segunda-feira, julho 22, 2024

Entendimento precisa-se para melhor gestão do Sector Empresarial do Estado

 

No parlamento na semana passada, o VPM e ministro das Finanças em resposta à pergunta dos deputados sobre os objectivos pretendidos com uma melhor gestão do Sector Empresarial do Estado (SEE), pôs enfase na necessidade de reduzir o risco para o orçamento do Estado e no papel de acelerador da diversificação da economia e do crescimento económico. A oposição, em outro momento da mesma sessão parlamentar, chamou a atenção para o que líder parlamentar do PAICV chamou de elevado risco representado por pelo menos seis empresas públicas de acordo com um quadro da UASE.

Em debate na Assembleia Nacional estava uma proposta de alteração na governança do SEE com a criação de uma nova entidade de gestão de participações do Estado na perspectiva de se obter uma melhoria na eficiência do funcionamento das empresas estatais. Quer-se com um novo modelo de gestão que as empresas deixem de ser sugadores dos recursos públicos e de passarem a contribuir de forma mais efectiva para a melhoria do ambiente de negócios, para diminuir custos de factores como água e electricidade e outros custos transaccionais ligados aos transportes e à conectividade interilhas e entre o país e o mundo. A melhoria da gestão das empresas que constituem o SEE tem sido uma recomendação permanente de organizações internacionais como o FMI e o Banco Mundial e também do GAO.

A iniciativa legislativa do governo visa aparentemente dar uma resposta à essa insistência das organizações internacionais. Espera-se é que não se fique por aí e haja consequências práticas com real impacto na redução dos riscos, na melhoria dos serviços prestados e na facilitação da iniciativa privada em vários sectores. O cepticismo em relação a isso revelado nas intervenções da oposição tem a ver com as enormes dificuldades em realmente mudar a situação no SEE como se pode constatar de outras iniciativas do actual governo e dos anteriores para melhoria da gestão dessas empresas que não tiveram o sucesso esperado. O resultado em muitos casos viu-se na dívida pública acumulada, na excessiva exposição do Estado devido a garantias e avales e nas dificuldades acrescidas em novos custos e em maiores resistências às reformas que globalmente tornam os problemas de certos sectores públicos quase intratáveis.

Pode-se considerar que o cepticismo é transversal. Hoje é expresso pela actual oposição que já foi governo e amanhã poderá ser a atitude assumida por uma diferente oposição. As dificuldades em determinar o papel do Estado e em particular do SEE num pequeno país arquipélago de parcos recursos e reduzida população e com mercado fragmentado por nove ilhas são enormes. Também não ajuda o facto de não existir entendimento quanto à natureza das dificuldades e em como as ultrapassar. E não poucas vezes essas dificuldades tornaram-se maiores por razões ideológicas, por insistência em mitos diversos e por imposição de soluções pela cooperação internacional.

Assim, já se teve a estatização da economia com um SEE dominante nos primeiros quinze anos e não resultou. A estagnação económica que acabou por produzir juntamente com a escassez e falta de diversidade de produtos e o desincentivo à iniciativa empresarial e aos investimentos serviram de motor para a mudança para uma economia de mercado que veio a verificar-se nos anos noventa. Seguiu-se a liberalização económica, atracção de investimento directo estrageiro e privatizações que aumentaram extraordinariamente o potencial de crescimento do país e levaram a taxas elevadas do PIB.

Desde a crise financeira de 2008 que se nota que, com o pouco crescimento da produtividade e a diminuição da competitividade do país, não obstante o grande crescimento do fluxo turístico, não tem sido possível elevar de forma sustentada as taxas de crescimento do PIB a mais de 7%, a taxa que consensualmente se acha necessário para o país prosperar, criar emprego e garantir rendimento às pessoas. Entretanto, a dívida pública vem aumentando e depois do salto devido à Covid-19, ainda não regressou, segundo os últimos relatórios do FMI, aos níveis pré-pandémicos de 2019. Tem sido feito um esforço de consolidação orçamental e conseguiu-se um saldo primário positivo em 2023, mas segundo o FMI foi com o aumento das receitas fiscais, baixa execução do orçamento de investimentos e pagamento pontual do fee da concessão dos aeroportos. A contenção efectiva de riscos orçamentais e a obtenção de saldos primários positivos terá que passar necessariamente por uma melhor gestão e adequação do SEE.

Não havendo, porém, entendimento quanto à natureza das dificuldades que as empresas estatais enfrentam e quanto ao papel ou função que podem desempenhar, fica tudo muito difícil. Há quem pense que o mercado de per si pode resolver. Viu-se nos transportes marítimos em como de um concurso público e da procura de navios novos se chegou a um concessionário, a navios sob leasing e à subsidiação expressiva. Acontece algo similar nos transportes aéreos e noutros sectores como água e energia. De facto, o mercado do país não é realmente unificado, em vários sectores o mercado é imperfeito e noutros há falhas de mercado. Globalmente há um problema de escala que cria ineficiências graves com os custos correspondentes e ineficácias na prestação de serviços.

Claramente que a iniciativa privada e o empresariado público devem poder se conjugar para obter os melhores resultados no processo de criação de riqueza no país. Para isso é fundamental que haja um esforço dirigido do Estado para conseguir uma gestão altamente qualificada e competente para o sector público. Uma política de atracção e formação de quadros seguindo critérios meritocráticos seria o desejável. É o que Singapura fez, mas que no ambiente de crispação política que se vive em Cabo Verde dificilmente se conseguiria, particularmente quando cada vez mais a lógica da militância partidária orienta-se pela procura e disponibilização de lugares no Estado.

Porém, sem gestão competente do SEE não há como fazê-lo cumprir os objectivos de contenção do risco e de acelerador. Pode-se avançar com mudanças no modelo de governança, mas dificilmente se vai criar cultura organizacional adequada e ganhar competência executiva. De facto, nomeações determinadas pelo jogo político-partidário podem acabar por distorcer os propósitos de gestão. Nota-se, por exemplo, como nas empresas a colegialidade dos órgãos de administração é enfraquecida com o empoderamento e voto de qualidade dos PCAs. Também a relação entre governantes, entidades reguladoras independentes e as empresas estatais pode ser condicionada pela excessiva centralização dos poderes de nomeação e de tutela num único membro do governo, o que claramente não favorece o ambiente de negócios propício a investimentos e à actividade empresarial. Por outro lado, privatizações por si só não vão resolver o problema, como já se sabe dos fracassos passados.

Cepticismo de hoje em relação a melhorias na gestão do SEE será o mesmo de amanhã, como já foi o de ontem, se não se assumir uma outra atitude. É preciso que haja um entendimento geral quanto à necessidade fulcral de se ter uma administração pública e um SEE competentes. É fundamental para desenvolver um país. A par com uma educação de excelência foi a opção ganhadora de Singapura. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1181 de 17 de Julho de 2024.

sexta-feira, julho 12, 2024

Traçar linhas vermelhas, uma prática potencialmente perigosa

 O presidente da república no seu discurso do 5 de Julho fez um apelo à união e foi peremptório ao dizer que “face à turbulência do mundo actual e à velocidade das mudanças, só juntos conseguiremos manter este Cabo Verde de todos nós na rota do desenvolvimento, da modernidade”. É um apelo esperado considerando que o PR é constitucionalmente o garante da unidade da nação e do Estado. Infelizmente não é a imagem que actualmente projecta no país e na sociedade.

Gira demasiada controvérsia à volta da relação do PR com os outros órgãos de soberania. Em causa na maior dos casos está o exercício das competências respectivas no quadro do princípio da separação dos poderes. Para quem tem funções de vigiar o cumprimento da Constituição e, enquanto tal, fazer o papel de árbitro e moderador, a introdução de agendas próprias num estilo activista e populista não augura bons resultados. Comprometer-se, por exemplo, com a promoção do legado histórico da nossa jovem Nação num registo indistinguível daquele que suportou o regime claramente divisivo de partido único (é só ouvir as canções de intervenção dos tempos da independência) não se coaduna com o apelo de união lançado pelo PR

Tão-pouco a prática de estabelecimento de “linhas vermelhas” vai ajudar no desenvolvimento do diálogo indispensável para se ter convergência na realização dos desígnios nacionais. Quando se pensava que as competências dos órgãos de soberania estão plasmadas na Constituição e não podiam ser aumentadas ou diminuídas, o país é surpreendido com novas regras. Em Portugal, uma linha vermelha ad hoc compeliu o presidente da república a dissolver o parlamento na sequência da demissão do primeiro-ministro mesmo tendo o partido no governo uma maioria parlamentar confortável. As consequências viram-se na instabilidade governativa e na reformulação do espectro político com ganhos para os partidos radicais e extremistas.

Em Cabo Verde, ficou-se a conhecer, via um comunicado da presidência da república, a existência de linhas vermelhas para a nomeação dos chamados embaixadores políticos. Isso na sequência de revelações de propostas do governo que receberam negas do PR e que depois serviram de material nas lutas partidárias e intrapartidárias para se sugerir que alguém terá escorregado numa casca de banana ou levado para o outro lado partidário a troco de cargos.

A questão dos embaixadores políticos é pontualmente agitada na praça pública e sempre excita paixões em certos sectores. Depois dos anos noventa só voltou em força a partir de 2016. De qualquer forma não deixa de ser curioso que isso aconteça quando se sabe que a grande maioria dos embaixadores nomeados principalmente para os postos diplomáticos mais importantes nos 49 anos de independência pode ser vista como enquadrada nessa categoria.

De facto, tirando de lado os primeiros quinze anos de regime de partido único em que todas as nomeações eram partidárias, mesmo as mais recentes, já do século XXI, tiveram um forte viés político. Em retrospectiva as linhas vermelhas agora proclamadas impediriam as nomeações de aposentados e de personalidades do regime anterior que se verificaram na primeira década deste século. Também com os actuais “critérios”, ex-ministros e deputados não seriam nomeados embaixadores porquanto, como membros do governo ou do parlamento, estiveram “no furacão da política”. Muito menos deveriam ser propostos os diplomatas de carreira, que imediatamente antes serviram como ministros ou conselheiros de membros do governo e logo de seguida como embaixadores, por duas razões: uma por terem estado no tal furacão da política e sofrerem a devida contaminação; e outra para não deixar a impressão que, pela nomeação na sequência de uma passagem pelo governo, terão sido privilegiados na carreira diplomática em relação aos outros.

Nos primeiros quinze anos deste século nove diplomatas serviram no governo e de seguida foram nomeados embaixadores. E há repetentes. Pela proximidade dessas práticas não se pode considerar que, com o trazer a público as linhas vermelhas, se está a agir por convicção. Mais parece um pretexto para mais um episódio de guerrilha institucional. É verdade que o país teria tudo a ganhar com uma classe profissional de diplomatas de carreira altamente qualificada e pronta a implementar a política externa de qualquer governo independentemente da cor política. Mas não se pode é ignorar a história institucional do que actualmente existe, as distorções a que foi sujeito e a cultura organizacional que gerou. E não é certamente com o excitar do espírito corporativista que se vai ultrapassar a actual situação.

Aliás, se há algo que se devia evitar é a transformação das reivindicações, muitas vezes justas das classes profissionais da administração pública, em armas de arremesso político. A convergência de interesses à qual o PR se referiu no seu discurso do 5 de Julho deve ter como um dos focos as reformas na Administração Pública indispensáveis para se conseguir baixar os custos de contexto, aumentar a produtividade e a competitividade do país. Isso só será possível se se puder evitar que o partidarismo incite ao entrincheiramento de interesses corporativos existentes que já dificultam as reformas essenciais e podem vir a ser tentados a manter refém os serviços públicos com anúncios quase permanente de greves.

