BM diz-se que, a curto prazo, só há dois caminhos possíveis: 1- diversificar o turismo para deixar de ser apenas sol, praia e mar e para também abranger as outras ilhas com as ofertas que eventualmente terão em ecoturismo, trekking, aventura e história; 2- Explorar nichos de produtos e nichos de mercados como o comércio orgânico, mercado étnico, produtos de nostalgia e em geral produtos de baixo volume e alto valor agregado. Em relação aos sectores que, há anos, tanto o actual como o anterior governo vêm assinalando como grandes apostas do país, designadamente o centro financeiro, tecnologias de informação e comunicação e hub logístico para aviação e transportes marítimos o BM só os vê como viáveis a médio prazo.
O cepticismo do BM tem a ver com os grandes constrangimentos que persistem em Cabo Verde e retiram competitividade à economia, contribuem para baixa produtividade, não lhe permitem potenciar as suas vantagens comparativas e deixam o seu ambiente de negócios pouco atractivo. O documento identifica onze empecilhos que agrupa em quatro categorias: falta de capital humano, fraca conectividade, ineficiência e ineficácia do sector público e falta de resiliência a choques externos, climáticos e outros. Por isso considera que para se ter uma economia centrada em logística não basta construir grandes infraestruturas. Há que criar uma plataforma de negócios para os quais o ambiente actual não é o ideal. O mesmo se passa com as TIC e com o centro financeiro que para além disso são afectados pelo alto custo da energia, pela qualidade relativamente baixa do ensino e pelas fragilidades no domínio dos transportes. Daí o BM não ter grande esperança no arranque desses sectores pelo menos a curto prazo particularmente quando na administração pública se constata, por exemplo, que a concretização das reformas é fraca, privilegiam-se processos em detrimento de resultados, falta coordenação entre os organismos, há baixa capacidade técnica e a descentralização não foi eficaz.
O que o Banco Mundial aponta no seu documento de diagnóstico não difere muito do que foi dito e redito em Cabo Verde em vários momentos. O problema aparentemente é como diz Thomas Friedman é que não há energia de baixo para forçar as reformas nem vontade de cima para as fazer valer e materializar. Resta a pressão que vem de fora e traz as exigências em termos de competitividade, produtividade e qualificação nos domínios do conhecimento indispensáveis para melhor integração nas cadeias globais de valor. Essa pressão revela-se em sociedades bloqueadas pela inércia como último recurso para encontrar energia e vontade para mudar o modelo de desenvolvimento e imprimir dinâmica sustentada à economia. Não desapareceram as tentações em reproduzir o modelo que há dez anos se mostrou claramente esgotado.
O GAO ainda ontem, dia 20, em comunicado, chamava a atenção que, em matéria de negociações para a privatização da TACV, não obstante ser “importante demonstrar resultados para garantir o apoio ao orçamento, as autoridades devem procurar cumprir com os princípios de competitividade, abertura e optimização da afectação dos recursos”. A este reparo não deve ser alheio a informação no SCD do Banco Mundial que o plano de negócios com a Icelandair “exige que o governo assuma o custo de aquisição (procuring na versão inglesa) de uma nova frota (aproximadamente cinco aviões)”. Como o Banco Mundial, também o GAO deverá estar preocupado como o facto de o custo do empreendimento ir “certamente aumentar ainda mais o stock da dívida”. O governo através do VPM e Ministro das Finanças finalmente clarificou que os aviões são adquiridos em regime de leasing e nesse quadro toda a operação é da responsabilidade da TACV e do accionista Estado mas que com a privatização deverá passar para os accionistas. Mas a verdade é que se desconhecia que depois de terminado o contracto de gestão com a Icelendair e antes da privatização devia verificar-se a expansão da frota não com os 11 aviões prometidos da Icelendair mas com cinco adquiridos na base de leasing com custos assumidos por Cabo Verde. Mais transparência nos assuntos públicos é fundamental para que o país não fique amarrado em modelos que já se esgotaram e submerso em constrangimentos que não reconhece ao mesmo tempo que lhe é acenado com possíveis futuros para os quais nem sabe que não está preparado para construir.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 886 de 21 de novembro de 2018.
