segunda-feira, setembro 04, 2023

Assegurar a integridade das actividades governamentais

 

O dia 1º de Agosto marcou o início da concessão por quarenta anos dos sete aeroportos e aeródromos de Cabo Verde. A Cabo Verde Airports, S.A. constituída pela Vinci e pela ANA substituiu a empresa estatal ASA na gestão dos aeroportos. O processo foi desencadeado em 2017 quando o governo, através do vice-Primeiro-ministro e ministro de Finanças, afirmou que “temos que ir à procura de quem tem mercado, tem capital, [tem know-how] e conhece todos os ‘stakeholders” para que, no espaço mais curto de tempo, possa alterar o quadro em Cabo Verde. Isso não será possível apenas com a prata da casa”.

Agora que a concessão se concretizou não deixou de espantar e até de criar alguma celeuma o facto de, no espaço de dias, dois destacados administradores da ASA terem sido contratados para posições cimeiras na empresa privada que passou a gerir os aeroportos. Afinal, contrariamente ao que se pensava, parece que não falta “prata da casa para alterar o quadro em Cabo Verde”. Quadro esse caracterizado em entrevista do PCA da ASA a este jornal, em Novembro de 2018, nestes termos: O negócio dos aeroportos não é rentável e durante muito tempo “não houve grande necessidade de recurso a uma gestão mais criteriosa dos aeroportos de modo a torná-los rentáveis”. E tal acontece “porque há o dinheiro da FIR [Oceânica] que naturalmente subsidia os aeroportos”, o que tem “contribuído para que a gestão pura dos aeroportos tenha sido colocada em segundo plano”. Ou não sendo o caso, ou seja, há sim “prata da casa”, como se deve proceder para evitar eventuais portas giratórias entre o público e o privado, de forma a não levantar suspeitas de prejuízo ou secundarização de interesses públicos em negociações com privados, incluindo privatizações, fornecimentos de serviços, consultadorias etc.

Em Cabo Verde ainda persiste um forte preconceito contra a iniciativa privada e um deficiente entendimento da importância crucial do investimento directo estrangeiro (IDE), no que representa de capital, know-how e mercado, para o país se desenvolver. Por isso, é de toda a importância que exista um quadro legal e ético que regule e oriente a contratação de ex-políticos e ex-gestores públicos por empresas que foram por eles tuteladas, reguladas ou supervisionadas de alguma forma. Mesmo nos países mais desenvolvidos há essa preocupação e é patente, por exemplo, nas orientações dos países da OECD para o emprego pós-serviço público. Procura-se evitar que contratações sirvam nomeadamente para pagar serviços prestados, ainda quando ocupando posições no sector público, para uso de informação privilegiada e para aproveitamento como lobista e facilitador no acesso aos centros de decisão político-administrativos.

Já existe no país, em particular para autoridades reguladores independentes e para órgãos de supervisão como o Banco de Cabo Verde, impedimentos para contratação pelas empresas reguladas durante um “período de nojo” que devem respeitar. Outros conflitos de interesses, para os quais poderá não haver enquadramento legal, mas que porventura colocarão questões éticas, deverão merecer atenção especial e eventualmente alguma orientação para os colmatar via código de conduta e um ethos próprio e um sentido de responsabilidade. Em vários momentos no passado houve situações que configuraram conflito de interesses como são entendidos no quadro da boa governança pública e mesmo empresarial. Pelas proverbiais portas giratórias passaram ministros para empresas tuteladas, políticos para autoridades reguladoras independentes e gestores públicos para empresas fornecedoras de bens ao sector público e concessionárias de serviço público e para empresas de consultadoria com lobbying à mistura.

É verdade que ninguém deve ser prejudicado nas suas possibilidades de emprego e de carreira por se ter disponibilizado para servir como gestor público. O que não se pode é ser absolutamente livre, como parece sugerir o comunicado do governo divulgado na sequência da notícia da presença dos ex-administradores da ASA na comissão executiva da Cabo Verde Airports, S.A. A estranheza geral que isso causou é um sinal de como a própria imagem do Estado e das negociações que conduz com entidades privadas em matérias e dossiers cruciais para o país pode ser afectada por dúvidas sobre a transparência e a lisura dos processos.

Um cuidado extra devia-se ter neste processo de concessão dos aeroportos considerando as dificuldades e complicações que se tem tido na concessão dos transportes marítimos e o falhanço recente da parceria com a Icelandair que obrigou à renacionalização da TACV. Impõe-se que a exemplo de outros países com preocupações de “good governance, public and corporate” que se criem regras que permitam fazer essas transições sem que fique prejudicado o interesse público e o interesse dos indivíduos no seu desenvolvimento profissional.

Cabo Verde precisa que os seus esforços de reforma do sistema público incluindo privatização e concessão sejam bem-sucedidos. A competitividade do país e o aumento da produtividade nacional dependem disso. Sem avanços nessa direcção não é possível falar de criação de mais postos de trabalho, de empregos mais bem remunerados, de oportunidades de desenvolvimento profissional que não passem pela emigração e de menor dependência do Estado dos indivíduos e da sociedade civil.

Para isso, porém, é fundamental que o Estado e os governantes, em geral, transmitam a confiança que as políticas e as reformas, por todos consideradas indispensáveis para a sustentabilidade futura da economia nacional, estão a ser conduzidas com o interesse comum em mira. Para essa confiança também é crucial que uma ética e um ethos de serviço público dos intervenientes estejam a ser salvaguardados a todo o momento. Sinais de descaso no processo levam inevitavelmente à descredibilização das instituições e consequente perda de confiança na integridade das actividades governamentais. O país não pode permitir-se esse “luxo”. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1135 de 30 de Agosto de 2023.

sexta-feira, agosto 18, 2023

Política na silly season

 Diz-se que o mês de Agosto até à rentrée política é em termos de notícias uma silly season, ou seja, um período de notícias frívolas que de algum modo capturam a atenção das pessoas. Na semana passada, depois dos grandes confrontos políticos que em Cabo Verde culminaram no debate sobre o estado da Nação em fins de Julho, entrou-se efectivamente numa silly season.

Durante dias seguidos na comunicação social e nas redes sociais pronunciamentos vários avisavam contra atentados à liberdade de expressão e denunciavam posições que alegadamente punham em causa o Estado de Direito e a democracia no país. E tudo isso por causa de um painel formado por duas personalidades para comentário político do telejornal de domingo da televisão pública.

A TCV não tem comentadores residentes. Aparentemente não vê necessidade de os ter talvez pelos custos associados de pagamento. É claro que isso tem consequências designadamente em termos de sustentabilidade dos painéis e qualidade do comentário. Uma delas, por exemplo, é que organiza painéis com convites ad hoc a personalidades que muitas vezes acabam por ser ex-dirigentes partidários e ex-governantes. Como a televisão pública está obrigada por comando constitucional a garantir a expressão e o confronto de ideias das diversas correntes de opinião com um painel de dois convidados o normal é que, sendo um deles figura notória de um dos grandes partidos, o outro tenha expressão similar na área política contrária.

Depois de dois painéis, um constituído por uma ex-governante e dirigente partidário da oposição e por um académico e professor universitário (9 de Julho) seguido de outro também constituído por dirigente partidário da oposição e tendo por contraponto uma figura apartidária (23 de Julho), houve críticas. Algum reequilíbrio se procurou ter no terceiro painel que já veio formado por dois dirigentes dos grandes partidos (30 de Julho). Com esse ajuste, porém, como dizem os portugueses, caiu o Carmo e a Trindade e de repente surgem denúncias num tom que pelo dramático podia-se pensar que o Estado de Direito democrático estava na iminência de se desmoronar.

Já se vem tornando frequente que face à discordância em relação a certas matérias, nem sempre de grande relevância, convenientemente se verifique um extremar de posições que tende a pôr em causa as instituições e a descredibilizá-las. Há mesmo quem entenda essa forma de actuar como o verdadeiro exercício de cidadania. Esquece-se facilmente que só se tem cidadania plena quando numa ordem constitucional consensual estão garantidos os direitos fundamentais dos cidadãos, existe o primado da lei e assegura-se a independência dos tribunais para dirimir conflitos. Atirar “pedras” contra o sistema, querer mudá-lo por vias que não os processos e procedimentos previstos e fazer crer que todos os tribunais no seu conjunto (tribunal constitucional, tribunais judiciais, tribunal de contas) não são isentos nem competentes, é, de facto, deixar os cidadãos completamente desprotegidos em relação a ditadores e a demagogos. Factos recentes em vários países demonstram isso e Cabo Verde sabe isso de experiência própria.

Especial responsabilidade têm as forças políticas que pelo seu papel no sistema político podem recorrer a instrumentos próprios para assegurar o normal funcionamento do sistema, podem melhorá-lo com alterações na legislação e até conseguem mudar as regras pela via da revisão constitucional. Infelizmente, parece que a preferência é para criar ruído, para descredibilizar e passar a ideia que a corrupção entremeia e perpassa tudo. Fiscalizar para evitar a corrupção é importante, mas toda a intervenção política não pode esgotar-se no activismo contra a corrupção, à procura de ganhos imediatos sobre o adversário. Corre-se o risco de perder a visão de conjunto sobre o sistema e de não se mostrar suficientemente responsável pela sua funcionalidade e estabilidade.

Um outro risco que se pode incorrer é de não ver outros problemas de fundo que mesmo quando trazidos com particular assertividade, como aconteceu com os alertas do Banco Mundial no memorando de 14 de Julho sobre o cansaço do modelo de crescimento de Cabo Verde e seu possível esgotamento, têm dificuldade em atrair o olhar da classe política e da cidadania activa que circula nas redes sociais. Não espanta que o Relatório do Estado da Economia publicado pelo Banco Central de Cabo Verde, que também veio alertar para as dificuldades do modelo de desenvolvimento de Cabo Verde, não tenha despertado mais atenção.

Mas a verdade é que, nos dois últimos parágrafos da avaliação global da economia, o BCV foi explícito em dizer que o potencial de crescimento da economia está ainda condicionado por níveis baixos da produtividade total dos factores, como já o Memorando do BM tinha assinalado. Também acrescenta que é extremamente importante reduzir o nível da dívida, avançar com reformas das empresas públicas e promover os investimentos em sectores catalisadores para aumentar e elevar o potencial de crescimento. É evidente que sem isso não se pode promover a inclusão social e construir resiliência a choques exógenos.

Infelizmente, pelo tipo de matéria que gerou euforia com que se entrou na silly season, pode-se ver que o renovar de alertas não vai provocar qualquer recentragem na abordagem dos problemas do país. O mais provável é que, até a rentrée política e ao regresso à política habitual, se procure explorar frivolidades políticas para manter as hostes partidárias mobilizadas. Entretanto, mudanças tectónicas nos campos geopolítico e económico vão acontecendo por aí sem que o país seja capaz de focar para “arrumar a casa” e preparar-se tanto para aproveitar as oportunidades como para resistir aos choques externos.

