segunda-feira, outubro 28, 2019

O vale tudo tem custos

Aproxima-se o debate anual no parlamento sobre a situação da justiça e em antecipação já os actores políticos se posicionam com as queixas e as críticas de sempre.
Todos focam na questão da morosidade da justiça, pedem-se mais meios no pressuposto que o problema central é de falta de meios e notam-se as tentativas de encontrar culpados para a situação. Repete-se o jogo que, pela forma como nele se entra e se pratica, tende a simplificar o que é complexo, atiça as achas para mais um “round” da luta político-partidária estéril e convida outros protagonistas do sistema a baixar os braços ou a fazerem-se de desentendidos. Olhando, porém, para o sistema sem os filtros habituais de natureza política ou corporativa as constatações não são muito diferentes das que o sociólogo António Barreto recentemente identificou na justiça portuguesa quando se referiu “Ás regras processuais, fonte de desigualdade e despotismo. A chicana burocrática que destrói a eficiência e alimenta a desigualdade. As garantias excessivas, factor de injustiça e paralisia. As relações entre magistratura judicial e Ministério Público, sem falar nas polícias, que se têm transformado em obstáculo sério à eficiência.” 
O Estado de Direito democrático instituído com base no respeito pelo primado da lei depende para o seu funcionamento pleno da independência efectiva dos tribunais e da autonomia do Ministério Público. Seguindo a moldura institucional da Constituição de 1992 há quase trinta anos que do sistema herdado dos anos antes e depois da independência procura-se construir um poder judicial com um nível de eficácia suficiente para administrar a justiça, garantir os direitos fundamentais e contribuir para preservar a paz e a segurança de todos. As dificuldades reconhecidas por todos com que o sistema ainda se depara, funcionando aquém do desejável, deviam deixar a claro os obstáculos a serem vencidos ou ultrapassados sejam eles materiais, ou de natureza organizativa, cultural ou formativa.
O comprometimento de todas as forças políticas com a independência do poder judicial é inequívoco. As leis que erigiram o sistema foram aprovadas por quase unanimidade dos votos dos deputados de todas as forças políticas. Certamente que outras leis que eventualmente poderão aprimorar mais o sistema no sentido de uma efectividade maior a todos os níveis se devidamente negociadas terão o acordo dos partidos representados no parlamento. Prova disso foi o consenso conseguido na revisão constitucional de 2010 que transferiu para os conselhos de magistratura judicial e do ministério público a gestão efectiva dos recursos dos tribunais, das procuradorias e das respectivas secretarias. Também o engajamento dos sucessivos governos em disponibilizar recursos ao sistema da justiça pode ser comprovado por todos.
Daí que as razões para a persistente ineficácia dos tribunais traduzida na morosidade da justiça não terão somente a ver com o sistema em si ou com falta de vontade política. Deverão contribuir para as ineficiências e a falta de eficácia outros condicionantes cujos efeitos perniciosos também se fazem sentir em outros sectores da vida económica, social e cultural onde os retornos dos investimentos feitos não se traduzem, por exemplo, em maior qualidade do ensino, na diminuição perceptível da insegurança, na melhoria significativa da competitividade, no aumento de produtividade e em maior civismo. Condicionantes esses que devem ser identificados e ultrapassados num esforço colectivo mas dentro de um quadro de pluralidade, para que o país acumule competências, veja os seus propósitos realizados e invista com confiança no futuro.
Infelizmente demasiadas vezes acontece o contrário. Não são os condicionantes que são eliminados, mas sim as resistências à mudança que se vêem reforçadas no ambiente de crispação política criado pelos partidos, quando focados na procura de pequenas vantagens tácticas ou no aproveitamento de alguma oportunidade para passar uma má imagem do adversário. O país ouviu na semana passada as declarações da presidente do Paicv a envolver em dúvidas e suspeições a nomeação do novo procurador-geral da república, dizendo que “é estranho que só depois de se terem avançado com processos, que envolviam personalidades muito próximas do actual poder, é que houve essa pressa na mudança do PGR”. Foi algo totalmente desnecessário, mas que se justifica com a lógica do “vale tudo”.
As quatro nomeações anteriores do PGR pelo presidente da república sob proposta do governo nunca mereceram apreciação do género pelas forças políticas precisamente porque é vontade de todos que o PGR seja independente do governo e esteja acima de qualquer suspeição. Declarações feitas em ambiente de stresse, embora graves, mas sem qualquer impacto institucional não devem servir de pretexto para pôr em causa um processo de substituição que cai dentro da normalidade, considerando que o fim do mandato se verificou no passado mês de Maio e o novo mandato inicia-se com a abertura do ano judicial. Desde 2003 que a prática tem sido a nomeação do PGR para um único mandato de cinco anos. Politizando a justiça o que se consegue é a descredibilização do sistema e que em consequência aumente a tentação de agentes na administração da justiça de se desresponsabilizarem pelos resultados. Podem continuar a pedir mais meios e regalias, mas passam a responsabilidade pelos resultados aos políticos ávidos nas suas tricas políticas de oportunidades para se culparem uns aos outros.
É evidente que ninguém ganha com isso, muito menos quem quer uma justiça célere e eficaz. Também a prazo não ganham as forças políticas que, num momento, prontificam-se a suportar um poder judicial independente e a enfrentar a complexidade da tarefa de pôr a funcionar com eficácia todas partes do sistema, salvaguardando a sua independência e a autonomia, e, noutro momento, parecem dispostas a alimentar teses conspirativas que o descredibilizam. Globalmente esses avanços e recuos e a falta de consistência estratégica na implementação de políticas tendem a aumentar a ineficiência do sistema no seu todo porque não é só a justiça que é afectada. Também o são outros sectores da vida do país com impacto directamente nas pessoas, na economia e na sociedade. A credibilidade da democracia sofre no processo porque para os cidadãos a política deixa de ser o processo para se encontrar as melhores vias para o desenvolvimento para passar a ser simplesmente jogadas de poder onde tudo é possível. Há que rejeitar definitivamente a lógica do “vale tudo” na política. Os custos presentes e futuros são incomportáveis.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 934 de 23 de Outubro de 2019.