Nesse sentido, há que restaurar o diálogo essencial para a democracia estar em posição de mostrar as suas virtualidades na procura de soluções com abertura a negociações e espírito compromissório. Para isso, porém, vai se ter que reunir consensos sobre as regras do jogo democrático, o sistema de governo que se tem no país e sobre as funções e competências de todos os órgãos num quadro que garanta os checks and balance, a prestação de contas e a responsabilização política. Também há que procurar manter o consenso sobre a necessidade de manter em devido controlo as pulsões populistas que, como se tem visto em vários países, são alimentadas pelo excitar de sentimentos com base na intolerância e no ressentimento e são protagonizadas por personalidades narcisísticas com tendências autoritárias e iliberais.

A experiência recente de alguns países democráticos demonstra quão frágil é a democracia se faltar o sentido de decência, se se limitar a liberdade de expressão e o pluralismo com cancelamentos do Outro e se permitir que actores políticos atropelem as regras democráticas e a própria lei e exibam uma aura de impunidade. A insistência em legados históricos intrinsecamente divisivos e exclusivos que se referenciam agora na propalada “hora zero da república” ao mais alto nível do Estado não incentivam à união que o país tanto precisa, não obstante os apelos em sentido contrário que se possam fazer em simultâneo. O actual panorama nacional demonstra isso claramente.

A possibilidade de conseguir a união que o país precisa só pode vir do aprofundamento do sentido de pertença à república como está definida na Constituição de 1992, porque tem como pressupostos a liberdade, a dignidade e a possibilidade de livre escolha dos governantes. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1180 de 10 de Julho de 2024.

segunda-feira, julho 08, 2024

Pela continuidade da construção da independência

 

O 5 de Julho, Dia da Independência, aproxima-se e é já na sexta-feira. Em antecipação já está em marcha o que se tem feito ao longo dos 49 anos de país independente: aproveitar a data não para reforçar a unidade da comunidade político-nacional, mas fundamentalmente para prestar homenagem aos autoproclamados libertadores e à ditadura de quinze anos a que estão intrinsecamente ligados.É só ouvir os discursos proferidos na sessão solene da Assembleia Nacional por altura das comemorações para se perceber as consequências disso.

Anualmente, no 5 de Julho, ao invés de se afirmar a unidade da nação indispensável para enfrentar os grandes desafios do país, cavam-se mais as divisões no seu seio. Nem os 33 anos de democracia conseguiram frear o impulso de considerar alguns “os melhores filhos” ou “a geração mais moral” e relegar os outros para uma postura de eterna gratidão para com o “bem maior” que é a independência. Tende-se a reproduzir com nuances a divisão original professada por Amílcar Cabral de que o povo é todo aquele que está com o partido e a população é o resto.

No preâmbulo do decreto presidencial de condecoração da OMS publicado na semana passada encontra-se uma das variações dessa divisão. No documento contrapõem-se os “questionamentos dos filhos da terra” quanto à viabilidade do país com a “postura audaciosa dos dirigentes” de lançar mão da solidariedade internacional na procura de afirmação do Estado. Como se ao forçar uma unidade com a Guiné não se estaria também a mostrar preocupação com a viabilidade, se não do país, pelo menos do regime que pretendiam instalar. A insistência em reproduzir fracturas no tecido da nação continua a ser uma forma de impedir que a independência realmente represente a autodeterminação que se quer de uma colectividade nacional suportada na cidadania plena com direitos fundamentais garantidos e capacidade livre e plural de escolher governos e governantes.

No preâmbulo de um outro decreto presidencial de condecoração de artistas e conjuntos de música de intervenção nos tempos da independência nacional constata-se que pré-existia a “determinação de um povo em ser dono e senhor do seu destino”. Também acrescenta que nas canções da época se reconhecia o desejo do povo em abrir “nos camin pa flicidad” e em “gritá nos liberdad”. O que no citado preâmbulo não se encontra é que nos primeiros quinze anos pós-independência não se conseguiu liberdade, nem as pessoas viram-se com opções próprias no seu caminho para a felicidade. Ou seja, a expectativa do que seria a independência não se realizou.

Sendo os decretos presidenciais de 26 e 27 de Junho de 2024 em que a ordem constitucional referencia-se pelos princípios e valores da liberdade e dignidade humana e assenta na vontade popular, certamente que se está pela via das condecorações a reconhecer que o que foi então cantado encontra-se agora mais próxima da realidade. A comemoração da independência é a celebração de tudo quanto a independência representa de autonomia, de liberdade dos indivíduos e do exercício do poder no estrito respeito pela Constituição e pelas leis democráticas. Não pode resumir-se à glorificação de um momento no passado que significou muito pouco para a liberdade e para a felicidade das pessoas.

Nem mesmo significou total soberania no sentido estrito de independência do Estado. A transferência de poder que aconteceu no dia 5 de Julho de 1975 foi das autoridades portuguesas para o PAIGC, um partido que já governava um outro país, a Guiné-Bissau. O Estado de Cabo Verde nasceu já comprometido com uma união com a Guiné-Bissau a ser formalizada no futuro como se pode ver no Texto da Proclamação da Independência e no nº 2 do artigo 2º da LOPE que estabelece uma comissão presidida pelo presidente da Assembleia Nacional Popular para elaborar “um projecto de Constituição da Associação dos dois Estados”. Na prática a união era real porque eram dirigidos por um único partido.

Só que isso colocava logo um problema de como seria o processo decisório nos órgãos superiores do PAIGC em relação a cada Estado considerando a sua composição binacional. No Conselho Superior de Luta de entre 85 membros só 13 eram cabo-verdianos e no Comité Executivo de Luta havia cinco cabo-verdianos num total de 25 membros. A desproporção era grande e não deixava de afectar Cabo Verde considerando a importância decisional hierárquica dos órgãos do PAIGC nas decisões do Estado como está evidenciado no Boletim Oficial de 5 de Julho de 1975. No sumário desse BO vem primeiro a Declaração do Conselho Superior de Luta do PAIGC de 25 de Junho seguido do Texto da Proclamação da Independência. Só depois é que o BO traz a Lei de Organização Política do Estado (LOPE) aprovada pela Assembleia Nacional Popular e finalmente diplomas da Presidência da República e do Governo. Para aprovação da bandeira a ser adoptada no 5 de Julho uma delegação cabo-verdiana teve que se deslocar a Bissau para conseguir a concordância do secretário-geral adjunto e presidente da Guiné, Luís Cabral.

Claramente que a independência, na forma de passagem de poder para o PAIGC como se verificou, não podia ser completa. Da dependência de Portugal passou para uma espécie de soberania compartilhada com a Guiné através do PAIGC, o qual é apresentado no Texto da Proclamação da Independência como “expressão da vontade soberana do povo na Guiné e em Cabo Verde” e força dirigente da sociedade e do Estado. A reforçar esse estatuto ainda no mesmo Texto se considera que as forças armadas revolucionárias do povo (FARP) são o braço armado do partido e não uma instituição do Estado como seria de esperar.

Neste particular, compreende-se por que sempre em momentos de tensão vividos nos anos entre 1975/80 se notava a presença de governantes guineenses das áreas de Segurança e Defesa em Cabo Verde. Aconteceu em 1977 nos dias logo após as prisões em S. Vicente e Santo Antão e outra vez em 1979 na sequência das dissidências no seio do PAIGC. Neste último caso, cinco dias depois do choque interno no PAIGC o então ministro da defesa da Guiné-Bissau, logo à chegada à Praia, anunciou exercícios militares das FARP para o mês de Maio. Depois do golpe de Estado na Guiné, o então primeiro-ministro Pedro Pires veio explicar que afinal a unidade com a Guiné era uma questão de defesa e segurança interna de Cabo Verde. Ou seja, a ligação com a Guiné tinha a função primeira de garantir uma retaguarda enquanto o regime criava raízes sólidas em Cabo Verde.

Com o fim do projecto da unidade depois do golpe na Guiné, Cabo Verde recuperou parte da sua soberania como Estado independente, mas não ainda como uma república soberana. Continuava a ser governado por um partido com a mesma postura ideológica de negação da autodeterminação, ou seja, da capacidade autónoma de decisão quanto aos destinos da colectividade nacional. Isso só viria a acontecer depois do 13 de Janeiro e com a Constituição de 1992.

No 5 de Julho é a independência completa e total que deve ser celebrada. Em particular, porque é fundamental criar o espírito de unidade da comunidade nacional para que, para além da independência política, se continuar focado em construir a independência socio-económica e também a independência cultural que o país tanto precisa. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1179 de 3 de Julho de 2024.

sexta-feira, junho 14, 2024

Aposta na solidariedade e na aquisição de competências

 Na apresentação do relatório Cabo Verde Economic Update 2024 o Banco Mundial veio relembrar as vulnerabilidades do país que a pandemia da Covid-19 pôs a claro. Citou, designadamente a grande dependência do turismo, as fragilidades face a choques externos e os riscos representados pelas empresas estatais com fraco desempenho. Um reviver pertinente de memória de todos considerando a tendência oficial para declarações auto congratulatórias do tipo: foi conseguido “a maior taxa de crescimento de sempre em 2022”. Quase se omite que tal só se verificou após a maior forte contracção conhecida da economia nacional.

Também um oportuno recordar para não obscurecer que os problemas estruturais permanecem e que, mesmo com o regresso dos turistas, ainda em 2024 não se aproveita adequadamente a procura externa gerada pelo turismo para arrastar e diversificar o resto da economia. A ilustrar isso, na avaliação da economia azul, o Banco Mundial, no mesmo documento, chama a atenção para o facto de que os operadores turísticos têm que importar peixe para consumo nos hotéis. Justificam com o facto de nem o manuseamento do pescado e nem a armazenagem no frio dos produtos do mar seguirem rigorosamente os procedimentos exigidos para garantir a segurança alimentar.

Ainda no quadro do esforço para a diversificação da economia o BM aponta a falha na criação de capacidade nacional de captura de peixe que está a pôr em perigo a indústria conserveira do país e as exportações de produtos do mar. Com o fim em vista da derrogação dos direitos de origem garantida pela União Europeia, são as exportações, que já atingem o valor de 32 milhões de dólares e 3,4% do PIB e também milhares de postos de trabalho, em particular de mulheres nas fábricas, que ficam em perigo. E é toda uma via, a da economia azul, para se evitar a chamada monocultura do turismo e as suas dependências que se arrisca a desperdiçar por falta de visão e de políticas adequadas. Também por negligência, porque não faltaram avisos das consequências do fim das derrogações.

Por outro lado, não é obvio, pelo menos no relatório do Banco Mundial, que existam à mão outras vias para diversificar a economia e criar rapidamente postos de trabalho. A quebra do fluxo turístico por causa da Covid-19 mostrou o quanto o país depende do turismo. Viu-se também que mesmo com toda a ajuda internacional, o endividamento externo e as remessas dos emigrantes a economia caiu mais de 20% e só recuperou com o regresso dos turistas. A constatação desse facto deveria ter levado a uma reflexão nacional profunda sobre as vulnerabilidades do país e em como as contornar e amortecer para melhor prepará-lo para enfrentar choques externos. Não aconteceu.

