quarta-feira, janeiro 29, 2014

Ponto de viragem na Uni-CV?


A eleição do Reitor da Uni-CV no próximo dia 31 de Janeiro pode vir a revelar-se um ponto de viragem nos destinos da universidade pública de Cabo Verde. Desde logo, espera-se que a Uni-CV comece a trilhar um caminho de maior autonomia designadamente nos aspectos científico, pedagógico, a administrativo e financeiro. Os professores, alunos e funcionários que irão votar no novo reitor têm a oportunidade e a responsabilidade de seleccionar a melhor via de fazer essa instituição académica ir ao encontro das grandes expectativas nela depositada. A existência de três candidatos e a dinâmica gerada na discussão das respectivas plataformas programáticas augura que, independentemente de quem for escolhido, uma nova vida impulsionará as actividades da Uni-CV. O futuro do ensino superior em Cabo Verde depende muito do que a universidade pública conseguir ser e realizar.

Os sucessivos adiamentos do momento para habilitar a Uni-CV com uma direcção eleita, não obstante os prazos legais estabelecidos para o efeito, deixam transparecer alguma relutância da parte do governo em libertá-la de uma tutela estrita. A suspeita quanto à intenção do governo em manter mão pesada sobre a universidade ganhou peso com a transformação do então reitor em deputado e logo depois em ministro de um novo ministério de tutela da universidade. Não ajudou que, nos seus primeiros actos, o novo ministro e ex-reitor tivesse adiado as eleições e nomeasse directamente um reitor apesar dos protestos generalizados na comunidade académica. Não escapa a qualquer observador atento a atracagem da Uni-CV à agenda do governo. Em causa ficou a independência da instituição face ao poder político, condição indispensável para que as universidade realizem o grande objectivo de se afirmarem como centros de discussão livre de ideias e de manifestação de correntes filosóficas, estéticas e cientificas e também como centros de criação intelectual e de ensino.

A sociedade cabo-verdiana confronta-se actualmente com a situação de ter, em pouco mais de cinco anos,milhares de jovens com licenciatura à procura de emprego num ambiente que olha com desconfiança para os seus diplomas. Formados na dezena de “universidades” que rapidamente se instalaram nos últimos anos, deparam-se com um aparelho do Estado já sobrelotado e com uma economia incapaz de criar postos de trabalho em volume e ritmo desejados. A coroar essas dificuldades constata-se significativa desadequação entre as áreas de formação escolhida ou disponibilizada pelas escolas superiores e as necessidades do mercado de trabalho. A deficiente empregabilidade dos cursos e a fraca qualidade dos mesmos tem sido uma grande fonte de frustração dos jovens e também das suas famílias. Muitos fizeram sacrifícios extraordinários para que os filhos pudessem completar um curso superior e ambicionar uma vida melhor. Vê-los sem esperança de realizar o sonho dilacera a alma e representa encargos acrescidos seja nos pagamentos dos empréstimos seja no sustento continuado dos filhos ainda sem rendimentos próprios.

Nos anos da década passada vivia-se uma euforia. Todos pareciam congratular-se com a capacidade autóctone de criar universidades e por essa via absorver os milhares de jovens que quase em enxurrada saíam das mais de três de dezenas de liceus espalhados pelo país. No meio do entusiamo muitos não quiseram notar que economia não tinha criado empregos suficientes para os jovens com liceu completo. Nem tão pouco prestaram atenção à baixa qualidade do ensino das ciências e matemática e à fraca competência linguística a começar pelo português. O governo tinha abandonado qualquer esperança de cumprir a meta do crescimento a dois dígitos e desemprego a um dígito. Interessava ocupar os jovens e o prosseguimento dos estudos em universidades era a solução ideal para se diminuir a tensão social. As eleições estavam à porta. A universidade pública deu o mote e as outras seguiram em facilitar o ingresso nos cursos superiores. Naturalmente que algo teria que ser sacrificado. A celeridade com que se criavam cursos não podia deixar de pôr em causa a sua qualidade e adequação ao mercado de trabalho.

Os objectivos políticos provavelmente foram conseguidos, mas com prejuízo enorme para o grande objectivo de se ter uma universidade pública e um ensino superior em Cabo Verde à altura dos seus desafios. País sem recursos naturais, Cabo Verde depende da utilização óptima dos seus homens e mulheres. Sem ensino de qualidade, sem capacidade de desenvolver pensamento crítico e criativo e sem uma cultura de excelência, dificilmente será possível conseguir os níveis de crescimento de produtividade necessários para criar riqueza e propiciar prosperidade futura. Manter a universidade sob rédea curta do poder político centralizador, ajuda a cultivar o conformismo, a mediocridade e o carreirismo, quando o que se precisa é de espírito criativo, empreendedor e focalizado nos resultados. Que as eleições de 31 de Janeiro façam soltar as amarras da universidade pública e a deixe cumprir o papel que dela se espera num Cabo Verde livre e próspero.


Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 29 de Janeiro de 2014 Humberto Cardoso

quarta-feira, janeiro 22, 2014

Reformatar o Governo



Um dos dísticos dos manifestantes do 20 de Janeiro último convidava a um click no “sim” para se formatar o governo. Denotava a impaciência geral para com a postura do governo no tratamento de um conjunto de questões. Os governantes repetem várias vezes que querem diálogo, mas para além de encontros mediáticos que mais parecem exercícios de relações públicas pouco ou nenhum avanço se nota. Questões concretas como o emprego e o crescimento económico arrastam-se sem que se vislumbre saídas para a actual situação de diminuição do investimento público e de recuo do investimento privado nacional e estrangeiro. As pessoas e a sociedade começam a dar sinais de cansaço e já há quem peça uma mudança séria na relação entre governantes e governados.


Na semana passada, por exemplo, houve encontros com os sindicatos por iniciativa do Primeiro Ministro. Esperava-se diálogo que mas não deram em nada. O PM há muito que dissera que a manifestação marcada não tinha razão de ser. E aos sindicatos aparentemente não foi apresentado qualquer elemento novo que os pudesse dissuadir da intenção de organizar o protesto público. Simulações do género têm-se tornado demasiado habituais variando os interlocutores. Desta vez foram os sindicatos, mas de outras vezes os convidados tinham sido as câmaras de comércio, associações empresariais, partidos políticos da oposição e até confissões religiosas. Para além do ganho político imediato do governo em parecer dialogante não se vêem resultados dessas idas ostensivas ao palácio do governo.


O entendimento que o governo tem da sua relação com a sociedade e com os vários actores sociais ficou mais uma vez patente no discurso de apresentação de cumprimentos ao Presidente da República. O Primeiro Ministro apresenta um “Estado forte, visionário, estratega, regulador e catalisador da dinâmica reformista e transformacional” que para realizar o bem comum exige dos cidadãos “deveres e responsabilidades”. Ao longo de todo o discurso o PM esforça-se por mostrar que se imputa ao Estado falhas e fracassos mas que o défice, de facto, é de diálogo, tolerância e responsabilidade. Partindo do princípio que não está a fazer autocrítica, esse apontar de dedo do PM só pode estar a dirigir-se para sociedade e para os agentes económicos sociais e políticos. Da mesma forma que para aí é que vão as referências ao “facilitismo e demagogia” também presentes no discurso.


Curiosamente para o PM o comprometimento político para o emprego e o crescimento não é produto de um processo político negocial em que interesses de vários intervenientes, livremente expressos, se adequam para atingir objectivos acordados. Resulta sim da aceitação com “sentido de dever e responsabilidade” e sem questionamento pelos parceiros do papel que o Estado com a sua agenda de transformação lhes confere. Não há negociação, mas sim anuência ou mesmo capitulação perante as propostas do governo. Consenso significaria isso mesmo.


No domínio político tem sido essa a prática com os partidos da oposição. Simulacros de diálogo alternam-se com momentos de crispação num jogo sem fim. Tudo para que a posição do partido, que já se vê hegemónico, prevaleça mesmo nas situações em que a exigência de maioria de dois terços obrigaria a acordo entre as partes. As mesmas tácticas aplicam-se nas relações com os parceiros sociais. Viu-se recentemente no conflito com as farmácias como se sacrificaram desnecessariamente os utentes só para marcar um ponto político: sustentabilidade do INPS nos termos pretendidos pelo governo. Também deixam-se transparecer nas acusações a jovens desempregados de não quererem trabalhar e ao sector privado de não querer investir. Aponta-se o dedo enquanto o governo faz orelhas moucas para a necessidade de garantir que os investimentos públicos produzam maior número de empregos para nacionais e sirvam de impulso para a actividade empresarial local. Nos casos que se arrastam de devolução do IVA, de retorno do IUR e outras arbitrariedades do fisco a “Raison d´État” da necessidade de receitas prevalece sobre as considerações como viabilidade de empresas e o reforço do poder de compra de muitos com fraco rendimento. O argumento é brandido mesmo quando o relatório do FMI vem provar que as dificuldades actuais advêm em boa parte da ineficácia da administração tributária em arrecadar os impostos legalmente estabelecidos.


Sente-se no discurso do governo e de alguns próximos o ênfase posto na legitimidade da maioria em governar sem grandes constrangimentos. Peca por excesso quando implica que: 1. Indivíduos e sociedade civil devem quedar-se por deveres e responsabilidade na realização da visão e das políticas da maioria governativa; 2. A autonomia de acção e a liberdade em fazer conhecer interesses diversos devem ser coarctadas; 3. A crítica deve ser “construtiva” e o assacar de responsabilidades deve limitar-se ao momento das eleições. Há autores que chamam a construções similares de democracia totalitária. Tendem a aparecer sempre que os partidos deixam de se se ver em pé de igualdade com outros num processo plural de definição do interesses público e pensam ser a incarnação do bem geral. A partir daí traçam um caminho e esperam que os outros assumam os papéis distribuídos. As manifestações do dia 20 demonstram que o sentimento geral em Cabo Verde é que não é essa a via a seguir. A opção dever ser clickar no sim e reformatar a governação do país.


Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 22 de Janeiro de 2014 Humberto Cardoso

quarta-feira, janeiro 15, 2014

Espectro do passado que não passou

Como tratar o passado ainda fresco na memória colectiva de regimes autoritários e totalitários é um dos maiores desafios com que se defrontam as sociedades quando dão os primeiros passos na construção da democracia. A procura de um futuro de liberdade e prosperidade irá implicar que a sociedade no seu todo se mova para além do seu passado, sem carregar o lastro, mas também sem cair na tentação fatal do acerto de contas. A história mostra que se consegue fazer isso com justiça e com equilíbrio se o passado não for tratado de forma despiciente ou simplesmente ignorado. Nelson Mandela, na sua luta pela Liberdade, igualdade e democracia na Africa do Sul, por várias vezes deixou claro que a reconciliação nacional só se verificaria se o passado fosse confrontado com a verdade. A criação da Comissão de Verdade e Reconciliação presidida por Desmond Tutu significou que podia haver perdão para os perpetradores de abusos, mas nunca esquecimento de factos históricos devidamente estabelecidos por mais horríveis ou trágicos que tivessem sido.