segunda-feira, outubro 21, 2019

Chega de panaceias

O discurso do governo particularmente pela voz do Vice-primeiro-ministro e Ministro das Finanças tem sido dirigido para os jovens e para a necessidade de investimento na formação profissional.
Nesse sentido, segundo Olavo Correia, até agora 7 mil jovens foram beneficiados com formação e estágios profissionais, mas a meta a atingir é de 10 mil beneficiários. A proposta do Orçamento do Estado para o ano de 2020 prevê 358 mil contos para financiar a formação e 387 mil contos como comparticipação do Estado em estágios profissionais. E a ideia é de se ter um centro de formação profissional em todas as ilhas. Com essas medidas o governo reitera a sua aposta nos jovens e sugere que está na linha de cumprir com a promessa de campanha, várias outras vezes repetida, de criação de 45 mil postos de trabalho e de ter uma economia a crescer a uma média de 7% até ao fim da legislatura. O facto de até agora só se ter atingido um crescimento de 5,1% em 2018 (o World Economic Outlook de Outubro de 2017 põe o crescimento numa média de 5 % nos próximos anos) e de ser baixado o desemprego para 12,2% revela as dificuldades e a complexidade da situação socio económica e laboral que não se compadecem com panaceias, voluntarismos e apelos motivacionais.
Mesmo com as melhores das intenções são vários os obstáculos a um aproveitamento adequado de um investimento massivo na formação profissional. Na sua página oficial do Facebook, o VPM e Ministro das Finanças começa por reconhecê-los ao apelar que se valorize a formação profissional ao mesmo nível de outras carreiras, ocupações e profissões. Depois constata a tentação de no processo de contratação se descartar os formados nas escolas profissionais a favor de trabalhadores sem qualificação e recomenda a adopção de carteiras profissionais para que possam ter emprego digno. Por último propõe que as empresas que recebem renúncia fiscal do Estado sejam obrigados a recrutar jovens formados. Outros problemas certamente existirão designadamente no ajuste entre as ofertas de formação e a procura real de qualificações, em conseguir a sinergia certa entre o centro de formação e o ambiente empresarial que favoreça a qualidade e em ganhar dimensão crítica em termos de número e rotatividade de formandos que permita aos centros consolidar-se como instituição de formação.
Sucesso na implementação de políticas depende muitas vezes da devida articulação com outras e do encadeamento no tempo certo que se fizer das medidas previstas. Razão para que isoladamente não sejam tomadas como panaceias que vão resolver todos os males. No caso da política de formação profissional, é evidente que só se terá grande absorção de mão-de-obra formada se houver boa evolução da exportação de bens e serviços e do turismo tendo em conta que a procura interna é limitada e não suficientemente diferenciada. Para se conseguir isso porém é fundamental que o país seja competitivo apresentando entre outros factores uma mão-de-obra especialmente preparada para ser atractiva para investidores que tenham na mira mercados externos. Também internamente constrangimentos como a informalidade da economia e a resistência das empresas em contractar profissionais terão que ser confrontados decisivamente sob pena de se ver todo o investimento público na formação a perder-se ou a ficar subaproveitado. Não se pode ter uma situação similar àquela descrita pelo presidente da associação dos taxistas da Praia à agência Inforpress de já estarem a circular um número de táxis clandestinos quase igual aos legalmente estabelecidos depois de todo o esforço feito por várias entidades para regularizar a situação.
