quarta-feira, março 19, 2014

Acordo de readmissão: os equívocos




Expresso das ilhas, edição 642 de 19 de Março 2014

Editorial

O “Acordo de Readmissão de Pessoas que Residem sem Autorização” com a União Europeia vai ser ratificado na próxima semana pela Assembleia Nacional. Com o voto dos parlamentares cabo-verdianos terminará o processo iniciado em 2007 com a Parceria para a Mobilidade, uma proposta da UE a dois pequenos países, Moldávia no Leste europeu e a Cabo Verde na costa ocidental africana, visando a resolução dos problemas de imigração ilegal no seu território. Na mesma sessão do Parlamente estará para ratificação também o acordo de facilitação de vistos, negociado em simultâneo com o acordo de readmissão, como incentivo para a sua aprovação e adopção.
Acordos de readmissão constituem de facto acordos de expulsão de imigrantes ilegais com recurso a procedimentos administrativos acelerados. Não são por isso bem aceites pelas populações onde há sempre quem aspire um dia a emigrar ou quem viva de remessas de familiares já emigrados. Compreende-se porque os governos resistem às pressões da UE e a negociações em que se ponderam custos e benefícios e que se arrastam por vários anos. Conforme o interlocutor e a sua força negocial relativa face à EU, assim os países são contemplados por facilidades na circulação dos seus cidadãos na Europa. O ideal é conseguir-se a isenção total de vistos como ficou assente no acordo recente com a Turquia. O mínimo é o que coube a Cabo Verde e que consiste na simples facilitação de vistos para entidades públicas e privadas e personalidades que já de alguma forma conseguiam vistos de curta duração sem muita dificuldade.
Em Cabo Verde o discurso oficial da apresentação da proposta da Parceria para a Mobilidade da EU teve desde do início de forma implícita e as vezes explícita a promessa da livre circulação na Europa. Considerando os milhares de cabo-verdianos já residentes na Europa, e os muitos desejosos de uma oportunidade para emigrar, só se pode imaginar o impacto que tal discurso provocou no país e nas comunidades emigradas. No meio do entusiasmo gerado, fez-se por esquecer o que afinal é fundamental do acordo de readmissão: a luta contra a presença de pessoas sem autorização de residência no espaço comunitário. Com o tempo, o discurso oficial ganhou outras nuances e a isenção de vistos passou para um objectivo a longo prazo mas ainda contemplava-se a emigração legal durante períodos pré-determinados. No arranjo final constata-se que se ficou pelo mínimo, muito aquém do imaginado ou do que a população entendeu que lhe foi dito quando lhe apresentaram a Parceria para a Mobilidade.
Comunidades com milhares de cabo-verdianos existem em vários países da Europa. Como emigrantes sofrem desproporcionalmente os efeitos da crise que assola a Europa desde 2008. Apesar das dificuldades dos últimos tempos, as remessas que enviam para o país, muitas vezes em solidariedade com os familiares, não têm alterado significativamente. Com o desemprego persistente as coisas tendem para o pior e em muitos casos é o próprio estatuto legal enquanto residente que pode ficar em causa. A possibilidade de serem expulsos num processo célere no âmbito de um acordo de readmissão é a surpresa que menos esperariam. Os benefícios de tal acordo dificilmente irão superar os enormes custos que eventualmente os nacionais que já estão no espaço europeu terão que suportar. A relação custo/benefício do acordo deveria ser ponderada publicamente de forma clara e transparente.
Cabo Verde é o primeiro país da África Subsariana que assina um acordo de readmissão com a União Europeia. Negociações com outros países, designadamente com o Senegal, arrastam-se não obstante toda a pressão da União Europeia. Não é de espantar que assim seja. O acordo além de acelerar o processo de expulsão de ilegais nacionais do espaço europeu também obriga a quem o assina a receber cidadãos de países terceiros em situação ilegal quando comprovado que partiram dos seus portos e aeroportos. Claramente que isso cria uma situação extremamente complicada. Se a Europa não consegue convencer os países de origem em os aceitar, quem espera que um país como Cabo Verde o poderá fazer. A Rússia nas negociações do acordo de readmissão com a UE obteve uma moratória de três anos para começar a receber cidadãos estrangeiros. Tempo para se preparar institucionalmente e negociar bilateralmente com os seus países de origem. 
Na próxima semana avança-se para a ratificação do acordo de readmissão sem que estudos e dados concretos sejam conhecidos do público quanto ao impacto que o acordo terá nas comunidades cabo-verdianas na Europa. Não se sabe qual o número de cabo-verdianos que poderão estar ilegais e ser expeditamente reenviados para o país com mulher e filhos menores. Não há previsão do número de estrangeiros em situação ilegal idos de Cabo Verde e que serão recambiados no âmbito do acordo. Ninguém conhece os preparativos, designadamente os institucionais, e os custos necessários já incorridos para se implementar o acordo. É evidente que o governo tem ainda muitas explicações a prestar à nação sobre esta matéria. Ficamos à espera.   

quarta-feira, março 12, 2014

Saltos em frente



 


Expresso das ilhas, edição 641 de 12 de Março de 2014
Editorial

O Primeiro Ministro José Maria Neves anunciou no passado dia 10 de Março um segundo fórum nacional de transformação “para traçar novos rumos para a nação”. O  I Fórum realizou-se em 2003 e foi, segundo ele, um “momento de importância transcendente” e serviu para definir “uma visão de futuro e traçar caminhos”. Hoje considera a missão cumprida com “o ultrapassar da fase de sobrevivência e caminhar para um desenvolvimento sustentado com base na competitividade”. O II Fórum diferentemente do Iº projectar-se-á não por dez anos mas por 15 anos realizando os objectivos de fazer Cabo Verde um país desenvolvido em 2030.
Nestas declarações do Sr. Primeiro Ministro chama logo a atenção o facto de essas datas desses fora transformacionais, 2003 e 2014, não coincidirem com os momentos em que o voto popular sufraga programas de governação. Tão pouco o tempo que exigem para a implementação dos respectivos planos estratégicos, 10 anos para o I Fórum e 15 anos para o IIº coincide com o mandato popular de 5 anos. É evidente que tudo isso briga com a própria noção de democracia no que respeita à legitimidade no exercício do poder: os mandatos fixos, a responsabilização pelos resultados e a prestação de contas, e a alternância na governação. Não se está propriamente no mundo dos “planos quinquenais sucessivos” e dos “grandes saltos em frente”.
 No nosso sistema democrático, o governo no início do mandato apresenta ao Parlamento um programa de governação válido por cinco anos baseado na plataforma eleitoral e nas promessas com que ganhou as eleições. Não se espera que venham criar fora que redefinam o programa aprovado na Assembleia Nacional e estendam o tempo para a consecução de objectivos para além da legislatura. A legitimidade democrática para se realizar o “o quê e como” tem que ser assegurada nos momentos certos. Tentar definir em fórum governamental o que compete de facto ao pleito eleitoral de 2016, não é curial. Apresentado sob a capa de consenso nacional e amparado na muleta do financiamento do Escritório das Nações Unidas poderá ser visto como tentativa de esvaziamento do indispensável debate sobre a situação actual do país e sobre propostas alternativas de governação que precederá à realização das eleições legislativas.
Quer-se também com o anúncio de um II Fórum proclamar que Cabo Verde estará a entrar numa nova etapa já com a devida preparação para ser um país desenvolvido em 2030. De facto, em 2014 Cabo Verde passa a ser considerado país de rendimento médio, significando isso essencialmente redução da ajuda externa e o fim do acesso a empréstimos concessionais. Com a graduação a rendimento médio assume-se que no país já existe estrutura produtiva diversificada, capacidade de atracção de capital directo estrangeiro em volume e qualidade que ultrapassam os fluxos da ajuda externa e credibilidade para se financiar no mercado internacional nos termos comerciais do mercado. A realidade, porém, é que talvez em demasiados casos, países que se graduam, depois vêem-se apanhados numa armadilha caracterizada por crescimento anémico, elevado desemprego e deterioração dos equilíbrios externos, o chamado “middle income trap”.
O ex-presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso numa entrevista recente ao jornal Público alertou para os riscos de mesmo um país colosso como o Brasil ser apanhado nessa armadilha. As razões para isso, segundo ele, estão no facto de não se ter dado continuidade às reformas estruturais e mudanças no ambiente de negócios que tornariam os serviços públicos mais eficientes, o capital humana mais produtivo e a economia globalmente mais competitiva. Adiamento das reformas deveu-se em parte à euforia dos anos dos altos preços das commodities, matérias-primas e produtos agrícolas. A factura veio depois com o baixo crescimento, desemprego e agitação social devido à quebra na expectativa das pessoas.
Em Cabo Verde, a euforia que atrasou reformas tem uma base ainda mais precária. Sustenta-se essencialmente na ajuda externa e no acesso a créditos concessionais que permitiram que o país parecesse moderno em betão e asfalto enquanto a administração pública permanecia ineficiente e hostil à iniciativa privada, deixava-se a base da economia afunilar-se ao turismo e permitia-se que o investimento na educação e na formação dos jovens não contribuísse grandemente para sua empregabilidade. Em consequência, no momento de graduação, a dívida pública situa-se oficialmente em 98% do PIB, o desemprego atinge os 16,8%, o crescimento económico limita-se a 1,5% do PIB e no ranking de Competitividade e do Doing Business, Cabo Verde está respectivamente na posição 122 em 148 países e 121 em 189 países. 
Impõe-se que os cabo-verdianos enfrentem a situação com toda a liberdade para melhor decidirem sobre que orientação futura dar ao país. Isso porém faz-se no período eleitoral próprio. Nenhum fórum dirigido pelo governo deve querer substituir o que deve ser o processo próprio para se debater a governação do país e a escolha de quem o deverá liderar. Fugas em frente para se procurar eximir de responsabilidades, para evitar o debate aberto dos problemas e impedir que propostas alternativas sejam abertamente apresentadas não deviam  merecer apoios ou patrocínios de ninguém.

