O tema liderança recebeu grande cobertura mediática na semana passada. Foi tema de uma cimeira que contou com comunicações do presidente da república e do primeiro-ministro para além de outras personalidades, de masterclasses e tertúlias. Compreende-se que a questão esteja em voga em todo o mundo com todas as transformações em curso a começar por mudanças tectónicas na geopolítica mundial e incluindo alterações climáticas, transição energética e digitalização acelerada. Devia ser o momento ideal para o surgimento de líderes que, parafraseando o PR, fossem inteligentes, visionários e catalisadores de processos. Infelizmente, não tem sido assim na generalidade dos países e pior ainda nos países menos desenvolvidos onde mais falta fazem.
A atenção do mundo tem estado nos últimos dias focada nas medidas a tomar para evitar que dificuldades no sector bancário levem à contaminação sistémica de todo o sector financeiro e eventual diminuição do crédito disponível. O aumento rápido das taxas de juro teve efeito inesperado que vem repercutindo sobre toda a economia em especial sobre o sector bancário. Do FMI e do BCE já vieram avisos sobre o perigo que representa para todos e que é agravado, no chamado Sul Global, pela dívida acumulada por muitos países. Ou seja, às crises existentes e ainda não ultrapassadas como é a luta para baixar a inflação está-se a somar mais uma outra que vai tornar mais difícil combatê-la sem induzir uma travagem significativa no crescimento global. E tudo isso acontece quando o emergente quadro geopolítico de fundo, marcado pela guerra na Ucrânia e pelas alianças político-militares antagónicas em ascensão, vem contribuindo para exacerbar os efeitos dessas crises. A recente visita do presidente chinês a Moscovo e em simultâneo da do primeiro-ministro japonês a Kiev e a próxima reunião da NATO incluindo países do Indo-Pacífico são elucidativas a esse respeito.
Navegar neste mar de incertezas, imprevistos e novos desafios exige um nível de liderança que, como diz Brian Klaas, autor do livro “Corruptíveis”, devia ser fornecida por gente motivada pelo serviço público, generosidade e altruísmo. Na realidade, quem se tem interessado em exercer poder já é centrado na sua própria pessoa, tem como primordial a ambição do poder e toma como bitola a sua conveniência na avaliação das opções , escamoteando a verdade e os factos. É evidente que nessas condições dificilmente se vai conseguir produzir liderança transformacional, fazer reformas e mudar atitudes que realmente podem contar para a criação de riqueza e sua redistribuição de forma a haver ganhos para todos e não excluir ninguém. Manter-se no poder e dele usufruir para se fazer reeleger e se colocar na posição de garantir o apoio e a vassalagem de outros passou a ser a marca de Muitos. Principalmente quando se desdobra em frases feitas, faz uso permanente do novo jargão introduzido pelas instituições internacionais e proclama que aposta em inovação, está de facto a praticar a arte de tudo mudar para que tudo fique como está.
Em países como Portugal, esse ficar aquém na transformação do país, paga-se na falta de convergência com os outros países da União Europeia e no ficar na cauda da Europa ultrapassado até pelos recém-entrados. Em países como São Tomé e Príncipe, a falta de confiança numa liderança transformativa mostra-se em indicadores como os vindos a público nos últimos dias que põem em 80% o número de jovens que querem sair do país em direcção a Portugal. Da mesma forma, em Cabo Verde um dado similar quanto à emigração já sentido na diminuição da população poderá estar a revelar as reduzidas oportunidades do país e a pouca esperança que a prazo as coisas mudem. No caso de Portugal, as críticas apontam a falta de vontade ou de capacidade para fazer o aproveitamento adequado dos fundos disponibilizados pela União Europeia, sendo o PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) o último, e operar as mudanças necessárias para aumentar a competitividade e a produtividade do país. Em Cabo Verde, como na generalidade dos países em desenvolvimento, os fundos disponibilizados em formato de ajuda ao desenvolvimento também não resultam em pôr o país no terreno seguro do crescimento económico e da sustentabilidade com base numa capacidade endógena de criação de riqueza.