Uma recente chamada à realidade é o Diagnóstico Estratégico do País (SCD) produzido pelo Banco Mundial e apresentado numa cerimónia pública presidida pelo Vice-Primeiro Ministro e Ministro de Finanças. O ponto de partida do documento é a constatação que a crise financeira de 2008 com os seus efeitos súbitos, dramáticos, e sustentados no crescimento económico deixou a nu o esgotamento do modelo de desenvolvimento de Cabo Verde. Perante isso a questão que se coloca é em que medida os governantes nos anos seguintes à crise se aperceberam que o país teria que adoptar um outro modelo e reconheceram a urgência das reformas a serem feitas para que o crescimento económico fosse retomado.
A realidade do crescimento raso que se abateu sobre o país nos oito anos pós-crise acompanhado do crescimento da dívida pública em mais de 70 pontos percentuais segundo o texto do diagnóstico SCD indicia que no essencial não se arrepiou caminho do outro modelo. Simplesmente continuou-se a injectar mais recursos agora provenientes do endividamento externo na economia de forma mais ineficiente e com menos retorno (20%). Em relação ao turismo, mesmo com o aumento do número de turistas não houve uma reorientação estratégica do sector e o resultado é o que diz o BM: “embora a chegada de turistas continuou a crescer, o lucro por visitante diminuiu para quase metade entre 2007 e 2015”. Não se conseguiu que o tecido económico e empresarial cabo-verdiano se articulasse suficientemente com os investimentos estrangeiros de forma a dinamizar globalmente a economia nacional. Contribuiu para isso, entre outros factores, a preocupação dos operadores turísticos com a “falta de confiabilidade do abastecimento local e da segurança alimentar”.
Felizmente nos últimos dois anos, em boa parte devido à dinâmica do espaço europeu e da economia mundial e também devido à mudança para um governo mais amigo da actividade empresarial, o país já está a crescer a taxas entre 4 e 5 por cento do PIB que, segundo os especialistas, correspondem ao nível do potencial de crescimento. Mas como reconhecem todos, o país precisa crescer muito mais e para isso tem que fazer as reformas para elevar o potencial. O SCD aconselha que tem que mudar de paradigma e adoptar um novo modelo económico. O outro esgotou-se há muito, em 2008, como foi referido anteriormente. No documento do BM diz-se que, a curto prazo, só há dois caminhos possíveis: 1- diversificar o turismo para deixar de ser apenas sol, praia e mar e para também abranger as outras ilhas com as ofertas que eventualmente terão em ecoturismo, trekking, aventura e história; 2- Explorar nichos de produtos e nichos de mercados como o comércio orgânico, mercado étnico, produtos de nostalgia e em geral produtos de baixo volume e alto valor agregado. Em relação aos sectores que, há anos, tanto o actual como o anterior governo vêm assinalando como grandes apostas do país, designadamente o centro financeiro, tecnologias de informação e comunicação e hub logístico para aviação e transportes marítimos o BM só os vê como viáveis a médio prazo.
O cepticismo do BM tem a ver com os grandes constrangimentos que persistem em Cabo Verde e retiram competitividade à economia, contribuem para baixa produtividade, não lhe permitem potenciar as suas vantagens comparativas e deixam o seu ambiente de negócios pouco atractivo. O documento identifica onze empecilhos que agrupa em quatro categorias: falta de capital humano, fraca conectividade, ineficiência e ineficácia do sector público e falta de resiliência a choques externos, climáticos e outros. Por isso considera que para se ter uma economia centrada em logística não basta construir grandes infraestruturas. Há que criar uma plataforma de negócios para os quais o ambiente actual não é o ideal. O mesmo se passa com as TIC e com o centro financeiro que para além disso são afectados pelo alto custo da energia, pela qualidade relativamente baixa do ensino e pelas fragilidades no domínio dos transportes. Daí o BM não ter grande esperança no arranque desses sectores pelo menos a curto prazo particularmente quando na administração pública se constata, por exemplo, que a concretização das reformas é fraca, privilegiam-se processos em detrimento de resultados, falta coordenação entre os organismos, há baixa capacidade técnica e a descentralização não foi eficaz.