Em Cabo Verde todos os anos por altura do feriado nacional de 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e de Democracia, opera-se uma espécie de esquizofrenia nacional em que são protagonistas os principais órgãos de soberania. A Assembleia Nacional onde estão os representantes de todo o povo recusa-se a celebrar o feriado nacional que ela própria instituiu em forma de Lei. A Presidência da República, outrora completamente omissa, passou desde da eleição do Dr. Jorge Carlos Fonseca a marcar o 13 de Janeiro com actos oficiais e mensagens do presidente. O governo, em regra, organiza eventos díspares, mas sem a dignidade de uma comemoração de Estado. Sem cerimónias oficiais, os partidos políticos informalmente desdobram-se em actividades que em muitos casos simplesmente reeditam a guerrilha à volta da interpretação do processo da mudança do regime. Este ano o Sr. Primeiro-ministro, como que a acordar de um longo sono, veio dizer que é preciso “dar mais dignidade” ao 13 de Janeiro. Aparentemente não se lembrou de influenciar a maioria que o seu partido detém na Assembleia Nacional no sentido de se acabar com o bloqueio na realização da sessão solene que é tradição nos parlamentos democráticos, designadamente em Portugal e Espanha quando se celebra a liberdade, o pluralismo, a democracia e a Constituição.

A oposição à celebração condigna e de Estado do 13 de Janeiro usa a proximidade do aniversário do assassinato de Amilcar Cabral, 20 Janeiro, também feriado nacional, para diminuir ainda mais o 13 de Janeiro. Este ano, logo no dia 14, o Ministério de Educação iniciou uma semana Amilcar Cabral em todos os estabelecimentos do país numa acção que relembra os actos de doutrinação de crianças e jovens do antigamente. O ministério finge ignorar que a Constituição explicitamente proíbe o Estado de impor nas escolas “directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas” (alínea c do artigo 50º). Por outro lado, não acata a recomendação da Constituição. nº 2 f) art. 78, quanto à promoção dos valores da democracia, valores esses nas antípodas dos presentes no pensamento de Amilcar Cabral que reconhecidamente é de extracto marxista-leninista.

Todos os anos cria-se um imbróglio na celebração dos feriados de Janeiro. Este ano não é diferente, apesar dos esforços do actual presidente da república com a sua mensagem no 13 de Janeiro e a deposição de flores no monumento aos heróis nacionais no dia 20 de Janeiro, entre outros actos, em fazer das datas, dias de concórdia nacional. Com a crispação que paira no ar, fica-se com a impressão de que não só o passado não passou como procura impôr-se no presente e já com um olho no futuro.

Pelo gesto do presidente da república, vê-se não há qualquer repúdio em homenagear os heróis da independência. A crispação resulta do não reconhecimento do simbolismo do 13 de Janeiro enquanto momento da afirmação da liberdade e da vontade soberana do povo. Há quem tenha estado associado à ditadura do partido único que acha que deve reclamar para si a glória da democracia, porque iniciou a abertura política. Esquece que se foi necessário uma abertura em 1990 é porque alguém fechou as portas à liberdade 15 anos antes.

O absurdo da situação reside aí. Não faz sentido exigir à vítima que agradeça o seu algoz pela sua libertação. Não se pode ter um país inteiro com uma espécie de síndrome de Estocolmo em que todos vêem a necessidade histórica do partido único, ficam gratos pelo facto do regime ditatorial ter sido “suave” e congratulam-se por, ao atingir a “maioridade”, terem recebido a democracia como presente. Para que não se continue na via que pode pôr em perigo o futuro, é fundamental que a sociedade consiga, sem quaisquer receios, ver com verdade o que realmente aconteceu nos anos de partido único e levar os seus protagonistas a assumir a sua responsabilidade plena.


Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 15 de Janeiro de 2014

quarta-feira, janeiro 08, 2014

Denegar em vez de reflectir



Entrou o ano 2014. Para muitos em todo o mundo as perspectivas para os próximos tempos não são muito diferentes do que têm sido até agora. Todos queixam-se do desemprego, da diminuição do rendimento disponível, da falta de oportunidades para os jovens, do aumento das desigualdades sociais e do crescimento anémico que ameaça entender-se por mais alguns anos. Em Cabo Verde, paradoxalmente, considerando a sua fragilidade, o governo proclama que conseguiu “aguentar” os efeitos da crise internacional mesmo num ano exigente e desafiante como foi 2013.


A crise financeira, já com mais de cinco anos, acabara com as ilusões de que era possível manterpor tempo indeterminado um ritmo vertiginoso de crescimento movido pelo crédito fácil e quase sem riscos. Depois de 2008 viu-se como a crise metamorfoseou-se sucessivamente em crise económica e social e posteriormente em crise da dívida soberana. As políticas adoptadas para sanar a situação da dívida e recuperar a competitividade em várias economias avançadas traduziram-se no imediato em quebras graves no crescimento e no emprego com impacto a nível global. Neste mar de más notícias nem o optimismo quanto ao desempenho dos países emergentes e ao papel que podiam assumir como locomotivas da economia mundial se salvou.

A natureza das mudanças em curso nas economias nacionais e a evolução futura das relações internacionais e da própria globalização têm sido motivo de muito debate e levado a posicionamentos diversos. O desnorte provocado tem levado a confrontos de ideias a vários níveis. Posicionamentos divergentes manifestam-se em instituições internacionais (FMI) e supranacionais (EU, BCE) e entre académicos de renome. Países do Sul da Europa enfrentam os do Norte sobre qual o melhor caminho para ultrapassar as ameaças ao euro e à união monetária. A nível nacional os partidos dividem-se quanto à bondade das políticas de austeridade e de estímulo e populismos diversos agitam a população contra programas da Troika que visam restaurar a sustentabilidade financeira. Em toda esta agitação ninguém está seguro de qual o caminho de saída. Todos sabem porém que nada será igual ao que anteriormente existia e que, face ao novo quadro das relações económicas emergentes, há que adoptar uma atitude radicalmente diferente.

Em Cabo Verde, a postura perante a crise e as mudanças globais que está a gerar tem sido completamente diferente. Em vez de levar à reflexão leva a denegação. Primeiro, deixa-se fazer escola a ideia que o país estaria blindado contra a crise. Posteriormente, com a crise aceite como ameaça real, o discurso vira-se para assegurar o país de que ela poderia ser “aguentada” sem que, nas palavras do Primeiro-Ministro, se pedisse à população que “apertasse o cinto”. O discurso da importância vital da ajuda externa continua subjacente a todas intervenções públicas. Mesmo quando se adopta a linguagem do empreendedorismo, da inovação, do apoio ao sector privado, apercebe-se que no essencial se trata de mais um mise-en-scène. As ligações burocráticas e também políticas dessas iniciativas com os organismos que o governo cria para o efeito são prova disso assim como também o é o estado actual do sector privado sem o suporte das políticas públicas que o exemplo bem sucedido dos países do Sudeste asiático aconselharia. Noventa e dois por cento das empresas cabo-verdianas tiveram resultados negativos em 2012.

A história económica recente confirma que nenhum país se desenvolveu com base na ajuda externa. Todos os países que conseguiram dar o salto, fizeram-no com apostas na educação que dá empregabilidade, no ambiente de negócios que atrai investimento externo, na criação de condições legais, institucionais, infra-estruturas e qualidade da mão-de-obra que assegura competitividade e na adopção de uma atitude favorável ao desenvolvimento de uma cultura de serviço e ao aumento de trocas com o mundo. A ajuda não pode ser um fim em si mesmo. Os doadores certamente agradeceriam se uma atitude consentânea com esse princípio fosse adoptada.

Vários autores, ultimamente Angus Deaton, da Universidade de Princeton, no seu livro “The Great Escape”, vêm demonstrando quão similares são os males resultantes da dependência da ajuda e do petróleo. Os governos tornam-se autocráticos, o potencial das pessoas e dos seus empreendimentos não se realiza e praticamente se institucionaliza o desperdício de recursos, seja em elefantes brancos, projectos abandonados e prioridades trocadas. Nos tempos actuais de grandes mudanças é fundamental que a captação da ajuda deixe de ser a função central da governação. Neste ano de 2014 Cabo Verde deverá fugir desse paradigma e reorientar-se para desenvolver os seus recursos próprios, ganhar sustentabilidade, criar riqueza e garantir emprego à sua gente.


Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 8 de Janeiro de 2014 Humberto Cardoso

quarta-feira, dezembro 18, 2013

Dissonâncias



Muito discurso político é feito em Cabo Verde à volta da necessidade de unificação do mercado nacional. Recentemente, face à constatação de algum desequilíbrio no desenvolvimento das ilhas e a manifestações de centralismo por parte do governo, um sentimento a favor da criação de regiões vem ganhando considerável apoio e audiência nas ilhas e em várias camadas da população. É interessante notar que situações concretas que deviam chamar para um debate sobre esses temas são confrontadas com o silêncio, com indiferença e às vezes com uma retórica política deslocada. Um caso em apreço é o que se passa com a ligação S.Vicente – S.Antão. As dificuldades já existentes tornaram-se críticas nas últimas semanas com a ida do navio Armas para reparação nos estaleiros da Cabnave. O acidente com o navio Sal-Rei piorou a situação, diminuindo a oferta de possíveis substituições no transporte de passageiros, carga e veículos entre as duas ilhas. Outros navios que podiam estar disponíveis, sofrem de outros problemas, uns com as autoridades marítimas e outros com o operador dos portos. Em consequência, uma região das mais importantes do país, seja em termos populacionais, seja em termos económicos, vê-se privada de uma via vital de comércio e de intercâmbio a todos os níveis. Pergunta-se onde é que ficam os discursos políticos de unificação do mercado interno. Aparentemente, com os arranjos actualmente existentes, ninguém assume a responsabilidade de manter a linha funcional ou dá muita importância aos prejuízos e inconveniências causados aos milhares de pessoas que fazem o trajecto ou vivem dessa ligação. A ideia de que a linha S.Vicente – S. Antão constitui um serviço público a manter em todas as situações não é totalmente assumida pelas autoridades. Obstáculos para uma circulação sem atrito, mais leve e menos custoso abundam, vindos designadamente de instituições como: a ENAPOR, alfândegas, polícia fiscal e outras autoridades marítimas. Não há uma vontade conjunta dos vários intervenientes na gestão dos transportes marítimos focalizada na facilitação do tráfego marítimo de carga e passageiros entre as ilhas. O discurso político não é traduzido em acção coerente nem consistente mesmo perante o facto de que, tratando-se de um país arquipélago, isso obriga a manutenção de um mercado fragmentado, a marginalização de várias ilhas e a custos económicos e sociais gravosos para todos. Não deixa, por isso, de ser desconcertante ver que o esforço de desencravar povoações e áreas de cultivo é em boa parte desperdiçado porque os produtos ficam retidos na ilha. Fazem-se estradas e constroem-se portos, mas esquecem-se as “auto-estradas” que deviam levar os produtos para o mercado global do país e mesmo para a exportação. A dissonância vai ainda longe. O Governo parece que levou treze anos a descobrir que, considerando as condições do país, dificilmente o mercado, por si mesmo, resolveria as necessidades no domínio dos transportes marítimos. E que em matéria de rotas marítimas iria deparar-se com situações de falhas ou de imperfeições do mercado e que teria que intervir de preferência em parceria com privados, mas num ambiente de transparência total. Soluções para os problemas passariam por ter rotas reguladas, outras concessionadas e outras ainda parcial ou totalmente subsidiadas. A introdução do conceito de serviço público na ligação entre as ilhas abriria o caminho para a regulamentação do tráfego marítimo com a definição das condições de entrada para os operadores, com as garantias de segurança, com o estabelecimento de frequências e com tarifas fixas. Os ganhos no movimento de cargas e passageiros que adviriam com a segurança e a previsibilidade dos serviços a prazo compensariam os investimentos realizados e os benefícios concedidos. Do exemplo do Fast Ferry, em que tanto se investiu mas acabou-se por decidir por uma posição maioritária do Estado para salvar a empresa, deve o Governo retirar as devidas elações. Deve ainda saber como agir para ao mesmo tempo que assegura os instrumentos de uma maior dinâmica económica com a unificação do mercado nacional, cria oportunidades para amadores nacionais e abre o caminho para que o país tenha embarcações seguras e ajustadas ao transporte confortável de passageiros. Será também uma forma de potenciar o turismo interno e alargar a oferta turística do país com a diversidade de produtos oferecidos pelas ilhas. Dissonâncias na estratégia têm custos avultadíssimos. Sente-se que algo corre mal quando se constata que após pesados investimentos, alguns elos na cadeia - estradas novas, novos portos e barcos velhos e inadequados - não deixam criar o círculo virtuoso necessário para garantir o retorno dos investimentos e os justificar. Em tais circunstâncias somam-se elefantes brancos no país, o crescimento económico fraqueja, o desemprego não diminui e, cada dia que passa, fica mais difícil servir a dívida contraída para financiar os investimentos, mesmo que o crédito tenha sido conseguido nas melhores condições.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 18 de Dezembro de 2013 Humberto Cardoso

