Dias atrás o chefe da diplomacia da União Europeia Joseph Borrel dizia que “o mundo como um todo não vai superar a pandemia antes de 2023”.
O aparecimento das variantes do vírus Sars-coV-2 conjugado com o facto de que ainda por algum tempo uma boa parcela da humanidade não vai estar vacinada cria muitas incertezas. Não é claro que seja para breve a retoma económica e o fim da crise social associada, mormente quando começa a desenhar-se um padrão na dinâmica económica mundial de crescimento a duas velocidades: os países emergentes crescem abaixo da média, enquanto que os países mais desenvolvidos dão sinais de estar “a sair do túnel”, caso da Europa, e até de crescimento vigoroso a 6.5% como os Estados Unidos.
Em Cabo Verde as incertezas ligadas à pandemia com impacto negativo nas receitas e aumento nas despesas obrigaram o Governo a apresentar um orçamento rectificativo. No OE de 2021 o défice previsto era de 9,3% porque se esperava a retoma económica no fim do segundo trimestre. Gorada essa possibilidade, rectifica-se o défice orçamental para 13,7% e a dívida pública passa de 145,9% do PIB para 158,4%, criando dificuldades no financiamento do Estado e tornando o país menos atractivo ao investimento privado. Não podendo socorrer-se de “bazucas financeiras” como os fundos disponibilizados aos países membros da União Europeia, Cabo Verde terá que encontrar vias para contornar a escassez de recursos e com esforço e criatividade posicionar-se para a retoma da sua economia.
É já em Outubro o último acto deste ciclo eleitoral com a realização das presidenciais. Como a partir daí, até o último trimestre de 2024, não haverá mais eleições, conviria que esse longo período sem disputas político-partidárias exacerbadas fosse de convergência na realização de reformas estruturantes para o país. Para combater a pobreza e promover a inclusão social é entendimento geral que se deve crescer acima dos 7%. Mas como os anos pré-pandemia provaram, isso não acontece mesmo com o melhor ambiente internacional sem que sejam feitas reformas com impacto na produtividade e na competitividade do país. A pandemia ao longo deste já quase ano e meio insistentemente lembra a todos as enormes consequências de se estar sempre a adiar as reformas que se impõem. Talvez seja este o momento certo para que, como serenidade, rigor e sentido de futuro se construir vontades para concretizar essas reformas e ganhar a resiliência de que tanto se fala e que será necessária para enfrentar alterações climáticas, transição energética e ameaças sanitárias inevitáveis neste mundo globalizado.
A estabilidade política saída das últimas eleições criou um ambiente propício a uma governação serena não obstante as dificuldades existentes e os particulares desafios postos pela conjuntura actual marcada pelo combate ao Covid-19. Sem pleitos eleitorais decisivos para a governação a nível central ou local, os hábitos de campanha permanente dos governantes, autarcas e de outros actores políticos poderiam dar lugar a uma postura mais ponderada nas iniciativas anunciadas e na tomada de decisões. Não se abordariam questões sensíveis e complexas como alterações da lei da nacionalidade da forma como têm sido badaladas na comunicação social, aparentemente sobre pressão de grupos ou em resposta quase epidérmica a alguma injustiça detectada em algumas situações.
Aliás, não deixa de ser estranho que um país como Cabo Verde, arquipelágico e com uma pequena população distribuída por nove ilhas, queira se arvorar em protagonista maior da livre circulação de pessoas com países dezenas de vezes maiores em superfície e população e de rendimento per capita bastante inferior ao seu. Com o argumento de que tem comunidades em vários outros países, quase todos eles com população muito superior e onde os cabo-verdianos constituem uma ínfima minoria, disponibiliza-se a abrir para migrantes sem critérios definidos de selecção.
Num pequeno estado insular e arquipelágico defender a independência nacional, garantir a unidade e preservar a identidade nacional cabo-verdiana (CRCV) obriga a que questões como nacionalidade, mobilidade e capacidade eleitoral de estrangeiros sejam devidamente ponderados. Para os governantes ilhéus a velha máxima de que interesses e não sentimentos devem guiar a política externa dos países tem uma pertinência maior e não deve ser esquecida. Um exemplo eloquente disso é a relação com a Guiné-Bissau. Depois da independência passou a ser construída com base em equívocos de vária natureza e o resultado é que nunca desenvolveu o potencial que eventualmente poderia ter caso interesses económicos fossem preponderantes e constituíssem a base de relações nos diferentes níveis. Na recente tentativa de aproximação dos dois países sentimentos equivocados parecem estar a sobrepor-se outra vez e isso não augura nada de bom.
À serenidade na governação deve juntar-se o rigor na comunicação e na relação institucional por forma a manter confiança, elevar o debate público e conjugar responsabilização com transparência na gestão da coisa pública. A insistência no erro mesmo quando os seus custos são visíveis a olho nu como aconteceu no caso TACV/CVA funciona em sentido contrário. Nestes tempos de incerteza, de escassez de recursos e de maior sensibilidade quanto às opções na aplicação dos mesmos, a imagem de rigor dos governantes é essencial para manter viva a vontade de engajamento para ultrapassar a situação actual e o espírito de solidariedade intergeracional necessária para assumir os custos correspondentes. Em matéria, por exemplo, dos fundos disponibilizados pelo INPS para financiar políticas de layoff do governo não deve haver dúvidas que o Estado fará a sua devolução, não deixando para estudos futuros uma decisão nessa matéria. Não se pode ficar simplesmente por parafrasear o “Whatever it takes” usado por Mario Draghi para salvar o euro e dizer que o governo vai “garantir em qualquer circunstância a sustentabilidade do sistema de segurança social”. Há que agir em conformidade, como fez o “super” Mario no Banco Europeu, e com isso reinará a tranquilidade.
A pandemia da covid-19, além de expor insuficiências várias nos sistemas de saúde e de solidariedade social em quase todo o mundo, veio revelar ainda como em muitos aspectos está-se a viver para o curto prazo, sem uma perspectiva de futuro e sem um sentido de solidariedade para com os outros. O fenómeno parece abarcar os políticos em campanha permanente para fixar eleitorado, operadores económicos focados na maximização dos lucros e descurando a responsabilidade social e os próprios indivíduos centrados em si próprios e sem uma apreciação adequada do que muito que se tem por garantido depende da prestação efectiva e tempestiva de outros. Ultrapassar a situação é fundamental para se evitar que num futuro mais ou menos próximo se venha a enfrentar casos similares à covid-19 que já produziu mais de quatro milhões de mortos e cerca de duzentos milhões de gente contaminada, muitos sem qualquer defesa.
Mesmo com todos os defeitos, ainda é a democracia que melhor cria o ambiente para se encontrar a saída. Baseada no debate comunitário, a democracia concentra-se, como bem disse alguém, no que pode unir e dar razões de esperança em vez de se focar no que pode separar e dar razões de queixa. A pandemia e as ameaças que espreitam mais à frente vieram trazer mais razões para potenciar essas qualidades. Há que aproveitar a crise para fazer o melhor nesse sentido e não deixar que a política de espectáculo e da campanha permanente arruíne o futuro que pode ser construído a partir de hoje.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1024 de 14 de Julho de 2021.