O que o Banco Mundial aponta no seu documento de diagnóstico não difere muito do que foi dito e redito em Cabo Verde em vários momentos. O problema aparentemente é como diz Thomas Friedman é que não há energia de baixo para forçar as reformas nem vontade de cima para as fazer valer e materializar. Resta a pressão que vem de fora e traz as exigências em termos de competitividade, produtividade e qualificação nos domínios do conhecimento indispensáveis para melhor integração nas cadeias globais de valor. Essa pressão revela-se em sociedades bloqueadas pela inércia como último recurso para encontrar energia e vontade para mudar o modelo de desenvolvimento e imprimir dinâmica sustentada à economia. Não desapareceram as tentações em reproduzir o modelo que há dez anos se mostrou claramente esgotado.
O GAO ainda ontem, dia 20, em comunicado, chamava a atenção que, em matéria de negociações para a privatização da TACV, não obstante ser “importante demonstrar resultados para garantir o apoio ao orçamento, as autoridades devem procurar cumprir com os princípios de competitividade, abertura e optimização da afectação dos recursos”. A este reparo não deve ser alheio a informação no SCD do Banco Mundial que o plano de negócios com a Icelandair “exige que o governo assuma o custo de aquisição (procuring na versão inglesa) de uma nova frota (aproximadamente cinco aviões)”. Como o Banco Mundial, também o GAO deverá estar preocupado como o facto de o custo do empreendimento ir “certamente aumentar ainda mais o stock da dívida”. O governo através do VPM e Ministro das Finanças finalmente clarificou que os aviões são adquiridos em regime de leasing e nesse quadro toda a operação é da responsabilidade da TACV e do accionista Estado mas que com a privatização deverá passar para os accionistas. Mas a verdade é que se desconhecia que depois de terminado o contracto de gestão com a Icelendair e antes da privatização devia verificar-se a expansão da frota não com os 11 aviões prometidos da Icelendair mas com cinco adquiridos na base de leasing com custos assumidos por Cabo Verde. Mais transparência nos assuntos públicos é fundamental para que o país não fique amarrado em modelos que já se esgotaram e submerso em constrangimentos que não reconhece ao mesmo tempo que lhe é acenado com possíveis futuros para os quais nem sabe que não está preparado para construir.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 886 de 21 de novembro de 2018.
segunda-feira, novembro 19, 2018
Parlamento em baixa
A violência física envolvendo dois deputados
constituiu um momento baixo do parlamento que há muito se previa que
acabaria por acontecer. É um facto que a actuação dos políticos em sede
parlamentar ao longo da legislatura iniciada em Abril de 2016 tem-se
caracterizado por uma dinâmica negativa que vem contribuindo para
aumentar a crispação política no país.
Era
de esperar que após 15 anos seguidos de governação por um mesmo partido
não haveria muito espaço para acomodações, compromissos e consensos
entre as forças políticas. Sempre se nota alguma tensão e muita
recriminação enquanto um novo governo assume em pleno os problemas do
país e procura colocar a máquina do Estado sob a sua orientação. Nas
democracias maduras esse período não passa de seis meses. Em Cabo Verde a
crispação tende a manter-se ao longo do mandato como se a todo momento
se estivesse em período pré-eleitoral. Nesta legislatura, por razões a
que não são alheias manifestações do populismo nos dois grandes
partidos, está pior, como os acontecimentos da semana passada no
parlamento demostraram.
A democracia cabo-verdiana sempre teve um nível relativamente elevado de crispação política. Diferentemente da generalidade de casos de transição para a democracia, depois das eleições livres de 13 de Janeiro de 1991 ficou na Oposição precisamente a força política que tinha encarnado o regime anterior ditatorial. Não houve o tipo de aliança, como a do PS-PSD em Portugal, ou do PSOE-PP em Espanha ou do PS francês com a UPM, fortemente engajada na consolidação das instituições democráticas e em pleno acordo com o novo figurino constitucional. Com o lastro constituído pelo legado do regime de partido único a pesar a todo o momento o comprometimento com a construção da democracia dificilmente podia ser total e os pontos de tensão com o novo governo certamente que seriam múltiplos. A expectativa de todos era que com o tempo a crispação inicial evoluísse para a tensão normal e salutar que deve existir entre forças políticas na situação e na oposição. Infelizmente não aconteceu na medida desejada e a nossa democracia perde com a falta de consenso necessário para que o dissenso aconteça e revele e demonstre na prática as virtualidades do pluralismo na realização do interesse público.