quarta-feira, dezembro 11, 2013

Madiba



A morte de Nelson Mandela provocou uma reacção global juntando milhões de pessoas numa mistura complexa de dor, de agradecimento e de renovação de esperança. De dor pela perda do grande homem que incarnara de forma singela a defesa da dignidade humana e a procura incessante pela justiça. De agradecimento por provar que, de facto, nada é impossível se ao longo do caminho deixarmo-nos guiar pelo princípio da liberdade, da tolerância e da inclusão. De renovação da esperança por mostrar que todos e cada um, individualmente ou na relação com os outros, seja no contexto familiar, comunitário, nacional e mesmo internacional, podem acrescentar algo novo, ser promotor da paz e harmonia e potenciador de vidas mais ricas e gratificantes.


Nelson Mandela liderou o que todos consideravam quase impossível: pôr fim ao Apartheid na África do Sul sem que o país mergulhasse num banho de sangue. O feito de Mandela foi extraordinário porque, ao mesmo tempo que conseguiu a libertação da população negra do jugo de um regime odioso e racista, fez aprovar a Constituição de 1997 que consagrou a liberdade de todos os sul-africanos, garantiu os direitos das minorias, instaurou a democracia e o Estado de direito. O Libertador Mandela foi um combatente incansável pela liberdade, ciente de que quaisquer desvios ou atalhos na caminhada poderiam desembocar em banho de sangue, em atraso na edificação das instituições fundamentais da democracia e em prosperidade adiada. Certamente que as experiencias de várias lutas de libertação na África que depois no poder deixaram-se conspurcar pelo ódio, vingança e exclusão dos não combatentes serviram-lhe de referência no seu esforço titânico para evitar que o mesmo acontecesse à África do Sul.


A libertação de Mandela após 27 anos de prisão aconteceu a 11 de Fevereiro de 1990. Viviam-se então tempos extraordinários. Três meses antes tinha caído o Muro de Berlim. Por todos os continentes desabavam regimes autoritários e totalitários em sintonia com a implosão do império soviético e do comunismo. Também em Cabo Verde germinavam as forças populares que iriam levar ao fim do partido único e à liberdade e democracia em Janeiro de 1991. Já nos finais dos anos oitenta tornara-se evidente que o Apartheid na África do Sul não conseguiria resistir ao fim da guerra fria e ao isolamento internacional a que a sua desumanidade lhe confinara. Mandela apareceu como a única esperança para se evitar o pior. Ninguém esperava um milagre, mas facto é que um milagre acabou por acontecer.


O homem de 75 anos que deixara a sua cela na ilha de Robben tinha uma história de coragem, de perseverança e de magnanimidade por detrás dele forjado na luta pela dignidade, igualdade e justiça. O seu carácter férreo tinha-se revelado em momentos críticos com os do seu julgamento nos tribunais do regime, nos longos anos de isolamento e na recusa a propostas da sua libertação que só serviriam para aliviar a pressão internacional sobre o regime racista. A coerência de princípios e o seu humanismo tinha-lhe permitido ir para além dos apelos à luta armada e ao nacionalismo negro para privilegiar meios não violentos e a participação de todos no processo de emergência da nova África do Sul. Só ele detinha a autoridade moral e o capital político suficiente para mover vontades, criar confiança entre as partes e negociar os compromissos necessários. A mesma autoridade e a mesma crença forte nos ideais que posteriormente permitiu-lhe, como disse Obama no seu discurso de homenagem, promover “a reconciliação nacional não como forma de ignorar o passado cruel mas como meio de o confrontar com inclusão, generosidade e verdade”.


Ainda na sua intervenção Obama referiu-se a líderes que proclamam identificar-se com Mandela mas que não toleram dissenso nos seus próprios países. Alguns deles vieram de organizações que só encontram unidade colocando-se contra os outros, que têm uma cultura de conspiração, que evitam o contraditório nas suas fileiras e na sociedade e que seguem o princípio de que os fins justificam os meios. Precisamente o oposto de tudo o que Mandela disse e praticou. Mas o facto de se sentirem obrigados a mostrar-se junto de Mandela, mesmo que hipocritamente, demonstra onde está a razão e reforça o sonho da liberdade e democracia para todos.


O Expresso das Ilhas junta-se a todos na celebração da vida do grande homem que foi Nelson Mandela e que agora junta-se a Martin Luther King e ao Mahatma Gandhi no panteão dos grandes homens que tanto fizeram pela dignidade, igualdade e justiça.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 11 de Dezembro de 2013 Humberto Cardoso

quarta-feira, dezembro 04, 2013

Crença na leveza da dívida


O nível do endividamento de Cabo Verde continua a receber reparos de entidades externas. Depois do FMI, da Fitch Ratings e do GAO é a vez da Comissão Europeia, através do seu presidente Durão Barroso, manifestar a sua preocupação com o “nível muito elevado” de uma dívida que deve atingir os 98% do PIB em 2014. Segundo a Inforpress, no encontro de Bruxelas, o presidente da Comissão Europeia relembrou ao Primeiro-ministro de Cabo Verde que “a questão está em saber se é um endividamento virtuoso e que reforça a competitividade ou que depois pode pesar excessivamente no lançamento da economia”. Em resposta o PM cabo-verdiano reiterou que a dívida é sustentável.

O problema nestas matérias é que, apesar das garantias oficiais, são as percepções dos operadores e outras entidades que contam. Lê-se, por exemplo, no relatório de política monetária de Novembro último que os bancos nacionais percebem um risco macroeconómico e não dão crédito a privados. Mesmo quando o banco central facilita na cedência de liquidez preferem emprestar ao Estado. A empresa de notação financeira Fitch também reconhece o risco e na sua última avaliação manteve no negativo o outlook para a economia cabo-verdiana. Só quem não espera realmente que investimentos privados nacionais e estrangeiros se assumam como motores da economia é que pode ignorar a reacção dessas entidades perante a situação actual da dívida.

Talvez aqui resida a razão da diferença de opinião entre o governo e praticamente todos os outros. Continua-se a acreditar no crescimento movido pelo investimento público não obstante a retórica oficial em contrário. Com um discurso mediático intenso e repetitivo o governo passa a ideia que vai continuar a mobilizar os fluxos necessários em termos concessionais. De forma subliminar a sociedade cabo-verdiana vai-se convencendo de que poderá contornar as consequências da graduação a país de rendimento médio ou que provavelmente no futuro as dívidas serão perdoadas porque “afinal Cabo Verde é pequeno e pobre mas procura fazer as coisas bem feitas”.

Para o resto do mundo porém ser bom aluno significa graduar-se, emancipar-se e libertar-se da dependência da ajuda do exterior. E isso consegue-se criando a capacidade nacional de produção de riqueza com indivíduos motivados, empresas dinâmicas, mão-de-obra qualificada e ambiente institucional e legal facilitador da iniciativa e protector dos ganhos conseguidos por vias legítimas. A opção por investimentos públicos muitas vezes sumptuosos mas sem capacidade de imediata e directamente potenciar vantagens comparativas e recursos específicos tem sido sinónimo de crescimento lento, de fraca criação de emprego e de impacto mínimo no resto da economia. Dizer que o serviço da dívida não pesa muito porque os juros são bonificados e fazer esquecer que o capital terá que ser pago na íntegra com riqueza criada no país não ajuda na criação do espírito de emancipação que se requer de uma nação independente.

O dilema com que se depara o programa “Casa para Todos” é típico do que se pode esperar numa situação dessas. O governo vai inaugurando casas feitas. Algumas, muito poucas, já foram habitadas. Fazem-se exercícios de selecção de famílias que depois desistem porque os bancos não lhes dão crédito. Como os investimentos públicos falharam em produzir o crescimento e o emprego prometidos, as pessoas não têm garantia de rendimento suficiente para assegurar crédito junto das instituições financeiras. Crédito esse já tornado escasso porque há demasiados riscos – um círculo vicioso.

Apesar de Durão Barroso ter manifestado a José Maria Neves o seu “querer acreditar” que o endividamento será virtuoso dificilmente se consegue discernir virtude num caso desses. Pelo contrário, o resultado lê-se no BO de 27 de Novembro: o Estado, por resolução do Governo, avaliza o empréstimo de um milhão de contos à IFH para pagar encargos com o programa “Casa para Todos” e com a urbanização do Palmarejo Grande. Um em muitos outros avales que se vão dando a empresas estatizadas que em vez de promoverem a criação de riqueza tornam-se em potenciais riscos orçamentais. Exemplos de outros países relembram todos os dias o quanto custa aos contribuintes pagar pelas opções grandiosas mas duvidosas dos seus governantes.


Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 4 de Dezembro de 2013 Humberto Cardoso

quarta-feira, novembro 27, 2013

Não se pode privatizar o Estado



A igualdade dos cidadãos perante a lei é uma das grandes conquistas da democracia e do estado de direito. Segundo o artigo 24º da constituição, ninguém pode ser beneficiado ou prejudicado por razões designadamente de raça, género, origem, religião ou convicções políticas e ideológicas. A administração pública do Estado em particular deve tratar com isenção e imparcialidade os utentes. Em nenhuma situação os recursos públicos e o poder do Estado deverão ser colocados ao serviço de grupos. Não se pode privatizar o Estado.


Apesar dos 22 anos de democracia, persistem em Cabo verde sinais de uso ilegítimo dos recursos do Estado para benefício de alguns. Nos momentos eleitores chovem denúncias vindas das forças da oposição que dão conta desses abusos. Nas eleições presidenciais denúncias do mesmo teor vieram mesmo de dentro do partido no governo. Círculos próximos de uma das candidaturas não deixaram dúvidas quanto a casos de favorecimento da outra próxima do chefe do governo e quanto a ameaças de represálias dirigidas a seus apoiantes. A partidarização do Estado é assumida pelo próprio chefe governo com o discurso de há que acabar com os “jobs for the boys and girls”. Nos períodos eleitorais são notórios os casos de directores gerais, de presidentes de institutos e de administradores de empresas públicas que se candidatam a deputado pelo partido no governo.


A ideia da coisa pública e do interesse público parece não ter ainda criado raízes profundas. Razões para isso provavelmente serão encontradas no processo de criação do Estado logo após a independência. No regime de Partido/Estado não havia muitas distinções entre o Estado e o partido. O partido geria os recursos do Estado como lhe convinha. Era a força dirigente da sociedade e do Estado. Os funcionários prestavam provas de conhecimento do programa partidário e juravam fidelidade ao partido. Ultrapassar a cultura organizacional diligentemente construída durante esses quinze anos e induzir uma atitude de servidor público a milhares de funcionários não podiam ser tarefas fáceis nem rápidas. É evidente que, mesmo em democracia, ir-se-ia manter, por muito tempo, o risco de, face a estímulos bem precisos, se regressar aos maus costumes de favorecimento de correligionários e de punição de adversários políticos.


Sentiu-se o velho impulso de discriminação na discussão no parlamento dos estatutos dos combatentes da liberdade da pátria, uma proposta de lei do governo. Só foram considerados presos políticos os que foram presos durante o regime colonial. Os que também por razões políticas foram presos, torturados e condenados durante a ditadura do partido único não foram considerados merecedores, como os outros, da solidariedade da nação cabo-verdiana na forma de uma pensão mensal de 75 contos. A lei, em 2013, optou por seguir as restrições impostas originariamente em 1989 nos estatutos para uma pessoas se qualificar como combatente. Naturalmente que na época o partido único não ia reconhecer os adversários políticos que mandara prender. Estranho é que mais de vinte anos, e já na democracia, haja quem não os continua a reconhecer e, agora, com o poder do Estado nas mãos continue a privá-los de qualquer compensação pelos males sofridos.


Na lei de nacionalidade, ainda em discussão no parlamento, pode-se notar a canalização de recursos públicos para alguns seguindo critérios não conformes com o princípio constitucional da igualdade. Da leitura da proposta fica-se a saber que no estrangeiro há detentores de passaportes cabo-verdianos que não têm nacionalidade e não estão inscritos na Conservatória dos Registos Centrais. Em nenhum momento o governo explica como nas embaixadas e consulados se deixou a administração do Estado contornar a lei e emitir passaportes a quem não tinha preenchido todos os requisitos legais. Nem dá a conhecer qual foi a motivação para um acto tão grave e se realizaram inquéritos para apurar responsabilidades. Limita-se a propor que se passe uma esponja como se nada tivesse acontecido. A gravidade do acto, porém, mantém-se. Não se pode esconder que a posse de passaportes nacionais, entre outras regalias, habilita ao voto nas eleições legislativas e nas eleições presidenciais. Em mãos erradas ou comprometidas podem ser instrumentos de fraude eleitoral e de fragilização da legitimidade democrático do poder político no país. É algo muito sério.


A forma como se faz política em Cabo Verde dá a impressão que nem os princípios e valores da constituição são definitivos e que tudo continua em conflito permanente. Justifica-se o partido único, diminui-se a democracia, lança-se a década de noventa contra décadas anteriores e posteriores e evocam-se adversários antigos para melhor apresentar-se como vítima e impedir compromissos e normalidade democrática. Em tal ambiente é difícil o Estado,a administração pública e seus funcionários manterem-se isentos e imparciais e virados essencialmente para a consecução do interesse público. Romper o ciclo vicioso é fundamental para que o Estado deixe de servir interesses específicos, privados, em detrimento do interesse público.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 27 de Novembro de 2013 Humberto Cardoso

quarta-feira, novembro 20, 2013

Tapar o sol com a peneira



A Sra. Ministra de Finanças, na semana passada, num seu tom característico de quem estava a dar uma grande novidade ao país, revelou que a TACV constitui um “grande risco fiscal” (orçamental). Logo de seguida passou a enumerar as medidas já prontinhas que de imediato irão ser tomadas para sanar a situação. Até parece que os problemas da transportadora aérea são de hoje e que perante eles o governo vai reagir em tempo, com firmeza e celeridade. A realidade, como todos sabem, é completamente outra.


De há muito que existe um entendimento oficial, apoiado pelo Banco Mundial, de que a TACV deve ser privatizada. Com a privatização previa-se imprimir uma nova dinâmica à empresa e evitar que se tornasse uma futura carga para os contribuintes. O Governo, porém, talvez por razões ideológicas, nunca quis seguir esse caminho. Passaram os anos, as dificuldades da empresa cresceram não obstante os sucessivos conselhos de administração nomeados. Em Junho de 2009 o FMI fez uma forte chamada de atenção ao governo em relação ao risco orçamental que as grandes empresas estatais, em especial à TACV e a ELECTRA representavam. O Governo prometeu então, também em tom energético, tomar medidas. Hoje é o que se vê: A ELECTRA para resolver os seus problemas aplica preços de energia dos mais caros do mundo; a TACV debate-se com enormes constrangimentos. Ninguém deve mostrar-se surpreendido. Está-se a colher o que foi semeado.


O governo esforça-se por apresentar a situação actual de crescimento raso e desemprego elevado como efeito de forças exteriores que escapam ao seu controlo. Assim como não assume que o facto de não ter privatizado a TACV e de ter renacionalizado a ELECTRA contribuiu em grande medida para a situação actual das duas empresas e também não reconhece que não se precaveu devidamente para a diminuição da ajuda externa, no fim do período de transição para país de rendimento médio. A realidade é que com ou sem crise internacional haveria quebra nos donativos e empréstimos concessionais. Por isso, a queda em 45% da ajuda orçamental, anunciada também pela ministra, não deve constituir surpresa.


Um governo mais prudente faria a sua estratégia passar pela melhoria da competitividade externa e do ambiente de negócios na perspectiva de reorientar a economia para exportação de bens e serviços e atrair investimento directo estrangeiro. Os fluxos gerados substituiriam as transferências no âmbito da ajuda externa. Os índices baixos de Cabo Verde nos relatórios da competitividade do Fórum Económico Mundial e no Doing Business do Banco Mundial dão conta dos esforços insuficientes do governo nessas matérias. Agora culpa-se a crise mas é facto que a crise actual não significa falta de dinheiro. O capital está ai, porém só se move para onde pode extrair retornos aceitáveis.


O Orçamento do Estado começa a ser discutido no Parlamento a partir de quinta-feira e o mais provável é que se vá continuar a tentar tapar o sol com a peneira. Tudo indica que, a exemplo do que se passou na execução do Orçamento do Estado de 2013, uma boa parte do previsto em investimento e despesas várias não se vai concretizar. Em ambiente de abrandamento da dinâmica económica dificilmente se conseguirão receitas suficientes para equilibrar as contas. Seria de esperar que nesta fase, em que já se atingiu os limites do endividamento público, o investimento privado substituísse o investimento do Estado. Mas o estado do sector privado nacional, paradoxalmente exangue no fim de um programa de centenas de milhões de contos na infra-estruturação, impede-o fazer. Segundo o último Relatório da Política Monetária do BCV, os bancos estão relutantes em dar crédito aos privados. Percebem que há riscos macroeconómicos derivados da dívida elevada e dos défices públicos e preferem emprestar ao Estado via títulos e bilhetes do Tesouro em vez ceder crédito para a habitação, para o consumo e para o investimento a indivíduos, famílias e empresas.


A situação difícil em todas as ilhas mas principalmente as como S.Vicente e Sal, mais abertas ao exterior, não parece alarmar o suficiente o governo. Prossegue impávido com as mesmas receitas políticas que até agora falharam nas transformações prometidas. A propensão por medidas avulsas e de impacto popular imediato dificulta uma actuação compreensiva e estratégica da governação que melhor habilitasse o país a confrontar os desafios actuais e do médio e longo prazo. A atitude dos governantes que mais conviria ao país neste momento devia ser aquela que fizesse dos níveis de emprego, de rendimento e de qualidade dos seus concidadãos a bitola para se sentirem legitimados e gratificados no seu trabalho.

Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 20 de Novembro de 2013 Humberto Cardoso

quarta-feira, novembro 13, 2013

Incongruências



O discurso do governo sobre os clusters é do mais desconcertante. Começou por propor quatro (mar, aeronegócios, tecnologias de informação e comunicação, praça financeira), depois acrescentou mais três (agronegócios, energias renováveis e turismo). Nenhum se constituiu até agora e parece que um já ficou pelo caminho, a praça financeira, no meio das atribulações que vieram a público sobre os bancos offshore e a Bolsa de Valores. Mas os governantes em cada inauguração de alguma infra-estrutura não se cansam de anunciar o progresso futuro que virá da dinâmica dos clusters. Não se tem é notícias das empresas privadas que iram constituir os clusters e da procura externa de bens e serviços que justificará a existência, a sustentabilidade e a dinâmica deles.


No outro dia, o Primeiro Ministro numa visita ao porto da Praia considerou que o investimento que está a ser feito “é um passo firme na efectivação do cluster do mar a partir da cidade da Praia”. Uma afirmação algo estranha considerando que a localização geográfica é chave para a constituição de clusters e S. Vicente tem sido apresentado como a base do futuro cluster do mar. Aliás foi com essa justificação que se instalou o Núcleo Operacional dos Assuntos do Mar na ilha e se transferiu a sede da Guarda Costeira. Tendo S. Vicente as suas próprias instalações portuárias não fica muito claro como é que investimentos no porto de outra ilha irão potenciar a actividade das empresas aglutinadas à volta do Porto Grande.


Clusters, de acordo com Michael Porter, são constituídos por empresas que interligam entre si num misto de cooperação e competição que lhes permite responder como eficiência e efectividade às necessidades dos mercados. São marcados pela geografia na medida em que se localizam onde há muito do chamado conhecimento táctico acumulado ao longo de gerações nas pessoas e as instituições. Lugares onde se desenvolveu uma cultura de confiança e de conhecimento mútuo que permitem trocas de conhecimento formais e informais, que facilitam a inovação e o empreendedorismo e que favorecem o gosto pelo risco.