terça-feira, março 04, 2014

Provocações no Parlamento



A sessão da Assembleia Nacional do mês Fevereiro terminou no meio de recriminações mútuas entre o partido do governo, o PAICV, e maior partido da oposição, o MpD, quanto à forma como os trabalhos parlamentares são conduzidos. À semelhança do que aconteceu em outras situações, o ambiente de tensão acabou por degenerar em incidentes com forte impacto negativo na opinião pública. A frequência com que estes incidentes vêm acontecendo interpela a todos. De facto, é de se perguntar quem poderá estar a beneficiar com a perda de credibilidade do centro do pluralismo no sistema político e da sede da fiscalização contraditória da acção do governo. Também deve-se perguntar se os incidentes resultam espontaneamente do exacerbar das tensões ou serão provocados com o objectivo de causar o maior estrago possível na imagem pública do Parlamento e dos deputados.

Curiosamente nota-se o grande esforço da comunicação política do governo e da sua maioria em culpar os deputados da oposição pelos incidentes. Aponta-se o dedo precisamente aos que aparentemente menos ganham com a perda de prestígio do único palco institucional que têm para se fazerem ouvir, para questionar o governo e para se apresentarem como alternativa de governação. Se a postura dos partidos da oposição em relação às iniciativas do governo se caracterizasse por um sistemático obstrucionismo, talvez a acusação até fizesse sentido. Mas a realidade é outra como se pode facilmente constatar. A generalidade das leis é votada sem voto contra e muitas vezes por unanimidade. Na mesma sessão plenária de Fevereiro, onde se verificaram os incidentes, nem uma única proposta do governo teve votos contra do partido da oposição, o MpD. Nas sessões anteriores, com excepção da lei do orçamento e uma outra lei aconteceu o mesmo. Mesmo leis requerendo maioria de dois terços dos votos passam muitas vezes sem qualquer dificuldade. Pergunta-se então onde está o problema?

Ânimos na Assembleia Nacional, em geral, agitam-se quando se trata da fiscalização dos actos da actividade do governo. E as razões são visíveis para todos. No debate, o governo mostra-se muitas vezes relutante em responder às interpelações da oposição. A maioria que o suporta faz uma espécie de barreira com questionamentos tendencialmente desviantes do tema em debate. Os deputados da oposição pressionados pelo relógio porque têm menos de um terço do tempo total reagem ao silêncio do governo e às pressões dos colegas da maioria. A tensão sobe em espiral e fica criado ambiente propício para actos provocatórios causadores de incidentes graves.

Um alvo favorito das provocações é o Dr. Carlos Veiga, como se viu na semana passada. Assim é porque se insiste em discussões intermináveis no Parlamento sobre a década de noventa. Tais discussões iniciadas na maior parte dos casos pelo governo e a sua maioria têm o condão de desviar completamente o foco do debate. Os sujeitos parlamentares, em vez de se incidirem sobre as questões presentes e futuras do país, entretêm-se a mirar num passado que nunca é o mesmo todas as vezes que se vai visitá-lo com os olhos do presente. Esse exercício estéril tem a agravante de quase sempre desembocar em provocações dirigidas ao Dr. Carlos Veiga pelo seu protagonismo enquanto primeiro-ministro nas grandes transformações políticas e económicas dos anos noventa. E daí nunca sai coisa boa, como se constatou há dias.


A estabilidade do sistema democrático depende em muito do respeito pelos direitos dos indivíduos e das minorias e do pleno exercício pelas instituições das suas competências próprias. Na ausência disso, corre-se o risco do sistema degenerar facilmente numa tirania da maioria. O governo é politicamente responsável perante a Assembleia Nacional. Não pode fugir ao questionamento dos deputados e ao seu dever de prestação de contas. Quem quer que seja que obstaculiza esse dever básico de os governos se justificarem com resultados a implementação do seu programa e o cumprimento de promessas eleitorais não pode arrogar-se em defensor das instituições da democracia.

O Parlamento como órgão plural e centro do contraditório é fundamental para a democracia. Ao seu presidente, embora originariamente deputado da maioria, exige-se que dirija os trabalhos com isenção e imparcialidade, mas com especial preocupação pela realização plena dos direitos das minorias parlamentares constantes do regimento designadamente os de interpelação e de perguntas ao governo e o de instauração de inquéritos parlamentares. Também deve saber gerir bem a relação entre o governo e o parlamento. O governo é sujeito parlamentar mas não é membro da Assembleia Nacional e tem o dever de prestar contas. O presidente deve procurar conduzir as reuniões plenárias de modo a que a formalidade dos procedimentos e o respeito e a deferência mútuas entre os sujeitos parlamentares garantam maior eficácia aos trabalhos. Não deve deixar qualquer espaço para provocações que, aproveitando-se da tensão normal dos debates, crie incidentes graves. A boa imagem e a eficácia da actividade parlamentar dependem em grande medida da confiança que todos depositarem na capacidade do presidente em assegurar-se que a AN é o órgão legislativo por excelência e o principal fiscalizador da acção do Governo. Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 4 de Março de 2014

quarta-feira, fevereiro 26, 2014

Fetiche pelo betão e alcatrão


A Sessão Plenária de Fevereiro na Assembleia Nacional tem sido dominada pela discussão entre os partidos e o governo sobre as obras públicas no país. O MpD requereu uma interpelação ao governo sobre a gestão e execução de obras públicas de infra-estruturas 2001-2012. O relatório da Comissão de Inquérito requerido pelo PAICV e incidindo sobre um período de mais de vinte anos será debatido pelos deputados. Não há grandes novidades nos argumentos esgrimidos pelas partes. O governo e o partido que o suporta esforçam-se por demonstrar que obras são sinal inequívoco de progresso. Os partidos de oposição contrapõem que os resultados dos enormes investimentos, que já vão em mais de um bilhão de dólares, ficam aquém do anunciado e que o impacto dos mesmos no crescimento económico e na criação do emprego está muito abaixo do satisfatório.