Os efeitos do não comprometimento completo com a democracia e a crispação excessiva que isso gera fazem-se sentir primordialmente na Assembleia Nacional. E assim é porque em democracia é no parlamento, órgão colegial, que a nação se vê representada “na diversidade dos seus interesses e na pluralidade das suas opiniões”. Nesta perspectiva, se há correntes elitistas que negam que todos os interesses devem estar representados, ou se há forças políticas que se consideram mais legítimos para governar do que os outros, o parlamento, enquanto instituição central da democracia, é o alvo a abater. No caso de Cabo Verde tanto a herança do salazarismo como a do regime de partido único após a independência conspiram para denegrir o parlamento democrático, para manter vivo o espírito anti-partido e anti-política. No processo os descontentes da democracia e do parlamentarismo levantam problemas de representatividade, questionam o papel dos partidos políticos e esforçam-se por demonstrar como o exercício do contraditório e todo o debate democrático é uma grande perda de tempo e de recursos. Daí é um passo para considerarem os deputados como sendo do piorio: preguiçosos, gananciosos e ciosos dos seus privilégios.
É verdade que não são poucas as vezes que se se depara com situações de ineficácia da actividade parlamentar se não mesmo de bloqueio com consequências para o funcionamento normal das instituições. Ou que os partidos deixam-se apanhar pelo caciquismo e alimentam clientelas, ameaçando rigidificar o sistema democrático. Ou ainda que a ânsia de se manter no poder a todo o custo para além de prejudicar a renovação democrática e mesmo a integridade de todo o sistema político seja o veículo da corrupção que descredibiliza a democracia como se viu recentemente no Brasil. Historicamente sabe-se que saídas para tais situações que não optaram por mais institucionalização democrática e concomitantemente pela real independência do poder judicial e pela garantia da liberdade de imprensa rapidamente degeneraram em regimes autoritários e consequente compressão dos direitos fundamentais dos indivíduos. Na primeira república portuguesa viu-se como a liberdade dos deputados de votar noutros partidos ou mudar de bancada levou a instabilidade governativa e posteriormente ao golpe de estado militar e aos 48 anos de salazarismo. Na república de Weimar a incapacidade dos pequenos partidos democráticos em criar soluções de governo levou à ascensão do partido nazi e à entrega do cargo de chanceler a Adolfo Hitler. Na França da IV república a instabilidade governativa provocada pela fragilidade do sistema partidário só foi ultrapassada com o regresso de De Gaulle e a fundação da V república.
Actualmente nas várias democracias em crise há dúvidas quanto aos modelos de representação no parlamento juntamente com muita contestação do papel dos partidos e críticas severas ao comportamento dos políticos. Duvida-se da capacidade da classe política não só em realmente entender os problemas do momento e os anseios da população como também em ser efectivo a confrontar os desafios do crescimento, do desemprego e da crescente desigualdade social face designadamente às forças da globalização, à pressão das migrações, ao impacto do tráfico de drogas na criminalidade e aos efeitos nocivos da corrupção na sociedade. O acesso massivo da generalidade das pessoas às redes socias transforma as dúvidas numa onda de indignação e contestação que já mudou o destino de vários países com destaque para a América de Trump e ultimamente para o Brasil de Bolsonaro.
Curioso é o papel que os próprios políticos têm tido em todo esse processo de desgaste da democracia representativa. Demagogicamente muitos seguem pelo caminho do discurso anti-político e anti-partido apresentando-se acima dos partidos e minimizando o debate democrático essencial para se fazer política. O resultado prático é todo o excesso de protagonismo que se nota no parlamento em que muitos procuram destacar-se com discursos que não contribuem para a clarificação das questões e eventuais entendimentos, mas alimentam a crispação já de si elevada. O outro efeito é o de enfraquecimento das direcções de grupo parlamentares com consequências graves na eficácia dos trabalhos.
É evidente que para evitar situações como a verificada na semana passada e travar o desgaste do parlamento aos olhos da sociedade não se pode ir pelo caminho da perseguição dos deputados, mas pela melhoria do trabalho político que dê melhor consistência e coerência à actuação dos grupos parlamentares e se traduza num ethos e numa ética individual que dignifique a instituição parlamentar. Pena que os critérios populistas seguidos na formação das listas tenham produzido verdeiros impedimentos a que se avance para um outro patamar da actividade política, como aliás é visível a todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 885 de 14 de Novembro de 2018.