No relatório do BCV compara-se num quadro (fig.4) o impacto da crise pandémica sobre Cabo Verde, sobre a África subsaariana e os países da CEDEAO. A contracção da economia no país foi de 19,3% do PIB enquanto na África ficou-se por 1,7% e na CEDEAO por 0,6%. A vulnerabilidade do país ficou aí bem clara. Para a diminuir é evidente que Cabo Verde precisa de um engajamento mais sério e mais focado da sua classe política nos seus reais problemas. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1132 de 9 de Agosto de 2023.

segunda-feira, agosto 07, 2023

Por uma política da verdade e de resultados

 

​Do debate sobre o estado da Nação no dia 28 de Julho a primeira impressão com que se fica é das posições extremadas da situação e da oposição quanto à realidade actual e passada do país. Tal impressão não constitui propriamente uma surpresa. É expectável considerando o nível de polarização político-partidária existente no país. O inesperado é o facto de os partidos em simultâneo convergirem na compreensão e enquadramento de matérias mesmo que discordem verbalmente do que na prática são as consequências ou o impacto das medidas de política que lhes são direccionadas. A persistente polarização das forças políticas pode levar a um sentimento geral de uma certa inutilidade da política. Já a convergência num certo tipo de construções, narrativas e autênticos mitos aponta para um outro problema que é o de poder não existir uma real alternativa de governação para o país.

De facto, percebe-se nos múltiplos debates políticos que se toma como verdades assentes certas suposições, a começar pela ideia secular que Cabo Verde seria um país de fartura e felicidade se chovesse. Uma outra ideia é a de ter uma localização estratégica única entre três continentes. Uma outra ainda mais recente é que o seu destino estaria numa proximidade à Africa com seus 300 milhões de consumidores na CEDEAO e mil milhões na União Africana. Vai-se mais fundo na ficção quando ao propor potenciar todos esses recursos apostando em clusters de agronegócios, hubs aéreos e transhipments e centro financeiro e apresentando-se como porta de entrada para África não se tem em devida conta a sua condição de arquipélago, de ilhas com secas cíclicas e pouco terreno arável, de um país de pequena população e mercado fragmentado e de parcos recursos naturais.

Nesse sentido, por exemplo, não há falta de apelos vindos de todos os quadrantes políticos para se apostar na agricultura e particularmente no que é mais visível: a mobilização de água. Dizem uns que é para criar mais postos de trabalho e outros que é para fixar a população no mundo rural. Tirando de lado qua não há muito campo para cultivar e que não há uma logística de transporte e distribuição que pudesse fazer chegar os produtos aos mercados das ilhas, o memorando do Banco Mundial (BM) de 14 de Julho último foi taxativo em dizer que a produtividade na agricultura é particularmente baixa correspondente a cerca de metade do nível encontrado na indústria e nos serviços. E sem produtividade não há como aumentar o rendimento das pessoas e, muito menos, criar emprego. Daí a grande percentagem de pobres e de muito pobres na população rural nomeadamente no interior da ilha de Santiago, como se pode ver nos dados do INE (IMC 2022, gráfico 29). O discurso político, imperturbável perante isso tudo, continua praticamente igual, mas com nuances, substituindo barragens por dessalinização de água e insistindo no objectivo de fixar os jovens.

No domínio dos transportes mesmo as grandes dívidas acumuladas na companhia aérea de bandeira e os enormes subsídios para os transportes marítimos não conseguem levar o debate sobre o sector para padrões racionais. A emoção reina, assim como as denúncias de abandono e as exigências para se construir mais estradas, disponibilizar mais barcos e abrir mais rotas. Não é tido em devida conta o facto que com a população actual e a fraca estrutura produtiva não se ter volume suficiente de passageiros e carga para rentabilizar tudo o que é exigido. Aliás, tende-se a amplificar o ruído nas discussões, atraindo mais carga política quando, como nota o Memorando do BM, acaba-se por focar a concessão dos transportes marítimos no movimento de passageiros, apesar de os estudos de suporte feitos terem identificado a carga como principal fonte de receitas.

Algo similar acontece quando, no esforço de tornar operacional a companhia de bandeira nos transportes aéreos para melhorar e baixar os custos de conectividade do país, imediatamente se procura restaurar rotas com as comunidades que notoriamente contribuíram para a sobrecarga das dívidas. E não são as recentes proclamações de que afinal a população residente mais a emigrada poderá perfazer dois milhões que mudará a situação. A tentação de hiperbolizar o impacto da emigração na economia pode servir em confrontos tácticos para arrecadar ganhos políticos, mas, na prática, só torna os problemas do país mais intratáveis e com mais custos para todos, incluindo os emigrantes.

Por isso quando a realidade bate à porta, na forma de um memorando do BM a chamar a atenção para o facto que o modelo de desenvolvimento dá sinais de cansaço e está a esgotar-se, a reacção imediata é de aumentar o volume do embate político para que o ruído afaste uns com desgosto da política. Mais crispação serve também para esconder dos outros que realmente as forças políticas não se mostram capazes de fazer reformas e mobilizar as energias necessárias para elevar o potencial de crescimento e melhorar a produtividade e a competitividade do país. Mesmo quando confrontadas com o desejo de emigrar que se percebe massivo, em particular nos jovens, derivado da falta de perspectivas de crescimento e de oportunidades de emprego, esforçam-se por não prestar a devida atenção. Sente-se a necessidade de o negar ou então de o desvalorizar afirmando que de uma forma ou outra o país ganha. Ofuscadas talvez pela ideia de uma suposta nação global até se quer tomar por igual o impacto que no país e na economia nacional têm as remessas dos emigrantes movidas por laços de afeição e o contributo do cidadão residente pela via de participação no processo produtivo nacional, por rendimentos ganhos no país e pelos impostos pagos.

A verdade é que o país tem que “cair no real”, como dizem os brasileiros. O mundo não está para se viver de ilusões e de mitos e narrativas que não deixam construir um futuro de crescimento e prosperidade. Restaurar um quadro racional de fazer política, em que a arrogância disfarçada de teimosia e o apelo sistemático a emoções e sentimentalismos não façam escola, é fundamental para se encontrar as respostas certas para os problemas do país. Há que, de facto, fazer menos festivais, evitar discursos demagógicos e investir mais no capital humano. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1131 de 2 de Agosto de 2023.

segunda-feira, julho 31, 2023

Não ao desalento. Pelo crescimento

 

Nos tempos conturbados de hoje, marcados por incertezas e imprevistos diversos, o foco no crescimento económico é fundamental para se estar minimamente preparado para enfrentar crises de origem económica, climática e sanitária. Esta é uma recomendação que Cabo Verde, que segundo os últimos dados do INE, sofreu uma contracção de 20,3 % da sua economia em 2020 devido à Covid-19, uma das maiores entre os países do mundo, devia merecer a maior atenção de todos, em particular dos seus governantes e da totalidade da classe política. A pressionar o caso veio o memorando do Banco Mundial de 14 de Julho a alertar para o esgotamento do modelo de desenvolvimento do país que vem dando sinais de cansaço desde 2008.

Entre as chamadas de atenção do BM está a constatação da importância do Investimento Directo Estrangeiro (IDE) como factor-chave do crescimento económico. De facto, num ambiente a partir de 2008 em que a produtividade deixa de ser um grande contribuidor para o PIB, o crescimento, segundo os dados do BM, teve de depender do nível do IDE. Os anos de maior crescimento na última década, entre 2016-2019, foram os de maior investimento em infraestruturas do turismo numa contribuição para o PIB de 2,6%. O foco no crescimento económico deve, pois, significar um esforço maior na atracção de investimento externo e na implementação de políticas que tragam de volta a produtividade como grande contribuidor para o PIB.

Tanto a primeira como a segunda tarefa enfrentam dificuldades, se não obstáculos, de monta. Da produtividade já se sabe das resistências para se diminuir a rigidez estrutural na utilização dos factores de produção. Em relação à atracção de investimento directo estrangeiro, que devia merecer todo o engajamento do país e da sociedade, trabalha em sentido contrário o discurso político. Cada vez mais polarizado, é um discurso que tende a cair para os estereótipos antigos, onde de um lado estariam os “patriotas e amantes da terra” e do outro “os vendedores da terra”.

Num arquipélago onde ao longo da sua história secular, os momentos de prosperidade estiveram ligados a uma articulação mais próxima com a economia mundial através de exportação de bens e serviços, fixar-se nesse tipo de retórica é condenar o país a níveis baixos de crescimento económico. Em vez de um espírito de abertura ao mundo e de cosmopolitismo acompanhado de uma efectiva fiscalização democrática e responsabilização do governo alimentam-se medos, desconfiança e ressentimentos que tendem a reduzir o IDE a “esquemas” para roubo de recursos do país e exploração dos cabo-verdianos.

O resultado não podia ser mais desastroso. Neste quesito o Memorando do BM relembra que uma das razões por que a média de crescimento nos primeiros quinze anos após a independência ficou nos 3% do PIB foi precisamente por “baixo investimento”. Excluía-se então o investimento directo estrangeiro. Na época, segundo o mesmo documento, os maiores contribuidores para o PIB eram a Ajuda Pública ao Desenvolvimento(APD) e as remessas dos emigrantes. E essa referência à constituição do PIB nesse período de baixo crescimento serve também para lembrar aos novos entusiastas da nação global e da nação diasporizada que não há remessas de emigrantes que substituam a necessidade do país de atrair investimento directo estrangeiro e de se organizar para ser competitivo e aumentar a produtividade. O IDE não significa apenas capital, como também tecnologia e know-how e, fundamentalmente, mercados de exportação e procura externa em forma de fluxos turísticos.

O economista Mohamed A. El-Erian num artigo recente explicou que tanto os países desenvolvidos como os em desenvolvimento correm o risco de verem, num momento ou outro da sua trajectória económica, os seus modelos de crescimento esgotarem-se e caírem na estagnação e até mesmo em regressão. Para evitar a armadilha, têm-se que encontrar uma forma de revigorar a estratégia de crescimento. Mohamed A. El-Erian e outros economistas como Gordon Brown que foi primeiro-ministro do Reino Unido e Michael Spence num livro “Permacrisis” sugerem acções em três áreas para conseguir esse revigoramento: fazer a reengenharia de modelos de crescimento que se têm revelado inefectivos; melhorar a gestão económica nacional e aprimorar a coordenação e as respostas políticas globais.

Como tiveram a oportunidade de salientar o crescimento económico pode não ser tudo, mas não há muita coisa que se consegue fazer ou resolver sem ele. Com a crise pandémica e as outras que vieram logo atrás, viram-se as consequências. O aumento da pobreza e da desigualdade social, seguido de tensões sociais e em certas partes do mundo até de tumultos, demonstraram a importância fundamental de se focar num crescimento que seja inclusivo, durável e sustentável. Para o desencadear e alimentar há que criar um ambiente competitivo capaz de atrair investimentos e garantir a produtividade que assegura a contínua produção de riqueza.

A grande questão que se coloca é qual o engajamento que se pode esperar da classe política para ir além da política, que apenas procura atingir e conservar o poder, e fazer outra política, capaz de encontrar respostas para as dificuldades actuais. Uma política que seja de mobilização da energia e da criatividade nacional para se realizar as reformas indispensáveis ao crescimento. Também que seja de promoção de uma nova atitude em relação ao mundo e que afaste qualquer sinal de desalento perante o desafio de se construir um Cabo Verde em sintonia com os desejos e expectativas de todos. Do Banco Mundial veio o alerta para se revigorar o modelo de crescimento e desenvolvimento. Do debate da próxima sexta-feira no parlamento, a Nação espera um firme comprometimento de toda a classe política para que isso aconteça. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1130 de 26 de Julho de 2023.

segunda-feira, julho 24, 2023

Urge mudar de rumo

 

A Moção de Censura como era de esperar não passou. Apesar de ter unido toda a oposição na votação final não havia sinais de que o governo tivesse perdido a sua maioria de apoio no parlamento. Enquanto instituto parlamentar para responsabilizar governos pelas suas políticas, a moção de censura foi vista neste caso fundamentalmente como um expediente para continuar o confronto político dos últimos dois meses tendo como pano de fundo acontecimentos recentes designadamente os relatórios do fundo do turismo e do fundo do ambiente. Não trouxe nova matéria para discussão, nem foi oportunidade para o maior partido da oposição apresentar-se como alternativa de governação na eventualidade da moção passar.