Os estrangulamentos na cadeia de abastecimento, a inflação, a guerra na Ucrânia e os aumentos do preço dos combustíveis que vieram logo a seguir parece que também não foram suficientes para devidamente focar a atenção nos problemas do país. A percepção que o mundo de hoje, com a globalização em retirada, com o regresso do proteccionismo, aumento de tensões geopolíticas e mesmo a possibilidade de guerras, não é o dos anos anteriores, aparentemente não impede que se queira continuar a fazer o mais do mesmo. Tanto é assim que no parlamento onde deviam-se discutir essas grandes questões do país o mais certo é que não recebam a devida atenção e se prefira ficar pelas tricas da pequena política.

Curiosamente não poucas vezes elas reaparecem ostensivamente em encontros, fóruns e workshops preparados com pompa e circunstância. Milhões acompanham os projectos que na sequência são anunciados. Depois, quando avaliados como agora acontece com a blue economy, percebe-se que, não obstante os muitos financiamentos feitos na pesca ao longo de quase cinco décadas, o sector caracteriza-se pela informalidade, por baixa produtividade e pelos níveis de pobreza de muitos que dele vivem. Por outro lado, considerando que se baseia num dos raros recursos naturais do país, o facto de não realizar o seu potencial prejudica directamente a economia não só pelo impacto directo limitado como pelos efeitos de arrastamento noutros sectores que ficam aquém dos possíveis. E é menor o papel que podia ter na diversificação da economia e em garantir ao país maior resiliência face aos choques externos.

Neste momento em que o mundo parece estar no limiar de mudanças profundas a vários níveis, Cabo Verde devia ser capaz de confrontar criticamente muitos dos pressupostos e mitos que têm estado subjacente às políticas de desenvolvimento adoptadas ao longo de décadas no pós-independência. Um deles, por exemplo, é da importância estratégica de Cabo Verde que historicamente parece mais pontual do que permanente. Quantos investimentos em projectos de hubs, transhipments e outros serviços sem o retorno esperado já foram feitos com o pressuposto que o interesse no país não é conjuntural. Um outro problema é o de escala num país arquipélago e de pequena população e relativamente remoto. Não há como moldar mercados e impor-se como útil e indispensável. O que deve existir é agilidade e criatividade no aproveitamento das oportunidades. De outra forma criam-se elefantes brancos e aumenta-se a dívida.

O ponto em que o país actualmente se encontra, com uma dívida pesada, com um sector público que comporta muitos riscos de aumentar mais essa dívida e com a dependência excessiva do turismo, não podia ser mais preocupante, mesmo que a conjuntura externa não fosse tão complicada como a actual. A predisposição para emigrar de muitos jovens e não jovens é sinal que esse sentimento de preocupação com o futuro está generalizado. A questão que se coloca é se há suficiente motivação interna para uma abordagem crítica e construtiva do que tem sido feito e para se dar os passos em frente que se impõem. Ou se se deve ficar apenas pelos sobressaltos que periodicamente os relatórios de organizações internacionais podem provocar, como foi o de Julho do ano passado sobre o esgotamento do modelo de desenvolvimento de Cabo Verde apresentado pelo Banco Mundial ou o actual apresentado na segunda feira passada.

O que o país não devia delapidar é o grande activo de ter uma população homogénea sem problemas de identidade e uma grande predisposição das famílias para investir na educação dos filhos. Há que, pelo contrário, reforçar ainda mais o sentido da cabo-verdianidade, investir compreensivamente, com o engajamento de toda a sociedade, na aquisição de competência linguística, científica e tecnológica e apostar na solidariedade como valor básico da comunidade. Está ao alcance de todos fazer esse comprometimento para vencer as extraordinárias dificuldades que se colocam ao país. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1176 de 12 de Junho de 2024.

segunda-feira, junho 10, 2024

O fascínio da impunidade

 

No passado dia 31 de Maio o ex-presidente americano Donald Trump foi considerado culpado em 34 acções crime que tinham sido movidas contra ele num tribunal de Nova Iorque. A decisão unânime do júri formado por 12 cidadãos apanhou toda a gente de surpresa. A sorte aparentemente vinha servindo Donald Tump ao longo das múltiplas acções judiciais e também políticas, dois impeachments nos quatro anos da sua presidência. Ou eram chumbadas como no caso das tentativas da sua destituição ou eram adiadas, contornadas ou recusadas quando vinham pela via judicial. Uma áurea de impunidade parecia acompanhá-lo a todo o tempo enquanto insultava pessoas, agredia instituições e praticava actos geralmente considerados ilegais.

A decisão do júri afectou essa áurea, mas claramente que na mente de milhões de americanos não foi suficiente para a deitar abaixo. Nas 24 horas seguintes mais de 54 milhões de dólares foram doados à campanha de Trump para a presidência, em Novembro próximo. Essa reacção da sua base eleitoral de o continuar a apoiar mesmo perante a evidência apresentada e a prova, para além de qualquer dúvida, de crimes cometidos, não deixa de ser extraordinária. De facto, tudo leva a crer que se está perante uma nova estirpe de político. Um tipo de populista que é não só anti-elitista, põe em causa as instituições e faz promessas mirabolantes mas, um outro, que se declara querer ser ditador, colocar-se acima da lei e até mostrar ser irresponsável nas relações com países estrangeiros declaradamente inimigos.

Conseguir ficar intocável e mesmo impune ao longo de anos de atropelos sucessivos às normas de comportamento, procedimentos aceites, princípios éticos e até leis punitivas parece criar um fascínio especial que assumido por um número crescente de pessoas pode ganhar vida própria. Quando é assim a divisão dentro da sociedade vai além de uma simples polarização com base em filosofias ou ideologias políticas diferentes para se situar na chamada pós-verdade e realidades alternativas. O diálogo torna-se quase impossível, as instituições degradam-se e sinais preocupantes como extrema crispação política e o chamado crime de ódio avolumam-se.

Por outro lado, a impunidade que acompanha os atropelos tende a ser cada vez maior e se há iniciativa das instituições para pôr cobro a irregularidades e a práticas ilegais constata-se uma reacção violenta não só do líder como também dos apoiantes. A censura política ou mesma a condenação judicial do líder não leva à perda da sua base política de suporte. Pelo contrário, a tendência é para os apoiantes insurgirem contra as instituições e contra as regras democráticas com acusações de perseguição, cumplicidade e manipulação. Aconteceu com Trump e acontece com outros políticos da mesma estirpe por todo o lado nas democracias sempre que se procura responsabilizá-los pelos seus actos. Com isso, agrava-se ainda mais a crise institucional em que actualmente se encontram.

De facto, a predisposição de partes significativas da sociedade em aceitar o discurso iliberal que fere a dignidade humana e os direitos do indivíduo acaba por minar os fundamentos da vida em comunidade com liberdade, paz e justiça. As sucessivas tentativas de alterar o equilíbrio de poderes no sistema de governo criando bloqueios e ineficácias abre caminho para o poder arbitrário de uma minoria à volta de um Chefe com apetites ditatoriais. As arremetidas contra os factos e o apego a narrativas construídas à volta da idolatria de líderes que privilegiam emoções em detrimento da razão prejudicam a busca da verdade. E sem o comprometimento de uma sociedade com a procura da verdade não se consegue realizar as potencialidades da sociedade democrática indispensáveis para construir o progresso e a prosperidade suportando-se no pluralismo, em incentivos à criatividade e ao mérito, na promoção do conhecimento científico e tecnológico e na afirmação da autonomia individual. Não é à toa que os países mais avançados do mundo em todos os domínios são democracias.

Em Cabo Verde também já há sinais de políticos e de certo tipo de actuações na esfera pública que procuram afirmar-se desafiando as regras e subtraindo-se à responsabilização, sem se importar com a legalidade e a ordem constitucional e com o impacto na credibilidade das instituições. Dá indicação disso a comoção pública e política em certos sectores da sociedade provocada pelo caso do advogado que começou com acusações contra juízes e contra o sistema judicial e acabou com o julgamento do próprio, entrementes eleito deputado, por atentado contra o Estado de Direito. A exemplo do que se passou noutros sítios a impressão com que se fica é que quando deixou de existir a percepção de impunidade os apoiantes mobilizaram-se para a repor acusando o sistema político e judicial de perseguição, cumplicidade e manipulação. Para alguns deveria interessar a continuação de ataques a juízes e ao sistema judicial a partir do plenário da Assembleia Nacional.

Um outro caso é o que se passou na Câmara Municipal da Praia (CMP). Ontem, dia 4 de Junho, o presidente do PAICV foi prestar solidariedade expressa ao presidente da (CMP) “porque tem sido vítima de vários actos de perseguição… e o acto de busca [pelo Ministério Público] foi a gota de água”. Não parece interessar o facto que os problemas na CM da Praia começaram após a destruição pelo próprio presidente da maioria do Paicv recebida das eleições, logo no início do mandato, com acusações espúrias de corrupção aos vereadores do seu próprio partido. Agudizaram-se quando apresentou à Assembleia Municipal (AM) a proposta de orçamento do município sem ser previamente aprovada pela CMP. As ilegalidades continuaram com a aprovação subsequente da proposta pela AM em colisão directa com o estatuto dos municípios e com a prática estabelecida nos restantes municípios durante os mais de trinta anos do municipalismo democrático em Cabo Verde.

Na linha do que acontece com populistas da nova estirpe política, os anos de impunidade por reiterados procedimentos ilegais aparentemente fazem parte dos solavancos que reforçam as suas raízes e as suas bases de ligação com os eleitores. É-lhes oferecido “apoio inequívoco” por causa disso e não apesar disso. Segue-se assim por um caminho em que ao invés de se fazer o jogo democrático e respeitar as instituições se premeia o atropelo das regras. Mais ainda se premeia a percepção de impunidade dos prevaricadores por causa do fascínio que líderes anti-elitistas, cáusticos com os adversários políticos e seguros da sua “verdade”, não interessando os factos, criam em certos segmentos da população.

O colapso do centro político nas democracias acompanhado do aumento do vociferar nos extremos deriva em boa medida do oportunismo político de partidos e certas personalidades. Vê-se isso nas apostas que, atacando ou apoiando, fazem em figuras políticas controversas com laivos narcisistas e a projectar uma imagem de autenticidade à mistura com sentimentos anti-sistema. Claramente que colocar o foco nesses putativos ditadores não traz nada de bom para a liberdade e para a democracia. Toda a gente sabe disso, mas parece que ninguém quer recuar dessa corrida para o desastre. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1175 de 5 de Junho de 2024.

segunda-feira, junho 03, 2024

Transição energética, será desta?

 A começar no dia 1º de Junho a Electra, SA será separada (unbundled) em três empresas, uma dirigida para a produção de electricidade, outra para a comercialização e a outra ainda de gestão da rede pública e também de compra, transporte e distribuição da electricidade. As mudanças segundo o governo visam conseguir ganhos de eficiência na produção e distribuição de energia e criar as condições para a transição energética, limitando a produção térmica e privilegiando as energias renováveis. Nesse sentido, as metas já estabelecidas são de atingir 30% de penetração das renováveis, solar e eólica, até 2025 e de 54% em 2030. Em 2040 espera-se chegar aos 100% com o apoio de parceiros internacionais.

Curiosamente, há mais de dez anos atrás, em 2010, também se dividiu a Electra em Electra Norte e Electra Sul com a perspectiva de aumentar a penetração das energias renováveis e diminuir a dependência dos combustíveis fósseis. As metas a atingir então, segundo a Resolução nº 19/2010 de 16 de Abril, eram de assegurar até 2020 a cobertura de 100 % das necessidades de energia eléctrica de, pelo menos, uma ilha, e de 50% do país com energias renováveis. Infelizmente, mais de uma década depois ainda se estava pelos 17% de penetração das renováveis, com uma empresa de electricidade a braços com ineficiências várias, perdas comerciais enormes e limitada na sua capacidade de investimento por um capital social negativo de cerca de 7 milhões de contos.