Corre-se o risco de frustrar as expectativas das pessoas quando se extrapola os efeitos de certas políticas ou o impacto de certas obras ao mesmo tempo que se simplifica a realidade e não se dá à sociedade a dimensão real dos problemas. Quantas vezes se anunciaram obras que seriam estruturantes e catalisadores do desenvolvimento em ilhas ou partes do território nacional para depois se constatar que afinal “a montanha pariu um rato”. Não é que os investimentos feitos em portos, aeroportos, estradas, barragens, habitação social, escolas, etc, não tenham trazido algum benefício. O problema é que os benefícios são muito menos do que os prometidos e esperados e os custos são muito maiores do que inicialmente assumidos porque não acompanhados de outras acções e políticas com as quais deveriam criar sinergia e potenciar a criação de valor.
O resultado por exemplo é, para as autoridades, como reconciliar os surtos de insegurança que acontecem na cidade da Praia com os investimentos de milhões feitos no âmbito da cidade segura e também em garantir à polícia nacional os meios e os incentivos para serem efectivos nas suas funções. Ou congratular-se com o sucesso já conseguido da CV Airlines no hub do Sal ao mesmo tempo que declara o governo sem poder para baixar preços das passagens aéreas como se não tivesse políticas para o sector de transporte aéreo e dever de dar combate a práticas monopolistas. Ou ainda assistir-se ao investimento na educação na ordem dos 12 milhões de contos na proposta do OE e se ter a sensação generalizada de que está longe o retorno desejável em termos de qualidade, de preparação dos jovens para o futuro e de assegurar uma base em termos de competência linguística, educação humanística e base científica e técnica.
Em Cabo Verde sempre se alimentaram sonhos do tipo: se o país chovesse ter-se-ia fartura e todos seriam felizes. Por causa disso a mobilização da água torna-se panaceia e investe-se em sistemas de captação, mas descuram-se os passos seguintes para se ter uma agricultura que não seja de simples subsistência. No fim do dia a precariedade persiste, as populações continuam vulneráveis e paradoxalmente não se alimenta uma cultura de poupança de água como deixam saber as revelações vindas a público de perdas escandalosas de água nas redes públicas. Talvez por razões similares tende-se a acreditar que mesmo ficando tudo o resto igual se houvesse crédito o país estaria a fervilhar de actividade com o empreendedorismo ou que se pode criar cyber islands com investimentos dos outros em data centers sem que no domínios das Tecnologias de informação (TICs) se se verificasse um esforço sistemático de formação nas escolas e universidades durante anos seguidos, a exemplo de outros países.
Não devia ser assim. O país sem recursos, com população diminuta e localização geográfica não muito vantajosa apesar dos devaneios em contrário devia encarar a problemática do desenvolvimento com mais humildade, responsabilidade e abertura para o diálogo. A política infelizmente não tem servido para isso. Bem pelo contrário, tem-se prestado ao camuflar dos problemas, à insistência em panaceias de toda a espécie e em levar as pessoas numa montanha russa de expectativas altas e frustrações profundas. Há que dar um basta a isso.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 933 de 16 de Outubro de 2019.

