A tragédia na Serra da Malagueta no domingo, dia 3 de Abril, deixou o país em estado de choque. Um acidente de viação levou à morte inesperada de oito jovens militares e um técnico agrário sucumbiu depois de ter sido atingido por rochas soltas. Já se tinham passado dois dias que militares em cooperação com as forças locais da protecção civil estavam conjuntamente com a população e guardas florestais a dar combate às chamas que ameaçavam alastrar-se por todo o perímetro florestal, a pôr em perigo as pessoas, os seus bens e o gado. Foi quando, apesar do tempo ventoso e seco, praticamente se tinha controlado o incêndio é que a fatalidade aconteceu.
Ainda não se conhecem as reais causas do acidente, mas segundo as declarações oficiais, parecem estar ligados a problemas mecânicos da viatura, não obstante ser relativamente nova (2021) e o condutor ser experiente. A concentração de homens e recursos, esforços que torna a missão militar eficaz, cria a possibilidade de em caso de acidente as consequências serem realmente desastrosas. Acontece em todos os exércitos, grandes ou pequenos, sofisticados ou simples. Daí a importância de se ter capacidade de organização e logística adequada e, quando algo acontece, fazer os inquéritos rigorosos para se saber das reais causas, dar a conhecer os resultados, tirar as devidas ilações e promover as melhores práticas.
O que não se pode apagar é a enorme tristeza que envolve toda a gente quando vidas são inesperadamente ceifadas nessas circunstâncias. Eram militares, mas não estavam num teatro de guerra e a probabilidade de morte era longínqua. O serviço, que com entusiamo e generosidade prestavam à comunidade, não lhes devia ter custado a vida. A profunda consternação em que o país caiu, vem dessa constatação simples. Deve ser total e genuína a solidariedade de toda a nação para com os familiares e amigos, os companheiros da tropa e com a instituição nacional única de cidadania que são as Forças Armadas. Compete aos mais altos representantes transmitir isso sem ambiguidade ou aproveitamento político.
O luto nacional deve servir para os homenagear, juntar-se às famílias neste momento de dor e incentivar as forças armadas, os homens e mulheres nas suas fileiras, os profissionais e os conscritos, a continuar a prestar o serviço que o país deles espera. Como sempre, o país quer contar com a prontidão das tropas em todos os momentos de dificuldades, sejam eles de pandemia, erupção vulcânica, busca e salvamento no mar e incêndios florestais, desastres ambientais e fiscalização dos mares. Nestes dias de tristeza colectiva a última coisa que se devia ver repetido é o ambiente competitivo que opõe actores políticos e partidos para saber quem aparece mais, quem foi o primeiro a propor, quem está mais compungido pela dor, etc, etc.
Infelizmente, a tentação é grande e com uma ponta de cinismo de uns e a hipocrisia de outros lá se vai perdendo mais uma oportunidade de a nação mostrar-se una e mais forte para continuar a ultrapassar adversidades e enfrentar os desafios da democracia, da modernidade e do desenvolvimento. Os tempos actuais com as suas incertezas quanto ao futuro e as múltiplas crises que se retroalimentam deviam levar ao reforço do que une a comunidade, tanto ao nível local como ao nível nacional, para se poder ser livre e plural e usar o dissenso e encontrar as melhoras soluções para o país. A pandemia da covid-19 pela sua natureza de ameaça quase existencial podia talvez ter desencadeado esse processo de aproximar todos.
Mas, aparentemente, foram mais poderosas as forças centrífugas que estão a trabalhar para reforçar o individualismo em detrimento da comunidade, para preferir o protagonismo pessoal e não o serviço público e optar pelo populismo com prejuízo para a credibilidade das instituições e o primado da lei. O desgaste político e social é real e visível na forma como é tratado tudo o que diz respeito às câmaras municipais, ao parlamento, ao governo, aos tribunais e ao presidente da república. Impera partidarismos, clubismos e paixões pessoais em detrimento do que poderia ser uma procura da verdade, das melhores vias para resolver problemas e da reafirmação de um consenso sobre questões fundamentais que reafirmem a comunidade política-nacional como tal. As últimas sondagens do Afrobarómetro dão conta desse desgaste institucional com reflexo na confiança, no civismo e na capacidade de mobilização da vontade nacional para construir um futuro com mais prosperidade.
É interessante que nas sondagens as Forças Armadas é a instituição de maior confiança dos caboverdianos. O conhecimento deste facto devia levar a que a pretexto das dificuldades do momento não fossem submetidas às disputas habituais entre os diferentes actores políticos e, em consequência, ao tipo de desgaste que outras instituições da república têm sido alvo nos últimos tempos. Ninguém ganhará com isso e no fim do dia só ficarão mais frágeis as ligações que ligam todos nós.
Lamentavelmente parece que os tempos não são de reforço de uma identidade comum e de procura de maior cooperação entre as pessoas. A preferência aparentemente é, como disse Alexander Hamilton nos Federalist Papers para se criar uma “torrente de paixões furiosas e malignas”. Contraria isso o exemplo daqueles militares que até ao termo das suas vidas procuraram generosamente servir a sua comunidade e as suas gentes.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1114 de 5 de Abril de 2023