Metas ambiciosas foram estabelecidas nos dois momentos referidos. No primeiro, já se sabe que não se realizaram. No caso actual, também não há certezas. O FMI no relatório de avaliação técnica recentemente publicado (17 de Maio) mostra dúvidas quanto ao atingir as metas seja em 2025 seja em 2030. De facto, para se concretizar o pretendido muitos obstáculos terão que ser ultrapassados, entre eles o do enorme investimento na produção de energia, cerca de 252 MW em renováveis até 2030, e fundamentalmente na rede pública e na armazenagem de energia em baterias. Calcula-se, segundo o referido relatório, que o investimento na rede chegue a 108 milhões de dólares para estar à altura de incorporar energia de fornecedores com produção intermitente e variável, de ser gerida como um smart grid e cumprir com todas as metas estabelecidas.

É verdade que desta vez se veio com uma outra concepção na desagregação da Electra que resultou na criação de empresas por áreas funcionais de gestão de rede, produção e comercialização ao invés de uma perspectiva simplesmente geográfica de Electra Norte e Electra Sul como da primeira vez, em 2010. Na época tinha-se aflorado uma reorganização da Electra em moldes próximos da adoptada actualmente — mais próxima do que existe noutras paragens e em que há múltiplos produtores e é central uma rede moderna e bem gerida — mas foi rejeitada. Provavelmente perdeu-se tempo e oportunidades e agora há que fazer uma caminhada contra o tempo quando os efeitos das alterações climáticas se fazem sentir cada vez mais e todos clamam pela descarbonização da economia.

Por resolver, e em qualquer configuração de gestão empresarial do sistema eléctrico, fica o proverbial elefante no meio da sala: as enormes perdas comerciais por falta de pagamento e por furto de electricidade. Na generalidade das ilhas a média dessas perdas é de 14%, mas na ilha de Santiago com cerca de 55,4% da produção nacional é de 35%, o que torna complicado a situação das empresas no sector, sejam elas públicas ou privadas. Quando se prevê privatizações para atrair capitais para o sector e suportar o grosso dos investimentos necessários para se fazer a transição energética e contribuir para a descarbonização da economia, essencial se torna encontrar uma solução para essas perdas não técnicas. Aliás, também para as perdas técnicas que, para serem debeladas, também carecem de investimentos substanciais de melhoria da eficiência na rede eléctrica.

De facto, quem investe quer retorno do seu capital aplicado e espera que haja um ambiente de negócios favorável e previsível. Por outro lado, os consumidores não querem arcar com os custos dessas perdas técnicas e não técnicas suportando tarifas altas para manter viáveis as empresas de electricidade. Já por si essa situação contribui para aumentar os custos de produção com impacto em todas as empresas. Afecta ainda negativamente a competitividade nacional desincentivando investimentos que podiam contribuir para o crescimento e diversificação da economia nacional. Como combater esse mal é a questão que se tem de colocar antes das privatizações para não se ter o Estado a arcar com compensações extraordinárias a privados para garantir bens públicos (utilities) de electricidade.

Algo similar acontece com o sector de abastecimento de água à população e às empresas. Também exige enormes investimentos na rede para se limitar as perdas desmesuradas (60%) a que está sujeito. Sofre, entretanto, dos mesmos males de furtos e não pagamento de facturas numa escala igual ou superior à da electricidade. O facto da quantidade de água potável disponível no país depender cada vez mais da produção via dessalinização torna ainda mais forte e complexa a ligação entre água e energia. Os investimentos que se mostrarem necessários e a gestão cuidada a dedicar tanto ao sector eléctrico como ao sector de produção e distribuição de água, evitando custos proibitivos para os consumidores, devem ter isso em devida conta.

Anuncia-se para o dia 1º de Junho uma nova largada em sectores como energia e égua que são fundamentais para o futuro do país num momento em que a humanidade vive na iminência de assistir a profundas alterações climáticas potencialmente criadoras de escassez desses bens preciosos. Cabo Verde pela sua história devia estar melhor preparado com uma cultura de poupança de água e energia e com uma sensibilidade especial em procurar dar uso eficiente a esses factores. Infelizmente assim não aconteceu e o país nem conseguiu se antecipar ao que já se sabia que vinha à frente e adaptar-se a tempo. Nem muito menos soube recorrer à sua experiência de resiliente climático de séculos para oferecer algo inovador em bens, serviços ou experiência. Agora tem que acertar o passo com as mudanças que se estão a verificar a nível global e é importante que saiba focar-se no que é importante para não ficar para trás.

Humberto Cardoso 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1174 de 29 de Maio de 2024.

segunda-feira, maio 27, 2024

Manter o poder judicial credível e eficaz

 

De tempos em tempos questões à volta da eficácia da justiça vêm à tona. Às vezes são trazidas por utentes, políticos, académicos, advogados e pelos próprios magistrados. Outras vezes por acontecimentos, posicionamentos e decisões com elementos conflituantes que precisam de ser dirimidos. Desta vez surge na sequência de uma entrevista do presidente do supremo tribunal da justiça (STJ) à rádio pública em que afirma que o excesso de garantias é um dos factores que também contribui para a morosidade da justiça. A ordem de advogados respondeu com um comunicado dizendo que a morosidade da justiça não reside na diminuição das garantias processuais, mas sim na melhoria estrutural e funcional do sistema judiciário.

Subjacente a todos os momentos em que se verificam desencontros de opinião quanto às causas da morosidade da justiça está a preocupação geral com o facto conhecido de que a “justiça que tarda, falha”. E numa comunidade que quer viver em liberdade, na paz e em democracia não se pode ter a percepção de que a justiça falha, que não é eficaz e não serve a todos. Por isso mesmo é que em tempo útil deve-se assegurar que conflitos de interesses são dirimidos, que os direitos dos cidadãos são protegidos e que são reprimidos quaisquer atentados à legalidade democrática. Como conseguir isso é o grande desafio que se põe em particular às sociedades democráticas para que, como dizia Martin Luther King Jr., se continue a acreditar que “o arco do universo moral é longo, mas inclina-se no sentido da justiça”.

A consecução da justiça justa pretendida por todos implica que os tribunais sejam independentes, os juízes sigam a lei e a sua consciência e que se respeite o due process of law, ou seja, se respeite estritamente os processos e procedimentos ao longo de todo a investigação, acusação e julgamento dos casos. Vital para o sistema é que haja meios necessários para o seu funcionamento e que as partes que o compõem contribuam de forma efectiva para se ter resultados em tempo útil. Obter a cooperação das partes, conciliar interesses dos vários operadores e evitar corporativismo das classes profissionais e também interferências políticas é crucial.

Inevitavelmente tensões entre as partes acabam por surgir e reclamações de operadores e dos utentes vão-se ouvir. A isso seguem-se propostas de mais meios e de reformas para ultrapassar os problemas, acompanhadas ou não da tentação de pôr a culpa das falhas sobre uns e outros. O caso actual que levou ao comunicado da ordem de advogados é ilustrativo a esse respeito. De facto, é parte de um debate que se repete várias vezes aqui e noutras paragens. Por exemplo, em Portugal, o actual presidente do STJ, Henrique Araújo, em entrevista ao jornal Observador também disse que “há um excesso de garantias de defesa. Há muitas possibilidades de parar um processo através de manobras dilatórias”. E se “se quer ter uma justiça mais célere, terá de reduzir as garantias de defesa dos arguidos para encontrar um melhor equilíbrio entre a eficácia e os direitos dos arguidos”.

Propõe-se maior eficiência processual para ultrapassar isso. Nesse quesito o legislador tem o papel central, mas é uma matéria sensível. Particularmente num país onde depois de duas ditaduras sucessivas, antes e após a independência, tem especial sensibilidade em relação a qualquer limitação nas garantias de defesa.

Outros factores poderão contribuir para melhorar a eficácia da justiça como sugere a ordem dos advogados. No comunicado divulgado há uma referência à necessidade de adopção de uma cultura de trabalho e orientada para produção de resultados. Acrescenta-se ainda que os magistrados devem trabalhar, no limite das suas possibilidades, para evitar que os prazos sejam ultrapassados”. Mais meios e uma capacitação superior para a investigação dos crimes também é sentida como fundamental para garantir aos cidadãos que a justiça está realmente a funcionar e que podem nela confiar. E como os meios não são ilimitados, particularmente num país de parcos recursos, a cooperação entre os vários operadores, especialmente entre as diferentes polícias, é essencial para se conseguir resultados em tempo útil.

Ainda factores de uma natureza diferente poderão afectar a percepção dos cidadãos quanto à credibilidade e eficácia da justiça. Nesse sentido, considerando o papel do poder judicial no controlo da legalidade e de actos dos poderes executivo e legislativo e o facto de não ser eleito e não ter meios próprios, é de maior importância garantir que não há interferência dos outros poderes na sua actuação. Não é aconselhável que se caminhe nem para a judicialização da política, nem para a politização da justiça.

A realidade, porém, é que, com o aprofundamento da crise das democracias e a falta de diálogo e de capacidade de negociar e firmar compromissos, é cada vez maior a tentação de mobilizar os tribunais para forçar a prestação de contas, livrar-se de adversários inconvenientes e ultrapassar bloqueios políticos. É um fenómeno que está a manifestar-se em várias democracias que, em certas situações, ajudaram a contornar crises como no Brasil (Bolsonaro) e no Reino Unido (Boris Johnson). Noutras situações, pelo contrário, levaram, como nos Estados Unidos, a meio de múltiplas acções judiciais contra Donald Trump, ao condicionamento efectivo do processo eleitoral para as eleições presidenciais.

Tudo isso é acompanhado de descrédito das instituições da justiça como se constata em relação à perda progressiva de prestígio do supremo tribunal dos Estados Unidos nestes últimos anos. Em Portugal a queda do governo de maioria absoluta na sequência de actuações do ministério público provocou reacções de vários sectores da sociedade que no manifesto dos 50 chegam ao ponto de dizer que “a justiça funciona quase inteiramente à margem de qualquer escrutínio ou responsabilidade democráticos”. Também em Cabo Verde, pouco depois da câmara da Praia ter sido objecto de buscas e apreensões realizadas pelo ministério público e do aproveitamento político do facto pelos partidos, é o próprio presidente da república que chama a atenção para a judicialização da política, talvez não do melhor palco, num discurso no Dia do Município da Praia.

Face ao que se vem constatando nas democracias em que a crise vem polarizando cada vez as posições e tornando difícil o debate político é de maior conveniência que se procure manter um nível de integridade do poder judicial. Para isso é de maior importância procurar garantir-lhe os meios necessários para o seu funcionamento e avançar com reformas e inovações que melhorem de forma significativa a sua eficácia. Também é fundamental que as magistraturas desenvolvam uma cultura de trabalho e de responsabilidade que, por um lado se traduza numa justiça célere, competente e justa e, por outro, se mostrem capazes de resistir às tentativas de politização da justiça. Há que garantir que em todas as circunstâncias saberão orientar-se pelos princípios e valores constitucionais e a administrar a justiça em nome do povo, aplicando a lei democraticamente aprovada. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1173 de 22 de Maio de 2024.

sexta-feira, maio 17, 2024

É preciso tirar o país do colete de forças

 

O primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva em vários momentos da semana passada ligados às comemorações à volta do campo do Tarrafal repetiu a mensagem de que é preciso ficar em paz com a história. Não foi a primeira vez. Praticamente desde a vitória nas eleições de 2016 sempre que é confrontado com o facto de a história oficial ser muita próxima da narrativa histórica do regime de partido único do PAIGC/PAICV socorre-se dessa expressão falaciosa. A verdade é que os manuais escolares repetem na democracia a mesma história do regime anterior, a comunicação social pública lê pela mesma cartilha e as instituições do Estado com as devidas adaptações prestam vassalagem aos ícones, ritos e figuras do regime de partido único. Não há realmente “paz” com a história, mas sim submissão a uma narrativa ideológica que foi legitimadora de uma ditadura.