segunda-feira, outubro 14, 2019

Restabelecer os equilíbrios

O descontentamento das pessoas em relação à democracia é hoje um fenómeno quase universal. Multiplicam-se as críticas sobre o seu funcionamento e suposta ineficiência e aumentam as dúvidas quanto à sua capacidade de encontrar soluções para os problemas da actualidade.
 Hoje fala-se da recessão democrática, da crise de representação e do défice de participação e não é para menos. Pelo tom usado por muitos nas redes sociais em constantes momentos de indignação perante situações grandes e pequenas, em acusações de corrupção dos políticos que quase não deixam ninguém de fora e na atitude cínica com que se encaram os ideais democráticos podia-se pensar que o fim da democracia está próximo. A realidade é que mesmo com dúvidas e frustrações, aparentemente, todos aspiram viver em democracia. Regimes mais ou menos autoritários ou iliberais reivindicam o manto de democratas e ditaduras totalitárias vestem a roupagem da democracia para se camuflarem e se legitimarem. A ideia da democracia não está morta nem moribunda, mas carece de vitalidade e ela só pode vir da sociedade, da sua convicção e do seu engajamento.
Já dizia Alexis de Tocqueville que o sucesso da democracia americana devia-se à existência de uma sociedade civil particularmente activa e participativa desde dos primórdios da república. O capital social existente traduzido numa cultura cívica intensa e num elevado grau de associativismo foi crucial para a consolidação da democracia americana. Claro que o rápido desenvolvimento de uma classe média empreendedora cuja prosperidade dependia do respeito pelo direito de propriedade e pelos direitos contractuais conjugado com a garantia de um poder judicial independente capaz de eficazmente redimir os conflitos foi central para se manter a sociedade civil autónoma, exigente na qualidade dos serviços prestados pelo Estado e fiscalizador do uso dos recursos postos à sua disposição pelos contribuintes. Ao longo dos tempos nem todas as experiências democráticas conseguiram reunir as condições óptimas para triunfar.
Cabo Verde não é excepção. A adopção durante décadas do modelo de desenvolvimento com base na reciclagem da ajuda externa no quadro do regime de partido único fez crescer a dependência do Estado e o espírito assistencialista em todo o território nacional. Em 1988 o então presidente da república Aristides Pereira constatava isso apelando que as frentes de trabalho (FAIMO) deixassem de ser “o local onde se degrada a consciência laboriosa do nosso povo”, mas a verdade é que praticamente todo o país se tinha tornado numa grande FAIMO. No processo, as elites socioeconómicas anteriores tinham sido suprimidas ou neutralizadas e em substituição tinha emergido uma outra elite intimamente ligada ao Estado que lhe dá os acessos, faculta-lhes os meios e cria-lhes as oportunidades. É evidente que a nova elite dificilmente podia ser a base para uma sociedade civil autónoma, crítica e reivindicativa perante o Estado.
Com o advento da democracia no pós 13 de Janeiro de 1991, pôs-se a questão de qual seria mais difícil, se mobilizar a sociedade civil para apoiar a reestruturação da economia e, no processo, conseguir-se mais crescimento e emprego ou fazer o desmame material e cultural de pessoas e instituições do modelo de reciclagem da ajuda externa. Ter-se-á ficado a meio do caminho e o resultado é que da parte das elites existentes não houve um comprometimento forte com os valores democráticos, com a economia de mercado e a ideia de uma sociedade civil realmente autónoma. Acredita-se ainda que o mais natural é o Estado continuar no “topo da cadeia alimentar” mas, não talvez da mesma forma. Anteriormente os recursos foram essencialmente ajuda, hoje são mais variados, mas a tendência é o Estado comportar-se da mesma forma e o sector privado e as elites submeterem-se à sua orientação, preferência e humores.