A democracia cabo-verdiana sempre teve um nível relativamente elevado de crispação política. Diferentemente da generalidade de casos de transição para a democracia, depois das eleições livres de 13 de Janeiro de 1991 ficou na Oposição precisamente a força política que tinha encarnado o regime anterior ditatorial. Não houve o tipo de aliança, como a do PS-PSD em Portugal, ou do PSOE-PP em Espanha ou do PS francês com a UPM, fortemente engajada na consolidação das instituições democráticas e em pleno acordo com o novo figurino constitucional. Com o lastro constituído pelo legado do regime de partido único a pesar a todo o momento o comprometimento com a construção da democracia dificilmente podia ser total e os pontos de tensão com o novo governo certamente que seriam múltiplos. A expectativa de todos era que com o tempo a crispação inicial evoluísse para a tensão normal e salutar que deve existir entre forças políticas na situação e na oposição. Infelizmente não aconteceu na medida desejada e a nossa democracia perde com a falta de consenso necessário para que o dissenso aconteça e revele e demonstre na prática as virtualidades do pluralismo na realização do interesse público.
Os efeitos do não comprometimento completo com a democracia e a crispação excessiva que isso gera fazem-se sentir primordialmente na Assembleia Nacional. E assim é porque em democracia é no parlamento, órgão colegial, que a nação se vê representada “na diversidade dos seus interesses e na pluralidade das suas opiniões”. Nesta perspectiva, se há correntes elitistas que negam que todos os interesses devem estar representados, ou se há forças políticas que se consideram mais legítimos para governar do que os outros, o parlamento, enquanto instituição central da democracia, é o alvo a abater. No caso de Cabo Verde tanto a herança do salazarismo como a do regime de partido único após a independência conspiram para denegrir o parlamento democrático, para manter vivo o espírito anti-partido e anti-política. No processo os descontentes da democracia e do parlamentarismo levantam problemas de representatividade, questionam o papel dos partidos políticos e esforçam-se por demonstrar como o exercício do contraditório e todo o debate democrático é uma grande perda de tempo e de recursos. Daí é um passo para considerarem os deputados como sendo do piorio: preguiçosos, gananciosos e ciosos dos seus privilégios.
É verdade que não são poucas as vezes que se se depara com situações de ineficácia da actividade parlamentar se não mesmo de bloqueio com consequências para o funcionamento normal das instituições. Ou que os partidos deixam-se apanhar pelo caciquismo e alimentam clientelas, ameaçando rigidificar o sistema democrático. Ou ainda que a ânsia de se manter no poder a todo o custo para além de prejudicar a renovação democrática e mesmo a integridade de todo o sistema político seja o veículo da corrupção que descredibiliza a democracia como se viu recentemente no Brasil. Historicamente sabe-se que saídas para tais situações que não optaram por mais institucionalização democrática e concomitantemente pela real independência do poder judicial e pela garantia da liberdade de imprensa rapidamente degeneraram em regimes autoritários e consequente compressão dos direitos fundamentais dos indivíduos. Na primeira república portuguesa viu-se como a liberdade dos deputados de votar noutros partidos ou mudar de bancada levou a instabilidade governativa e posteriormente ao golpe de estado militar e aos 48 anos de salazarismo. Na república de Weimar a incapacidade dos pequenos partidos democráticos em criar soluções de governo levou à ascensão do partido nazi e à entrega do cargo de chanceler a Adolfo Hitler. Na França da IV república a instabilidade governativa provocada pela fragilidade do sistema partidário só foi ultrapassada com o regresso de De Gaulle e a fundação da V república.
Actualmente nas várias democracias em crise há dúvidas quanto aos modelos de representação no parlamento juntamente com muita contestação do papel dos partidos e críticas severas ao comportamento dos políticos. Duvida-se da capacidade da classe política não só em realmente entender os problemas do momento e os anseios da população como também em ser efectivo a confrontar os desafios do crescimento, do desemprego e da crescente desigualdade social face designadamente às forças da globalização, à pressão das migrações, ao impacto do tráfico de drogas na criminalidade e aos efeitos nocivos da corrupção na sociedade. O acesso massivo da generalidade das pessoas às redes socias transforma as dúvidas numa onda de indignação e contestação que já mudou o destino de vários países com destaque para a América de Trump e ultimamente para o Brasil de Bolsonaro.