A realização patética de duas comemorações do encerramento do campo do Tarrafal, a primeira a 1º de Maio pela presidência da república e a segunda, uma semana depois, pelo governo, no dia 8 de Maio, revelou que, não obstante as rivalidades de protagonismo, os órgãos de soberania convergiam no essencial: todos queriam fazer o país acreditar que, primeiro, a prisão do Tarrafal foi encerrada no dia 1º de Maio de 1974 e que, segundo, era um campo de concentração. Não interessa que o facto que o campo albergou 72 prisioneiros políticos depois dessa data e que ninguém mais, nem Portugal que no tempo da ditadura teve no Tarrafal mais presos políticos, a classifica de campo de concentração. O que é importante é manter a narrativa.

Até parece que se está no domínio da pós-verdade e das realidades alternativas em que a verificação dos factos, o fact checking, não é suficiente para repor a verdade. Uma situação que só se mantém porque, fazendo uso do poder do Estado e das suas ramificações nas instituições e na sociedade, impõe-se uma historiografia oficial. Com isso o caminho fica aberto para, parafraseando o PM, se calar a história, para se branquear a história e para se truncar a história. Mas como se vive numa democracia na qual a circulação de ideias, de informação e de conhecimento é livre não se pode ficar só por mentiras, omissões e desinformação. Corre-se o risco de ser apanhado em falso.

Para bloquear essa possibilidade há que mobilizar sentimentos em indivíduos e grupos recorrendo ao culto de personalidade, a patriotismos exacerbados e reivindicações identitárias que os tornem impérvios a quaisquer factos presentes ou passados que ponham em causa a sua leitura do mundo. Consegue-se isso mantendo um estado de polarização permanente da sociedade recorrendo a questões fracturantes como a tensão entre o crioulo e o português, a negação da cabo-verdianidade e a exaltação da africanidade e o contra-senso de apresentar Amílcar Cabral como ídolo tanto do partido único como do regime democrático.

Não interessa se ir por esse caminho traz custos traduzidos em perdas de cerca de quatro anos na aprendizagem das crianças e jovens do país, como foi assinalado no último relatório do Banco Mundial. Não interessa que se continuem a cavar divisões com base em diferendos identitários artificialmente criados num dos únicos países da região com consciência nacional consolidada. Nem que se insista no conflito de princípios e valores antagónicos que leva à esterilidade do debate político e à descredibilização da democracia.

Narrativas legitimadoras de regimes ditatoriais usam a história selectivamente para encontrar factos, eventos e acontecimentos que justifiquem a sua própria existência, o seu papel histórico e a inevitabilidade das suas acções. Também para cinicamente exigir gratidão de todos pelo “serviço” prestado. A história nessa óptica não é realmente o passado que se pode abordar de vários pontos de vista. Também não é o passado que se deve procurar estudar e aprender para melhor construir o futuro, evitando cometer erros anteriores. Na perspectiva dos guardiões das narrativas, o controlo do passado é fundamental para exercer o poder no presente e condicionar o futuro. É evidente que com isso a sociedade fica sujeita a um autêntico colete de forças sem real liberdade de expressão, sem liberdade intelectual, sem pensamento crítico e limitada em criatividade e inovação.

No dia 13 de Janeiro de 1991, nas primeiras eleições livres e plurais realizadas em Cabo Verde, o povo mostrou com uma maioria qualificada de mais de dois terços dos votos a sua disposição de se ver livre desse colete de forças. A força dessa rejeição foi confirmada cinco anos depois nas eleições seguintes com uma maioria qualificada ainda maior, um feito extraordinário só visto com a ANC na África do Sul. O resultado do quebrar das amarras viu-se ao longo da década de noventa em liberdade política e liberdade económica. Consolidou-se a democracia e o país aumentou extraordinariamente o seu potencial de crescimento e atingiu as maiores de taxa de crescimento do PIB de sempre, excluindo a taxa de crescimento de 2022 de recuperação da contracção de mais de 20% devido à Covid-19.

Já nas duas décadas do século XXI constata-se que se perdeu o ímpeto do crescimento com níveis de produtividade baixa, insuficiente desenvolvimento do capital humano e progressiva resistência a reformas essenciais para o aumento da competitividade do país. Não é simples coincidência que esses anos de declínio desses indicadores foram acompanhados do reforço das narrativas do regime anterior que nunca tinham sido totalmente questionadas e por isso continuaram a ser reproduzidas nos sistemas de educação e de cultura do país e promovidas por outras instituições do Estado. O mais complicado é que o partido, o MpD, que foi o portador da vontade expressa em duas maiorias qualificadas para libertar o país do colete de forças, quando regressou ao poder nas eleições de 2016, resolveu nas palavras do primeiro-ministro “ficar em paz com a história”.

Na sequência, desenvolveu-se uma tendência em seguir com uma linha de continuidade nas políticas públicas expressa na proclamação que o meu partido é Cabo Verde e que deixou o país sem os benefícios do confronto democrático de políticas alternativas. Aliás, cada vez mais se nota que os programas dos sucessivos governos orientam-se mais pelas agendas e prioridades das organizações multilaterais como as Nações Unidas e o Banco Mundial e outros parceiros do que por visões diferenciadas de desenvolvimento dos dois grandes partidos. Uma das consequências disso é a crescente dificuldade em resolver os problemas sistémicos que vão surgindo nos diferentes sectores económicos e sociais.

Fazem-se tentativas sem grande sucesso ou com sucesso momentâneo, criam-se passivos financeiros e outros, alguns problemas tornam-se quase intratáveis, mas a tendência é continuar a fazer as mesmas abordagens e a propor as mesmas soluções. Paradoxalmente esperam-se resultados diferentes. Entretanto, há gente que desiste e procura emigrar e outros como os profissionais em áreas críticas procuram tirar o máximo do sistema. Ainda há os que no jogo político usam todos os estratagemas para substituir quem está no poder, para, no fim, fazer praticamente o mesmo.

Claramente que um dos principais ingredientes em falta é o pensamento crítico. Não se aprende nas escolas, não é cultivado nas organizações e não se é recompensado por o manifestar. Em ambientes onde se normalizaram narrativas de pós-verdade é o conformismo que se impõe. E ficar em paz com o que o poder dita é a via para a sobrevivência pessoal. Não é, porém, a via para o desenvolvimento do país e para a realização do direito à felicidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1172 de 15 de Maio de 2024.

sexta-feira, maio 10, 2024

Exigir reparações não desculpabiliza má governação

 A problemática das chamadas reparações a países colonizados ou que sofreram com o tráfico de escravos no Atlântico e com a escravatura ganhou uma outra dimensão e outro vigor com as declarações do presidente Marcelo Rebelo de Sousa nos dias que antecederam as comemorações do quinquagésimo aniversário do 25 de Abril. Na opinião do presidente, Portugal deve assumir a sua responsabilidade por crimes cometidos durante a época colonial e “pagar os custos”.

Reacções imediatas surgiram de todos os quadrantes com sectores da direita de feição nacionalista a condenar essa posição e sectores da esquerda com a sua visão do mundo dividido entre opressores e oprimidos a apoiar. Do governo português veio uma nota de cautela em relação a uma matéria que sempre que é levantada revela-se delicada e complexa. Já nas ex-colónias, pelo menos até agora, com excepção do Brasil e de S. Tomé e Príncipe, a questão não criou muita celeuma.

Internacionalmente a exigência de reparações pela escravatura e o colonialismo tem mobilizado adeptos mesmo nas antigas potências coloniais. Previsivelmente na maioria desses países há também uma rejeição forte de qualquer tipo de pagamento, preferindo em geral ficar por um pedido de desculpas. Entre os países da África e das Caraíbas e da América Latina o engajamento para obter reparações dos países europeus é muito forte e vem ganhando expressão mais abrangente com a criação de fundos como o Global Reparation Fund, estabelecido em 2023 junto da Organização da União Africana.

Também assim como há muita gente a favor desses fundos para compensar pelos extraordinários prejuízos causados, há quem negue pagar por eventuais culpas cometidas em séculos passados e ainda conteste por que só são exigidos aos europeus e não, por exemplo, aos árabes que também traficaram milhões de pessoas. De qualquer forma, já houve casos de promessas de pagamento como é o da Alemanha por genocídio no território da actual Namíbia e a devolução de obras de arte e artefactos, os chamados Bronzes do Benim.

Assim com a experiência de devolução não tem sido a mais positiva, considerando que em certos casos as peças foram vendidas ou desviadas para colecções particulares, também se questiona se a infusão de fundos de reparações irá efectivamente contribuir para a melhoria da vida das populações. De facto, um dos argumentos para exigir pagamentos tem como base a ideia de que o atraso desses países é derivado do colonialismo e da depauperização humana por causa do tráfico de escravos. E certamente que esses males tiveram impacto.

O problema é que, passados mais de sessenta anos após a independência, fica cada vez mais difícil explicar a estagnação económica, as manchas de pobreza extrema e a forte vontade dos jovens em emigrar para a Europa e os Estados Unidos mesmo com risco de perda da própria vida. Num número crescente de países da África a constatação de que o atraso provém fundamentalmente da má governação até já levou que no desespero as populações tenham optado por apoiar golpes militares. O facto de que em vários países onde tal se verificou não ter faltado recursos naturais ricos e montantes consideráveis de ajuda externa corrobora a ideia de que mais transferências de dinheiro em forma de reparação não irão alterar o panorama existente.

Provavelmente terão o mesmo destino que as elites detentoras do poder nesses países têm dado aos recursos existentes ou disponibilizados ao longo de décadas. Ninguém estranhará se forem desviados, delapidados ou mal aplicados e que em consequência não se altere significativamente a situação da população e as perspectivas de crescimento. Aliás, é o que já poderá estar a acontecer com muito dos financiamentos externos em nome das alterações climáticas, transição energética e digital e economia azul.

A avidez com que as elites governativas repetem os discursos e os slogans à volta dessas reformas, que realmente são cruciais para o crescimento e para integração futura dos países na economia mundial, não augura que tenha havido uma real mudança de atitude em relação ao passado. O mais provável é que não se continue a ter preocupação de eficácia na implementação das políticas e que o foco seja colocado mais nos meios do que nos resultados. E sem retornos sustentáveis não há como trazer benefícios duradoiros para a população. Pelo contrário, tende a retirar autonomia às pessoas e deixá-las mais dependentes do Estado. Nesse sentido, aventar a possibilidade de mais meios, via reparações, só ajuda essas elites com a promessa de olear ainda mais a máquina e com renovado sentimento de dependência das pessoas devido à expectativa criada.

No caso de Cabo Verde, com os seus constrangimentos já conhecidos, qualquer incentivo a uma postura de maior dependência como a levantada, pela hipótese de reparações por vitimização no passado, só torna mais difícil escapar dos círculos viciosos em que o país tende a se enredar. Mesmo quando são claramente visíveis como o que vem tornando a questão dos transportes no país quase intratável e cada vez mais custosa a tentação é de neles ficar preso. Perante, por exemplo, as dificuldades da TACV em garantir transporte aéreo nas ilhas, percebe-se que não interessando os custos, a vontade do político é anunciar novas rotas e o mesmo é a do jornalista a perguntar pelos voos para a América e para o Brasil.