O estado actual do país reflecte em vários aspectos o quanto se falhou em criar as condições para a emergência de uma sociedade civil engajada que desse suporte à democracia. Sente-se isso principalmente neste momento de especial fragilidade da democracia a nível local e global em que a opinião expressa nas redes socias, em comentários e também em alguns discursos visa atingir fundamentalmente o parlamento, o sistema judicial e os media. Coincidentemente os mesmos alvos que em países como a Polónia e a Hungria, mas também os Estados Unidos e o Reino Unidos estão na mira dos assumidamente populistas. Em Cabo Verde aparentemente está-se a dar continuidade às críticas e ao maldizer que acompanharam a construção da democracia a partir dos anos 90. Paradoxalmente, nesse período, a sair do regime de partido único, já se criticava a existência de partidos, o bipartidarismo e o parlamento plural. Com pouco tempo de vigência dos direitos fundamentais já se acusava as autoridades de serem pior que a ditadura anterior. Sem ainda tempo para recuperar da estagnação dos tempos de economia estatizada já se transbordava de indignação pela suposta venda do país a investidores externos. Caso para perguntar se antes não encontraram razão suficiente para defender a democracia o que aconteceu de novo que poderia tornar os críticos no seu defensor activo.
De facto, o que vem acontecendo é o contrário. Os ataques recrudesceram sem preocupação com as consequências. Para muitos que sempre viveram na democracia e na liberdade as críticas até podem ser normais considerando que parecem reflectir insuficiências no sistema democrático e falhas dos agentes políticos e suas organizações. Não lhes passa pela cabeça que a sua actual vivência democrática e tudo o que dão por garantido pode ser reversível, como aliás vem acontecendo em alguns países até recentemente liberais e democráticos. Por outro lado, não parecem ter apercebido que muita crítica expressa no espaço público é pobre, segue certas conveniências e deixa-se instrumentalizar. Nem notam que por algum bloqueio o país ainda está por dar sinais de que o nível do debate público se elevou com as várias universidades criadas e os seus milhares de estudantes formados.
A democracia cabo-verdiana perde com a falta de uma sociedade civil autónoma, activa e focalizada. O discurso político empobrecido sem a pressão dos problemas e prioridades trazidas pela sociedade limita-se aos temas dos partidos que lhes podem trazer pequenas vitórias tácticas na luta pelo poder. Ou, então, coopta a agenda das instituições internacionais que não poucas vezes substitui o que deviam ser políticas públicas do país com as consequências que todos conhecem. Basta analisar os custos e benefícios dos múltiplos projectos em todo o país. Por isso é que a vitimização, o “coitadismo”, o ter sido abandonado ou discriminado são temas constantes não só do discurso político como também de activistas sociais. Tragicamente procura-se compensar a quebra da autoestima que tudo isso acarreta com “bengalas identitárias” que desviam o país da narrativa que historicamente lhe deu consciência da nação muito antes de ser um Estado independente. Desvio que só pode levar à autoflagelação do tipo que o Presidente da República aconselhou para se evitar, na sequência do incidente com o professor universitário guineense no Aeroporto da Praia, e à quebra na motivação de cada um em particular e da sociedade em geral de se fazer mais e melhor em prol de uma vida de prosperidade e em liberdade. Para isso, há que cortar com o cinismo, enfrentar os problemas sem cair no ilusionismo e reconstruir os equilíbrios necessários entre o Estado, a sociedade e o mercado..
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 932 de 9 de Outubro de 2019.