Por estas e outras razões não se criam clusters a belo prazer de quem governa. Casos de sucesso não são muitos e clusters que conseguem impor-se e prosperar como Silicon Valey, Route 128 em Boston, Hsinchu park em Taiwan, Silicon Wadi em Israel e Daedeok Park na Coreia do Sul não foram criados pelo governo. As probabilidades de insucesso aumentam sempre que o processo é dominado pela retórica do tipo que faz tradução directa de barragens em agro-negócios, de aerogeradores entregues chave na mão em cluster de energias renováveis e de mais betão nos portos em cluster do mar.


Abundam exemplos um pouco por todo o mundo de muitos milhares de milhões gastos em parques tecnológicos, parques industriais que depois são abandonados sem que as promessas anunciadas com pompa e circunstância nos lançamentos da primeira pedra e nas inaugurações se concretizassem. Erros do género repetem-se porque para muitos governos é mais fácil mostrar betão, obras grandiosas e infra-estruturas futuristas. E como não as conjugam com as reais vantagens do país e não as fazem acompanhar de investimento sério nas pessoas e instituições em conhecimento, em capital social e numa nova atitude perante os desafios do mundo moderno transformam-se em dívida pesada e em símbolos da frustração crescente da população.


No mundo de hoje a presença forte e diária dos governantes na comunicação social faz com que muitas vezes a governação se transforme num exercício de relações públicas, de ilusionismo e em certos momentos de manipulação pura. Uma deriva desta natureza sempre que se verificar deve ser combatida pelos próprios políticos com sentido de Estado e de responsabilidade mais apurado e pelos cidadãos e pela sociedade civil com uma vigilância activa mais activa da vida política nacional.


Cabo Verde, um micro Estado de parcos recursos, tem que saber arrepiar caminho e não persistir no erro e nas falhas na implementação de políticas. Paga-se caro a arrogância nas questões públicas. Por outro lado, tem que saber reagir com vantagem às mudanças constantes que se verificam no mundo e não deixar-se seduzir por ilusões que podem dar conforto no momento mas não trazem prosperidade nem felicidade.


Humberto Cardoso


Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 13 de Novembro de 2013

quarta-feira, novembro 06, 2013

Desencontros com a realidade



A Ministra de Finanças no discurso de abertura do IV Fórum Consultivo do Terceiro Documento de Estratégia de Crescimento e Redução da Pobreza disse que o desafio do Governo é fazer os investidores perceber que o processo de infra-estruturação do país está a colocar oportunidades de negócio sobre a mesa. Acrescentou ainda que cabe ao sector privado agarrá-las. Com tais declarações o governo põe-se na posição de criador de oportunidades de negócios fundamentalmente via programas de infra-estruturas e atribui a investidores e operadores privados o papel de as concretizar. Uma posição conveniente porque depois desta “distribuição de tarefas” pode não ficar claro a quem exigir responsabilidade. Particularmente quando, como é o caso actual, nem o crescimento económico nem a prosperidade prometidos no arranque das obras dão sinais de acontecer.


O país endividou-se muito nos últimos anos para fazer a infra-estruturação referida pela ministra de Finanças. Uma dívida que o FMI estima que no corrente ano de 2013 atinge 93,4% do PIB e que projecta para 2014 o valor de 97,6% do PIB. O problema é que a promessa de que na sequência do investimento viriam investimentos, designadamente capital directo estrangeiro, num processo de “crowding in” não se verificou. Pelo contrário os privados nacionais sofrem os efeitos do “crowding out ”, ou seja, o Estado procura financiar-se para fazer face à quebra de receitas e da ajuda orçamental e compete com eles no acesso ao crédito. E sem financiamento não se se vê como o sector privado nacional vai cumprir o seu “papel” de agarrar oportunidades.


Há claramente um mau cálculo no fazer as coisas quando se investe e daí não resulta crescimento nem criação significativa de emprego. A empresa de notação financeira Fitch, na semana passada, considerou negativo o outlook para Cabo Verde. E as razões forem claras: a continuação do rácio da dívida pública/PIB na actual trajectória ascendente insustentável; a persistente falta de claridade na performance macroeconómico devido a falta de dados fiáveis; o fraco potencial de crescimento a médio prazo; e falhanço do programa de investimento em melhorar infra-estruturas que poderiam suportar crescimento rápido e sustentado a médio prazo.


A publicação do relatório Doing Business do Banco Mundial, também na semana passada, veio revelar como muito pouco significativo têm sido as mudanças feitas no ambiente de negócios em Cabo Verde. Factores como custo de electricidade, acesso ao crédito, protecção de investidores, regime laboral e processo de insolvência continuam a definir pela negativa o ecossistema onde agentes económicos interagem e lutam por resultados positivos. A classificação de Cabo Verde na posição 121º não podia ser motivo de regozijo ou de alguma forma de satisfação por pequenos avanços que eventualmente se estará a fazer. A meio do seu terceiro mandato o governo do PAICV não tem como fugir à sua responsabilidade pelo facto de Cabo Verde não ser competitivo e de ostentar um ambiente de negócios claramente inadequado.


Com o aproximar do fim dos donativos e dos empréstimos concessionais, os desequilíbrios na economia cabo-verdiana só poderão ser corrigidos com o aumento de fluxos externos via investimento directo estrangeiro e receitas de exportações de bens e serviços. Mas para atrair investidores o país tem que ser competitivo. Para produzir bens e serviços que encontrem mercado além-fronteiras tem que propiciar um ambiente de negócios favorável à actividade empresarial e ao empreendedorismo. Uma nova atitude do Estado e do Governo será necessário para isso se materialize. E não será tarefa fácil.


O número de membros do governo que já passaram pelo sector da economia testemunha o quão difícil e arriscado é fazer mudanças de paradigmas, mexer com interesses instalados e apoiar soluções inovadoras. É mais fácil repetir até à exaustão os benefícios que um dia clusters, ainda por emergir, irão trazer. Entretanto, por falta de visão e audácia, recursos importantes continuarão a ser investidos ineficientemente, fazendo crescer a dívida, acenando com falsas promessas de negócios e frustrando expectativas de crescimento e de uma vida melhor. Num contexto desses os apelos do governo são ocos e só podem cair em sacos rotos.


Humberto Cardoso


Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 6 de Novembro de 2013

quarta-feira, outubro 30, 2013

Trocar o Euro pelo Eco?



O Primeiro Ministro Dr. José Maria Neves em declarações à imprensa na sequência da cimeira da CEDEAO em Dakar apontou 2020 como o ano em que Cabo Verde adoptará uma nova moeda, o Eco, no quadro da integração económica dos países da região. O processo deverá iniciar-se com a adesão à segunda zona monetária criada pelos países anglófonos, Nigéria, Gana e Serra Leoa. Posteriormente pela via de uma convergência macroeconómica com os países do CFA será construída uma União Monetária. O PM vê esses passos como fundamentais para se “garantir integração no espaço da CEDEAO”.


Decisão tomada, importa agora, segundo ele, realizar os estudos para saber das vantagens e desvantagens de trocar o escudo cabo-verdiano pelo Eco e também construir consensos no país favoráveis a isso. Estranha forma de decidir: escolhe-se um caminho, depois fazem-se os estudos para se conhecer os custos e benefícios da opção assumida e ainda mais tarde vai-se convencer as pessoas de que precisam concordar com ela. Precisamente o contrário do que deveria acontecer. Democracias adjectivadas como as democracias populares ou democracias nacionais revolucionárias é que funcionavam assim. Não as democracias “tout court”, que não precisam de qualificações, onde reina o pluralismo e os cidadãos gozam de direitos de participação efectiva na vida do país.


Com o crescimento económico a abrandar significativamente e o desemprego a aumentar, o governo dá sinais de não ter ideia de como ultrapassar a situação. Fica-se com a impressão que “dispara para todos os lados”. Se não está a repetir os estafados ganhos que os clusters, ontem quatro e agora sete ou nove, irão trazer, então está a desdobrar-se em visitas e missões empresariais cujos resultados invariavelmente ficam muito aquém dos objectivos previamente publicitados. Hoje vai-se à China, amanhã a Singapura e à Africa do Sul e anunciam-se possíveis linhas de crédito, vontade de mudar o “chip” do país e interesse de investidores. Entretanto ouve-se falar do potencial da cooperação com Angola e com o Brasil e também com o resto dos BRICS. Depois nada de significativo em termos de investimento e comércio acontece, o que leva a pensar se as expectativas eram, à partida, irrealistas, se não se soube dar o devido seguimento às iniciativas ou se o país não é competitivo suficiente e não apresenta um ambiente de negócios realmente atractivo para os operadores económicos.


Agora a tónica virou-se para a integração africana com a entrada numa união monetária. As razões não são explicitadas: procura-se aumentar as exportações de bens e serviços em direcção à região para além dos actuais 3% do PIB via conquista de mercado no espaço da CEDEAO? Que bens e serviços? Vai-se atrair maior volume de investimento directo estrangeiro por causa disso? Também fica-se por saber se o país foi preparado para tirar partido de uma maior proximidade da África. Se já tem a competência linguística no inglês e no francês para dialogar e negociar com os povos da região maioritariamente anglófonos e francófonos. Se a classe empresarial cabo-verdiana desenvolveu laços estreitos com o mundo de negócios desses países. Ou se houve um esforço de intercâmbio académico que possibilitasse o conhecimento mútuo das suas futuras elites. De facto, o que se pode facilmente constatar é que apesar de todo o discurso feito e acordos assinados no âmbito da CEDEAO muito pouco se fez numa perspectiva estratégica para materializar os ganhos que adviriam do acesso privilegiado ao mercado dos seus 200 milhões de habitantes.


A questão da moeda única numa comunidade de países soberanos é algo muito complicado como se pode depreender das dificuldades por que passa a Europa desde de 2010. A crise da dívida soberana que se iniciou na Grécia e se replicou na Irlanda, Portugal, Espanha e Itália demonstrou como na ausência de uma união fiscal é extremamente difícil e custosa manter uma moeda única.


Cabo Verde tem beneficiado da estabilidade cambial graças ao peg ao Euro assinado em 1998. A ligação ao Euro deve-se em grande medida ao facto de a Europa ser o maior parceiro comercial da Cabo Verde e ser o ponto de origem de parcela significativa da ajuda externa, de boa parte das remessas dos emigrantes e do fluxo turístico que faz mover o actual motor da economia. Razões muito ponderosas terão que ser apresentadas para justificar uma mudança tão radical do regime monetário que implica perda da moeda nacional e ausência total de qualquer política monetária própria. O Governo deve ao país essas explicações.





Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 30 de Outubro de 2013

quarta-feira, outubro 23, 2013

Justiça mais eficaz



Todos os anos o mês de Outubro é o momento especial para o país e a sociedade reflectirem sobre a justiça. O ano judicial inicia-se com pronunciamentos de várias entidades com destaque para a intervenção do Presidente da República. O Parlamento dedica a primeira reunião plenário do novo ano parlamentar ao debate sobre a situação da justiça.