Obras públicas é a grande tentação dos governos. Construir estradas, portos, aeroportos, escolas, hospitais, passa a ideia de um governo com visão, com vitalidade e com capacidade de execução. Os cidadãos e a sociedade são facilmente apanhados no ambiente criado por grandes expectativas e por um futuro prenhe de possibilidades. As várias fases dos projectos, desde do seu anúncio ao país, passando pela engenharia financeira, lançamento de primeira pedra, visitas regulares de governantes até à inauguração com “pompa e circunstância” ajudam a criar no público toda uma aura de transformação e de mudança radical para uma vida melhor. A facilidade como vários desses empreendimentos posteriormente se tornam elefantes brancos, deixa perceber que algo não correu bem. A infraestrutura criada ou não favoreceu alguma vantagem comparativa já existente, ou não permitiu, como desejado, a exploração de recursos naturais, ou não baixou os custos de factores como energia e água, ou não facilitou o acesso a mercados expressivos ou ainda em muito pouco contribuiu para a melhoria da competitividade dos agentes económicos à sua volta. De qualquer forma, as esperanças postas na sua edificação acabam por não se realizar plenamente. Falhas repetidas nesse sentido porém não impedem alguns governos de insistir nas mesmas práticas.

Há quem pense que construir infraestruturas é mais fácil do que criar ambiente institucional adequado para a iniciativa individual e empresarial. Que fazer obras não tem a complicação de lutar contra os interesses instalados em vários pontos nevrálgicos do país que contrariam reformas dirigidas para a maior eficiência e produtividade na administração pública, nas câmaras municipais, na gestão dos portos e aeroportos, nos transportes aéreos e marítimos, na produção de energia e água e nas telecomunicações. Que edificar escolas e liceus não tem as dificuldades e a complexidade das acções necessárias para implementar uma política de qualidade e excelência no ensino. E que inaugurar centros de formação profissional não exige tanto como conceber e executar cursos adequados às necessidades do mercado e afinados para dar maior empregabilidade aos jovens. Os governos insistem nestes métodos porque os ganhos de curto prazo, em grande parte de natureza política e eleitoral, compensam largamente o risco de, a médio e longo prazo, o empreendimento vir a ficar aquém das expectativas e não garantir o retorno necessário para pagar o investimento realizado.

Um Deputado do PAICV afirmou no Parlamento que na inauguração de estradas a alegria dos condutores e das pessoas do povo não as deixava que se preocupassem minimamente com o dinheiro metido nas obras. Brandiu esse argumento contra qualquer eventual objecção da oposição quanto ao processo de financiamento, opções na execução e custo final. Os ganhos políticos de alimentação do fetiche pelo betão e o asfalto são aparentemente tão grandes que cegam perante as duras consequências que políticas semelhantes tiveram recentemente em países como Portugal. Para os portugueses e para a economia portuguesa o reajustamento, na sequência de governos que abusaram do asfalto e do betão para mostrar resultados e paralelamente não fizeram as reformas estruturais que se impunham, tem sido altamente doloroso.

A euforia com as obras em Cabo Verde continua. Como foi dito no Parlamento, hoje todos parecem fiscalizadores de obras: uns a criticar, outros a reivindicar mais e outros ansiosos por inaugurar. O fetiche tomou conta de todos. O exemplo de outros países que depois da euforia passaram por tempos difíceis não quebra o encantamento. Nem tão pouco o facto do bilhão de euros investido em infraestruturas não ter baixado o desemprego, não ter fortalecido o sector empresarial e não ter sido factor de atracção de capital directo estrangeiro. A mágica do momento nem permite que se veja a dívida pública acumulada e os défices públicos que conjuntamente diminuem as opções de futuro para quem quer investir, empreender e de qualquer outra forma contribuir para a prosperidade do país. Espera-se que o reajuste inevitável, que provavelmente se seguirá, não seja dolorosa e que o país encontre os caminhos certos para uma maior produtividade, crescimento e mais emprego.


Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 26 de Fevereiro de 2014

quarta-feira, fevereiro 19, 2014

Glorificação do partido único



A guerra das datas continua. O líder parlamentar Felisberto Vieira quer que o dia 19 de Fevereiro de “abertura política” do então partido único PAICV seja comemorado a par com o 5 de Julho, dia da independência nacional, e o 13 de Janeiro dia da Liberdade e Democracia. Em conferência de imprensa na terça-feira, dia 18 de Fevereiro, anunciou que o seu partido vai celebrar com várias actividades a data em que se criou “espaço para instauração do regime multipartidário” e convidou todos os cabo-verdianos a assinalarem a efeméride como um dos “momentos marcantes da libertação de Cabo Verde”.


É evidente que o brandir do 19 de Fevereiro como data de celebração nacional visa despojar a sociedade cabo-verdiana do seu protagonismo na queda do regime do partido único e apresentar a liberdade e a democracia conquistadas pelo povo como dádiva de ditadores. A história, porém, não regista agradecimentos pelos que, ao fazer fuga em frente, no intuito de se manterem no poder, soltam forças sociais e políticas que os faz cair do pedestal e prosseguem restaurando direitos fundamentais dos cidadãos e devolvendo o poder soberano ao povo. Vinte anos passados, e já em democracia, não deixa de ser preocupante e inquietante ver o partido do governo insistir na glorificação das manobras de um partido único que na época procurava assegurar a sua sobrevivência num ambiente internacional crescentemente hostil a regimes totalitários e autoritários.


De facto, neste ano de 2014 não se celebram as tentativas feitas pelo Ceausescus, Honeckers e Jaruzelskis para conservar o poder. Nem mesmo Gorbachev é relembrado. Comemoram-se sim os quarenta anos da Revolução das Flores em Portugal. A importância da efeméride está no facto de que o golpe de estado militar do 25 de Abril desencadeou o que o cientista político americano Samuel Huntington chamou da Terceira Vaga da Democracia. Nos vinte anos seguintes muitos regimes autoritários e totalitários seriam substituídos por democracias. Até o inimaginável aconteceria: o derrube do império soviético e do domínio comunista na Europa de Leste.


Cabo Verde como parte do império português sentiu as lufadas de ar fresco trazidas pelo 25 de Abril mas a grande vaga da democracia acabou por passar ao lado. A liberdade respirada no pós-golpe em 1974 rapidamente reduziu-se à medida que o PAIGC autoproclamado único representante do povo da Guiné e Cabo Verde confinava os adversários e posicionava-se para receber sozinho o poder das mãos das autoridades portuguesas. A partir da independência a 5 de Julho de 1975, Liberdade e Pluralismo político foram efectivamente suspensos por um regime ditatorial chamado de partido único até que a vaga de democracia já na sua segunda fase simbolizada pelo derrube do Muro de Berlim em 1989, tornou insustentáveis esses regimes. Nos fins dos anos 80 e inícios dos anos noventa o mundo pôde observar fascinado à queda dos dominós dos regimes e partidos de inspiração leninista em todos os continentes.


Passados todos estes anos, o normal seria que reinasse consenso sobre os princípios e valores liberais e democráticos consagrados na Constituição da República. Certamente que não deveria haver qualquer espaço para elogio de actos do partido único e seus dirigentes que na lógica das coisas só serviam para o perpetuar no poder e manter a sua supremacia sobre os cabo-verdianos enquanto força dirigente da sociedade e do Estado. Insistir no resgate das suas acções e políticas não pode deixar de ter um efeito desestabilizador no país. Vindo de quem está a governar e exerce influência preponderante sobre o Estado, sobre os meios de comunicação social públicos e o sistema educativo do país, acaba por ter um efeito constrangedor no abraçar pleno dos valores da liberdade e da democracia e por brigar com a existência de uma academia livre, designadamente no domínio das ciências políticas e sociais. Neste particular, relembra os efeitos nocivos que nos Estados Unidos certas crenças religiosas e teorias acientíficas sustentadas por alguns grupos políticos têm sobre os indivíduos, a sociedade e o sistema de ensino.