Claramente que o país precisa de um sério e aprofundado debate sobre o seu futuro. Um sinal disso é a procura sem precedentes de vistos e as pressões sobre os serviços consulares responsáveis ventiladas pela comunicação social durante semanas seguidas. Indicia que para muita gente e em particular para os mais jovens há uma preocupação genuína sobre o que será o amanhã. De facto, percebe-se que há uma vontade crescente de emigrar que provavelmente não é de agora como se pode ver pelos dados do INE de Abril de 2022 que revelaram, para espanto geral, que o país perdeu população ao invés do aumento esperado. Aparentemente, só para a classe política é que ainda não chegou o momento para enfrentar com desassombro e clareza a questão como se pôde constatar no que afinal se mostrou o último desperdício de tempo parlamentar que foi a discussão da moção de censura. Provavelmente acontecerá o mesmo no debate sobre o estado da Nação na próxima semana.

Um dado novo, entretanto, surgiu que talvez ajude a focar melhor a atenção sobre a problemática de desenvolvimento de Cabo Verde. Um memorando económico do Banco Mundial de 14 de Julho veio com uma clareza fora de comum lembrar que “o modelo económico de Cabo Verde tem dado sinais de cansaço desde a crise financeira mundial de 2008”; que a taxa de crescimento anual caiu de uma média de 10,1% na década de 1990 para 7,2% na década 2000 e para 1,2% na década de 2010, excluindo o ano 2020; que o potencial de crescimento da economia caiu de 6% na década de 1990 para 3,5% por cento após 2010. A queda no potencial de crescimento, segundo o memorando do Banco Mundial, deve-se ao facto da produtividade (PTF) que, devido às reformas estruturais dos anos noventa, tinha uma contribuição de 51% no crescimento ter passado a uma contribuição só de 1% na década de 2010-2019 atribuída à rigidez estrutural.

Comparando Cabo Verde com outros pequenos países insulares com características económicas e dotações semelhantes, o memorando do BM, que os distingue entre os pares estruturais (Samoa, São Tomé e Príncipe e Vanuatu), e os pares aspiracionais (Maurícias, Seicheles, Nevis e Santa Lúcia), considera que a produtividade do trabalhador cabo-verdiano só é superior ao de São Tomé e Príncipe. Acrescenta ainda que a produtividade do trabalho em Cabo Verde, que em 2009 correspondia a 42% do nível dos seus pares, passou para 39%, o que evidencia que o país não só não consegue alcançar os pares mais avançados como está, de facto, atrasado. O fraco crescimento da produtividade no sector dos serviços, que constitui a maior parte da economia cabo-verdiana, na ordem dos 0.70% evidentemente que acaba por condicionar a produção, o emprego e os salários, com impacto directo na vida das pessoas e nas suas expectativas em relação ao futuro e também na capacidade do país de responder a choques económicos externos e aos efeitos das alterações climáticas.

Reconhece-se no memorando que o turismo contribui directamente para 25% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, que cria cerca de 45% do emprego formal, representa 55% das receitas de exportação e que indirectamente a sua contribuição atinge os 44% do PIB. O mais natural é que uma maior atenção fosse dedicada ao sector e se verificasse o engajamento de todos no país e na sociedade por forma a potenciar no máximo o impacto do fluxo turístico sobre toda a actividade económica do país. Pelo que é explicitado no memorando, fica claro que se está muito aquém de fazer o aproveitamento adequado desse efeito de arrastamento da economia. Como ainda 80% dos produtos alimentares e bebidas consumidos nos hotéis são importados, existe uma grande margem para aumento da produção nacional. Também pode-se diminuir as rejeições de produtos de ordem dos trinta por cento por falta de qualidade e perdas também de 30% por razões de transporte inadequado de produtos.

Por isso, recomenda-se que o foco deva estar na construção da logística necessária para ligar as ilhas produtoras de bens agrícolas e industriais aos mercados de consumo nas ilhas do Sal e da Boa Vista de forma a conseguir ganhos de escala e responder às exigências de qualidade dos produtos, certificação e fiabilidade das cadeias de abastecimento. No processo eliminavam-se ineficiências várias nas transacções e diminuíam-se custos nos transportes e na utilização das infraestruturas portuárias. Uma parte do esforço no desenvolvimento do sector privado e da estrutura produtiva capaz de criar riqueza de forma sustentável e empregos estáveis poderia beneficiar de investimentos dirigidos para suprir as insuficiências e também de perseverança para ultrapassar as naturais dificuldades de um país arquipélago e com um mercado fragmentado.

Infelizmente não é essa a atitude que tende a prevalecer. Mais facilmente se vai atrás de políticas que estão em voga e que vêm juntos com promessas de milhões do que procurar potenciar o que na prática existe e pode-se aprofundar e até desenvolver estrategicamente. Ou então, fica-se por confrontos que tendem a fazer da política exclusivamente um jogo para chegar ao poder e não fundamentalmente o processo para uma sociedade plural e democrática encontrar vias e soluções para os desafios do presente e futuro e até rectificar opções passadas. Uma outra tentação é ir atrás de objectivos que só ideologicamente se justificam como o de se aproximar da África sem que se tenha descortinado, ao longo de quase 50 anos de independência, que utilidade as ilhas poderão ter para o continente, desperdiçando tempo, recursos e oportunidades outras.

A percepção de que o modelo actual de desenvolvimento poderá estar a esgotar-se devia ser um alerta forte para um país que já ocupa a 9ª posição mais alta nas taxas de emigração mundial e que em média, de acordo com o Memorando do BM, perde 1% da população por ano. A aumentar essa sangria, como parecem sinalizar as pressões para conseguir vistos, é também mão-de-obra que se perde trazendo constrangimentos graves ao investimento directo estrangeiro e comprometendo ainda mais o futuro do país. É, de facto, mais do que tempo para se mudar de rumo. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1129 de 19 de Julho de 2023.

segunda-feira, julho 17, 2023

Apelos levados pelo vento

 

Na sua intervenção nas cerimónias comemorativas do dia 5 de Julho o presidente da república trouxe à baila mais uma vez a questão da não partidarização da Administração Pública. É uma matéria recorrente nos discursos de outros titulares de órgãos de soberania, dos partidos políticos e de personalidades, académicos e activistas sociais.Todos parecem estar de acordo que o problema da partidarização existe, mas aparentemente ninguém sabe como ultrapassá-lo porque, apesar dos partidos se alternarem na governação do país, os seus efeitos não desaparecem, nem se atenuam. Como solução vai-se sugerindo entre outras acções a obrigatoriedade de concursos públicos para os cargos na administração do Estado, mas, enquanto panaceia, é evidente que essa medida não satisfaz, porquanto as denúncias de partidarismo na função pública continuam.

A chamada de atenção do PR, quarenta e oito anos após a independência e trinta anos depois da adopção de uma Constituição democrática talvez seja um sinal de que se vai tornando cada vez mais difícil ignorar as consequências do país ter uma “administração pública sobre a qual recai a desconfiança de não funcionar de acordo com princípios de justiça, isenção e imparcialidade e de igualdade de tratamento de todos os utentes”, como prevê a Constituição da República. E também que em acréscimo não há garantia que os funcionários e demais agentes do Estado são pessoalmente “beneficiados ou prejudicados ou se beneficiam ou prejudicam outrem em virtude das suas opções partidárias”. De facto, um Estado que funciona com tais constrangimentos, com impacto inevitável na sua eficiência e eficácia, não deixa de acarretar custos consideráveis para a sociedade e para a economia, afectando negativamente a competitividade do país.

Pôr cobro a esta situação devia ser uma prioridade fundamental quando o foco é desenvolver o país e a realidade é difícil e complexa e os recursos são escassos. Num momento crucial da ascensão à independência, Singapura, também uma realidade insular, erigiu através do seu líder Lee Kuan Yew como objectivos fundamentais o comprometimento com a meritocracia e a luta contra a corrupção. Nem todos podem repetir o feito de Singapura de passar de um rendimento per capita de 517 dólares em 1965 para 59 mil dólares em 2020, mas é um facto que isso só foi possível com uma administração pública competente e eficaz e a utilizar de forma eficiente os recursos públicos. Vários exemplos por todos os continentes têm demonstrado a importância para o desenvolvimento de um país de um serviço público com base em critérios meritocráticos e uma ética e um ethos a condizer, em que o utente não têm que se colocar na posição de quem está a receber favores e até mesmo de mostrar-se politicamente grato.

Infelizmente não é o que se conseguiu erigir ainda em Cabo Verde. Com a independência em 1975 a administração pública que se pretendeu construir foi a que melhor se adequava ao regime de partido/Estado. O critério de base era aderência aos princípios do partido único e naturalmente que a carreira na administração pública teria que se orientar mais pela fidelidade ao regime do que por considerações de competência técnica e profissional. Com o advento da democracia, 15 anos depois, o problema que se colocou ao novo governo era como conciliar a cultura de militância partidária dos funcionários herdada do outro regime com a necessidade de cumprir o seu programa sufragado nas urnas. A dificuldade aumentou com a liberdade de exercício de direitos políticos quase sem limites garantida aos funcionários públicos pela Constituição de 1992. Não é de estranhar que na ausência de constrangimentos efectivos houvesse a desconfiança que o fervor partidário em determinadas situações pudesse sobrepor-se ao sentido de dever enquanto funcionário público e que, em reacção, com a colocação de quadros de confiança política se procurasse minimizar os riscos.

A dificuldade com essa solução é que, como veio a se verificar, ficou quase impossível construir uma administração pública competente, experiente, com memória institucional e com outros valores e outra cultura ao nível que seria desejável para responder com a maior eficácia aos desafios de desenvolvimento do país. As alternâncias no governo acabaram por normalizar as nomeações e as carreiras na base partidária, mas ainda sem eliminar as vantagens iniciais dos que mais tempo tiveram no aparelho do Estado, facto que continua a alimentar ressentimentos de parte a parte e a desconfiança que bloqueia as tentativas de adopção de critérios meritocráticos. A grande apetência por cargos públicos acirrada por alguma precariedade de outros sectores de actividade e pela continuada ascendência do papel do Estado no domínio socioeconómico favorece a crispação política e retroalimenta todos os impulsos para não se chegar a compromissos que pudessem alterar a situação existente.

Apesar das denúncias de partidarismo na administração pública e dos apelos à despartidarização toma-se de alguma forma como normal a situação existente porque em boa medida responde à ideia do exercício de poder com base em clientelas, fazendo favores, garantindo acessos e reproduzindo dependências várias. A cumplicidade é geral como se pode constatar pelos conteúdos transmitidos na rádio e na televisão, pelo número de eventos em que autoridades nacionais e locais doam alguma coisa e as pessoas mostram-se gratas frente às câmaras e aos microfones. Num ambiente de campanha permanente e lutas por ganhos eleitorais futuros quando se fala de despartidarização está-se, de facto, a querer pôr em cheque quem está, no momento e no local em posição de dar, mas não a forma como está a exercer o poder.