A anteceder todos esses actos, relatórios oriundos das magistraturas são produzidas e entregues na Assembleia Nacional, consultas e audições são feitas a intervenientes no processo de justiça designadamente o presidente do supremo tribunal, o procurador-geral da república, o bastonário da ordem dos advogados e o ministro de justiça. Invariavelmente a conclusão a que todos chegam é a mesma: fizeram-se investimentos em edifícios, em tecnologias de informação e na qualificação das pessoas, mas a morosidade da justiça mantem-se. Continua a verificar-se a um nível tal que em muitos casos acaba por configurar denegação da justiça.


Põe-se o problema de aquem exigir responsabilidade por tal fracasso. O imperativo constitucional de se ter um poder judicial independente do poder político obriga a ter juízes escolhidos com base no mérito e através de concursos públicos e um ministério público autónomo. As nomeações para posições cimeiras do sistema STJ e CSMJ são feitas pelo presidente da república mesmo no caso do procurador-geral da república em que a proposta do titular vem do governo. Com tal desenho institucional pode-se passar a impressão que a responsabilidade pela eficácia global do sistema fica diluída e distribuída por várias entidades.


A realidade porém é que a maior responsabilidade deve ser assacada ao governo. O funcionamento do sector da Justiça é a chave para assegurar interacções sociais normais, reproduzir a paz e tranquilidade sociais e a manter acesa a esperança de, em caso de conflitos, existirem vias para os resolver com objectividade, seguindo normas por todos aceites e em tempo útil. Também é a justiça quem assegura direitos de propriedade e direitos contratuais, direitos esses considerados s fundamentais para a construção da prosperidade futura. Tudo isso significa que para o governo cumprir com o seu programa de governação tem que se assegurar que tem uma justiça funcional. Se surgem falhas no sistema é sua responsabilidade primeira corrigi-las recorrendo a meios eficazes mas que não interfiram com a independência dos tribunais.


O número de processo pendentes, cerca de 90.000 no ministério Público e 20.000 mil na magistratura judicial, dão conta da dimensão dos problemas graves no sector. O facto de ano após ano não se notarem avanços significativos em ultrapassar o problema dos recursos pendentes, demonstra que não é “atirando meios para cima dos problemas” que se vai resolver definitivamente o problema da morosidade da justiça. Há que fazer uma abordagem compreensiva que leve a que se constitua um corpo de magistrados motivados, tecnicamente bem preparados, com brio profissional e espírito apurado de servidores públicos.


Contribui para o número crescente de processos o notório crescimento da conflitualidade na sociedade cabo-verdiana. Esta é uma realidade já conhecida das autoridades e que espera pela abordagem certa. Experiências de outras sociedades revelam que sempre que há diminuição de capital social e falta de confiança na relação entre as pessoas o tecido social tende a desfazer-se e os conflitos e acertos de conta aumentam. Há alguns anos que várias sondagens têm demonstrado o mesmo fenómeno em Cabo Verde. A insistência no modelo de reciclagem de ajudas em detrimento de um modelo virado para a produção e exportação não cultiva o espírito de cooperação. Pelo contrário, ao colocar todos em posição de disputar bens, acessos e favores propiciados por outros atomiza a sociedade, mina a confiança e não deixa espaço para se desenvolver uma cultura cívica. Daí é um passo para conflito, violência e alienação com recurso ao álcool e drogas. As consequências disso estão à vista de todos.


A enorme pressão que é colocada sobre o sistema de justiça tem raízes na situação sócio-económica do país. As dificuldades ao longo dos anos em fazer o país crescer mais e em criar empregos acompanhado do aumento de negócios ilícitos só vieram agravar a situação. Para além de se procurar fazer a justiça mais eficaz e célere, há que reorientar o país de forma a que os caboverdianos possam prosperar por vias que aumentam a cooperação, a confiança e a fraternidade entre eles.


Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 23 de Outubro de 2013

quarta-feira, outubro 16, 2013

Investir na saúde



A problemática da saúde em Cabo Verde veio à baila nos últimos dias com denúncias de alegadas mortes de 15 crianças na pediatria do Hospital da Praia, com a revelação de números preocupantes de bebés prematuros e com a campanha nacional de luta contra o sarampo e a rubéola. O público, as autoridades e os media prestaram mais atenção às sobrecargas nos serviços de saúde em geral e aos efeitos evidentes na qualidade dos cuidados prestados que provocam. Uma situação que tende a piorar com o abrandamento do crescimento económico, o emprego persistente e a expansão das bolsas de pobreza. 2015 está aí às portas, mas o país ainda tem um caminho significativo a percorrer no combate à mortalidade materna e infantil para poder atingir os Objectivos do Milénio. Particularmente preocupante é a mortalidade neonatal o que evidencia dificuldades no seguimento e na educação das grávidas. O problema é que Cabo Verde sem ainda resolver os problemas típicos dos países em desenvolvimento já tem que lidar com doenças crónicas de uma população que apresenta uma esperança de vida próxima dos países desenvolvidos. Os custos em crescendo que tais desafios compósitos acarretam, obrigam a que o governo desenvolva uma estratégia que permita visualizar um futuro em que as populações poderão contar com cuidados de saúde de qualidade e sustentáveis. Recentemente um responsável da OMS relembrou que Cabo Verde tem bons resultados de saúde mas só quando comparados com outros países africanos. Se se considerar que esses países têm climas mais propícios a doenças, que se situam em zonas onde há endemias diversas, que estão sujeitas a epidemias que facilmente atravessam fronteira e o esforço de educação para saúde confronta barreiras linguísticas religiosas e culturais mais complicadas, vê-se que não há muitas razões para se vangloriar dos índices actuais. Aliás, a comparação deve ser feita é com os países desenvolvidos. E não é por mania. Para que Cabo Verde aproveite da sua proximidade da Europa para aumentar o fluxo turístico em direcção às ilhas tem que dar garantias aos turistas no que toca à saúde pública e à qualidade dos cuidados médicos que pode prestar em situações de emergência. Investir na eliminação de mosquitos nas ilhas, designadamente na Boa Vista e na ilha do Sal, controlar as fronteiras para evitar surtos epidémicos e cuidar da salubridade do meio são objectivos estratégicos para se manter o país atractivo para o turismo e para o investimento externo. No mesmo sentido vão os investimentos em hospitais, centros de saúde e na formação em várias áreas especializadas de quadro nacionais guiando-se por padrões europeus. Ao procurar satisfazer uma procura exterior exigente cuja captação traz benefícios diversos à economia nacional criam-se condições de, com sustentabilidade, se propiciar aos caboverdianos cuidados de saúde no nível adequado. Pelos recursos que crescentemente absorve, a saúde é na actualidade um dos sectores com maior impacto nas economias nacionais. Na Europa o envelhecimento da população fez disparar os custos e ameaça a solvabilidade dos estados. Na América o alargamento dos serviços de saúde para milhões de pessoas mais vulneráveis no chamado Obamacare está no epicentro da actual crise governativa. Para manter a competitividade e conter défices orçamentais, pessoas individualmente, instituições e países terão que procurar limitar os custos na saúde. Com isso abrem-se oportunidades múltiplas que podem ser aproveitadas. Já há países que se posicionaram para prestar tratamentos médicos sofisticados a custos mais baixos. Cabo Verde também deveria considerar as suas opções e apostar em prestar serviços num sector com um potencial enorme de crescimento a prazo. A proximidade da Europa e os fluxos turísticos significativos já existentes convidam a explorar essa possibilidade. Além de proventos directos que poderia angariar, colocaria o país na posição de melhorar consideravelmente os serviços de saúde que presta à população.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 16 de Outubro de 2013

quarta-feira, outubro 09, 2013

Evoluir o discurso



O novo ano político já dá os primeiros passos e os sinais não são muito auspiciosos. O discurso político parece contaminado com dizeres duplos e dúbios. Fala-se mais uma vez em consensos e pactos de regime e ao mesmo tempo desferem-se ataques despropositados a interlocutores do outro partido alegando factos que supostamente aconteceram há mais de uma década. Convida-se a reflexões sobre os desafios do presente e futuro do país e em simultâneo traz-se à ribalta os anos noventa com estórias que muito pouco já devem à realidade dos factos considerando os novos “pontos” que lhe são acrescentados sempre que novamente contados e recontados.


Devia ser diferente por várias razões: os efeitos da crise financeira fazem-se sentir em todo mundo; ainda Cabo Verde procura lidar com a sua transição para país de rendimento médio; e os enormes investimentos feitos nos últimos anos serviram para aumentar a dívida pública para valores astronómicos mas falharam em dar o crescimento económico prometido e o nível de emprego esperado. O normal é que, numa encruzilhada como a que muitos outros países também se encontram, o país, os partidos políticos e a sociedade civil exibissem uma outra atitude: mais inquisitiva quanto ao percurso até aqui percorrido, mais aberta a novas soluções e mais afinada, com resultados sustentáveis a médio e longo prazo.


A real situação do país parece ser sempre algo fugidio. Os números que deviam dar um retrato fiel do que se passa, divergem de acordo com a sua fonte institucional. Os dados do governo quanto às taxas de crescimento económico e à dívida pública não coincidem com os do Banco Central. Também para o World Economic Outlook do FMI, publicado esta semana, as taxas de crescimento do PIB esperado para 2013 é de 1,5% e não entre 2 e 3 % como está na proposta do Orçamento do Estado apresentado pelo Governo. O mesmo documento veio revelar que a dívida pública situa-se em 97,4% do PIB. Mas todos se lembram como em Abril último o Governo barafustou bastante à volta do facto do FMI e agências de rating internacionais terem calculado que a dívida pública estaria nos 95% do PIB. Facto esse depois confirmado pelo BCV no relatório de estabilidade financeira, publicado em Junho.


Como alguém uma vez disse, todos têm direito à sua opinião mas não aos factos. Sem concordância básica quanto aos factos e números dificilmente se conseguirá desenvolver o diálogo sobre as eventuais soluções dos problemas. Muito menos poder-se-ão construir plataformas de entendimentos necessárias para ultrapassar situações críticas que pedem um nível extraordinário de cooperação e engajamento das forças nacionais. Tentativas de construção de pactos para o crescimento e emprego como os visionados na semana passada, acabam por não passar de eventos mediáticos sem grande efeito prático. Não é feito o trabalho de fundo junto dos parceiros para transmitir a confiança de que com as medidas, implementadas de forma compreensiva e estratégica, e com os sacríficos exigidos dos trabalhadores o país ganhará em mais prosperidade e as pessoas em mais emprego e rendimento.


Há uma realidade que é incontornável. O governo tem mais de dois anos e meio na condução do país e é da sua responsabilidade até o fim do mandato levá-lo a bom porto neste mar revolto com incertezas, baixas expectativas e novos padrões de produção e comércio internacional. Porque a governação é sua e exclusiva, não faz sentido culpar o sector privado por investimentos que não foram feitos ou pelo crowding in do capital privado que não se verificou na sequência da infraestruturação. Se os incentivos certos não foram alinhados e disponibilizados de forma a que o país aproveitasse as suas vantagens, há que assumir responsabilidades, fazer rectificações e reconstruir a confiança no futuro. Não se pode é mascarar a governação com propaganda e actos de relações públicas e depois esperar que os adversários políticos e parceiros sociais deixem-se apanhar pela mistificação e colaborar como se nada tivesse acontecido.