Lá como cá, o ambiente político que se cria com tais fugas à realidade dos factos não é o de consenso como pretende o líder parlamentar ao apelar que se tome como datas nacionais actos de pura sobrevivência do então partido único. Realmente o que se reproduz é um ambiente de crispação e intolerância, de lutas ideológicas sobre temas anacrónicos e guerrilha política permanente. Em Cabo Verde, é só ver o ridículo que é o ataque selvagem sistematicamente feito ao processo de construção das instituições democráticas nos anos noventa enquanto se procuram razões para glorificar as políticas do partido único.


Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 19 de Fevereiro de 2014 Humberto Cardoso

quarta-feira, fevereiro 12, 2014

Modismos


Na semana passada, ao longo dos três dias do African Innovation Summit, a esfera pública cabo-verdiana foi dominada pelo discurso eufórico do papel que a inovação poderá ter como motor do desenvolvimento. Espera-se que o evento não seja mais um dos muitos exercícios em realidade virtual que o país já se habituou. Também se espera que a ideia da inovação, a exemplo do que aconteceu com competitividade, agenda de transformação e empreendedorismo, não passe a ser simplesmente parte de uma retórica política sem qualquer tradução prática. Os sinais porém não são animadores. Actos subsequentes como o acordo entre o NOSI e a WARI senegalesa para utilização dos serviços do futuro Data Center e o anúncio do Fundo de Capital de Risco “com taxa de retorno de 16%” dão impressão de déjà vu, de pressa e de preocupação em extrair o máximo impacto mediático numa coreografia que visa essencialmente relações públicas. Teme-se que se fique por aí e que depois não haja comprometimento sério na operacionalização das políticas de inovação.

Na situação actual de fraqueza económica, de dificuldade de acesso ao crédito e de ambiente de negócios pouco favorável, o sector privado nacional provavelmente olhará com algum cepticismo para este novo foco de entusiamo do governo. Afinal, desde de há mais de dez anos que Cabo Verde tem um ministério de competitividade sem que o país realmente consiga ficar pelo menos entre os 100 países mais competitivos do mundo. Está-se num fim de um ciclo de forte investimento público no quadro de uma propalada agenda de transformação e o que se vê é um crescimento anémico de 1.5 % em 2013, uma dívida pública a rondar os 100%, taxa de desemprego mais elevado de sempre e demasiadas empresas em situação precária. O governo prega empreendedorismo mas pouco faz, de forma compreensiva e no tempo certo, para ter uma administração mais sensível e atenta às necessidades dos utentes, para deitar abaixo barreiras institucionais custosas e para preencher vazios e reparar falhas que dificultam a dinâmica económica. A inovação pode vir a configurar-se como mais um modismo. Aliás num dos sectores onde se podia esperar mais actividade que é o das tecnologias de informação e comunicação (TIC) o Estado tem ficado muito aquém do desejado na promoção da iniciativa individual e na criação de condições para o surgimento e amadurecimento de empresas e o desenvolvimento de mercados especializados. Que o digam os muitos jovens que procuraram investir no sector e desistiram.

Cabo Verde, no relatório de competitividade do fórum económico mundial, está na categoria de países em que a eficiência na utilização dos recursos do capital e do trabalho e o desenvolvimento dos mercados constitui o motor do crescimento económico. Referenciando-se pelo modelo de Michael Porter pode-se dizer que Cabo Verde já passou pelo período em que o preenchimento de requisitos básicos em instituições, infraestruturas, estabilidade macroeconómica e educação básica bastava como motor do crescimento, mas ainda não chegou ao ponto em que a inovação assume o papel de locomotiva principal em garantir desenvolvimento sustentável. Certamente que os cabo-verdianos, ansiosos por ver o seu rendimento aumentar com uma maior dinâmica na criação de riqueza e de empregos, gostariam de ver o governo mais focalizado em fazer de Cabo Verde um país mais eficiente. Ganhos enormes resultariam de uma cultura de eficiência na administração pública, nos municípios, nos portos, na produção, distribuição e consumo de electricidade e água, nos transportes inter-ilhas, na educação e saúde e noutros domínios. Singapura até a crise de 1997 concentrou grande parte do seu esforço em ser modelo de eficiência e com isso atingiu patamares de crescimento e emprego invejáveis. Desde há mais de dez anos que a sua atenção voltou-se para a promoção da inovação como forma de responder à concorrência de outros países que, entretanto, se tornaram igualmente eficientes e de se adaptar às novas mudanças na estrutura produtiva mundial e no comércio internacional.

Claro que as várias fases no modelo de Porter não são estanques. A inovação favorece o crescimento a todo o momento. Ganha a qualidade shumpeteriana de destruição criativa em economias mais maduras na medida em que altera radicalmente processos, origina novos produtos e cria mercados anteriormente inexistentes. Isso só acontece, porém, em ambientes abertos ao pensamento crítico e criativo e promotores de ideias plurais e estilos de vida diversos e também naqueles em que prevalece o espírito de colaboração e de livre troca de ideias até entre potenciais rivais e concorrentes. É evidente que subjacente a isso deverá estar uma sociedade de conhecimento na qual o ensino e a formação técnica e profissional terão atingido níveis de excelência e na qual uma cultura do mérito e o respeito pela propriedade intelectual tenham sido firmemente estabelecidos.

Por aqui se vê que Cabo Verde tem ainda um longo caminho a percorrer. É importante que o faça ciente dos enormes desafios que tem pela frente. A procura de eficiência deve ser permanente. A inovação, considerando os riscos que normalmente acarreta, dificilmente se afirmará como motor de crescimento se a cultura de eficiência não estiver já consolidada.


Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 5 de Fevereiro de 2014 Humberto Cardoso

quarta-feira, fevereiro 05, 2014

Na política não vale tudo


Volta e meia a questão do programa “Casa para Todos” reaparece e domina a comunicação social durantes alguns dias. Às vezes são anúncios de mais construções e de mais lançamentos de primeira pedra. Outras vezes são visitas feitas às obras por membros do governo, deputados etc. Ainda outras vezes são inaugurações de complexos de habitações nas diferentes ilhas. Recentemente grande publicidade foi dada ao processo de seleccionamento de candidatos através de lotarias televisionadas com pompa e circunstância. Nos intervalos entre esses eventos, ou na sequência dos mesmos, frequentemente o assunto entra no discurso político e emerge em acusações mútuas feitas através da comunicação social pelo governo, pela oposição e pelas câmaras municipais. O governo acusa a oposição de ser contra o programa e as câmaras de o obstaculizarem. A oposição critica a inadequação do programa para responder aos problemas habitacionais do país e às necessidades de habitação condigna dos cabo-verdianos. A realidade é que depois de três anos do “Casa para Todos” e centenas de apartamentos construídos e inaugurados poucos dos formalmente entregues já foram realmente habitadas.

O Presidente da IFH em declarações à Inforpress revelou que das 36 moradias na Boa Vista, inauguradas há mais de um ano, quatro estão ocupadas e vinte estão em processo de financiamento. Para os pré- seleccionados das restantes doze que não preencheram os requisitos mínimos para financiamento, procura-se uma solução de arrendamento. A situação na Boa Vista deve ser análoga ao que se passa em S.Vicente, na Praia e noutras ilhas. O complexo da Ribeira Julião em S.Vicente inaugurado em Dezembro de 2012 assim como também o do bairro de Tira- Chapéu seis meses depois e outros noutras ilhas ainda estão por ocupar.