Daí a desesperança que se vai instalando particularmente entre as camadas jovens e que sustenta movimentos migratórios em direcção à Europa e aos Estados Unidos. Para as lideranças nacionais nota-se em muitos casos a acomodação ao modelo sustentado pelas múltiplas transferências dos países desenvolvidos traduzida em Cabo Verde na adopção confirmada pelo primeiro-ministro, na conferência anual sobre política externa, de um “Plano Estratégico de Desenvolvimento Sustentável 2022/2026” que vai erradicar a pobreza extrema até 2026 e uma “Agenda Ambição Cabo Verde 2030”. Precisamente o que tem sido preconizado pelas Nações Unidas e outras organizações multilaterais. O problema com essas prescrições é que não há memória de algum país se ter desenvolvido com base nelas. Aliás, já com quase 50 anos de independência e como recipiente da ajuda internacional, Cabo Verde tem suficiente experiência dos múltiplos planos de desenvolvimento e de luta contra a pobreza que foram implementados e cujos resultados ficaram muito aquém dos pretendidos.
A produção de uma liderança transformacional que não se deixa apanhar pelas estratégias com base nos recursos de fora não é fácil de se conseguir. O modelo de desenvolvimento que tais estratégias normalmente suportam reproduz a dependência da sociedade em relação ao Estado e ajuda uma elite mais próxima do sector estatal a manter-se no poder. Uma mudança no sentido de uma viragem para se criar um ambiente propício à iniciativa individual e à criação de riqueza e consequente maior autonomia e sustentabilidade do emprego e do rendimento encontra sempre resistência. Curiosamente é o que acontece quando, ao mesmo tempo que se deixa entender que prosperidade e emprego estão ao alcance de todos, porque todos podem ser empreendedores, startups têm financiamento e talentos são muitos, permite-se que informalidade e concorrência desleal esvaziem iniciativas e criem dificuldades para a consolidação e expansão de empresas nascentes. A opção transformacional seria a que resultaria num ambiente de negócios onde fosse visível uma ordem económica e social com regras aceites e cumpridas por todos.
Também essa opção seria a que capitalizasse sobre o conhecimento da realidade do país e soubesse potenciar as vantagens e fraquezas numa perspectiva de futuro. Imagine-se onde o país poderia estar se há muito tivesse reconhecido que vivia as consequências de alterações climáticas e apostado em tecnologias, produtos e processos de poupança de água. No mesmo sentido, se, enquanto Estado oceânico, tivesse feito uma aposta mais abrangente e compreensiva na economia azul. Também, se, considerando o potencial do país em energia eólica e solar, de há muito tivesse enverado estrategicamente para as energias renováveis. Ou ainda, se, para a prestação eficiente e eficaz de um conjunto de serviços para todos num país insular e com população dispersa, tivesse tomado como fundamental um vigoroso e criativo investimento na digitalização. Israel e Estónia foram por esse caminho e têm sido ricamente compensadas por isso, agora que o resto do mundo mais precisa desse know how. Infelizmente, em Cabo Verde prevaleceu o modelo dos projectos financiados, seguindo essencialmente a agenda dos doadores e não uma aposta estratégica do país. Agora que todos falam de clima, energias renováveis, economia azul e verde e de digitalização, espera-se que não se está simplesmente a aproveitar mais uma fonte de ajuda no modelo tradicional e que em mira estão realmente objectivos transformacionais.
Hábitos arreigados, porém, são difíceis de perder particularmente se resultam de atavismos ideológicos, fantasias teimosamente mantidas ou nostalgia de um passado desconhecido. Como se pode exercer liderança transformacional se se persiste em olhar para o país na perspectiva simplista e ideologicamente conotada que exalta o papel da mulher cabo-verdiana como criadora da língua materna, protagonista de revoltas populares (homi faca, mulher matchado) e heroína de uma guerra de libertação na Guiné-Bissau. Sem libertar o país de narrativas ideológicas não há como cortar as amarras que têm impedido que as sucessivas lideranças na governação retirem o país de modelos de dependência e precariedade e consigam fazer as reformas que tornam possível a criação de riqueza e permitem vislumbrar prosperidade futura para todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1113 de 29 de Março de 2023.