Curioso é o papel que os próprios políticos têm tido em todo esse processo de desgaste da democracia representativa. Demagogicamente muitos seguem pelo caminho do discurso anti-político e anti-partido apresentando-se acima dos partidos e minimizando o debate democrático essencial para se fazer política. O resultado prático é todo o excesso de protagonismo que se nota no parlamento em que muitos procuram destacar-se com discursos que não contribuem para a clarificação das questões e eventuais entendimentos, mas alimentam a crispação já de si elevada. O outro efeito é o de enfraquecimento das direcções de grupo parlamentares com consequências graves na eficácia dos trabalhos.
É evidente que para evitar situações como a verificada na semana passada e travar o desgaste do parlamento aos olhos da sociedade não se pode ir pelo caminho da perseguição dos deputados, mas pela melhoria do trabalho político que dê melhor consistência e coerência à actuação dos grupos parlamentares e se traduza num ethos e numa ética individual que dignifique a instituição parlamentar. Pena que os critérios populistas seguidos na formação das listas tenham produzido verdeiros impedimentos a que se avance para um outro patamar da actividade política, como aliás é visível a todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 885 de 14 de Novembro de 2018.
segunda-feira, novembro 12, 2018
Não há reformas sem sólida vontade política
Os dados do Doing Business 2019 que colocam Cabo
Verde na posição 131 entre 190 países não são encorajadores. Há anos que
primeiros-ministros e ministros dos sucessivos governos vêm declarando o
seu comprometimento na melhoria da competitividade do país e do
ambiente de negócios.
Os resultados não têm sido expressivos. A exemplo do que outros países fizeram criaram-se task forces e
unidades de competitividade para melhorar os rankings de Cabo Verde.
Infelizmente os esforços desenvolvidos não resultaram como esperado,
contrariamente ao que aconteceu em países como o Ruanda, a Estónia, a
Finlândia e a Índia. Em alguns desses países conseguiu-se que
melhorassem mais de 50 pontos nos rankings. Os mesmos cinquenta pontos
que o primeiro-ministro Dr. Ulisses Correia e Silva vem insistindo que
é o objectivo a ser alcançado nos próximos dez anos mas até agora não
se viu movimento significativo dos rankings nessa direcção. Pelo
contrário.
As dificuldades com que o actual governo se depara no processo de melhoria do ambiente de negócios não são muito diferentes das enfrentadas pelo governo anterior. São dificuldades para as quais contribuem extraordinariamente a atitude, os procedimentos e o modo de agir da administração do Estado. Em 2015, depois de quase quinze anos no topo da direcção da administração pública enquanto primeiro-ministro, o Dr. José Maria Neves queixou-se várias vezes de problemas no funcionamento do Estado com impacto nos custos de contexto, no ambiente de negócios e na competitividade do país. Era evidente na época a sua frustração e quase impotência perante a postura da administração que ele próprio dizia que precisava ser mais imparcial, mais universal e menos partidarizada. Ainda hoje é claro que os problemas persistem e pelos resultados do Doing Business vê-se que o actual governo mostra a mesma incapacidade em alterar as coisas, mudar os comportamentos e introduzir procedimentos mais expeditos.
Razão talvez para se concluir que vontade política dos governos não consegue sobrepor-se à cultura administrativa que impregna toda a máquina do Estado e impor-lhe uma outra orientação e uma outra atitude. De facto, tudo leva a crer que a cultura administrativa que não serve os cidadãos, não serve os negócios e não é efectiva na implementação das políticas governamentais sufragadas na urna, sobrevive a mudanças de governo e até se reproduz quando se lhe dá oportunidade como aconteceu a nível dos municípios. A administração municipal, supostamente mais próxima das pessoas, não é menos burocrática, centralizadora e insensível para com os utentes. E é de esperar que a persistir a actual cultura administrativa no país, dificilmente, no caso da criação das regiões, a nova administração regional vai criar um novo paradigma de relação com cidadãos, utentes e operadores económicos.