As críticas aí, assim como com as denúncias sobre os resultados das inspecções aos fundos do turismo e do ambiente, são fundamentalmente para conseguir vantagem política sobre o adversário. Não para pôr em causa o sistema que permite que falhas similares tenham acontecido no passado, estejam a acontecer no presente e voltem a verificar-se no futuro. Aliás, percebe-se perfeitamente que muitos desses jogos de poder acontecem no lidar com os municípios e o normal seria melhorar e tornar mais rigorosos os processos decisórios e de fiscalização e controlo nos órgãos do poder local e na administração local. Pelo contrário, nota-se uma preocupação para aumentar ainda mais os poderes dos presidentes das câmaras municipais contribuindo eventualmente para mais exemplos de caciquismo local.

A incongruência é reveladora de como o tema da partidarização é tomada pelas forças políticas em presença como simples pretexto para ganhos tácticos contra o adversário e não para se juntar esforços e construir o Estado e a Administração Pública que o país precisa para enfrentar os extraordinários desafios do seu desenvolvimento. Na mesma linha vai a moção de censura ao governo que foi apresentada esta terça–feira. À partida não terá no parlamento a maioria necessária para ser aprovada, mas de qualquer maneira vai cumprir o seu propósito. No texto repetem-se todos os velhos clichés ideológicos e os argumentos e supostos factos que os sustentam ou justificam simplesmente para tentar conseguir ganhar alguns pontos políticos. O debate político não vai elevar o seu nível, o país não fica melhor preparado para enfrentar os desafios e afirma-se mais uma vez que não há nenhuma base para construir os acordos e compromissos para fazer o país avançar. Os apelos de despartidarização da administração pública serão mais uma vez levados pelo vento. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1128 de 12 de Julho de 2023.

segunda-feira, julho 10, 2023

5 de Julho, celebrar a República e a Democracia

 

Passados 48 anos após a independência nacional o 5 de Julho deve ser o dia em que a comunidade política nacional, enquanto república soberana, reafirma que as suas bases são a dignidade humana e a vontade popular. E que entre os seus objectivos fundamentais estão a inviolabilidade e a inalienabilidade dos direitos fundamentais, a igualdade de todos os cidadãos sem qualquer tipo de discriminação, a realização da democracia plena e de uma sociedade livre, justa e solidária, e ainda a criação de condições para a realização pessoal e participação efectiva de cada cidadão.

Com a celebração do 5 de Julho deve-se procurar reforçar a unidade da nação para poder enfrentar, num ambiente de pluralismo e de diversidade de interesses, os extraordinários desafios que se colocam no presente e no futuro próximo. O que não deve ser é a oportunidade para se pôr em causa os valores da república e da democracia e para validar anos de ditadura e os projectos de poder de um grupo e seus protagonistas.

A verdade é que o 5 Julho, a república, enquanto produto de uma situação histórica específica de desmoronamento tardio de um império colonial e em que movimentos de libertação reivindicavam exclusivo direito de representar povos e a legitimidade histórica para governar, levou tempo para cumprir as suas promessas de liberdade, de autogoverno e de cidadania plena. Só 15 anos depois com o 13 de Janeiro de 1991 é que, recuperado o protagonismo popular, se amarraram os alicerces da república na Constituição de 1992 e se reacendeu a esperança num futuro de prosperidade. Para trás então ficou o tempo dos obstáculos à iniciativa individual e desenvolvimento da pessoa humana, de ausência da participação efectiva e de constrangimentos na relação com o mundo. Também se abriu o caminho para libertar o país do peso de ideologias que justificaram aventuras insensatas como a unidade com a Guiné, que procuraram estatizar tudo na economia e na sociedade e que tomaram a legitimidade histórica como fonte primária do poder.

Chegado ao dia de hoje, é preciso ter em perspectiva o caminho percorrido, as insuficiências existentes e em que medida está-se a utilizar o potencial despoletado pela democracia, pelo Estado de Direito e pela livre iniciativa e maior autonomia de acção das pessoas para manter acesa a esperança. Alguns sinais preocupantes, designadamente a perda de população revelada no último Censo e a pressão cada vez maior de uma parte da população, em particular dos jovens em emigrar para a Europa e para os Estados Unidos, sugerem que não se está a fazer o melhor. É verdade que nas últimas três décadas mais do que se triplicou o rendimento per capita do país, mas, por outro lado, as desigualdades sociais aumentaram e bolsas de pobreza subsistiram apesar de programas repetidos dirigidos para combater as vulnerabilidades das populações.

Não se conseguiu modernizar suficientemente a agricultura para fazer o melhor uso da água e da terra arável disponível, nem se conseguiu desenvolver canais de escoamento dos produtos agrícolas para um melhor aproveitamento do mercado nacional, já naturalmente fragmentado nas ilhas, nem do novo mercado criado pela procura externa via turismo. A população que deixa os campos e as ilhas mais agrícolas à procura de emprego não é absorvida por unidades indústrias porque a industrialização, por razões ideológicas, veio tarde e posteriormente não resistiu às mudanças nas cadeias de valor. O turismo afirmou-se como motor da economia, mas, sem uma estratégia consistente e um comprometimento nacional com a actividade turística, continua dominado por alguns operadores e cria milhares de postos de trabalho, mas de baixos salários com o agravante dos trabalhadores, na maioria vindos de outras ilhas, arcarem com o custo das insuficiências existentes em infraestruturas e habitação.

Outros sectores, que foram alvo de projectos estratégicos dos sucessivos governos apresentados na forma de clusters, hubs e plataformas, não tiveram o retorno prometido apesar dos grandes investimentos feitos. Acabaram por contribuir para o aumento substancial da dívida pública conjuntamente com o crédito conseguido para financiar um conjunto de infraestruturas que também em boa medida ficaram subutilizadas. A pesca que podia beneficiar da vocação secular das ilhas e da instalação de grandes conserveiras com mercado certo na União Europeia também não foi foco de uma estratégia para aumento da capacidade de captura com impacto em produtos que mais peso têm nas exportações do país.

A percepção da população que as medidas políticas ficaram aquém do prometido em termos de dinâmica da economia e de criação de emprego cria alguma ansiedade, agravada pela expectativa de mobilidade social dos jovens e das suas famílias que resulta da massificação do ensino primário e secundário e da disponibilidade crescente de ensino superior no país. Perante isso o trabalho no Estado surge como o mais seguro devido à precariedade que rodeia os outros sectores. Mas a cada vez menor oferta de empregos no Estado e na administração acaba por provocar a corrida feroz aos lugares na função pública seguindo linhas partidárias e consequente ambiente político mais crispado e menos compromissório. Para muitos que não conseguem de uma forma ou outra singrar nesse ambiente resta o sector informal que cresce rapidamente, particularmente depois das crises sucessivas dos últimos anos, ou a possibilidade de emigrar como se pode ver pela pressão cada vez mais notória para conseguir vistos para a Europa. E a promoção de um empreendedorismo massificado não provou que é a panaceia para a falta de emprego e de oportunidades.

Claramente que as opções que se colocam a muitos cabo-verdianos e principalmente aos jovens não as mais consentâneas com as grandes promessas da república e com a esperança de uma vida melhor. A celebração do 5 de Julho deve também ter como objectivo renovar o comprometimento de todos e em particular dos governantes para mobilizar a energia e a vontade da colectividade na procura de soluções para os grandes desafios e para renovar a confiança no futuro. As crises sucessivas foram um forte estímulo para se mudar a atitude geral no sentido de uma mais “perfeita união” como diria Abraham Lincoln. Infelizmente não tiveram o impacto esperado e nota-se isso na tendência crescente para o divisionismo interno, para a descredibilização das instituições, para a falta de civismo e criminalidade.

O espectáculo que se vem assistindo na França nos últimos dias vem relembrar que emigrar para Europa também não é uma opção segura e tende a tornar-se pior ou pela reacção a incidentes similares ou pelo aproveitamento que políticos de outros países, caso do Primeiro-ministro polaco, fazem dos acontecimentos. Tudo isso vem relembrar a importância de se acreditar no Cabo Verde de esperança como cantava Norberto Tavares e da urgente necessidade de, e na república democrática que hoje todos celebram no 5 de Julho, se ultrapassar os obstáculos que ainda impedem a realização plena das suas promessas. 

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1127 de 05 de Julho de 2023.

segunda-feira, julho 03, 2023

Tempo para debater o papel do Estado

 

No dia 28 de Junho iniciou-se a segunda sessão plenária do mês com o debate com o Primeiro-ministro sobre “os negócios do Estado e a protecção do interesse público” proposto pelo maior partido da oposição.Vindo na esteira do imbróglio à volta das inspecções ao Fundo do Ambiente e ao Fundo do Turismo, o mais certo é que rapidamente o debate irá degradar-se pelas habituais acusações e as incursões ao passado que não deixam ninguém incólume. Por causa disso, normalmente desses debates só resulta o aumento do stock do cinismo nacional relativamente à política e aos políticos. Fica por avaliar, por exemplo, o quanto que o país já evoluiu na institucionalização dos seus mecanismos de responsabilização e prestação de contas nas últimas três décadas de democracia.

Também não se faz o suficiente por identificar os sectores da vida nacional onde o nível de acountability é mais baixo, a fiscalização política é mais frágil e a cultura política e administrativa favorece a falta de rigor no uso dos recursos públicos apesar das pistas que serão deixadas ao longo do debate. Prefere-se ficar por suspeições de corrupção que vão reforçar narrativas da existência de dois campos opostos: um que se reclama de estar num plano moral superior e diz querer preservar os recursos do Estados em nome do interesse público e outro que é acusado de querer delapidá-los em negócios que favorecem, acima de tudo, interesses privados.

É evidente que nesse tipo de confrontos põe-se de lado qualquer discussão compreensiva sobre o que deve ser o papel do Estado numa pequena economia insular e arquipelágica como Cabo Verde. Designadamente, não se procura descortinar que dimensão deverá ter o sector estatal e em que áreas económicas envolver-se. Ou como articular uma intervenção qualificada do Estado com a promoção do sector privado nacional e a atracção de investimento estrangeiro. Ou ainda como construir um sector público e administrativo que, regendo-se pelos princípios de eficiência e eficácia, contribua para a diminuição dos custos de contexto e também um sector público empresarial que mantenha a um nível adequado certos custos como os de energia, água e transportes.

Numa realidade como a cabo-verdiana, de uma pequena estrutura produtiva e um mercado minúsculo e fragmentado onde economias de escala não existem e falhas de mercado são inevitáveis, não é tarefa fácil determinar qual a dimensão e o papel certo do Estado. Como em qualquer democracia sempre vai haver um campo a propor mais Estado e outro a querer posturas menos intervencionistas. O debate fundamental que daí resulta, traduzido nos embates eleitorais em alternâncias na governação, serve para adaptar a condução da política económica aos desafios do momento e periodicamente fazer as correcções que se mostrarem necessárias. Diminui-se a utilidade do debate quando uma das partes trata propostas de diminuição da intervenção estatal vindas de outros actores políticos como inimigas do interesse público.

Ora, sabe-se de experiência directa duas coisas muito importantes: uma que ter o Estado a dominar toda a economia não é garantia que se está a proteger o interesse público. Ao estatizar tudo sacrifica-se em simultâneo a liberdade e a iniciativa individual e, por aí, a capacidade de inovação e produtividade de qualquer país. Uma outra consequência é que se limita o acesso aos recursos externos para financiamento da economia e não se consegue chegar aos mercados, constrangendo severamente as possibilidades do país se desenvolver. O crescimento verificado em Cabo Verde nos últimos trinta e dois anos na sequência da desestatização da sua economia, com todas as suas vicissitudes, testemunha a necessidade de se encontrar o equilíbrio adequado entre o público e o privado. E não é só uma questão que se coloca a economias frágeis como a cabo-verdiana.