Para evitar cepticismos quanto às intenções e conseguir o nível de cooperação de parceiros sociais e adversários políticos e a confiança dos operadores económicos há que cingir-se à verdade dos números e garantir a autonomia de quem os produz. O reforço de instituições inclusivas, porque defensoras da pluralidade e de espaços de confirmação das regras existentes deve ser um objectivo central.


A história prova que sucesso no desenvolvimento foi conseguido por aqueles que, pela via das instituições, não permitiram que diferenças políticas e diversidades de interesses constituíssem um obstáculo para o engrandecimento de todos. Neste início do ano político há que vencer a tentação de repetir a beligerância política habitual. O discurso e a prática política deverão evoluir no sentido de maior consolidação democrática e de se encontrar soluções para os problemas prementes do país.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 9 de Outubro de 2013

quarta-feira, outubro 02, 2013

Rentrée


Mais um ano político que se inicia. Os partidos desdobram-se em actividades para marcar o arranque da actividade política com centro no Parlamento. No país a percepção de que se vive uma crise já não pode ser escamoteada. Não há como esconder que se agravam os efeitos da quebra no crescimento económico e do particular impacto que está a ter nos rendimentos e na qualidade de vida da população. A situação social piora com o persistente desemprego e com a degradação do poder de compra e os altos preços de energia, água e transportes. As eleições legislativas estão a mais de dois anos de distância. Mudanças de rumo para contornar as actuais dificuldades e relançar o crescimento só podem vir do actual governo. Infelizmente os sinais vindos do executivo não apontam nesse sentido. O Primeiro-ministro publicamente veio dizer que não tem planos para alterações na estrutura e composição da equipa governativa. O discurso político manteve-se no essencial o mesmo. Há demasiada preocupação com o marketing político e as relações públicas em detrimento de resultados palpáveis. Grande continua a tentação do governo em confinar o seu papel ao “betão”. Mesmo quando se trata de infraestruturas tende a secundarizar componentes essenciais dos investimentos como equipamentos e gestão competente sem os quais dificilmente se consegue o esperado retorno. Praticamente ausente na actuação do governo continua a preocupação com o timing das medidas, o encadeamento necessário para surtirem efeito e a eliminação de obstáculos que diminuiriam os custos de contexto. Em consequência, não se materializam os grandes objectivos anunciados, os resultados ficam aquém das expectativas e após várias tentativas frustradas, o desânimo instala-se. S.Vicente é um caso paradigmático. Demagogia e populismo passam a ter campo aberto para florir. No seio dos partidos a atenção está virada em boa parte para o processo de transição das direcções actuais para a liderança que será apresentada ao país em 2016. Para quem está na oposição demonstrar ser alternativa em termos de equipa e de políticas é a primeira das prioridades. Para quem está no governo a preocupação em justificar as polí- ticas executadas e em gerir expectativas, monopoliza grande parte das energias. Se em termos normais compreende-se tal atitude, quando a crise aperta custa aceitar que face aos novos dados não se mude o rumo. A crise que em Cabo Verde está ligada à diminuição drástica de ajuda externa em forma de donativos e empréstimos concessionais veio pôr a descoberto as insuficiências construídas no sistema económico. O país não tem competitividade externa porque entre outras razões a energia e água são caras, a qualidade do ensino é baixa, a formação profissional é inadequada, a burocracia estatal trava iniciativas individuais e o ambiente de negócios em geral não é favorável à inovação, ao empreendedorismo e à actividade empresarial. Sem competitividade não há como atrair investimento directo estrangeiro (IDE) para substituir os fluxos provenientes da ajuda externa. E sem IDE dificilmente se poderá adquirir tecnologia, aumentar a produtividade e conseguir mercados para exportação. O drama de Cabo Verde é que mesmo com a crise ainda não se perdeu esperança que é possível continuar com o modelo de reciclagem da ajuda externa. O Governo na sua comunicação institucional é quem mais alimenta isso. Quando a Europa, a principal fonte de ajuda, ameaçou soçobrar sob o impacto da crise da dívida soberana, o governo deixou logo saber à população que existiam outras fontes de “cooperação”, os BRICS. Pura ficção, porque essa cooperação nem em meios, motivação e sustentabilidade poderia substituir a europeia. Os esforços em manter o país preso a um modelo de há muito esgotado, presume-se por razões ideológicas ou de manutenção do poder, curto-circuita o que devia ser o grande impulso da sociedade na construção das bases reais de criação de riqueza no país: o impulso para se ter uma educação de qualidade e uma administração ágil e prestável, para incentivar a iniciativa individual e para compensar o esforço e o mérito. O mundo ainda não deixou a crise completamente para trás. A Europa ainda soluça, os avanços dos EUA não são irreversíveis, a China cresce menos e os outros BRICS voltaram ao crescimento raso do passado. Cabo Verde tem que aprender a crescer potenciando os seus recursos, identificando as suas vantagens e ligando-se inteligentemente ao mundo. A rentrée política deveria ser animada por um amplo debate no qual toda a nação cabo-verdiana deverá engajar-se para se construir a prosperidade em bases sólidas e sustentáveis.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 2 de Outubro de 2013

quarta-feira, setembro 25, 2013

Pressões inaceitáveis



A questão de “jobs for boys and girls” na administração pública passou recentemente a receber maior atenção da sociedade cabo-verdiana e tornou-se alvo de um escrutínio mais apertado dos órgãos de comunicação social. Contribuiu para isso o caso mediático que envolveu a ministra Janira Hopffer Almada e as próprias declarações do primeiro-ministro José Maria Neves na conferência nacional do Paicv, há um ano atrás. Ouvir do primeiro-ministro que é necessário combater as práticas de nepotismo, clientelismo e amiguismo da administração do Estado naturalmente que desperta a curiosidade geral e em particular dos media.


Ninguém pensou que estivesse a referir a situações hipotéticas ou a tempos passados. Para todos só poderia estar a referir-se a realidades presentes considerando que há mais de uma década que o seu governo dirige directamente todas as estruturas do Estado. A pergunta colocada pela jornalista da TCV Rosana Almeida ao Primeiro-ministro sobre a contratação de uma assessora jurídica para a Chefia do Governo exprime o aprofundado estado de alerta para com essas situações hoje. Para a jornalista era a oportunidade do PM responder à preocupação do público se não se estaria perante mais um caso de jobs for boys and girls.


Patética foi a resposta do PM, não em directo para as câmaras da TCV, mas na rede social do Facebook. Questionou a ética da jornalista por ter colocado essas questões de contratação de assessoria só a ele e não a outros órgãos de soberania e outros de autarquias locais. Até considerou tal tratamento discriminatório. Provavelmente pensa que em matéria de responsabilização e de prestação de contas por actos do Estado deve-se dar tratamento igual e no mesmo momento a todos, mesmo tratando-se de instituições com funções díspares no sistema político. A jornalista teria que provar que já colocou a questão ou prometer que a vai colocar as outras entidades a que se referiu para que a sua pergunta receba a chancela de “ética”.


A realidade é que nem todos têm a mesma responsabilidade em manter o clima certo para o exercício de uma comunicação social livre no país. O PM fez por não notar que a jornalista, a quem aponta supostas falhas éticas, trabalha para a RTC, empresa estatal tutelada pelo governo que preside. E que a forma como reagiu pode configurar pressão sobre jornalistas do serviço público, algo expressamente proibido pela Constituição e pela lei. Pressão aliás que não esconde quando justifica ter recorrido ao Facebook e não ter exercido o direito de resposta previsto na lei. Como diz “as redes sociais são mais incómodas, porque somos confrontados com as nossas posições e opiniões”. Assim notícias e questionamentos de jornalistas, a um sinal do líder político, podem ser consideradas posições e opiniões e legitimamente trucidadas conjuntamente com seus autores pelos correligionários ávidos por mostrar serviço ao chefe. Aparentemente para o PM o “bullying” nas redes sociais é um sinal dos tempos modernos. Jornalistas, governantes, homens públicos e empresários todos devem preparar-se para isso.


O Governo é quem constitucionalmente gere todas as estruturas e recursos do Estado. Tem por isso imenso poder e há que o limitar. Para isso é fundamental o exercício pleno das liberdades, designadamente de expressão e de imprensa, a submissão da sua actividade aos ditames da lei e exigência de isenção e imparcialidade na relação com os cidadãos. Quem o povo legitimamente coloca no cimo da poderosa administração do Estado, pelo poder único que está investido, tem que a todo o momento mostrar que exerce a sua função com uma preocupação pela transparência, um sentido de responsabilidade e uma disponibilidade para prestar contas, sem paralelo com qualquer outra entidade. Falha terrivelmente e compromete o contrato social da república sempre que procurar esquivar-se a esse escrutínio especial do público em geral e particularmente dos órgãos de comunicação social e dos seus profissionais.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 25 de Setembro de 2013

quarta-feira, setembro 18, 2013

É difícil cumprir regras?



A explosão de alegria que se seguiu à vitória de Cabo Verde no jogo contra Tunísia de apuramento para o Mundial infelizmente não durou muito. Cedeu lugar ao choque da desqualificação devido à participação de um jogador cabo-verdiano suspenso nos últimos minutos do jogo.Tunísia ganhou na “secretaria” os pontos que a equipa dos Tubarões Azuis vitoriosamente tinham conseguido no relvado. A nação inteira, que já se via no Mundial em 2014 no Brasil pela primeira na sua história, não quis acreditar que falhas no cumprimento estrito das regras da FIFA lhe fazia perder o sonho de gerações de aficionados do futebol.


Aconteceu com Cabo Verde o mesmo que com demasiada frequência se vem verificando com vários países no processo de qualificação para o Mundial de futebol. Guiné Equatorial, Etiópia, Togo, Gabão, Sudão e Burkina Faso são países que ou perderam pontos ou ficaram desclassificados por falhas na aplicação das regras. Curiosamente são praticamente países africanos os únicos que se deixam entrar pelos caminhos do incumprimento no processo anulando esforços de jogadores e técnicos e frustrando expectativas de nações inteiras. Há quem encontre similaridade entre essa atitude de negligência no mundo do futebol com o que se passa na relação com outras instituições. Não há rigor na gestão e não há assunção de responsabilidades. Os dirigentes faltosos em geral mantêm-se nos cargos imperturbáveis quanto às consequências gravosas dos seus actos.