Na origem e posterior evolução da postura da administração do Estado certamente que se poderá descortinar os contributos da administração salazarista e do regime de partido único e os efeitos das tentativas de reforma verificadas nos 27 anos de democracia. As marcas dessa longa história ainda hoje são visíveis, mas o factor que deverá ter contribuído para que, no essencial, se mantenha igual a si própria, é a persistência de uma economia de reciclagem de fluxos externos que põe o Estado no seu centro. A máquina estatal enquanto recipiente e distribuidora desses fluxos que dinamizam a economia do país naturalmente que ajuda a criar e a reproduzir na sociedade dependências múltiplas. Por essa via acaba por servir certos interesses políticos e alimentar uma classe média ligada ao Estado e um sector privado atento aos acessos, facilidades e oportunidades que lhe são oferecidas ou disponibilizadas. Em tal ambiente em que eufemisticamente o Estado posiciona-se no “topo da cadeia alimentar” é mais que evidente que qualquer reforma dirigida para lhe retirar essa posição dificilmente terá bom resultado. Não é pois de estranhar que apesar de todos os esforços para encaminhar o Estado para o papel de facilitador e regulador, enquanto o protagonismo na sociedade se deslocaria para os indivíduos, para os empreendedores e para o sector privado, nenhum governo conseguiu tal desiderato. O paradigma mantém-se, e todos sabem disso. Agora há quem espere que a regionalização num passe de mágica faça as transformações que até aqui reformas passadas não conseguiram.
Trabalhar para a competitividade, ceder protagonismo às pessoas e empresas e ter a administração pública a renovar-se como facilitador e estrutura sensível às necessidades das pessoa e da economia significaria uma viragem profunda na mentalidade geral do país. Representaria um comprometimento sério e consequente com os objectivos de crescimento e emprego para além dos discursos oficiais que são feitos em boa medida com o intuito de manter as transferências externas para o país. Provavelmente em 2018, 43 anos após a independência não se estaria a organizar uma conferência em Paris com os parceiros para se efectivar “finalmente” uma nova fase, nas palavras do Ministro das Finanças Olavo Correia, na qual “queremos delegar ao sector privado um papel mais preponderante” , “por forma a que ao invés de continuarmos a aumentar o endividamento público, termos investimentos privados a financiar projectos estruturantes em Cabo Verde”. Também não se estaria a alimentar em nome do “desenvolvimento harmonioso” das ilhas modelos de crescimento com base em factores endógenas relegando para o segundo plano o esforço nacional para se integrar na economia mundial com atracção de capital, acompanhado de tecnologia e mercado, e com o aumento e qualificação do fluxo turístico. Historicamente, prova-se que Cabo Verde apenas conseguiu prosperar quando de alguma forma a sua economia se articulou com vantagens na economia mundial.
Manter o olhar virado para dentro do país convenientemente serve a cultura administrativa que ajuda a manter o Estado no topo da cadeia alimentar. Só pondo de lado o modelo que até agora deixou o país dependente das transferências externas é que se pode almejar criar estruturas produtivas de base na iniciativa privada capazes de propiciar o crescimento e os empregos que tanto precisamos. Para romper o círculo vicioso é fundamental que a vontade política do governo se faça sentir com determinação, foco e sabedoria para ultrapassar as barreiras que até agora deitaram por terra todas as reformas da administração e poder contribuir para que finalmente o país se torne competitivo e produtivo.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 884 de 07 de Novembro de 2018.
As dificuldades com que o actual governo se depara no processo de melhoria do ambiente de negócios não são muito diferentes das enfrentadas pelo governo anterior. São dificuldades para as quais contribuem extraordinariamente a atitude, os procedimentos e o modo de agir da administração do Estado. Em 2015, depois de quase quinze anos no topo da direcção da administração pública enquanto primeiro-ministro, o Dr. José Maria Neves queixou-se várias vezes de problemas no funcionamento do Estado com impacto nos custos de contexto, no ambiente de negócios e na competitividade do país. Era evidente na época a sua frustração e quase impotência perante a postura da administração que ele próprio dizia que precisava ser mais imparcial, mais universal e menos partidarizada. Ainda hoje é claro que os problemas persistem e pelos resultados do Doing Business vê-se que o actual governo mostra a mesma incapacidade em alterar as coisas, mudar os comportamentos e introduzir procedimentos mais expeditos.