A discussão à volta da intervenção do Estado na economia reentrou recentemente na ordem do dia na generalidade dos países democráticos. Os múltiplos problemas de circulação criados pela pandemia da Covid-19 e as perturbações graves na cadeia de abastecimentos de produtos essenciais e estratégicos obrigaram a repensar a integração na economia mundial numa perspectiva mais de resiliência do que de eficiência. Neste sentido, políticas de onshoring e de friend-shoring têm sido propostas por governos dos Estados Unidos e da União Europeia que, aliadas a iniciativas de financiamento de sectores estratégicos chamadas de “política industrial”, procuram dar um outro sentido à globalização.

Com isso, quer-se diminuir os riscos (de-risking) ligados às mudanças geopolíticas precipitadas pela invasão da Ucrânia pela Rússia e pelas tensões entre a China e o Estados Unidos. Também quer-se dar uma resposta a alguma desindustrialização e consequente erosão da classe média e aumento das desigualdades sociais que a globalização na base da procura de eficiência tinha gerado nas últimas décadas. Para muitos observadores, o novo intervencionismo do Estado traduzido na Europa entre outras iniciativas pela “bazuca financeira” e nos Estados Unidos pela lei das infraestruturas e pelo investimento nos semicondutores acaba por simbolizar uma nova era que se está a abrir e que põe fim à chamada globalização neoliberal iniciada nos anos noventa.

Repensar o país para os novos tempos é fundamental. No quadro mundial que se desenha há que procurar o melhor papel para o Estado de forma a ser não um entrave, mas sim um promotor e facilitador da economia de base privada que deverá criar prosperidade para todos. Para isso, preconceitos ideológicos de antigamente devem ser ultrapassados designadamente os que não vêem possibilidade de convergência entre o interesse público e o interesse individual e também os que consideram que qualquer redefinição do papel do Estado abre portas à corrupção. Aliás neste quesito era bom relembrar que, como diz o Lord Acton, o poder corrompe, mas que o poder absoluto corrompe absolutamente. Ou seja, mesmo que aparentemente invisível, está lá bem presente e tem custos, de uma forma ou de outra.

Em democracia, e com uma economia de mercado, querendo pode-se assumir colectivamente um comprometimento geral para a construção da indispensável máquina do Estado competente e eficiente e com cultura de serviço público que o país precisa. E para combater a corrupção, ciente das deficiências ainda existentes, em parte derivadas de uma cultura política de crispação permanente que urge ultrapassar e que alimenta desconfiança, devia-se agir com firmeza e determinação para aprimorar os mecanismos de controlo e prestação de contas. Com isso, o país ganharia com os custos mais baixos, maior confiança e atraindo mais investimento.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1126 de 28 de Junho de 2023.

sábado, junho 24, 2023

Evitar correr para os extremos

 A tendência para o extremar de posições sobre as mais diferentes matérias tem vindo a tornar-se uma característica cada vez mais pronunciada das democracias. As consequências vêem-se designadamente na crescente polarização política, na crispação política permanente, nas guerras culturais que sobem de tom e na ascensão da extrema-direita a par de uma esquerda mais focada em questões identitárias. Transversais à tradicional divisão entre direita e esquerda, percebem-se ainda movimentos que alguns caracterizam de quase niilistas personalizados por figuras aproximadamente do tipo de Donald Trump, narcisísticas, sem preocupação com a verdade e viradas para atacar as instituições e a ordem constitucional vigente. Apesar de conhecidos os estragos causados nas instituições e as marcas deixadas na sociedade, não se notam sinais de reversão do fenómeno.

Em Cabo Verde também já se fazem sentir esses males que atacam as democracias e as ameaçam de morte lenta. Falta serenidade e ponderação necessária na abordagem dos problemas que se colocam ao país. Todos os pretextos são bons para alimentar a crispação. A ferocidade com que se trocam acusações, no caso presente, as questões à volta dos relatórios de inspecção aos fundos do turismo e do ambiente, às vezes até dá a impressão que o edifício democrático está a ir abaixo por falta de transparência, não prestação de contas e corrupção. Para calibrar nem mesmo parece servir a percepção dos outros como a expressa na última reunião do GAO que aponta problemas, mas vê progressos ou então experimentações inovadoras como o acordo firmado ontem, dia 20 de Junho, com Portugal para o financiamento do fundo climático e ambiental na base da reconversão da dívida.

Pelo contrário, nota-se a tendência para alargar a conflitualidade política arrastando para o centro do confronto político dos partidos que é o parlamento não só a problemática das câmaras municipais, que já é indevidamente muito presente nos trabalhos parlamentares, como também o próprio presidente da república. A proposta de chamar à comissão parlamentar de inquérito a pessoa do presidente da república enquanto ex-primeiro-ministro além de absolutamente inédita não tem provavelmente qualquer enquadramento constitucional (artigo 147º, n.2 alínea b). Não sendo o PR responsável perante o parlamento, nem parte na governação do país, só se cria mais ruído político no sistema contemplando a hipótese de ele se apresentar nas vestes de um ex-PM numa CPI. Aliás, o mesmo se aplica à ideia de ouvir um ex-primeiro-ministro de Portugal em sede do referido inquérito parlamentar.

No mesmo sentido vão as tentativas de envolver o PR na contestação do acórdão do Tribunal Constitucional que decidiu pela constitucionalidade da resolução da Assembleia Nacional que autorizou a detenção de um deputado para ser submetido a interrogatório judicial. Sabe-se perfeitamente que o princípio da separação dos poderes não permite interferência dos outros órgãos de soberania nas decisões dos tribunais. Também é sabido que os acórdãos do TC têm força obrigatória geral. Perante isso, mudanças no quadro jurídico-constitucional e legal só podem ser feitas com leis da Assembleia Nacional em sede de revisão constitucional ou através de legislação ordinária. Fazer uma petição ao PR para convocar uma sessão extraordinária do parlamento com o objectivo de discutir os efeitos do acórdão não parece ser a melhor via, principalmente se é para perguntar se a Constituição se mantém no topo das leis do país e se já se pode alterar os limites materiais de revisão constitucional.

A haver uma petição o mais normal é que fosse dirigida à Assembleia Nacional para propor aos deputados e aos grupos parlamentares que legislassem para clarificar normas e procedimentos respeitantes à imunidade dos deputados e, se for necessário, proceder a uma revisão constitucional. E não pedir um debate que mais parece uma reapreciação da decisão do TC que supostamente teria introduzido normas costumeiras supraconstitucionais e alterado os limites materiais da revisão. Até porque se for uma reapreciação, de acordo com o regime jurídico do exercício do direito de petição, deverá ser liminarmente indeferida. Imagine-se o clamor que virá a seguir se for o PR a indeferir ou se o parlamento convocado extraordinariamente considerar que não é da sua competência reapreciar decisões dos tribunais. A dúvida que fica é se não é precisamente isso o que se pretende provocar.

Há já algum tempo que se tornaram visíveis as tentativas de transformar o descontentamento justificado com a morosidade da justiça em hostilidade dirigida ao poder judicial e em contestação da integridade dos juízes e procuradores. É um fenómeno que acompanhado de descredibilização do parlamento já vinha acontecendo em outras democracias e normalmente acabava por desembocar em derivas iliberais que sacrificaram a liberdade de expressão e de imprensa, o pluralismo e a independência dos tribunais. É um perigo que Cabo Verde como qualquer outra democracia não está isento até porque os sinais são evidentes nas tensões de há dois anos atrás com o foco nos tribunais judiciais e com ataques a magistrados. Há um ano atrás o foco virou para o parlamento com a questão da imunidade do deputado e agora quer-se envolver o PR num imbróglio que tem no seu centro uma decisão do Tribunal Constitucional.

Quando certos desafios são colocados às democracias a história recente é clara relativamente à importância de se garantir a independência dos tribunais. É só relembrar o papel que o poder judicial teve recentemente no Brasil, mas também nos Estados Unidos e no Reino Unido para pôr termo a aventuras iliberais que colocaram seriamente em perigo as instituições democráticas. Se esses países não poderiam dar-se ao luxo de perder a estabilidade devido a fragilidades induzidas nas instituições, Cabo Verde muito menos. É preciso conter a tentação de correr para os extremos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1125 de 21 de Junho de 2023.

segunda-feira, junho 19, 2023

Campanha permanente desqualifica a democracia

 

Recorrentemente na comunicação social aparecem relatos de irregularidades e decisões tomadas no financiamento de projectos e obras com base em relatórios diversos feitos por entidades públicas de inspecção ou de fiscalização. Nas últimas duas semanas vieram à baila dados ligados à investigação de financiamentos do Fundo do Ambiente e do Fundo do Turismo verificados nos últimos anos. Imediatamente toda a esfera pública, incluindo a comunicação social e as redes sociais, ficou rubra de denúncias e contra denúncias dos actores políticos e de múltiplas manifestações de indignação de certos sectores da sociedade. Em momentos outros no passado-recente também relatos similares tinham envolvido fundos, municípios e associações comunitárias seguidos sempre do aumento de crispação política no país.

Tais relatos são alimentados por fontes de informação que, por razões várias, resolveram levar ao conhecimento público elementos da inspecção antes de oficialmente terem sido homologados. Razões essas que poderão incluir a percepção que há demora exagerada em se dar continuidade ao processo de inspecção desencadeado, ou que há bloqueio em se avançar com o mesmo. Também não é de se pôr de lado a vontade de denunciar por dever moral em casos que indiciem corrupção ou mesmo algum interesse subjectivo de natureza política. Em qualquer das circunstâncias o efeito das denúncias cresce proporcionalmente com a renitência das autoridades em reconhecer o processo em andamento e com o facto de não se ter agido com a celeridade necessária para melhorar as práticas e conter os estragos.

No caso presente, mais uma vez viram-se as consequências da falta de acção ou da falta de assunção pelo governo das suas responsabilidades em tempo próprio. Acusações mútuas são feitas em sucessivas conferências de imprensa e o tempo parlamentar é dominado no período das questões gerais ou de antes da ordem do dia por denúncias e suspeições que vão buscar ao passado que todos já tiveram a oportunidade de protagonizar considerando que já houve duas alternâncias nos trinta e dois anos de democracia. Infelizmente, ninguém fica realmente esclarecido quanto às irregularidades denunciadas e às entidades envolvidas e, pior ainda, não se fica em posição de avançar com reformas que previnem que situações similares não venham a acontecer no futuro. Aliás, na essência, o que se denuncia hoje faz parte de um déjà vu. Aconteceu antes e se não for alterado o que lhes é subjacente irá repetir-se no futuro.

Cabo Verde não é um país que apresenta altos níveis de corrupção. Entre 180 países situa-se na posição 35ª no ano 2022. Alguma corrupção que poderá ter é confirmada pela irregularidades e desvios que de tempos em tempos são trazidas a público por denúncias como as referidas ou por fuga de informação. A questão que se coloca é como combatê-la tendo em conta que se revela persistente em certas circunstâncias e formatos de intervenção pública. O facto de se ter tomado como sinónimo de governar e fazer política é estar em campanha eleitoral permanente criou uma necessidade premente de todas as forças políticas de manter e expandir o eleitorado favorável. E num país de precariedade e vulnerabilidades várias esse esforço, não poucas vezes, redunda na criação de relações de clientela e na exploração de dependências mais ou menos alimentadas por irregularidades e desvios.