Cabo Verde fez neste ano de 2013 duas incursões históricas no mundo altamente competitivo do futebol continental e internacional. Em modalidades como o basquetebol também os avanços têm sido notados. Prosseguir a partir do ponto já atingido exige uma outra atitude e um outro nível de institucionalização. A energia e criatividade dos nossos jogadores assim como a crescente capacidade dos nossos técnicos têm que ter as vias organizacionais e institucionais adequadas para produzir sucessos em confronto com os esforços sofisticados dos outros competidores. E aí como também em outras áreas que Cabo Verde precisa para ser competitivo, desenvolver-se e vencer não deve haver espaço para complacência. Responsabilidades por falhas, incompetência e perdas de oportunidades devem ser assacadas a quem de direito.


Ensino bilingue


Um factor essencial para Cabo Verde ser mais eficiente e mais inovador e ganhar em produtividade é a qualidade do ensino. Mas há anos que avaliando pelos índices do relatório de competitividade do Fórum Económico Mundial se nota que pouco se fez para adequar a mão-de-obra nacional às exigências do mercado quanto à apropriação e uso de tecnologias e desenvolvimento de competências necessárias para prestação de serviços internacionais. No domínio da qualidade o Governo praticamente tem ficado pelos discursos.


Na questão do crioulo nas escolas, pelo contrário, a acção do governo distingue-se pela obstinação mesmo face à oposição de parte significativa da sociedade civil. Já anunciou que a grande novidade deste ano lectivo é experiência de ensino bilingue em duas escolas da ilha de Santiago. Pergunta-se qual a motivação. Será de melhorar a qualidade de ensino nas escolas? Será de dar aos futuros cidadãos domínio maior da língua oficial e por essa via possibilitar-lhes conhecimento mais aprofundado dos seus direitos, elevar-lhes o nível de participação cívica e política e melhorar a relação com as instituições públicas? Ou será simplesmente uma questão ideológica?


O crioulo ainda não é a língua oficial, um passo que parece essencial para ser adoptado como língua de instrução e de educação para a cidadania. A criação de experiências piloto de ensino bilingue coloca o problema da obrigatoriedade ou não dos pais submeterem os filhos a esse tipo de experimentação. Se for opcional poderá verificar-se o que aconteceu noutras paragens designadamente Madagáscar em que as elites urbanas simplesmente moveram os filhos para escolas onde a língua de ensino era o francês. Não se ganhou nada em qualidade de ensino, mas agravaram-se as desigualdades sociais. Quem tinha melhor domínio do francês acedia aos níveis superiores de educação e formação.


Em Cabo Verde há que focalizar no que é prioritário. Pagam-se caro inadequações na formação das novas gerações. Prioridades trocadas são dificilmente corrigíveis e têm consequências que afectam toda uma vida.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 18 de Setembro de 2013

quarta-feira, setembro 11, 2013

Ensino de qualidade é crucial para a competitividade



Cinco anos após o início da crise internacional em 2008 não é claro que Cabo Verde tenha retirado as devidas ilações do que até ao longo do quinquénio se vem manifestando como crise financeira, crise da dívida soberana, crise económica e crise social. A convivência diária via jornais, rádio e televisão com os efeitos das crises sucessivas na vida de milhões de pessoas em todos os continentes parece não ter trazido qualquer nova urgência aos caboverdianos para mudarem de atitude em relação ao país e ao mundo. Só há menos de um ano é que o governo veio a confessar que o país estaria a ser atingido pelos efeitos da crise. Tudo indica que o reconhecimento do facto deveu-se à quebra brusca dos donativos, o escassear de empréstimos concessionais e a diminuição das remessas de migrantes.


O relatório de competitividade global para 2013-14 publicado pelo Fórum Económico Mundial deixou claro que não houve qualquer progresso em relação aos anos anteriores. Cabo Verde manteve a posição nº122 em 148 países que tivera no ano passado entre 144 países. Nos domínios de eficiênciae de inovação que deviam ser os motores para uma melhor “performance” da economia não houve evolução. Nos requisitos básicos verificou-se a deterioração do ambiente institucional e de indicadores macroeconómicos designadamente o défice orçamental e a dívida pública. A postura do governo em proclamar “blindado” o país e em ganhar tempo com o uso de linhas de crédito em obras de grande visibilidade, na perspectiva de eventual regresso à “normalidade” anterior das bonanças da ajuda internacional, não foi propícia a alterações de rumo. Os objectivos, métodos e abordagens continuaram os mesmos. Não se deixou que uma outra mensagem fosse captada pela sociedade. A crise como oportunidade de se renovar, de ganhar outro lento e de experimentar outras estratégias foi perdida.


O desempenho muito baixo de Cabo Verde na competitividade global faz-se sentir com particular gravidade na qualidade dos recursos humanos. Tirando as dificuldades no acesso ao crédito, a elevada tributação e a burocracia estatal ineficiente, o factor que mais negativamente afecta o ambiente de negócios é a inadequação da educação e formação da mão-de-obra nacional. Para um país sem recursos naturais apreciáveis, isso é particularmente grave. Países insulares e pequenas economias que se tornaram prósperos fizeram a aposta crucial no domínio de educação e da formação. No ranking de excelência mundial esforçaram-se por se situar entre os primeiros.


Os governantes caboverdianos aparentemente ficam pela auto-satisfação trazida pelos números conseguidos de alfabetizados ou de crianças e jovens a frequentar escolas e liceus. Sentem-se compensados com o brilharete que tais números, fazem comparações com certos países da África subsaariana. Agora até podem juntar a isso a dezena de universidades criadas em tempo recorde e o crescimento exponencial de estudantes no ensino superior. A realidade porém é que, como revela o relatório de competitividade, não se vê como esse esforço do Estado, das famílias e dos indivíduos pode estar a colocar o país no caminho do progresso.


Sem competitividade dificilmente se consegue atrair investimento directo externo e fazer face à crescente retracção de fluxos externos. Sem bases sólidas no ensino com enfase em competências linguísticas múltiplas e solidez de conhecimentos em ciências e matemática não há como absorver tecnologia e novos processos de produção essenciais para o aumento da produtividade. Sem um ensino de qualidade que dá bases para uma cultura ampla e universal ao mesmo tempo que incentiva o espírito inquisitivo e crítico não se pode esperar o desenvolvimento de capacidade de inovação.


Cabo Verde está com atraso de décadas quanto à educação e formação que a sua população já devia contar. Não devia ter sacrificado a qualidade no processo de democratização do ensino. É um sacrifício que que se paga com juros elevados, porque quando a expectativa de resultados medíocres ou mesmo medianos se instala, fica difícil reverter para uma cultura de excelência. Mas há que o fazer.


Nas vésperas do início de um novo ano lectivo há que compreender que o mundo não espera por nós. Em cinco anos de crise verificaram-se mudanças profundas na economia mundial. Muitas portas se fecharam mas outras novas se abriram. A urgência no agir, agora, é cada vez maior. O futuro do país e das novas gerações depende do nível tecnológico e de conhecimento que se puder incorporar e operacionalizar no aproveitamento das novas oportunidades.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 11de Setembro de 2013

quarta-feira, setembro 04, 2013

Deixar de assobiar para o lado



A frequência de actos criminosos e a natureza e brutalidade de crimes cometidos no país e em particular na cidade da Praia continuam a preocupar seriamente os cabo-verdianos. Relatos de assaltos, vários com arma de fogo, são cada vez mais alarmantes, porque se verificam em plena luz do dia e em lugares com ampla circulação de pessoas. Dificilmente passa-se um fim-de-semana sem o registo de um caso de homicídio. A percepção de que muitos dos crimes cometidos, sejam os de assalto como os de morte em ajustes de contas, estão associados ao consumo e tráfico de drogas não deixa ninguém sossegado. Todos sabem como noutras paragens situações similares evoluíram para pior porque não encaradas a tempo e combatidas de forma decisiva e efectiva.


A polícia continua a esforçar-se por passar a mensagem de que a criminalidade está a baixar. A última iniciativa foi a 27 de Julho em que dados de diminuição de ocorrências nas diferentes ilhas foram apresentados conjuntamente com um estudo da Afrosondagem que aponta para uma maior confiança e satisfação da população em relação ao trabalho da polícia. Constata-se porém que esse sentimento das pessoas não tende a perdurar por muito tempo. Desaparece rapidamente com o aparecimento de novos casos de crimes, alguns bastante chocantes. De novo volta o cepticismo e a impressão geral é que a situação criminal no país não está a melhorar.


A lei de uso e porte de armas já está em vigor, mas ainda não se conhecem as medidas que vão ser tomadas para limpar o país das armas que estão ilegalmente nas mãos das pessoas. Os assaltos à mão armada aumentam e casos de disparos contra pessoas e de mortes a tiro são cada vez mais frequentes. Também a apresentação, na segunda-feira, dia 2 de Setembro, ao tribunal de um grupo de nove pessoas que alegadamente se dedicavam a crimes variados como extorsão, sequestros e assassinatos a mando, não é de tranquilizar ninguém. Pressente-se aí a existência de uma economia subterrânea que recorre a métodos violentos de intimidação e punição para se fazer valer e florir.


Perante isso não se pode assobiar para o lado e esperar que a “maré” passe ou fique confinado a certos espaços. Os cidadãos esperam do governo medidas enérgicas e atempadas para que o mal não se espalhe e corrompa a sociedade no seu todo.





Lideranças equívocas


O destino das nações depende muito das lideranças que tiveram em momentos críticos da sua história. Países como Singapura, Maurícias e Botswana arrancaram no pós-independência com basicamente o mesmo rendimento per capita de muitos países africanos da África subsaariana. Hoje exibem uma prosperidade e desenvolvimento de país desenvolvido ou médio alto enquanto os outros quedam-se ainda entre o grupo de países menos desenvolvidos.


Compreende-se a diferença de percurso pela qualidade e visão da liderança. Botswana, apesar dos diamantes, não se deixou apanhar pela maldição dos recursos naturais e transformar-se numa cleptocracia. Optou pela democracia e pelo estado de direito e o desenvolvimento aconteceu com a dinâmica vinda do sector privado. Singapura e Maurícias fizeram da diversidade étnica e linguística factores propiciadores do desenvolvimento num meio institucional envolvente que, por ser regulado por lei, transmitia confiança, era previsível e promovia a meritocracia.


Muitos outros países apanhados por regimes de partidos únicos optaram por usar a ajuda externa e em alguns casos o petróleo e outras riquezas naturais para controlar a população e perpetuarem-se no poder. Em vez de uma liderança libertadora forneciam uma liderança opressiva que esvaziava o país da sua energia criativa, privilegiava a cultura da vitimização e desincentivava a iniciativa privada e o espírito de cooperação cívica e económica essencial ao desenvolvimento.


Cabo Verde nos seus 38 anos de independência perdeu demasiado tempo devido a lideranças que claramente não tinham o desenvolvimento como objectivo primeiro e central. Questões de Poder sobrepunham-se. Só assim é que se explica o atraso significativo do arquipélago quando comparado com outras realidades insulares.


O país precisa de lideranças libertadoras e visionárias. Certamente que quando se procura formar novos líderes a invocação da governação dos primeiros quinze anos só pode ser pela negativa. É o exemplo a não seguir mesmo que agora se esforça por dourar a pílula com milhões vindos do exterior.


Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 4 de Setembro de 2013