Claramente que a maior das dificuldades em todo o processo de ocupação das moradias tem essencialmente a ver com o acesso ao empréstimo bancário para as adquirir. Muitos candidatos pré-seleccionados não têm crédito junto dos bancos e outros aparentemente deparam-se com a relutância dos bancos em conceder crédito a privados no ambiente actual de enfraquecimento da economia e de aumento do desemprego. De acordo com o último Relatório (Novembro de 2013) sobre a Política Monetária do Banco Central, os bancos nacionais com a compra de títulos de dívida pública têm demonstrado preferência em financiar o sector público em detrimento do sector privado. As razões para isso estariam na percepção de riscos macrofinanceiros associados que naturalmente tendem a aumentar num ambiente de persistência dos défices gémeos (orçamental e conta corrente) e da dívida pública pesada, demasiado próxima dos 100% do PIB.

Face a uma realidade tão clara quanto às dificuldades de eventuais interessados em aceder às moradias do programa “Casa para Todos” não é curial que o Governo e seus apoiantes partidários e institucionais insistam em desviar a atenção do problema e em procurar algures os culpados. As câmaras municipais são os bodes expiatórios preferidos. Durante toda a semana passada foram fustigadas no Parlamento e na comunicação social com a acusação implícita de que estariam a perturbar gravemente a entrega das casas com o atraso na regularização dos terrenos. É evidente pelas declarações acima citadas da direcção da IFH de que mesmo que a burocracia municipal funcionasse perfeitamente o empecilho maior do crédito bancário continuaria a existir. Porque então vir com as acusações às câmaras? É evidente que o objectivo é politizar. Politizando as questões, campos partidários irredutíveis formam-se imediatamente e os que não se reconhecem nem num campo nem no outro optam por não se exprimirem para não serem apanhados no fogo cruzado. O debate público nem chega realmente a iniciar-se. A democracia e o pluralismo saem prejudicados com essas tácticas inibidoras de uma participação activa dos cidadãos na discussão de questões fundamentais para o país.

Quando nas vésperas das eleições de 2011 o governo lançou-se no programa “Casa para Todos” era evidente para qualquer observador atento que algo não batia certo. O financiamento não resultava da alavancagem da poupança interna dos que poderiam vir adquirir as casas. O crédito para o programa veio do exterior somando-se à divida externa. Pior, os termos do uso das linhas de crédito favoreciam em mais de 60% a importação de materiais de construção e de outros materiais de origem portuguesa. Empresas portugueses deviam ser maioritárias nos consórcios criados para a construção das moradias e não se submetiam a quaisquer requisitos na contratação de pessoal nacional para obras. Não espanta que mais três anos depois o desemprego tenha atingido os valores mais altos de sempre, que os privados particularmente no sector da construção se debatem com dificuldades e que construções já prontas não encontrem compradores. Sem criação de riqueza suficiente no meio de um ambiente económico de crescimento anémico, as pessoas não têm meios próprios os nem se sentem confiantes para investir em casa própria. O governo deve assumir as suas responsabilidades com o imbróglio criado pelo “Casa para Todos” e deixar de culpar outros e de procurar co-responsáveis para a situação actual. Não vale tudo na política e do governo espera-se que a sua relação com a nação seja sempre norteada pela verdade, lealdade e honestidade e sentido de responsabilidade.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 5 de Fevereiro de 2014 Humberto Cardoso

quarta-feira, janeiro 29, 2014

Ponto de viragem na Uni-CV?


A eleição do Reitor da Uni-CV no próximo dia 31 de Janeiro pode vir a revelar-se um ponto de viragem nos destinos da universidade pública de Cabo Verde. Desde logo, espera-se que a Uni-CV comece a trilhar um caminho de maior autonomia designadamente nos aspectos científico, pedagógico, a administrativo e financeiro. Os professores, alunos e funcionários que irão votar no novo reitor têm a oportunidade e a responsabilidade de seleccionar a melhor via de fazer essa instituição académica ir ao encontro das grandes expectativas nela depositada. A existência de três candidatos e a dinâmica gerada na discussão das respectivas plataformas programáticas augura que, independentemente de quem for escolhido, uma nova vida impulsionará as actividades da Uni-CV. O futuro do ensino superior em Cabo Verde depende muito do que a universidade pública conseguir ser e realizar.

Os sucessivos adiamentos do momento para habilitar a Uni-CV com uma direcção eleita, não obstante os prazos legais estabelecidos para o efeito, deixam transparecer alguma relutância da parte do governo em libertá-la de uma tutela estrita. A suspeita quanto à intenção do governo em manter mão pesada sobre a universidade ganhou peso com a transformação do então reitor em deputado e logo depois em ministro de um novo ministério de tutela da universidade. Não ajudou que, nos seus primeiros actos, o novo ministro e ex-reitor tivesse adiado as eleições e nomeasse directamente um reitor apesar dos protestos generalizados na comunidade académica. Não escapa a qualquer observador atento a atracagem da Uni-CV à agenda do governo. Em causa ficou a independência da instituição face ao poder político, condição indispensável para que as universidade realizem o grande objectivo de se afirmarem como centros de discussão livre de ideias e de manifestação de correntes filosóficas, estéticas e cientificas e também como centros de criação intelectual e de ensino.

A sociedade cabo-verdiana confronta-se actualmente com a situação de ter, em pouco mais de cinco anos,milhares de jovens com licenciatura à procura de emprego num ambiente que olha com desconfiança para os seus diplomas. Formados na dezena de “universidades” que rapidamente se instalaram nos últimos anos, deparam-se com um aparelho do Estado já sobrelotado e com uma economia incapaz de criar postos de trabalho em volume e ritmo desejados. A coroar essas dificuldades constata-se significativa desadequação entre as áreas de formação escolhida ou disponibilizada pelas escolas superiores e as necessidades do mercado de trabalho. A deficiente empregabilidade dos cursos e a fraca qualidade dos mesmos tem sido uma grande fonte de frustração dos jovens e também das suas famílias. Muitos fizeram sacrifícios extraordinários para que os filhos pudessem completar um curso superior e ambicionar uma vida melhor. Vê-los sem esperança de realizar o sonho dilacera a alma e representa encargos acrescidos seja nos pagamentos dos empréstimos seja no sustento continuado dos filhos ainda sem rendimentos próprios.

Nos anos da década passada vivia-se uma euforia. Todos pareciam congratular-se com a capacidade autóctone de criar universidades e por essa via absorver os milhares de jovens que quase em enxurrada saíam das mais de três de dezenas de liceus espalhados pelo país. No meio do entusiamo muitos não quiseram notar que economia não tinha criado empregos suficientes para os jovens com liceu completo. Nem tão pouco prestaram atenção à baixa qualidade do ensino das ciências e matemática e à fraca competência linguística a começar pelo português. O governo tinha abandonado qualquer esperança de cumprir a meta do crescimento a dois dígitos e desemprego a um dígito. Interessava ocupar os jovens e o prosseguimento dos estudos em universidades era a solução ideal para se diminuir a tensão social. As eleições estavam à porta. A universidade pública deu o mote e as outras seguiram em facilitar o ingresso nos cursos superiores. Naturalmente que algo teria que ser sacrificado. A celeridade com que se criavam cursos não podia deixar de pôr em causa a sua qualidade e adequação ao mercado de trabalho.

Os objectivos políticos provavelmente foram conseguidos, mas com prejuízo enorme para o grande objectivo de se ter uma universidade pública e um ensino superior em Cabo Verde à altura dos seus desafios. País sem recursos naturais, Cabo Verde depende da utilização óptima dos seus homens e mulheres. Sem ensino de qualidade, sem capacidade de desenvolver pensamento crítico e criativo e sem uma cultura de excelência, dificilmente será possível conseguir os níveis de crescimento de produtividade necessários para criar riqueza e propiciar prosperidade futura. Manter a universidade sob rédea curta do poder político centralizador, ajuda a cultivar o conformismo, a mediocridade e o carreirismo, quando o que se precisa é de espírito criativo, empreendedor e focalizado nos resultados. Que as eleições de 31 de Janeiro façam soltar as amarras da universidade pública e a deixe cumprir o papel que dela se espera num Cabo Verde livre e próspero.


Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 29 de Janeiro de 2014 Humberto Cardoso

quarta-feira, janeiro 22, 2014

Reformatar o Governo



Um dos dísticos dos manifestantes do 20 de Janeiro último convidava a um click no “sim” para se formatar o governo. Denotava a impaciência geral para com a postura do governo no tratamento de um conjunto de questões. Os governantes repetem várias vezes que querem diálogo, mas para além de encontros mediáticos que mais parecem exercícios de relações públicas pouco ou nenhum avanço se nota. Questões concretas como o emprego e o crescimento económico arrastam-se sem que se vislumbre saídas para a actual situação de diminuição do investimento público e de recuo do investimento privado nacional e estrangeiro. As pessoas e a sociedade começam a dar sinais de cansaço e já há quem peça uma mudança séria na relação entre governantes e governados.


Na semana passada, por exemplo, houve encontros com os sindicatos por iniciativa do Primeiro Ministro. Esperava-se diálogo que mas não deram em nada. O PM há muito que dissera que a manifestação marcada não tinha razão de ser. E aos sindicatos aparentemente não foi apresentado qualquer elemento novo que os pudesse dissuadir da intenção de organizar o protesto público. Simulações do género têm-se tornado demasiado habituais variando os interlocutores. Desta vez foram os sindicatos, mas de outras vezes os convidados tinham sido as câmaras de comércio, associações empresariais, partidos políticos da oposição e até confissões religiosas. Para além do ganho político imediato do governo em parecer dialogante não se vêem resultados dessas idas ostensivas ao palácio do governo.


O entendimento que o governo tem da sua relação com a sociedade e com os vários actores sociais ficou mais uma vez patente no discurso de apresentação de cumprimentos ao Presidente da República. O Primeiro Ministro apresenta um “Estado forte, visionário, estratega, regulador e catalisador da dinâmica reformista e transformacional” que para realizar o bem comum exige dos cidadãos “deveres e responsabilidades”. Ao longo de todo o discurso o PM esforça-se por mostrar que se imputa ao Estado falhas e fracassos mas que o défice, de facto, é de diálogo, tolerância e responsabilidade. Partindo do princípio que não está a fazer autocrítica, esse apontar de dedo do PM só pode estar a dirigir-se para sociedade e para os agentes económicos sociais e políticos. Da mesma forma que para aí é que vão as referências ao “facilitismo e demagogia” também presentes no discurso.


Curiosamente para o PM o comprometimento político para o emprego e o crescimento não é produto de um processo político negocial em que interesses de vários intervenientes, livremente expressos, se adequam para atingir objectivos acordados. Resulta sim da aceitação com “sentido de dever e responsabilidade” e sem questionamento pelos parceiros do papel que o Estado com a sua agenda de transformação lhes confere. Não há negociação, mas sim anuência ou mesmo capitulação perante as propostas do governo. Consenso significaria isso mesmo.


No domínio político tem sido essa a prática com os partidos da oposição. Simulacros de diálogo alternam-se com momentos de crispação num jogo sem fim. Tudo para que a posição do partido, que já se vê hegemónico, prevaleça mesmo nas situações em que a exigência de maioria de dois terços obrigaria a acordo entre as partes. As mesmas tácticas aplicam-se nas relações com os parceiros sociais. Viu-se recentemente no conflito com as farmácias como se sacrificaram desnecessariamente os utentes só para marcar um ponto político: sustentabilidade do INPS nos termos pretendidos pelo governo. Também deixam-se transparecer nas acusações a jovens desempregados de não quererem trabalhar e ao sector privado de não querer investir. Aponta-se o dedo enquanto o governo faz orelhas moucas para a necessidade de garantir que os investimentos públicos produzam maior número de empregos para nacionais e sirvam de impulso para a actividade empresarial local. Nos casos que se arrastam de devolução do IVA, de retorno do IUR e outras arbitrariedades do fisco a “Raison d´État” da necessidade de receitas prevalece sobre as considerações como viabilidade de empresas e o reforço do poder de compra de muitos com fraco rendimento. O argumento é brandido mesmo quando o relatório do FMI vem provar que as dificuldades actuais advêm em boa parte da ineficácia da administração tributária em arrecadar os impostos legalmente estabelecidos.


Sente-se no discurso do governo e de alguns próximos o ênfase posto na legitimidade da maioria em governar sem grandes constrangimentos. Peca por excesso quando implica que: 1. Indivíduos e sociedade civil devem quedar-se por deveres e responsabilidade na realização da visão e das políticas da maioria governativa; 2. A autonomia de acção e a liberdade em fazer conhecer interesses diversos devem ser coarctadas; 3. A crítica deve ser “construtiva” e o assacar de responsabilidades deve limitar-se ao momento das eleições. Há autores que chamam a construções similares de democracia totalitária. Tendem a aparecer sempre que os partidos deixam de se se ver em pé de igualdade com outros num processo plural de definição do interesses público e pensam ser a incarnação do bem geral. A partir daí traçam um caminho e esperam que os outros assumam os papéis distribuídos. As manifestações do dia 20 demonstram que o sentimento geral em Cabo Verde é que não é essa a via a seguir. A opção dever ser clickar no sim e reformatar a governação do país.


Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 22 de Janeiro de 2014 Humberto Cardoso

quarta-feira, janeiro 15, 2014

Espectro do passado que não passou

Como tratar o passado ainda fresco na memória colectiva de regimes autoritários e totalitários é um dos maiores desafios com que se defrontam as sociedades quando dão os primeiros passos na construção da democracia. A procura de um futuro de liberdade e prosperidade irá implicar que a sociedade no seu todo se mova para além do seu passado, sem carregar o lastro, mas também sem cair na tentação fatal do acerto de contas. A história mostra que se consegue fazer isso com justiça e com equilíbrio se o passado não for tratado de forma despiciente ou simplesmente ignorado. Nelson Mandela, na sua luta pela Liberdade, igualdade e democracia na Africa do Sul, por várias vezes deixou claro que a reconciliação nacional só se verificaria se o passado fosse confrontado com a verdade. A criação da Comissão de Verdade e Reconciliação presidida por Desmond Tutu significou que podia haver perdão para os perpetradores de abusos, mas nunca esquecimento de factos históricos devidamente estabelecidos por mais horríveis ou trágicos que tivessem sido.

Em Cabo Verde todos os anos por altura do feriado nacional de 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e de Democracia, opera-se uma espécie de esquizofrenia nacional em que são protagonistas os principais órgãos de soberania. A Assembleia Nacional onde estão os representantes de todo o povo recusa-se a celebrar o feriado nacional que ela própria instituiu em forma de Lei. A Presidência da República, outrora completamente omissa, passou desde da eleição do Dr. Jorge Carlos Fonseca a marcar o 13 de Janeiro com actos oficiais e mensagens do presidente. O governo, em regra, organiza eventos díspares, mas sem a dignidade de uma comemoração de Estado. Sem cerimónias oficiais, os partidos políticos informalmente desdobram-se em actividades que em muitos casos simplesmente reeditam a guerrilha à volta da interpretação do processo da mudança do regime. Este ano o Sr. Primeiro-ministro, como que a acordar de um longo sono, veio dizer que é preciso “dar mais dignidade” ao 13 de Janeiro. Aparentemente não se lembrou de influenciar a maioria que o seu partido detém na Assembleia Nacional no sentido de se acabar com o bloqueio na realização da sessão solene que é tradição nos parlamentos democráticos, designadamente em Portugal e Espanha quando se celebra a liberdade, o pluralismo, a democracia e a Constituição.

A oposição à celebração condigna e de Estado do 13 de Janeiro usa a proximidade do aniversário do assassinato de Amilcar Cabral, 20 Janeiro, também feriado nacional, para diminuir ainda mais o 13 de Janeiro. Este ano, logo no dia 14, o Ministério de Educação iniciou uma semana Amilcar Cabral em todos os estabelecimentos do país numa acção que relembra os actos de doutrinação de crianças e jovens do antigamente. O ministério finge ignorar que a Constituição explicitamente proíbe o Estado de impor nas escolas “directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas” (alínea c do artigo 50º). Por outro lado, não acata a recomendação da Constituição. nº 2 f) art. 78, quanto à promoção dos valores da democracia, valores esses nas antípodas dos presentes no pensamento de Amilcar Cabral que reconhecidamente é de extracto marxista-leninista.