A dificuldade em acabar com esse estado de coisas é porque se trata do modus operandi preferido. Condenaçâo dessas artimanhas surge apenas quando alguém ficou exposto e foi apanhado e é dirigida mais para desgastar o adversário do que para promover boas práticas e uma ética superior. Naturalmente que os alvos principais são quem no momento governa o país ou está à frente das câmaras municipais porque têm mais meios à disposição. Para as forças políticas que estão na oposição, outras táticas, designadamente a cooptação de organizações sociais e comunitárias, estão disponíveis na mesma linha de clientelismo e de reprodução de dependências. Por isso é que, na sequência das denúncias, ficam pelas farpas trocadas e pelos ganhos políticos directos ou os resultantes do desgaste do adversário.

Mesmo no parlamento, onde há mecanismos de fiscalização para esclarecer a Nação sobre o funcionamento dos fundos públicos, não se aproveita a oportunidade para convocar as comissões especializadas competentes e fazer audição dos gestores dos fundos e de outras partes envolventes nos projectos financiados, nem para se escrutinar as práticas existentes e questionar os ministros da tutela. Prefere-se ficar pelos exercícios de arremesso político em que se transformou muito daquilo que devia ser trabalho parlamentar construtivo, suportado por um contraditório salutar.

Deixa-se predominar a lógica da campanha permanente que faz dos deputados activistas que, ao invés de se dirigirem à plenária da Assembleia Nacional enquanto representantes da nação, como é próprio do exercício do mandato, se dizem portadores de recados e falam directamente para “os que estão lá em casa”. E sem esquecer dos que optam por estar na “plataforma”, como se fosse admissível participar nos trabalhos parlamentares fora do plenário e até votar quando o voto deve ser sempre presencial porque só assim é que o presidente e a mesa da assembleia nacional podem garantir que o deputado está a exercer livremente o seu mandato.

A democracia prevê mandatos eleitos e uma maioria para governar com vista ao interesse geral por tempo determinado ao fim do qual se presta contas ao eleitorado. Transformar o tempo de mandato em campanha eleitoral permanente e usar recursos públicos para garantir um eleitorado leal diminui extraordinariamente a qualidade da democracia. Vê-se pelos repetidos casos de denúncias de irregularidades e desvios de fundos nas sucessivas legislaturas que é ao nível local e comunitário que mais as tropelias acontecem.

A fragilidade das instituições de controlo, a tendência para o caciquismo local e a cumplicidade das autoridades centrais conjugam-se para viabilizar a campanha permanente. Mas a sua manutenção nas mais variadas formas depende da cumplicidade do governo em manter parados casos em fase avançada de investigação. Também conta com a omissão de outros poderes, a começar pelo parlamento, que prescinde de competência própria em sede de fiscalização do governo e da administração do Estado para pôr cobro a práticas que põem em causa a prossecução do interesse geral.

Accountability significa que é-se responsável a todo o tempo perante todo o povo e não em relação a uma parte que pode vir a ser potencial eleitorado. As normas e os procedimentos em todo o funcionamento do Estado e da sua administração central e local existem para garantir que assim seja. Com a instituição da campanha eleitoral permanente essa garantia é uma pura quimera. Até se conseguir ultrapassar este “consenso” quanto ao que significa governar e fazer política vai-se ter que aguentar com as denúncias periódicas, a gritaria que se segue e a paz morna que perdura até à erupção seguinte.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1124 de 14 de Junho de 2023.

segunda-feira, junho 12, 2023

Arrancou a nova temporada política

 É perceptível para todos que o tempo político mudou. A postura e a acção diária política das forças políticas das câmaras municipais, dos grupos parlamentares e do governo já prenunciam o início do novo ciclo político.

As próximas eleições autárquicas deverão realizar-se daqui a 15 meses no último trimestre de 2024, mas as preparações para a pré-campanha já estão em andamento. Ainda não se passaram dois anos que terminou o último ciclo eleitoral com as eleições presidenciais de Outubro de 2021 e o país já se mobiliza para embates político-partidários focados na alternância nos órgãos autárquicos e no governo.

O problema com esse antecipar da luta pelo poder é a tendência geral para se extremar posições e diminuir as possibilidades de negociações, compromissos e acordos. Com isso fica difícil chegar a consensos sobre questões fundamentais e fazer as reformas urgentes de adaptação ao mundo precisamente quando este está a sofrer convulsões geopolíticas de grande envergadura postas em marcha pela invasão da Ucrânia. E, em simultâneo, alterações profundas, movidas pela rivalidade estratégica entre os Estados Unidos da América e a China, notam-se no mapa das relações económicas no mundo, à medida que países assumem novos papéis e novas vocações e se reconstituem cadeias de valor e redes de abastecimento ao nível global.

Já se tinham desperdiçados os anos de crises múltiplas (secas sucessivas, covid-19, a alta inflação sobre o preço dos combustíveis e dos produtos alimentares e a guerra na Ucrânia) para se repensar o país e criar vontade necessária para o posicionar no mundo actual que claramente se anunciava mais complexo e exigente. A acalmia pós-ciclo eleitoral 2020/21 não serviu para ensaiar uma mudança de atitude porque continuou-se fiel ao que se convencionou como fazer política em Cabo Verde que é de manter o país em permanente campanha eleitoral. A polarização que daí resulta, acompanhada da crispação constante entre as forças políticas e entre as câmaras municipais e o governo não deixa muito espaço para a sociedade participar sem que seja tolhida na sua autonomia e os indivíduos intervirem sem serem rotulados e identificados como partes na luta política em curso.

O resultado é que só se vê e se ouve falar é de visitas incessantes de governantes, de deputados, de presidentes de câmara e dirigentes locais e nacionais dos partidos políticos por todos os pontos do país. Também se concentra nas queixas de abandono, de discriminação e não cumprimento de promessas eleitorais. Não faltam ainda acusações e suspeições de corrupção dirigidas a instituições e personalidades ao nível local e governamental e manifestações de frustração e mesmo de ressentimento vindas das populações e das organizações da sociedade civil. O nível de ruído na esfera pública, amplificado pela comunicação social e cada vez mais ainda pelas redes sociais, acaba por inviabilizar qualquer possibilidade de diálogo que se podia ter em relação ao futuro na actual conjuntura mundial em que mudanças estruturais se anunciam, algumas facilidades desapareceram, desafios vários se colocam, incertezas são muitas e não faltam imprevistos.

Os temas são recorrentes, mas como se pode constatar nas últimas semanas, actualmente incidem sobre os transportes marítimos, aéreos, segurança e criminalidade e o sistema de saúde. Seja qual for a matéria da qual se supõe que num dado momento se pode extrair maior capital político ou servir de arma de arremesso, a verdade é que não há debate sério. Há mais pose e postura política e também oportunidade de expor o adversário político. Não há o aprofundar de questões, desde logo para não afrontar interesses instalados, corporativos ou outros, e em muitos casos nota-se uma espécie de cumplicidade cruzada em não trazer elementos que podiam clarificar a situação e até mesmo resolvê-la, ou ultrapassá-la. O problema é que muitas vezes pôr as coisas na devida perspectiva e sem receio de revelar todas as suas componentes retiraria razões para se manter a crispação que afinal todos têm interesse em perpetuar.

Assiste-se repetidamente a confrontos que não acontecem porque se está a bater por uma ideia ou por um objectivo. É mais para saber quem está de um lado e quem pode ser apontado como adversário ou até como inimigo. A necessidade de afirmação ideológica e/ou identitária e de expor o outro sobrepõe-se a um eventual interesse em resolver uma questão ou mesmo de se criar uma oportunidade para a demonstração de convergência numa questão vital para a comunidade ou para o país. Chegado a esse ponto, a política deixa de ser a forma privilegiada para se identificar, equacionar e encontrar as melhores soluções para os problemas da sociedade para se tornar um simples jogo de conquistar o poder de um grupo.

Segue-se naturalmente a descredibilização da política, das instituições democráticas e dos partidos que cada vez mais são tidos como organizações onde o ideal de servir o país conjugado com uma visão e um projecto político foi substituído pela ambição pura de poder. O espectáculo das lutas intrapartidárias ao longo das quais se nota crescentemente a importância das demonstrações de submissão ao líder em detrimento de quaisquer outros critérios, designadamente de competência, é desanimador. Se uma organização partidária não consegue reunir no seu seio os melhores para pensar o país, para desenvolver estratégias de intervenção e para agir com competência política na sua implementação, um impasse no desenvolvimento pode instalar-se. Mesmo que haja possibilidade de alternância no governo, pode não existir alternativas políticas reais capazes de corrigir erros e mudar o rumo do país.

A pobreza do debate político a que se assiste todos os dias e em que se substituem argumentos válidos, esclarecedores e construtivos por propaganda e ataques virulentos dirigidos aos adversários indicia bem o estado dos partidos que nos seus congressos e convenções já não discutem ideias \e estratégias. Ficam simplesmente pela proclamação do Chefe. Nestas circunstâncias abrir a “temporada” para o novo ciclo eleitoral significa apenas que o processo para cada um se colocar em melhor posição no novo ciclo vai acelerar. Entretanto, qualquer discussão séria sobre o futuro do país será adiada.

Num livro recentemente publicado “Fim dos tempos: elites, contra-elites e o caminho para a desintegração política” o antropólogo Peter Turchin diz que historicamente de entre todas as causas de crise política grave nas sociedades humanas destaca-se em primeiro lugar a que conjuga o empobrecimento das populações com o número reduzido de posições de elite em relação ao número dos que aspiram a chegar ao poder. A luta virulenta que se instala para a conquista desses lugares pode ser devastadora. Para a evitar há que honesta e realisticamente pensar e servir o país de modo a criar riqueza que permita reverter o empobrecimento e criar oportunidades outras, que não exclusivamente cargos políticos, para os que aspiram a notabilizar-se na sociedade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1123 de 7 de Junho de 2023.

segunda-feira, junho 05, 2023

Sintomas de um mesmo mal social

 

A questão energética é um dos mais importantes desafios que se colocam a Cabo Verde neste momento. E é assim tanto ao nível da sua sustentabilidade como também da criação de condições para se proceder à transição energética. Uma mudança que se impõe hoje a todos os países por variadíssimas razões entre as quais o potencial catastrófico das alterações climáticas em curso. Em Cabo Verde a transição para as energias renováveis já devia estar num estado muito mais avançado. Infelizmente não está. Tem um sector energético altamente deficitário, perdas horrendas por roubo de energia em particular na Praia e ineficiências outras por falta de investimentos designadamente na rede pública.

A condição de país arquipelágico, remoto e a sofrer durante séculos as agruras de um clima hostil e imprevisível devia ter sido incentivo suficiente para uma actuação estratégica dos sucessivos governos no sentido de uso criativo das tecnologias existentes e desenvolvimento das melhores práticas de eficiência energética e de mobilização, produção e utilização da água. De facto, há muito que deviam ter sido feitas as apostas certas para responder aos desafios que Cabo Verde sempre enfrentou e que tendencialmente são similares aos que muitos outros países passaram a enfrentar actualmente.

Se essa tivesse sido a via escolhida, hoje o conhecimento e as competências adquiridos e os serviços criados podiam constituir vantagem no intercâmbio com os outros países, com ganhos para Cabo Verde. Não se estaria a debater com a possibilidade de não se puder fazer com sustentabilidade a transição energética em caso de não se resolver os casos de perdas, de roubo de energia e de actuação criminal de forma organizada no sector, como foi sublinhado em dois momentos na comunicação social pelo ministro da indústria, comércio e energia e pelo PCA da Electra.