Também o Banco Mundial, num relatório sobre desenvolvimento do capital humano apresentado esta segunda-feira, pode estabelecer que no total dos anos de escolaridade “existem quase quatro anos durante as quais as crianças não conseguem adquirir a aprendizagem esperada” e recomendar “um ambiente de aprendizagem com os professores a falarem mais português na sala de aula”. Logo se vão ouvir vozes a apresentar o crioulo como facilitador para aprender o português. Não interessa que, com índice relativamente baixo de capital humano, o país poderá segundo o mesmo relatório estar a perder 1.3 % do crescimento económico futuro.

A mesma postura paradoxal vai-se encontrar quando se está perante uma queda de oito pontos na liberdade de imprensa. O mal maior como apontam os Repórteres sem Fronteiras está na autocensura dos jornalistas e é derivado em parte da posição dominante dos órgãos públicos da comunicação social. Absorvem o grosso das receitas para o sector, captam a maior fatia da publicidade e são mais atractivos para os recursos humanos. Toda a gente sabe que com tal distorção todo o sector é condicionado, acusações de manipulação não vão desaparecer e a qualidade do trabalho jornalístico não melhora. Ninguém, porém, está disposto a alterar a situação inaugurada com a tomada das rádios privadas no dia 7 de Dezembro de 1974.

Entretanto, como vários outros tipos de problemas no país, vai-se continuar a escondê-los e a viver sempre na expectativa de algo - pode ser a promessa das reparações - que vai manter a máquina a funcionar. Nem sempre foi assim. A vivência nas ilhas, remotas e com secas e fomes periódicas, desenvolveu um carácter nas gentes que certamente não era de dependência, mas sim de resiliência e sobrevivência. Algo mudou e, como reconheceu o ex-presidente da república Aristides Pereira, em 1988, as “frentes de trabalho de alta-intensidade de mão-de-obra (FAIMO), eram o local onde se degradava a consciência laboriosa do povo”. Há que evitar a armadilha da vitimização para se recuperar autonomia, caracter e dignidade e poder atingir o desenvolvimento desejado por todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1171 de 8 de Maio de 2024.

sexta-feira, maio 03, 2024

Equívocos não trazem paz inclusiva

 Equívocos diversos continuam a fazer mossa em Cabo Verde. Às vezes são equívocos à volta da história e da memória. Outras vezes derivam da incompreensão que o país é, de facto, insular e de pequena população, pobre de recursos e localização remota. Ainda há os equívocos de competência entre os órgãos de poder exacerbados pelo crescente protagonismo dos actores políticos.

A celebração dos 50 anos da libertação dos presos do campo do Tarrafal hoje dia 1º de Maio é um dos tais acontecimentos envolvidos em equívocos que desembocaram em confrontos entre a presidência da república e o governo: o presidente da república encaminhou os visitantes da sua página do facebook para o esclarecimento do chefe da casa civil da presidência sobre a suposta falta de articulação com o governo publicado nessa rede social. A réplica do ministro da cultura veio logo de seguida no mesmo espaço mediático.

Um primeiro equívoco é o de confundir o acto de libertação dos condenados pelo regime salazarista no dia 1º de Maio de 1974 com o fim de actos ditatoriais em Cabo Verde e também com o encerramento do campo do Tarrafal como prisão para presos políticos. Não foi nem uma coisa nem outra. Actos ditatoriais iriam ser praticados em Cabo Verde por mais uma década e meia, começando em Dezembro de 1974 com a prisão no Tarrafal de 72 pessoas consideradas inimigas do PAIGC. E o encerramento do campo do Tarrafal só se tornou definitivo com o decreto lei nº 3/75 de 19 de Julho de 1975.

É evidente que a confusão só ajuda os que queram manter a narrativa do PAIGC que a sua luta se estendia a Cabo Verde e até tinha prisioneiros num campo de concentração. Uma ideia que é reforçada ao se associar Angola e Guiné-Bissau nas celebrações e a obter a chancela de Portugal. O desencanto posterior dos que lá estiveram presos dá conta de como essa narrativa era, de facto, uma farsa que apenas visava pôr o poder nas mãos dos “melhores filhos do povo”.

Por outro lado, ao conjugar as comemorações do 25 de Abril com a celebração da saída dos presos do campo do Tarrafal quer-se afirmar que nos dois casos era a mesma a motivação de luta contra a ditadura. Na realidade, o 25 de Abril deu origem a um movimento popular que levou Portugal a uma democracia liberal e constitucional. Já em Cabo Verde aconteceu precisamente o contrário. Abriu o caminho para a captura do movimento popular com vista à substituição de uma ditadura por outra.

Na mesma linha de reforço de certo tipo de narrativas, equívocos vão-se sucedendo com a designação oficial do campo do Tarrafal como campo de concentração. Historicamente foi colónia penal desde 1936 até 1954 com 300 presos políticos. Em 1962 foi reaberto como campo de trabalho com ala para presos políticos e outra para presos de delito comum. A designação de campo de concentração só vai aparecer na resolução do conselho de ministros nº 33/2006 de 14 de Agosto de 2006 do governo do PAICV talvez para dar força dramática à narrativa histórica a que está apegada. Sem se saber porquê foi continuada nos governos do MpD a partir de 2016, ultimamente na proposta de candidatura a património mundial.

Não é uma designação universalmente assumida, nomeadamente pelas instituições portuguesas e compreende-se, considerando que a imagem moderna dos campos de concentração é a dos campos nazis durante a segunda guerra mundial. A assunção oficial desses equívocos pelo Estado de Cabo Verde leva a que sejam reproduzidos em documentos oficiais, nas escolas, e na comunicação social. Tudo isso para justificar uma narrativa histórica que pela sua natureza marcadamente ideológica polariza a sociedade e não é inclusiva. Como tal, no passado, levou à ditadura do partido único e excluiu muita gente. No presente, divide a sociedade e agora alimenta fracturas entre órgãos de soberania como se pode constatar do último choque público entre a presidência da república e o governo.

A presidência da república resolveu assumir as celebrações dos cinquenta anos da libertação dos presos políticos como Homenagem do Estado. Mas como escreveu o reconhecido jurista e antigo assessor jurídico de primeiros-ministros e presidentes da república, Dr. Eurico Pinto Monteiro, comentando o esclarecimento do chefe da casa civil da presidência da república no Facebook, a comemoração “deveria ter sido objecto de uma resolução do conselho de ministros que criaria uma comissão de honra presidida pelo presidente da república e uma outra executiva da qual fariam parte a ministra da presidência do conselho de ministros e o chefe da casa civil, além de outras entidades”. Evitar-se-iam “incidentes” como os que aconteceram.

A verdade, porém, é que é muito provável que tais incidentes continuem a verificar-se. Não só por causa da disputa de protagonismo dos actores políticos, mas também devido a um certo “activismo” à volta de temáticas caras a narrativas ideológicas em colisão directa com os princípios e valores constitucionais. É exemplo disso os “incidentes” na sequência da não aprovação pelo parlamento da proposta de comemoração oficial do centenário de Amílcar Cabral e agora esse confronto à volta do campo do Tarrafal. E há outros exemplos preocupantes de uma certa guerrilha institucional que não poupa até mesmo sectores sensíveis como os negócios estrangeiros e as forças armadas.

Claramente que o país não precisa dessas distracções em particular quando a conjuntura internacional é preocupante com o aumento de tensões geoestratégicas e a reconfiguração das relações comerciais, afectando preços, cadeias de abastecimento e cadeias de valor. Procurar soluções para dificuldades nacionais nos transportes e em vários outros sectores-chave para o futuro como energia e água, educação e saúde não se compadece com a manutenção de uma cultura política que ainda se alimenta de narrativas já provadamente exclusivas. E muito menos surtem efeito apelos para se construir vontades para as enfrentar e vencer.

De facto, não se pode continuar a reproduzir fracturas permanentes na sociedade, a aumentar a ineficácia do Estado e a inibir o desenvolvimento forçando o país a se manter num circulo vicioso. Equívocos alimentados pelo Estado e as suas instituições devem ser ultrapassados não só para evitar incidentes como também para restaurar a paz inclusiva à cidadania. Há que também deixar espaço livre para o exercício do espírito crítico tão crucial para se encontrar os caminhos que podem levar à prosperidade, em Liberdade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1170 de 1 de Maio de 2024.

terça-feira, abril 30, 2024

50 anos após 25 de Abril: Responsabilidades por assumir

 

Amanhã dia 25 de Abril completam-se cinquenta anos sobre o golpe militar em Portugal que pôs fim à ditadura salazarista que vigorou durante 48 anos. Na sua origem estaria a constatação de que a defesa do último império colonial se tinha tornado insustentável com a guerra a pesar na economia, com a pressão internacional e com tensões nas forças armadas.

Ao golpe seguiu-se um movimento popular que tanto em Portugal como nas colónias rapidamente se converteu numa revolução com a bandeira dos três Ds: Descolonização, Democracia e Desenvolvimento. Internacionalmente o golpe de 25 de Abril ficou conhecido por ter sido o primeiro de muitos outros processos de mudança que nas duas décadas seguintes, em todos os continentes, iriam elevar o número das democracias no mundo ao seu apogeu. Para Samuel P. Huntington, a Revolução dos Cravos de 25 de Abril foi o percursor da terceira vaga da democracia.

No cumprimento do primeiro D, descolonização, foi adoptada em Julho de 1974 a lei constitucional de 7/74 em que Portugal reconhecia, de acordo com a Carta das Nações Unidas, o direito dos povos à autodeterminação com todas as suas consequências incluindo a aceitação da independência das colónias. O problema com que rapidamente os sucessivos governos portugueses se depararam nos meses seguintes foi o de garantir a ordem institucional necessária para se proceder conforme a lei. As liberdades que vieram com o 25 de Abril, designadamente de expressão, reunião e manifestação, de imprensa e de formação de associações e partidos originaram uma dinâmica social e política espontânea e sem paralelo em todos os territórios sob administração portuguesa.

Claramente em vantagem se posicionaram os grupos que se reivindicavam de ligações aos movimentos de libertação. Sabendo ao que vinham e focados no objectivo último de conquista do poder, rapidamente conseguiram atrair multidões e organizar militantes. Tentativas da sociedade em produzir propostas alternativas goravam-se quase à nascença ou eram tidas como inimigas a eliminar. Por outro lado, a identificação ideológica de esquerda dos grupos ligados aos movimentos de libertação deu-lhes acesso especial a sectores esquerdistas nas forças armadas portuguesas presentes nas colónias. O resultado é que o direito à autodeterminação dos povos não foi realmente exercido e o poder foi entregue aos movimentos de libertação. Na prática, os auto-proclamados libertadores dispensaram o consentimento dos povos e tal qual conquistadores apossaram-se do poder recebido das mãos do Movimentos das Forças Armadas (MFA).

O que se seguiu confirmou a intenção primeira da conquista do poder. Em todos os novos países independentes instalaram-se regimes ditatoriais de partido único. Onde não havia movimentos rivais procederam à intimidação brutal da população e das elites anteriores chegando a casos como o fuzilamento de centenas de pessoas na Guiné-Bissau. Nos casos onde existiam movimentos de libertação rivais, desencadearam-se guerras civis que duraram décadas e que resultaram em muitos milhares de mortos. Como se pode também constatar, não se concretizaram os outros Ds do 25 de Abril. Não tiveram democracia, nem conseguiram desenvolver-se.