Todos os anos cria-se um imbróglio na celebração dos feriados de Janeiro. Este ano não é diferente, apesar dos esforços do actual presidente da república com a sua mensagem no 13 de Janeiro e a deposição de flores no monumento aos heróis nacionais no dia 20 de Janeiro, entre outros actos, em fazer das datas, dias de concórdia nacional. Com a crispação que paira no ar, fica-se com a impressão de que não só o passado não passou como procura impôr-se no presente e já com um olho no futuro.

Pelo gesto do presidente da república, vê-se não há qualquer repúdio em homenagear os heróis da independência. A crispação resulta do não reconhecimento do simbolismo do 13 de Janeiro enquanto momento da afirmação da liberdade e da vontade soberana do povo. Há quem tenha estado associado à ditadura do partido único que acha que deve reclamar para si a glória da democracia, porque iniciou a abertura política. Esquece que se foi necessário uma abertura em 1990 é porque alguém fechou as portas à liberdade 15 anos antes.

O absurdo da situação reside aí. Não faz sentido exigir à vítima que agradeça o seu algoz pela sua libertação. Não se pode ter um país inteiro com uma espécie de síndrome de Estocolmo em que todos vêem a necessidade histórica do partido único, ficam gratos pelo facto do regime ditatorial ter sido “suave” e congratulam-se por, ao atingir a “maioridade”, terem recebido a democracia como presente. Para que não se continue na via que pode pôr em perigo o futuro, é fundamental que a sociedade consiga, sem quaisquer receios, ver com verdade o que realmente aconteceu nos anos de partido único e levar os seus protagonistas a assumir a sua responsabilidade plena.


Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 15 de Janeiro de 2014

quarta-feira, janeiro 08, 2014

Denegar em vez de reflectir



Entrou o ano 2014. Para muitos em todo o mundo as perspectivas para os próximos tempos não são muito diferentes do que têm sido até agora. Todos queixam-se do desemprego, da diminuição do rendimento disponível, da falta de oportunidades para os jovens, do aumento das desigualdades sociais e do crescimento anémico que ameaça entender-se por mais alguns anos. Em Cabo Verde, paradoxalmente, considerando a sua fragilidade, o governo proclama que conseguiu “aguentar” os efeitos da crise internacional mesmo num ano exigente e desafiante como foi 2013.


A crise financeira, já com mais de cinco anos, acabara com as ilusões de que era possível manterpor tempo indeterminado um ritmo vertiginoso de crescimento movido pelo crédito fácil e quase sem riscos. Depois de 2008 viu-se como a crise metamorfoseou-se sucessivamente em crise económica e social e posteriormente em crise da dívida soberana. As políticas adoptadas para sanar a situação da dívida e recuperar a competitividade em várias economias avançadas traduziram-se no imediato em quebras graves no crescimento e no emprego com impacto a nível global. Neste mar de más notícias nem o optimismo quanto ao desempenho dos países emergentes e ao papel que podiam assumir como locomotivas da economia mundial se salvou.

A natureza das mudanças em curso nas economias nacionais e a evolução futura das relações internacionais e da própria globalização têm sido motivo de muito debate e levado a posicionamentos diversos. O desnorte provocado tem levado a confrontos de ideias a vários níveis. Posicionamentos divergentes manifestam-se em instituições internacionais (FMI) e supranacionais (EU, BCE) e entre académicos de renome. Países do Sul da Europa enfrentam os do Norte sobre qual o melhor caminho para ultrapassar as ameaças ao euro e à união monetária. A nível nacional os partidos dividem-se quanto à bondade das políticas de austeridade e de estímulo e populismos diversos agitam a população contra programas da Troika que visam restaurar a sustentabilidade financeira. Em toda esta agitação ninguém está seguro de qual o caminho de saída. Todos sabem porém que nada será igual ao que anteriormente existia e que, face ao novo quadro das relações económicas emergentes, há que adoptar uma atitude radicalmente diferente.

Em Cabo Verde, a postura perante a crise e as mudanças globais que está a gerar tem sido completamente diferente. Em vez de levar à reflexão leva a denegação. Primeiro, deixa-se fazer escola a ideia que o país estaria blindado contra a crise. Posteriormente, com a crise aceite como ameaça real, o discurso vira-se para assegurar o país de que ela poderia ser “aguentada” sem que, nas palavras do Primeiro-Ministro, se pedisse à população que “apertasse o cinto”. O discurso da importância vital da ajuda externa continua subjacente a todas intervenções públicas. Mesmo quando se adopta a linguagem do empreendedorismo, da inovação, do apoio ao sector privado, apercebe-se que no essencial se trata de mais um mise-en-scène. As ligações burocráticas e também políticas dessas iniciativas com os organismos que o governo cria para o efeito são prova disso assim como também o é o estado actual do sector privado sem o suporte das políticas públicas que o exemplo bem sucedido dos países do Sudeste asiático aconselharia. Noventa e dois por cento das empresas cabo-verdianas tiveram resultados negativos em 2012.

A história económica recente confirma que nenhum país se desenvolveu com base na ajuda externa. Todos os países que conseguiram dar o salto, fizeram-no com apostas na educação que dá empregabilidade, no ambiente de negócios que atrai investimento externo, na criação de condições legais, institucionais, infra-estruturas e qualidade da mão-de-obra que assegura competitividade e na adopção de uma atitude favorável ao desenvolvimento de uma cultura de serviço e ao aumento de trocas com o mundo. A ajuda não pode ser um fim em si mesmo. Os doadores certamente agradeceriam se uma atitude consentânea com esse princípio fosse adoptada.

Vários autores, ultimamente Angus Deaton, da Universidade de Princeton, no seu livro “The Great Escape”, vêm demonstrando quão similares são os males resultantes da dependência da ajuda e do petróleo. Os governos tornam-se autocráticos, o potencial das pessoas e dos seus empreendimentos não se realiza e praticamente se institucionaliza o desperdício de recursos, seja em elefantes brancos, projectos abandonados e prioridades trocadas. Nos tempos actuais de grandes mudanças é fundamental que a captação da ajuda deixe de ser a função central da governação. Neste ano de 2014 Cabo Verde deverá fugir desse paradigma e reorientar-se para desenvolver os seus recursos próprios, ganhar sustentabilidade, criar riqueza e garantir emprego à sua gente.


Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 8 de Janeiro de 2014 Humberto Cardoso