Devia pesar sobre a necessidade de políticas consistentes e de uma visão mais larga no sector um factor de urgência que é a questão do custo dos factores energia e água na actividade económica e do seu impacto na competitividade do país. O facto de se pagar preços de energia dos mais altos do mundo não foi, porém, suficiente incentivo para se focar na resolução de um problema central da economia que levado a bom porto implicaria a exploração de recursos em energias renováveis abundantes no país. Deixou-se, pelo contrário, que ineficiências aumentassem progressivamente e atingissem valores de cerca de 114 Gigawatts-hora em perdas de energia correspondente a 24,6% da produção nacional. Para isso terá contribuído a falta de um plano de investimento consistente na produção e na rede de transporte e distribuição acompanhado de dificuldades de cobrança e acções deliberadas de roubo de energia para venda e para consumo.

A complicar as coisas veio uma outra constatação. Ao reconhecer que as perdas maiores verificam-se na Praia e na ilha de Santiago (34,5%) e que os prejuízos nos resultados globais da empresa situam-se na Electra Sul, não obstante as várias equipas de fiscalização organizadas para tentar combater os problemas de roubo e fraude, acabou-se por chamar a atenção para situação social grave que se vive na ilha e na capital. De facto, há por um lado um problema da autoridade do Estado em que mesmo com leis punitivas não se consegue impedir nem dissuadir o roubo de energia. Por outro lado, como é reconhecido pela Electra, não se rouba energia só por falta de rendimento ou por falha da empresa em estabelecer ligações, mas também como acto deliberado de pessoas com rendimento e estatuto social e de unidades produtivas com grande consumo de energia.

Como diz o PCA da Electra “é um crime cada vez mais organizado, as pessoas estão a revender energia roubada, é um crime que lesa não só a ELECTRA, mas toda a economia. Temos operadores económicos, padarias, hotéis, empresas de frio, temos a classe média em Palmarejo”. Aparentemente nesses casos os mecanismos de pressão e dissuasão social não parecem funcionar. Não se nota qualquer sanção para quem assim se comporta, sobrecarregando todos os consumidores com tarifas mais altas por incorporarem as perdas na rede pública. Mas quando se conjuga essa constatação com a percepção de ausência de autoridade, traduzida numa presença menos perceptível da polícia, no aumento de actividades não licenciadas e mesmo ilegais ou clandestinas na frente de todos, começa a indiciar uma degenerescência social e cívica que acaba por manifestar-se de várias formas.

Entre outras consequências, afecta as relações interpessoais ao minar a confiança, potencia o uso de violência na resolução dos problemas, incentiva a criação de pequenas comunidades ou gangs onde particularmente os mais novos procuram obter um sentimento de pertença e abre caminho para delinquência aberta e violenta. A presença de ilícitos perigosos como drogas “pesadas” e o acesso a armas de fogo podem tornar explosiva um ambiente desses. Os vários surtos de crime no país e em particular na capital e os exemplos de criminalidade violenta que já se estão a espalhar também para outras ilhas deviam ser vistos como sinais de alerta para uma situação social que só tende a piorar, afectando tudo e todos. O que se pode já notar é que tem o potencial de tirar tranquilidade às pessoas, mexer com a economia, afastar turismo e investidores, aumentar custos em particular com a segurança e os serviços de saúde e afectar os jovens no seu crescimento e desempenho escolar.

Por isso mesmo ninguém devia procurar alhear-se do que está a passar. A extrema violência nos assaltos e o roubo descarado de energia denunciado pela Electra são sintomas claros do mesmo mal social que grassa pelo país. É uma realidade que interpela a todos e que para ser ultrapassada deverá exigir a mobilização da sociedade e um esforço concertado para se manter o país unido à volta de um sistema de valores consensual, inspirado na Constituição da República, e de uma visão compreensiva do futuro que potencie os recursos do país e as oportunidades emergentes. Em causa está o próprio futuro do país e a sua capacidade de vencer perante a adversidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1122 de 31 de Maio de 2023.

segunda-feira, maio 29, 2023

Renovar a esperança

 O governo escolheu fazer um balanço de dois anos de governação neste que é o seu segundo mandato na liderança do país. A data coincide grosso modo com a declaração do fim da emergência mundial criada pela covid-19 e com a recuperação da economia para os níveis de 2019. O Primeiro-ministro na sua alocução ao país fez questão de proclamar que “Salvamos vidas. Protegemos empregos, rendimentos e empresas. Investimos na recuperação e na retoma económica”. O tom quase propagandístico das mensagens, com enfase na auto-glorificação pelo conseguido, acaba por ser uma espada de dois gumes.

Se por um lado promete vantagem ao governo numa perspectiva de ganho político-eleitoral, por outro abre caminho para reivindicações de vários sectores da sociedade e em particular as populações mais vulneráveis que também querem ser compensados pelos sacrifícios, rendimentos e oportunidades perdidas. As críticas da oposição, em resposta, além de disputar o mérito e a qualidade das soluções encontradas pelo governo, procuram canalizar as reivindicações das populações, amplificá-las e exigir que sejam cumpridas imediatamente. E justificam dizendo que se o país está a crescer em média 12% ao ano, como proclama o governo, então que os efeitos desse crescimento sejam sentidos por todos de forma equitativa.

É mais um debate em que uns e outros não se ouvem e não há acordo praticamente sobre nada. O resultado é que dificilmente se vai manter a perspectiva real do que foram realmente estes anos de crises sucessivas e interligadas e o quanto é que se está longe de as ultrapassar. Tão cedo não se vai ter noção dos estragos permanentes causados ao nível pessoal e familiar, em termos designadamente de rendimento nas escolas, carreiras profissionais e saúde mental, mas também social ao nível da coesão nas comunidades, postura cívica e sentido de pertença. As erupções de violência, o uso de armas de fogo a atracção dos gangs sobre os mais jovens continuarão a pôr a sociedade em sobressalto sem que se chegue a acordo sobre como lidar com esses fenómenos.

Enquanto o discurso público for dominado pelo tipo de irrealismo quanto aos objectivos e aos meios que se vê, por exemplo, na abordagem de problemas como a produção agrícola, os transportes aéreos e marítimos e a luta contra a pobreza dificilmente vai-se deixar de cometer os mesmíssimos erros do passado. Para o governo, que faz o balanço com triunfalismos, positividade e good vibes, e para oposição, que sobe a fasquia nas reivindicações sem preocupação com os custos, tudo aparentemente se resume a ir empurrando o país com a barriga. A diferença numa avaliação futura é que as frustrações serão maiores porque as expectativas foram elevadas a outro patamar, os custos maiores porque, com sucessivos fracassos ou ineficiências várias, as dívidas acumularam-se, as instituições e a própria democracia fragilizaram-se porque se mostram incapazes de inflectir o processo de perda de credibilidade.

Não é de hoje que se procura apostar na agricultura com mobilização de água e agronegócios, ou se procura abrir voos da TACV para se ligar à diáspora e desenvolver um hub aéreo e se implementam programas de luta contra a pobreza. Fez-se no passado várias vezes e os resultados são de todos conhecidos em termos de empobrecimento progressivo do meio rural acompanhado de perda de população, aumento da dívida pública e crescimento da pobreza extrema nas cinturas urbanas. Agora promete-se fazer basicamente o mesmo num futuro próximo com água dessalinizada, com mais aviões e barcos, com empreendedorismo massificado e pensão social mais abrangente e espera-se que os resultados sejam diferentes. Caso para perguntar se a definição de insanidade atribuída a Albert Einstein se vai aplicar.

Winston Churchill num momento difícil da II Guerra Mundial teria dito que nunca se deve deixar uma boa crise ser desperdiçada. Infelizmente não foi só uma crise, mas várias crises que Cabo Verde deixou desperdiçar. O que já vinha acontecendo desde de 2017 com as secas sucessivas juntou-se em 2020 uma crise pandémica sem precedentes que, pelo enorme impacto global e local que teve, podia ser a grande oportunidade para o país repensar as suas opções, rever a sua forma de fazer política e mudar a atitude. Passou ao lado.

A generosidade do resto do mundo que se seguiu na forma de ajuda financeira, vacinas e equipamentos, ao tranquilizar os espíritos, retirou motivação para mudar. Em acréscimo, ao reforçar o papel já tradicional do Estado na reciclagem da ajuda externa, com o seu efeito concomitante de reproduzir o espírito de dependência que favorece esquemas de poder em detrimento da autonomia e iniciativa da sociedade e das pessoas, acabou por inibir ainda mais a vontade de fazer diferente. Não estranha que depois que a policrise se complicou com o aumento da inflação, a invasão da Ucrânia e o aumento brusco dos preços de alimentos e combustíveis ainda não se notam na sociedade indícios de debate sobre a nova realidade global. Um dia, porém, o país terá que repensar o seu futuro num mundo que claramente está em mudanças profundas tanto em termos geopolíticos como económicos.

Os foguetes lançados no balanço dos dois anos e as críticas azedas da oposição acontecem num ambiente que ainda se espera pela bonança prometida nos projectos de mudança climática, transição energética, digitalização e economia azul para que, no essencial, tudo se mantenha igual. E como até agora aconteceu, ficam adiados os esforços no sentido de revigorar o espírito de solidariedade que o país tanto precisa para diminuir a crispação política, aumentar a confiança interpessoal e reforçar a credibilidade das instituições.

Um bom passo em frente seria deixar de lado o optimismo, a positividade e good vibes de quem simplesmente acredita que as coisas vão dar certo, crença essa que pode resvalar para o irrealismo. Em troca, cultivar a esperança que parte da convicção de que com os pés bem ficados na terra se pode agir de forma estratégica e solidária para assegurar que se vai atingir os objectivos desejados com ganhos para todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1121 de 24 de Maio de 2023.

segunda-feira, maio 22, 2023

Polarização que dificulta o avanço do país

 

Polarização política, confrontos partidários estéreis e falta de consenso em questões-chave da vida dos países têm sido cada vez mais vistos como sinais de grave crise da generalidade das democracias.

O debate político, crescentemente sequestrado por questões mais próximas das identidades partidárias do que da substância das políticas públicas, ajuda a vincar a ideia que “tudo é política” e que com tudo se pode fazer política. No ambiente assim criado em que sentimentos tendem a prevalecer sobre os factos dificilmente se consegue esquivar do rótulo de pertencer a uma facção ou outra. A grande habilidade é sempre encontrar temas que alimentam essa polarização reforçando o sentido de pertença de uns e identificando outros como adversários ou inimigos.

Claro que não se pode manter uma situação dessas sem que haja custos para a qualidade da vida política e para o nível de participação da sociedade civil na discussão das grandes questões do país. Há ainda um outro custo importante que são as instituições que ficam resistentes a reformas e cativas de interesses que se revêem e se legitimam nas questões fracturantes. De qualquer forma, o que se nota é que, a par da polarização que empobrece a vida política e enfraquece a vontade de encontrar soluções para um presente e futuro diferentes, há o frequente retorno a questiúnculas que sempre que invocadas reforçam a marca ideológica de uns em contraposição a outros.

Um exemplo recente desses retornos que amiudamente acontecem na democracia cabo-verdiana é a controvérsia à volta da iniciativa diplomática do governo junto de Marrocos. Pelas reacções nos media e nas redes sociais percebe-se que foi uma oportunidade para vincar credenciais de “libertadores”, supostos defensores do princípio de autodeterminação e independência, versus os “outros” “ligados a outros interesses”. Era a polarização a trabalhar com o seu motor de sempre. Pareceu não interessar que o governo anterior procurou normalizar a relação com Marrocos, a exemplo da maioria dos países africanos e da própria União Africana (2007),  deixando congelada a questão do Saara Ocidental. Também se esquece que em matéria do direito dos povos há quem não pode ser exemplo porque quando devia ser a vez de Cabo Verde de exercer o seu direito à autodeterminação, no pós-25 de Abril de 1974, a palavra de ordem era “Não ao referendo, independência já, mas com o PAIGC”.