A incapacidade dos governos portugueses em cumprir com a sua própria lei e garantir o direito à autodeterminação dos povos viu-se mesmo no caso de Cabo Verde onde não se tinha verificado luta armada. Também aqui como disse o então ministro da Coordenação Territorial, Almeida Santos, em entrevista ao jornal Público de 11 de Abril de 2004, as forças armadas queriam entregar o poder ao PAIGC. Para contornar o problema Almeida Santos em conversa com dirigentes do PAIGC propôs que aceitassem uma consulta popular nos seguintes termos: Vocês ganham a consulta popular por 90 por cento e nós salvamos a face. E assim aconteceu, disse ele: ganharam por 92% e salvamos a face.

É evidente que a consulta popular não foi nem livre, nem plural porque precedida de prisão de todos os adversários políticos, do controlo da comunicação social com a tomada das rádios privadas e do apoio explícito das forças armadas portuguesas. Para além disso, toda a acção política do PAIGC tinha como base a ideia que era o único representante do povo e que a independência só podia acontecer sob a sua direcção. Nesse sentido não podia deixar de ter uma componente intimidatória para os recalcitrantes e condicionante dos indecisos.

Feita a descolonização com a preocupação primeira de “salvar a face”, Portugal prosseguiu com os seus objectivos de implementar a democracia e construir o desenvolvimento. Realizaram-se eleições para a Assembleia Constituinte em 1975 e adoptou-se uma nova Constituição em 1976 com muita luta política, mas de qualquer forma num ambiente livre e plural. Ajudou também no processo a intervenção militar no dia 25 de Novembro de 1975 que contrariou derivas complicadas e assegurou que uma democracia representativa e liberal tivesse a possibilidade de se instalar. Não tiveram a mesma sorte as ex-colónias deixadas à mercê de conquistadores trasvestidos de libertadores que viriam a controlar o poder nas décadas seguintes, impedindo a democracia e adiando o desenvolvimento. Em Cabo Verde as liberdades de Abril só se tornaram realidade quinze anos depois com o 13 de Janeiro de 1991 e com a Constituição de 1992.

As comemorações do quinquagésimo aniversário do 25 de Abril deviam ser acompanhadas da assunção da responsabilidade pelos enormes sacrifícios e sofrimentos causados por uma descolonização tardia conduzida por um país esgotado e com as suas forças armadas quase em debandada. Na falta disso, devia-se, pelo menos, poupar aos povos que se viram a braços com regimes ditatoriais o espectáculo de ver autoridades e instituições portuguesas a validar as narrativas histórico-políticas que os legitimaram e a honrar personalidades que os incarnaram como paladinos da liberdade.

Narrativas não são factos e a história com toda a sua complexidade não pode ser reduzida à versão dos que ditatorialmente impediram outras visões, percepções e opiniões. A Revolução dos Cravos fez-se para que não continuasse a ser assim depois da noite salazarista e para que a liberdade, a autonomia e a dignidade de todos fossem recuperadas.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1169 de 24 de Abril de 2024

sexta-feira, abril 19, 2024

Concertar nas prioridades para evitar instabilidades

 Na cerimónia do Dia da Cidade do Mindelo, no passado 14 de April, a presidente da assembleia municipal chamou a atenção para instabilidade do sector da indústria conserveira na ilha de S.Vicente mostrando preocupação com a protecção dos postos de trabalho existentes. Uma instabilidade que em grande medida provém do facto de, depois de mais uma década após a instalação das fábricas, o país ainda não ter adquirido suficiente capacidade de captura de peixe para as alimentar de matéria-prima. Por causa disso as exportações de conservas dependem de derrogações sucessivas no pagamento de direitos que as tornam competitivas no mercado da União Europeia. Também do volume de vendas dependem os postos de trabalho e a vontade das empresas em continuar a produzir lucrativamente no país.

O problema, aparentemente, é que não se absorveu que a prioridade do país era criar capacidade de captura de peixe e não renovar a derrogação de direitos como parecia sugerir a auto-satisfação dos governantes nos anúncios anuais da dádiva. Na falta de políticas dirigidas e aplicadas tempestivamente no sector, como estaria implícito no quadro da cooperação de “aid for trade”, não se podia esperar um outro impacto em termos de emprego, rendimento e exportações que não fosse de instabilidade. A não clarificação das prioridades e a falta de acção estratégica e planificada, mesmo quando identificadas, têm dessas consequências que deixam no ar a ideia que no país está-se sempre a recomeçar.

De facto, é a impressão com que se fica, sempre que se escutam os debates sobre os diferentes sectores da economia, designadamente sobre a agricultura, a pesca, os transportes, o turismo e a energia e também sobre as reformas a fazer na administração pública, no sector empresarial do Estado e no ensino. Nesse sentido, invoca-se a necessidade de mobilização de água, mas não se acrescenta mais valor com novos produtos, organização e expansão de mercados. Movimentam-se recursos na pesca, mas não se consegue dar o salto para a pesca industrial. Os transportes aéreos e marítimos em termos de custo e serviço ficam aquém do que seria necessário para unificar e potenciar o mercado interno.

Nos debates sobre o turismo a tentação de dispersão para nichos, ainda por se revelarem viáveis, tira o foco do produto que tem possibilidade de expansão rápida e impacto transversal na economia. Evita-se também discutir o excessivo roubo de energia devido em grande parte para não se enfrentar os problemas subjacentes e que têm a ver com falta de civismo, cultura de marginalidade e falhas na afirmação da autoridade do Estado. Com essa omissão não se reconhece suficientemente a importância central de se baixar o preço da electricidade e da água para os consumidores, para as empresas e a competitividade da economia nacional.

Tratando-se de grandes reformas, ainda se está por debater o papel do Estado num país arquipelágico com uma pequena população distribuída por nove ilhas. Um obstáculo é a herança de uma administração centralizada controladora de uma economia estatizada nos primeiros quinze anos pós-independência que não foi ultrapassada. Algo que se mantém porque, entre outras razões, a gestão da ajuda externa conjunta com as organizações multilaterais contribui para reproduzir o peso e a influência do Estado sobre o sector privado e a sociedade no seu todo. Na prática, o Estado ainda se coloca no topo da proverbial cadeia alimentar e não se pode falar totalmente de um sector privado autónomo e uma sociedade não marcada pela dependência estatal. A classe média que os teóricos da democracia veem como fundamental numa democracia consolidada ainda está por se afirmar.

Por isso que as tentativas de reforma da administração do Estado têm ficado aquém do desejável numa perspectiva de melhorar a competitividade do país com a diminuição dos custos de contexto. No sector empresarial estatal as reformas parecem mais seguir a agenda de parceiros internacionais do que a ajudar a suprir falhas de mercado e a apoiar o desenvolvimento do sector privado nacional. A reforma do ensino, no quadro de desenvolvimento do capital humano, ainda está por ter o mais forte comprometimento do Estado e o engajamento de toda a sociedade para ser vista com a maior aposta do país. A herança do igualitarismo, da massificação sem preocupação com a qualidade e da desconfiança em relação ao conhecimento dificultam a emergência da cultura de excelência e de meritocracia que o país precisa.

Quando se trata então de políticas inovadoras não se clarifica o que se pretende, insistindo com expressões grandiosas e chavões como economia azul, economia verde, transição digital e transição energética. A insistência nos meios (linhas de crédito, infraestruturas e formação para empreendedorismo) acaba por obscurecer os objectivos ficando os resultados dos projectos por serem avaliados numa perspectiva de custos e benefícios e de externalidades positivas criadas.

Com uma outra visão menos condicionada pelos projectos que ditam políticas em vez do inverso, talvez Cabo Verde pelas suas características arquipelágicas e carestias diversas e condição remota pudesse se apresentar como um grande laboratório para os problemas que tarde ou cedo quase todo o mundo vai ter designadamente em matéria de alterações climáticas, escassez de água, armazenagem de energia, acesso de pequenas comunidades a serviços públicos e a telemedicina. Talvez por aí se pudesse encontrar soluções inovadores e comercializáveis e não se limitar muitas vezes a ser um cemitério de projectos que apresentados como promissores não sobrevivem ao término do seu financiamento.

A realidade actual é que são perceptíveis “instabilidades” em vários sectores e não só na indústria conserveira. Nos transportes é claramente visível. Socialmente sente-se nos níveis de criminalidade, no excesso de suicídios, na percepção de insegurança que causa angústia e leva à depressão. Já se sente a contaminação noutros sectores como a educação em que as reivindicações dos professores enquanto justas poderão não ter solução total imediata, mas, entretanto, mexem com a eficácia das escolas e afectam os alunos. De outros grupos profissionais poderão vir reivindicações também justas.

A saída desta situação provavelmente terá que passar por se chegar a algum consenso em relação às prioridades-chave do país e num espírito de solidariedade compreender que a democracia não é só de direitos, mas também, como alguém disse, de uma cidadania comprometida com deveres para comunidade e seus valores

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1168 de 17 de Abril de 2024.

segunda-feira, abril 15, 2024

Cultura democrática é essencial para a estabilidade

 A propósito da organização de uma conferência sobre “Liberdade, Democracia e Boa Governança: Um olhar a Partir de Cabo Verde” não se perdeu a oportunidade de mais uma vez os partidos se digladiarem em público com acusações de aproveitamento por parte do governo. Os pretextos no caso poderão ter sido a sua realização e pertinência, os custos envolvidos e ainda a escolha dos convidados e oradores. Haverá alguma verdade nisso, mas na prática a troca de galhardetes não deixa de ser mais um exemplo de como predomina no país a política de soma zero.

Desconfiança quanto às reais intenções aparece sempre que se procure projectar para fora a imagem do país potenciando algo positivo como é no caso a sua posição nos rankings internacionais da democracia. Mas devia ser óbvio que quando o país ganha com marketing bem feito junto de parceiros e da comunidade internacional algum reflexo disso vai recair sobre o governo da república independentemente de quem no momento o representa. E não há como ser diferente. Aliás, também a oposição contribui para a boa imagem do país, como demostrou o líder do PAICV nestes dias da conferência na ilha do Sal, ao corroborar a ideia de “que nós temos uma democracia que em termos de regra cumpre, temos eleições regulares, mandatos regulares, com cidadãos e partidos a participarem nas eleições", e também ao apontar, e sem quaisquer entraves, falhas na governação.

Uma boa imagem não significa que não se notam imperfeições na democracia, que não são visíveis alguns sintomas da crise similares aos encontrados actualmente em todos os países democráticos ou que não faltam posicionamentos anti-sistema que alargando fracturas podem pôr em perigo o próprio regime democrático. Como é dito repetidas vezes o maior activo de Cabo Verde é a sua estabilidade governativa. Para a conservar deviam convergir todas as forças políticas e a sociedade de forma a que em momento algum seja posta em causa, em particular nos de alternância política.

Por outro lado, Cabo Verde é um país com uma economia pouco diversificada e muito dependente de um sector do turismo extremamente sensível a flutuações na percepção de estabilidade e segurança. O apoio dos parceiros, ainda de grande importância no actual estádio do seu desenvolvimento, também depende da confiança que governos estáveis, duráveis e democráticos podem proporcionar. A aprofundarem-se os sinais de crise, com correspondente descredibilização das instituições, não se pode tomar como certo que o padrão de estabilidade conservado até agora irá manter-se num futuro próximo. A dificuldade em criar governos estáveis em países como Espanha e recentemente Portugal pode estar a assinalar problemas similares em Cabo Verde, talvez já nas próximas legislativas.