quarta-feira, dezembro 18, 2013

Dissonâncias



Muito discurso político é feito em Cabo Verde à volta da necessidade de unificação do mercado nacional. Recentemente, face à constatação de algum desequilíbrio no desenvolvimento das ilhas e a manifestações de centralismo por parte do governo, um sentimento a favor da criação de regiões vem ganhando considerável apoio e audiência nas ilhas e em várias camadas da população. É interessante notar que situações concretas que deviam chamar para um debate sobre esses temas são confrontadas com o silêncio, com indiferença e às vezes com uma retórica política deslocada. Um caso em apreço é o que se passa com a ligação S.Vicente – S.Antão. As dificuldades já existentes tornaram-se críticas nas últimas semanas com a ida do navio Armas para reparação nos estaleiros da Cabnave. O acidente com o navio Sal-Rei piorou a situação, diminuindo a oferta de possíveis substituições no transporte de passageiros, carga e veículos entre as duas ilhas. Outros navios que podiam estar disponíveis, sofrem de outros problemas, uns com as autoridades marítimas e outros com o operador dos portos. Em consequência, uma região das mais importantes do país, seja em termos populacionais, seja em termos económicos, vê-se privada de uma via vital de comércio e de intercâmbio a todos os níveis. Pergunta-se onde é que ficam os discursos políticos de unificação do mercado interno. Aparentemente, com os arranjos actualmente existentes, ninguém assume a responsabilidade de manter a linha funcional ou dá muita importância aos prejuízos e inconveniências causados aos milhares de pessoas que fazem o trajecto ou vivem dessa ligação. A ideia de que a linha S.Vicente – S. Antão constitui um serviço público a manter em todas as situações não é totalmente assumida pelas autoridades. Obstáculos para uma circulação sem atrito, mais leve e menos custoso abundam, vindos designadamente de instituições como: a ENAPOR, alfândegas, polícia fiscal e outras autoridades marítimas. Não há uma vontade conjunta dos vários intervenientes na gestão dos transportes marítimos focalizada na facilitação do tráfego marítimo de carga e passageiros entre as ilhas. O discurso político não é traduzido em acção coerente nem consistente mesmo perante o facto de que, tratando-se de um país arquipélago, isso obriga a manutenção de um mercado fragmentado, a marginalização de várias ilhas e a custos económicos e sociais gravosos para todos. Não deixa, por isso, de ser desconcertante ver que o esforço de desencravar povoações e áreas de cultivo é em boa parte desperdiçado porque os produtos ficam retidos na ilha. Fazem-se estradas e constroem-se portos, mas esquecem-se as “auto-estradas” que deviam levar os produtos para o mercado global do país e mesmo para a exportação. A dissonância vai ainda longe. O Governo parece que levou treze anos a descobrir que, considerando as condições do país, dificilmente o mercado, por si mesmo, resolveria as necessidades no domínio dos transportes marítimos. E que em matéria de rotas marítimas iria deparar-se com situações de falhas ou de imperfeições do mercado e que teria que intervir de preferência em parceria com privados, mas num ambiente de transparência total. Soluções para os problemas passariam por ter rotas reguladas, outras concessionadas e outras ainda parcial ou totalmente subsidiadas. A introdução do conceito de serviço público na ligação entre as ilhas abriria o caminho para a regulamentação do tráfego marítimo com a definição das condições de entrada para os operadores, com as garantias de segurança, com o estabelecimento de frequências e com tarifas fixas. Os ganhos no movimento de cargas e passageiros que adviriam com a segurança e a previsibilidade dos serviços a prazo compensariam os investimentos realizados e os benefícios concedidos. Do exemplo do Fast Ferry, em que tanto se investiu mas acabou-se por decidir por uma posição maioritária do Estado para salvar a empresa, deve o Governo retirar as devidas elações. Deve ainda saber como agir para ao mesmo tempo que assegura os instrumentos de uma maior dinâmica económica com a unificação do mercado nacional, cria oportunidades para amadores nacionais e abre o caminho para que o país tenha embarcações seguras e ajustadas ao transporte confortável de passageiros. Será também uma forma de potenciar o turismo interno e alargar a oferta turística do país com a diversidade de produtos oferecidos pelas ilhas. Dissonâncias na estratégia têm custos avultadíssimos. Sente-se que algo corre mal quando se constata que após pesados investimentos, alguns elos na cadeia - estradas novas, novos portos e barcos velhos e inadequados - não deixam criar o círculo virtuoso necessário para garantir o retorno dos investimentos e os justificar. Em tais circunstâncias somam-se elefantes brancos no país, o crescimento económico fraqueja, o desemprego não diminui e, cada dia que passa, fica mais difícil servir a dívida contraída para financiar os investimentos, mesmo que o crédito tenha sido conseguido nas melhores condições.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 18 de Dezembro de 2013 Humberto Cardoso

quarta-feira, dezembro 11, 2013

Madiba



A morte de Nelson Mandela provocou uma reacção global juntando milhões de pessoas numa mistura complexa de dor, de agradecimento e de renovação de esperança. De dor pela perda do grande homem que incarnara de forma singela a defesa da dignidade humana e a procura incessante pela justiça. De agradecimento por provar que, de facto, nada é impossível se ao longo do caminho deixarmo-nos guiar pelo princípio da liberdade, da tolerância e da inclusão. De renovação da esperança por mostrar que todos e cada um, individualmente ou na relação com os outros, seja no contexto familiar, comunitário, nacional e mesmo internacional, podem acrescentar algo novo, ser promotor da paz e harmonia e potenciador de vidas mais ricas e gratificantes.


Nelson Mandela liderou o que todos consideravam quase impossível: pôr fim ao Apartheid na África do Sul sem que o país mergulhasse num banho de sangue. O feito de Mandela foi extraordinário porque, ao mesmo tempo que conseguiu a libertação da população negra do jugo de um regime odioso e racista, fez aprovar a Constituição de 1997 que consagrou a liberdade de todos os sul-africanos, garantiu os direitos das minorias, instaurou a democracia e o Estado de direito. O Libertador Mandela foi um combatente incansável pela liberdade, ciente de que quaisquer desvios ou atalhos na caminhada poderiam desembocar em banho de sangue, em atraso na edificação das instituições fundamentais da democracia e em prosperidade adiada. Certamente que as experiencias de várias lutas de libertação na África que depois no poder deixaram-se conspurcar pelo ódio, vingança e exclusão dos não combatentes serviram-lhe de referência no seu esforço titânico para evitar que o mesmo acontecesse à África do Sul.


A libertação de Mandela após 27 anos de prisão aconteceu a 11 de Fevereiro de 1990. Viviam-se então tempos extraordinários. Três meses antes tinha caído o Muro de Berlim. Por todos os continentes desabavam regimes autoritários e totalitários em sintonia com a implosão do império soviético e do comunismo. Também em Cabo Verde germinavam as forças populares que iriam levar ao fim do partido único e à liberdade e democracia em Janeiro de 1991. Já nos finais dos anos oitenta tornara-se evidente que o Apartheid na África do Sul não conseguiria resistir ao fim da guerra fria e ao isolamento internacional a que a sua desumanidade lhe confinara. Mandela apareceu como a única esperança para se evitar o pior. Ninguém esperava um milagre, mas facto é que um milagre acabou por acontecer.


O homem de 75 anos que deixara a sua cela na ilha de Robben tinha uma história de coragem, de perseverança e de magnanimidade por detrás dele forjado na luta pela dignidade, igualdade e justiça. O seu carácter férreo tinha-se revelado em momentos críticos com os do seu julgamento nos tribunais do regime, nos longos anos de isolamento e na recusa a propostas da sua libertação que só serviriam para aliviar a pressão internacional sobre o regime racista. A coerência de princípios e o seu humanismo tinha-lhe permitido ir para além dos apelos à luta armada e ao nacionalismo negro para privilegiar meios não violentos e a participação de todos no processo de emergência da nova África do Sul. Só ele detinha a autoridade moral e o capital político suficiente para mover vontades, criar confiança entre as partes e negociar os compromissos necessários. A mesma autoridade e a mesma crença forte nos ideais que posteriormente permitiu-lhe, como disse Obama no seu discurso de homenagem, promover “a reconciliação nacional não como forma de ignorar o passado cruel mas como meio de o confrontar com inclusão, generosidade e verdade”.


Ainda na sua intervenção Obama referiu-se a líderes que proclamam identificar-se com Mandela mas que não toleram dissenso nos seus próprios países. Alguns deles vieram de organizações que só encontram unidade colocando-se contra os outros, que têm uma cultura de conspiração, que evitam o contraditório nas suas fileiras e na sociedade e que seguem o princípio de que os fins justificam os meios. Precisamente o oposto de tudo o que Mandela disse e praticou. Mas o facto de se sentirem obrigados a mostrar-se junto de Mandela, mesmo que hipocritamente, demonstra onde está a razão e reforça o sonho da liberdade e democracia para todos.


O Expresso das Ilhas junta-se a todos na celebração da vida do grande homem que foi Nelson Mandela e que agora junta-se a Martin Luther King e ao Mahatma Gandhi no panteão dos grandes homens que tanto fizeram pela dignidade, igualdade e justiça.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 11 de Dezembro de 2013 Humberto Cardoso