No mesmo sentido convergem outros momentos como os que se seguiram à discussão e aprovação do SOFA, o acórdão favorável do Tribunal Constitucional e a sua ratificação pelo presidente da república. Deixa-se no ar que interesses do país poderão não estar a ser servidos pelo governo acompanhado de um quê de antiamericanismo que cola bem com roupagens de anti-imperialismo do passado. Mais uma vez a tentação do reforço das credenciais ideológicas se sobrepõe. Não se vê qualquer contradição com posições de governo anterior que autorizou exercícios da NATO em Junho/Julho de 2006, celebrou SOFAs com a NATO e a Espanha, recebeu ex-prisioneiros do Guantánamo em 2010 e assinou acordo de parceria militar com os Estados Unidos em 2015.

Aparentemente nessa investida não é de exigir coerência governativa. Veja-se, por exemplo, a politica de reaproximação da África e a recomendação recente de estimular o desenvolvimento da cooperação com os países vizinhos. Depois de quase cinquenta anos após a independência não se vê alterações na estrutura das relações comerciais que poderiam sugerir que houve progresso significativo e nem se vê sinais que poderá haver avanços no futuro próximo. A opção pela África, porém, continua não como parte de uma estratégia governativa de desenvolvimento, mas para se manter uma identidade ideológica que dá fundamento à polarização política mesmo que os interesses do país não sejam realmente bem servidos no processo.

Num outro sentido, a reafricanização dos espíritos que também sustenta a polarização encontrou, na suposta defesa do crioulo, um terreno propício para os autênticos e os resistentes se demarcarem dos outros eventualmente lusotropicalistas, macaronésios ou simplesmente duvidosos. A verdade é que todos os cabo-verdianos falam o crioulo e não há perigo de nenhuma criança deixar de aprender a sua língua materna. Não obstante isso, e o facto de ao mais nível do Estado os titulares dos órgãos de soberania se expressarem em crioulo, criou-se a ideia que ela é desprestigiada e secundarizada. O objectivo aí é claro de mobilizar paixões supostamente para a causa da oficialização quando já existe desde 1999 a directiva constitucional para se criar as condições para estar em paridade com o português, a começar pela padronização enquanto língua formal e escrita. Curiosamente nem um jornal se procurou criar para habituar as pessoas a ler em crioulo como acontece em Aruba e Curaçau.

Os custos da polarização que certos sectores se empenham em reproduzir acabam por atingir as instituições do país com consequências nem sempre visíveis ou previsíveis. No caso do projecto lei sobre a língua portuguesa, apresentado na Assembleia Nacional, viu-se um ministro e um instituto público a extravasar as suas competências num confronto com uma maioria de votos de deputados a favor mesmo que insuficiente para passar a lei. A efectiva estatização da cultura claramente reconhecida no preâmbulo do regime jurídico do património cultural, mas não assumidamente extirpada das competências da instituição, representa de facto o entrincheiramento da política de reafricanização dos espíritos. Uma política que vem do regime de Partido Único e que se mantém imperturbável na democracia na qual o Estado, constitucionalmente, está impedido de impor correntes estéticas, ideológicas e filosóficas ao país e aos cidadãos. Desse choque entre dois sistemas de valores vem muito da paixão, do ressentimento e da nostalgia que alimenta a polarização política e cultural que dificulta o avanço do país.

Há dias, e a propósito da tragédia na Serra de Malagueta em que morreram oito militares num acidente de viação, algumas vozes, algumas delas surpreendentes por que já tinham ocupado posições ministeriais no sector, fizeram-se ouvir a pedir um debate alargado sobre o papel das forças armadas, a necessidade do serviço militar obrigatório e as missões que deve ou pode desempenhar. Realmente há muito que isso devia ter sido feito. Em primeiro lugar porque sendo Cabo Verde um país arquipélago de 10 ilhas e ilhéus as suas forças militares deviam ser concebidas de forma a responderam às ameaças e emergências e desafios que se colocam a um país insular. Não foi o que aconteceu porque se quis que as forçar armadas reproduzissem uma cultura de uma luta de libertação em que nunca participou e tivesse como objectivo principal a segurança interna do regime.

Em consequência, mesmo no período democrático, a polarização política serviu para assegurar que reformas de fundo, mais consentâneas com a natureza dos constrangimentos e ameaças do país, não fossem levadas adiante. Muito menos qualquer debate na transformação das forças armadas que tirasse os comandantes dos seus pedestais e mexesse com as suas datas revolucionárias. Os custos estão à vista de todos, mas mesmo quando se propõe debate, da forma enviesada com que é colocada, fica no ar a ideia que, de facto, o que se quer manter é a tensão que permite que a polarização se perpetue. Ou seja, quer-se, parafraseando Giuseppe de Lampedusa, que se dê sinais de mudança para que tudo fique na mesma. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1120 de 17 de Maio de 2023.

segunda-feira, maio 15, 2023

Disputa de protagonismo

 

Em declarações à imprensa o presidente da república José Maria Neves disse que espera que, ao que chamou de “disputa de protagonismo” entre o presidente português Marcelo Rebelo de Sousa e o primeiro-ministro António Costa, não faça escola em Cabo Verde. Pelas declarações que fez a seguir, a propósito de fundos para apoiar jornalistas e órgãos de comunicação social na cobertura de visitas presidenciais e do governo, fica-se com forte impressão de que aqui também já há essa disputa.

Nota-se em matérias aparentemente menores discutidas na praça pública como recursos orçamentais alocados aos órgãos de soberania e a propósito de verbas para viagens, mas também nas políticas governativas que até foram foco das mensagens presidenciais dirigidas ao país. O tom não é muito diferente do que é usado noutros debates políticos no país em que as teclas tocadas são as usuais de discriminação, exclusão e vitimização.

Em Portugal, a disputa atingiu um ponto clarificador quando a sugestão pública do PR para o PM demitir um ministro foi também expressa e publicamente negada. Na sequência o PR acabou por não avançar com “a bomba atómica” da dissolução do parlamento que só se justificaria com um não normal funcionamento das instituições e, por outro lado, o país ficou a par da uma vontade mais firme e explícita do PM de pôr travão à ingerência presidencial em matérias da governação. Não obstante as promessas do PR em manter com rédea curta o governo, a verdade é que toda a ideia da magistratura de influência até agora exercida, provavelmente terá que ser reformulada. Há quem diga que praticamente acabou quando, por disputas de protagonismo, o que antes era dito, sugerido ou recusado no recato dos encontros do PR e do PM já não têm a mesma receptividade de ambas partes.

Diz-se muitas vezes que em sistemas de governo nos quais o presidente da república é eleito directamente por sufrágio universal, mas não governa e o governo que ele nomeia só é politicamente responsável perante o parlamento, a relação entre o PR e o PM é de geometria variável. A existência de uma maioria absoluta a apoiar o governo limita o poder de influenciação do PR enquanto governos minoritários e mesmo coligações mais ou menos frágeis abrem outras possibilidades de intervenção e protagonismo presidencial. A disputa em Portugal nos termos em que se verificou, aconteceu praticamente após um ano de governo maioritário depois de seis anos de governos minoritários. O mais normal é que mais tarde ou mais cedo houvesse um momento de choque seguido de reajuste.

Em Cabo Verde onde sempre houve governos maioritários seria de esperar que as bases da relação entre os dois órgãos de soberania já estivessem normalizadas. Na ausência de governos minoritários e sem os, quase livres, poderes de dissolução do parlamento e de demissão do governo que o PR português detém, o mais normal é que em Cabo Verde se tivesse refinado essa magistratura discreta, mas eficaz que daria para melhores relações entre os dois órgãos de soberania. Mesmo a coexistência de presidente da república e de governo oriundos de diferentes origens partidárias até agora não se tinha mostrado propício para tensões fora do ordinário. A disputa de protagonismo actual sai do padrão talvez porque equilíbrios foram percepcionados como tendo sido rompidos devido a sucessivas crises que afligiram o país e novas realidades políticas, económicas e sociais que se impuseram.

De facto, outras razões para além das normais tensões dos órgãos de soberania poderão estar a alimentar as disputas de protagonismo tendo em conta os seus efeitos nas confrontações eleitorais futuras. Em Portugal, a perspectiva da chamada bazuca financeira, ou seja, o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) permitiu ao presidente da república justificar mesmo no novo quadro de um governo maioritário um seguimento de perto das políticas da governação na base que é fundamental para o país aplicar bem os fundos comunitários. É convicção geral que do bom uso que se fizer dos investimentos do PRR dependerá a possibilidade de Portugal inflectir a actual tendência do país de continuar a ser ultrapassado pelos novos membros da União Europeia e criar as bases da prosperidade futura. Com o PR a predispor-se para garantir que isso será feito já joga um importante papel político para os sectores de opinião que consideram que o actual governo não é dado a reformas de fundo e é mais virado para políticas com foco principal em manter uma base social de apoio ao poder actual e ganhar eleições.

Em Cabo Verde, a disputa já não está tanto a traduzir visões diferentes do futuro do país, mas antes os interesses de sectores distintos de uma classe política que já toda ela parece ter assumido como estratégia de desenvolvimento algo que não se distingue muito da agenda das Nações Unidas e das organizações multilaterais. O mais normal seria que houvesse a maior tranquilidade na relação entre os dois órgãos de soberania considerando que o actual PR está num primeiro mandato e lida com um governo maioritário. As coisas mudam quando, em momentos cruciais como eleição da Mesa da Assembleia Nacional, aprovação do Programa do Governo e Orçamento do Estado, o governo sinaliza fragilidades na sua maioria parlamentar.

Perante isso, o PR envolve-se em contactos com os partidos para garantir estabilidade e aprovação de instrumentos fundamentais como o Orçamento do Estado (2021) e ganha um protagonismo inesperado. Mas, como foi primeiro-ministro durante quinze anos e deixou de o ser há pouco mais de seis anos, qualquer protagonismo crítico mais pronunciado, particularmente incindindo sobre políticas governativas, imediatamente são tomadas como críticas que só poderiam vir da oposição. Daí é um passo para o PR ser visto como chefe da oposição tanto pelo partido no governo como também pela própria oposição partidária que acaba por sincronizar as suas intervenções no parlamento e na comunicação social com os seus pronunciamentos.

A disputa de protagonismo não só vai fazer escola como já cá está e com tonalidades complicadas porque, ao se tomar o PR como chefe da oposição, esvazia-se no processo o papel central de árbitro e moderador do sistema político e perdem-se as vantagens que podiam advir de uma magistratura de influência exercida por uma presidência suprapartidária. Mais complicado fica o sistema político que já vem sofrendo das ineficiências criadas pelas disputas de protagonismo entre o governo e as câmaras municipais e que agora se vê juntar a disputa com o presidente da república.

Quando o país precisa focar para fazer face a sucessivas crises e sabe-se que existem riscos expressivos que podem travar a recuperação, como deixou bem claro a última missão do FMI, é fundamental que todos compreendam que o mandato que receberam nas eleições democráticas é para servir o povo e o país e não para se servirem. Ninguém quer continuar a assistir à exibição de egos e ao cortejo de vaidades em que muito da vida política no país se transformou. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1119 de 10 de Maio de 2023.