Razão talvez para se concluir que vontade política dos governos não consegue sobrepor-se à cultura administrativa que impregna toda a máquina do Estado e impor-lhe uma outra orientação e uma outra atitude. De facto, tudo leva a crer que a cultura administrativa que não serve os cidadãos, não serve os negócios e não é efectiva na implementação das políticas governamentais sufragadas na urna, sobrevive a mudanças de governo e até se reproduz quando se lhe dá oportunidade como aconteceu a nível dos municípios. A administração municipal, supostamente mais próxima das pessoas, não é menos burocrática, centralizadora e insensível para com os utentes. E é de esperar que a persistir a actual cultura administrativa no país, dificilmente, no caso da criação das regiões, a nova administração regional vai criar um novo paradigma de relação com cidadãos, utentes e operadores económicos.
Na origem e posterior evolução da postura da administração do Estado certamente que se poderá descortinar os contributos da administração salazarista e do regime de partido único e os efeitos das tentativas de reforma verificadas nos 27 anos de democracia. As marcas dessa longa história ainda hoje são visíveis, mas o factor que deverá ter contribuído para que, no essencial, se mantenha igual a si própria, é a persistência de uma economia de reciclagem de fluxos externos que põe o Estado no seu centro. A máquina estatal enquanto recipiente e distribuidora desses fluxos que dinamizam a economia do país naturalmente que ajuda a criar e a reproduzir na sociedade dependências múltiplas. Por essa via acaba por servir certos interesses políticos e alimentar uma classe média ligada ao Estado e um sector privado atento aos acessos, facilidades e oportunidades que lhe são oferecidas ou disponibilizadas. Em tal ambiente em que eufemisticamente o Estado posiciona-se no “topo da cadeia alimentar” é mais que evidente que qualquer reforma dirigida para lhe retirar essa posição dificilmente terá bom resultado. Não é pois de estranhar que apesar de todos os esforços para encaminhar o Estado para o papel de facilitador e regulador, enquanto o protagonismo na sociedade se deslocaria para os indivíduos, para os empreendedores e para o sector privado, nenhum governo conseguiu tal desiderato. O paradigma mantém-se, e todos sabem disso. Agora há quem espere que a regionalização num passe de mágica faça as transformações que até aqui reformas passadas não conseguiram.
Trabalhar para a competitividade, ceder protagonismo às pessoas e empresas e ter a administração pública a renovar-se como facilitador e estrutura sensível às necessidades das pessoa e da economia significaria uma viragem profunda na mentalidade geral do país. Representaria um comprometimento sério e consequente com os objectivos de crescimento e emprego para além dos discursos oficiais que são feitos em boa medida com o intuito de manter as transferências externas para o país. Provavelmente em 2018, 43 anos após a independência não se estaria a organizar uma conferência em Paris com os parceiros para se efectivar “finalmente” uma nova fase, nas palavras do Ministro das Finanças Olavo Correia, na qual “queremos delegar ao sector privado um papel mais preponderante” , “por forma a que ao invés de continuarmos a aumentar o endividamento público, termos investimentos privados a financiar projectos estruturantes em Cabo Verde”. Também não se estaria a alimentar em nome do “desenvolvimento harmonioso” das ilhas modelos de crescimento com base em factores endógenas relegando para o segundo plano o esforço nacional para se integrar na economia mundial com atracção de capital, acompanhado de tecnologia e mercado, e com o aumento e qualificação do fluxo turístico. Historicamente, prova-se que Cabo Verde apenas conseguiu prosperar quando de alguma forma a sua economia se articulou com vantagens na economia mundial.
Manter o olhar virado para dentro do país convenientemente serve a cultura administrativa que ajuda a manter o Estado no topo da cadeia alimentar. Só pondo de lado o modelo que até agora deixou o país dependente das transferências externas é que se pode almejar criar estruturas produtivas de base na iniciativa privada capazes de propiciar o crescimento e os empregos que tanto precisamos. Para romper o círculo vicioso é fundamental que a vontade política do governo se faça sentir com determinação, foco e sabedoria para ultrapassar as barreiras que até agora deitaram por terra todas as reformas da administração e poder contribuir para que finalmente o país se torne competitivo e produtivo.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 884 de 07 de Novembro de 2018.
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