Aliás, é o que pode acontecer se continuarem as tensões políticas do mesmo teor dos vividos no país e que provocam a erosão e a descredibilização das instituições. Uma outra contribuição pode vir das tendências anti-sistema que põem em causa a competência dos órgãos de soberania, o princípio da separação dos poderes e procuram subordinar o Estado a narrativas iliberais. Num cenário desses corre-se o risco de que a exemplo das democracias mencionadas nenhum partido consiga obter nas urnas uma maioria absoluta. E Cabo Verde ainda não foi posta à prova perante a perspectiva de um governo minoritário.

De facto, os anos de estabilidade vividos em democracia foram anos de maioria absoluta de um só partido num sistema praticamente bipartidário. No início da actual legislatura, em 2021, viram-se os sinais do que poderá vir a verificar-se no futuro. Devido a fracturas aparentes na maioria parlamentar, que teriam vindo a público nas eleições do presidente e da mesa da Assembleia Nacional, viveram-se momentos de incerteza em particular na aprovação da moção de confiança ao governo e posteriormente na aprovação do Orçamento do Estado. As soluções que começaram a desenhar-se com a UCID para viabilizar o governo não tiveram desenvolvimento posterior, mas deixaram desconfiança e ressentimento na relação com o partido governamental. A abertura à intervenção do PR na questão orçamental revelou fragilidades do governo contribuindo provavelmente para posteriores momentos de tensão entre os dois órgãos de soberania.

No sistema político cabo-verdiano a inexistência de uma maioria absoluta nas eleições legislativas pode levar a situações complicadas do mesmo tipo. A Constituição exige a aprovação uma moção de confiança para se ter governo e isso só é possível com maioria absoluta. Em vários outros países simplesmente se exige que não seja aprovada uma moção de rejeição ao governo. Com isso, abre-se caminho para um governo minoritário que pode manter-se até que contra ele não se erga uma maioria negativa. Já em Cabo Verde a exigência logo à partida de uma maioria implica que se tenha uma cultura de negociação e compromissos entre os partidos, algo que actualmente é quase inexistente e tende a tornar-se mais rara. É só ver a dificuldade já de vários anos em conseguir entendimento para eleger os órgãos externos da Assembleia Nacional.

A dificuldade que se pode vir a ter no futuro já é discernível no que se vive nos municípios da Praia e de S. Vicente. Sem maioria absoluta, no caso da Praia por opção do próprio presidente da câmara municipal e no caso de S. Vicente devido aos resultados das eleições, a impossibilidade de se chegar a acordo entre as partes leva no primeiro caso à aprovação do Orçamento sem seguir os procedimentos legais e, no segundo caso, a bloqueios e funcionamento com orçamento de anos anteriores. Em todos os outros municípios, e na maioria dos casos ao longo das três décadas de poder local, a maioria absoluta até agora garantiu estabilidade. Se a regra passar a ser maioria relativa não haverá garantia que o ambiente de estabilidade que se vive na generalidade dos municípios irá continuar.

Os sinais que se vêem no país e os que vêm de fora não fazem acreditar que o ambiente político, a natureza das disputas políticas e própria postura dos actores políticos e também dos cidadãos em relação à política vão mudar. Pelo contrário, nota-se que a descredibilização das instituições tende a aumentar e que a política se torna cada mais performativa e menos de substância. O que faz escola é a exibição do narcisismo, é algum desdém pelos factos e pela verdade e é o apego a narrativas fracturantes da sociedade.

Mesmo as eleições, como as últimas verificadas em Portugal, não conseguem inverter o processo. Pelo contrário, mostram a dinâmica de ascensão de blocos antagónicos que se retroalimentam e não se vê suficiente vontade para romper com o círculo vicioso. A impressão que fica é que se deixou enfraquecer demasiado os consensos sobre os princípios e valores democráticos e o respeito pelo primado da lei que mantêm coesa a comunidade e permitem traçar propósitos comuns.

Para Cabo Verde a imagem de estabilidade é essencial. Mantê-la, passa por inverter a actual erosão da cultura cívica, por um maior comprometimento com os procedimentos democráticos e por renovação dos laços de solidariedade. A grande prova será o novo ciclo eleitoral, seja pelos desafios que poderá vir a colocar, seja pelos que o país poderá se deparar neste mundo de mudanças geopolíticas, alterações climáticas e transformações tecnológicas. É fundamental que se reúna o consenso necessário para a vencer.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1167 de 10 de Abril de 2024.

segunda-feira, abril 08, 2024

Representatividade e responsabilização devem caminhar lado a lado

 

A preparação para as eleições autárquicas no último trimestre do corrente ano já começou. O MpD, o partido no governo e maioritário nas autarquias, anunciou os seus candidatos a presidente das câmaras municipais há mais de três semanas, mas dos outros partidos ainda não foram revelados nomes para a corrida eleitoral. De entre os efeitos no público do anúncio do MpD destacou-se o facto de não ter para as 22 câmaras municipais uma candidata mulher. Não foi proposta a recandidatura da actual presidente da câmara de Santa Catarina e não foram apresentadas outras candidatas noutros municípios. A colisão directa com o espírito da lei da paridade, que essa decisão partidária acabou por configurar, criou a possibilidade de outros partidos se mostrarem diferentes e não hipócritas propondo candidaturas no feminino.

O cargo de presidente da câmara afirma-se cada vez mais central nos municípios – por lei é órgão executivo singular – e, por isso, não se pode pretender que se está a cumprir com a paridade compensando a todo o momento a ausência de candidatas para o lugar com candidaturas femininas para segundo da lista da câmara ou mesmo primeiro da lista para a assembleia municipal. Os partidos, enquanto organizações democráticas e representativas da comunidade política e promotores de princípios e valores como igualdade de oportunidades para todos, têm como uma das suas principais funções preparar e seleccionar candidatos aos órgãos do poder político para ganhar e governar com competência. Nesse sentido, a selecção não pode ser vista como um processo opaco e sujeito a jogadas, nem tão simplista como sondagens para avaliar a notoriedade dos pré-candidatos. Deve ser antes tida como resultado da ponderação exaustiva em órgãos próprios ou de métodos transparentes e competitivos como são as primárias partidárias. Quando não é assim, contribui para aprofundar ainda mais a chamada crise de representatividade que é uma das manifestações da crise da democracia que hoje assola o mundo.

Representatividade e responsabilização caminham lado a lado. Se a representatividade não é reconhecida porque diluída ou imposta, não há a quem exigir contas. Também se é concentrada num indivíduo sem contrabalanço de outros órgãos a tendência é para o caciquismo e relações de dependência que não deixam espaço para uma real responsabilização. Nos municípios cabo-verdianos, apesar da Constituição estabelecer que a câmara municipal é responsável perante a assembleia municipal, a verdade é que todo o poder tende a concentrar-se no presidente da câmara. Daí que que os partidos na preparação das autárquicas ponham o foco na escolha dos candidatos a presidente da câmara e coloquem em segundo plano os candidatos para a câmara e assembleia, afectando negativamente a qualidade da representação dos munícipes nos seus órgãos de poder político.

É evidente que assim a democracia local fica comprometida. Cria-se uma espécie de círculo vicioso em que a fragilidade dos órgãos colegiais tende a aumentar com a concentração do poder no presidente da câmara e com a diminuição em simultâneo da sua capacidade de controlo institucional e imagem junto dos munícipes. A experiência de mais de trinta anos de poder local deixa entender que na generalidade das situações também a influência dos partidos tende a diminuir à medida que o presidente da câmara vai ao longo do mandato construindo a sua base de apoio. Base essa que com sucessivos mandatos tende a consolidar e que a partir de certo momento permite inverter a relação com o partido deixando de ser o escolhido do partido para se impor como candidato nos seus termos. Verdade seja dita que também aquele que não construir base própria dificilmente consegue ir além de um mandato. Há sempre rivais à espreita nas estruturas do partido.

As crises persistentes nos municípios de S.Vicente e da Praia são exemplos de como desvios no exercício do poder democrático ao nível municipal acabam por degenerar em bloqueios, caciquismos e em ilegalidades flagrantes. Revelador da ausência de mecanismos sócio-políticos de responsabilização é a própria impotência das direcções dos partidos em lidar com essas situações. Não as conseguem resolver ou ultrapassar e, pelo contrário, sentem-se forçadas a seguir a posição do presidente da câmara. Preocupante também é a tendência para transportar para a Assembleia Nacional as lutas políticas municipais. Além de se desperdiçar tempo precioso do parlamento, ainda se contribui para aumentar o tempo que os média, em particular a rádio e a televisão públicas, dedicam às câmaras municipais nas disputas políticas nacionais.

De facto, a impressão que se tem é que cada vez mais a arena política principal do país move-se para os municípios. O excessivo eleitoralismo que sempre caracterizou a política municipal facilita esse tipo de jogo político onde também se vêem como protagonistas o governo e os deputados nacionais. Com convites selectivos e agendas convenientes nem sequer se deixa de fora o presidente da república. No processo o que acaba por prevalecer é a lógica de campanha permanente com disputa feroz de recursos e o discurso do abandono e do ressentimento. Em termos de políticas, a tendência é para não se ver o país no seu todo, nem mesmo das suas nove ilhas, mas cada vez mais na perspectiva dos seus 22 municípios. O problema é que com perda de escala e mais rigidez no tratamento dos constrangimentos ao desenvolvimento aumenta-se a ineficiência na utilização dos escassos recursos e diminui-se a eficácia das políticas. Paradoxalmente também a autonomia municipal é de alguma forma sacrificada.

A ideia do município parte do princípio da existência de interesses específicos das comunidades no país que não se esgotam no interesse nacional. A eleição dos seus órgãos de poder político devia garantir de forma democrática a prossecução desses interesses específicos. O facto de só estar sujeito à tutela de legalidade e não ter tutela de mérito devia ser suficiente para manter à distância os órgãos de soberania e seus titulares. Se a percepção da autonomia não se confirma será por razões de fragilização das suas instituições devido ao funcionamento deficiente dos mecanismos de responsabilização, à fraca participação da comunidade, à pouca expressão de uma comunicação social local e à cultura eleitoralista em que “vale tudo”. Na verdade, há pouca discussão das políticas locais, mas muita disputa de recursos e protagonismo com o governo. E para os políticos locais criar uma base de suporte à autonomia não parece tão importante como concentrar recursos para influenciar e agir.

Pode-se estar ainda longe do poder local como cantinho de experimentação democrática, mas na oportunidade oferecida por cada ciclo eleitoral devia-se fazer um esforço para se realizar o objectivo de participação política efectiva. Para isso, há que ter preocupação com a representatividade e a responsabilização política e garantir a autonomia municipal. Os partidos têm o dever de apresentar candidatos qualificados – respeitando a diversidade – capazes de apresentar propostas de políticas e propiciar debate para a consecução dos interesses municipais. Quando, como é caso actual, em que há candidatos que são membros do governo deviam deixar o cargo logo que anunciados publicamente em nome da autonomia municipal e da própria eficácia governativa.

Também da sociedade sempre poderia vir uma iniciativa de candidatos promovida por “grupo de cidadãos” que, sem cair na tentação de imitar os partidos, ajudasse a criar uma democracia local sem caciquismo e clientelismo. Talvez assim se construísse um poder local mais próximo de cumprir com os seus desígnios constitucionais de levar a democracia a todos os cantos do país. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1166 de 3 de Abril de 2024.