segunda-feira, outubro 07, 2019

Evitar a “desconsolidação” democrática

O ano parlamentar que praticamente coincide com o ano político iniciou a 1 de Outubro. Arranca com a quarta sessão legislativa cujo término a 31 de Julho de 2020 se verificará provavelmente em cima das eleições autárquicas a terem lugar entre Julho/Agosto.
 Por ser um ano pré-eleitoral o mais normal é que se acentue a polarização política entre os partidos e aumente substancialmente a crispação. E o facto de se realizarem eleições disputadas para a liderança do maior partido da oposição no próximo mês de Dezembro certamente irá afectar o tom e a natureza do discurso político em direcção ao governo. Cada candidato vai querer ser o mais contundente e efectivo nas críticas à governação. Também não deverá ficar grande espaço para grandes entendimentos entre os grupos parlamentares que implicam maiorias de dois terços dos votos dos deputados. Com estas pedras no caminho dificilmente irá ser um ano parlamentar mais produtivo, correndo-se o risco de a legislação prometida em matéria eleitoral, tanto quanto à paridade de géneros como à limitação de mandatos, ficar comprometida. Nem tão pouco se conseguir acordos alargados no provimento de cargos exteriores à Assembleia Nacional como o Provedor da Justiça e o Conselho Superior de Magistratura Judicial que há mais de um ano esperam ser substituídos.
Quer isto dizer que não será este ano ou o próximo que se vai constatar uma melhoria na qualidade do trabalho parlamentar. Com o ciclo eleitoral já à porta e as três eleições autárquicas, legislativas e presidenciais separadas cerca de seis meses umas das outras, não será o melhor momento para se reparar as relações parlamentares no sentido de maior efectividade seja na produção legislativa, seja na elucidação da nação dobre os problemas candentes do país ou ainda na fiscalização dos actos da governação. De facto, não se pode considerar que nestes últimos anos houve avanços entre as forças políticas quanto à capacidade de negociar, de firmar acordos e de chegar a compromissos em matérias cruciais para o país. Pelo contrário. Como todos se vêem ou querem apresentar-se como representantes genuínos e únicos do povo, com exclusão dos outros que são tidos como antipatriotas, negativos e maledicentes, não fica espaço para o diálogo.
Mesmo fortes chamadas à realidade, como foram, entre outras, a quase estagnação económica dos primeiros cinco anos desta década e a seca desde de 2017, não se mostraram suficientes para alterar o tipo de debate político em Cabo Verde. Persiste-se no confronto que impede visão clara e plural sobre os problemas do país, dificulta a identificação das prioridades e não mobiliza vontades para se investir no futuro. Complica a situação o facto de quaisquer alterações favoráveis do ambiente externo, quase sempre conjunturais, mas com repercussões positivas no país, serem suficientes para se esquecer males passados, vulnerabilidades reveladas e omissões até ao momento despercebidas. Ultrapassado o mau momento é só ver o país a retomar o seu caminho imperturbável como se nada tivesse acontecido até que desperte com mais um choque externo. Entretanto, reformas são adiadas, cresce a inércia social e cultural impeditiva do desenvolvimento e diminui a capacidade de resiliência a todos os níveis.
Para os autores do best-seller “Porque Falham as Nações” Daron Acemoglu e James Robinson no seu novo livro “O Corredor Estreito: Estados, Sociedades e o destino da Liberdade” não basta que se tenha uma moderna Constituição e leis democráticas para se dar a democracia como realizada, para se considerar garantido o exercício da liberdade e criadas as condições e oportunidades para maior prosperidade. Ao lado do Estado forte e legitimado pelo voto popular tem que existir uma sociedade também pujante, alerta e fiscalizadora capaz de correr a passo e passo com o Estado nesse corredor estreito onde espaço para liberdades existem, garantem-se com eficácia serviços do Estado, a começar pela segurança e justiça, e se assegura que a dinâmica plural de ideias, projectos de futuro e escolha de prioridades sirva a todos e não seja sequestrado por qualquer grupo político ou económico para benefício próprio. Ninguém quer viver na anarquia ou ausência de Estado mas também ninguém deseja um Estado autoritário sem limites no uso do poder. Segundo Acemoglu e Robinson só se consegue o equilíbrio certo e o desenvolvimento com uma sociedade que não só compete mas também coopera ou na perspectiva de Raghuram Rajan no seu livro “O terceiro pilar” com uma comunidade activa e focada, capaz de conter o Estado e o mercado nos seus excessos e garantir que o impacto do desenvolvimento chegue a todos.
O problema com as democracias actualmente é que a sociedade ou não se engajou na consolidação da democracia ficando essencialmente pela formalidade derivada da adopção da Constituição e das leis modernas ou deixa-se levar por discursos políticos do tipo populista que enfraquecem os princípios e valores liberais e descredibilizam as instituições democráticas. Assiste-se mesmo em democracias mais velhas a um processo que o cientista político Yascha Mounk chama de “desconsolidação” democrática devido a várias razões, designadamente o aumento da desigualdade social, a pressão migratória e os efeitos da globalização. Aconteceu no Reino Unido e na semana passada e viu-se como o Supremo Tribunal, por unanimidade dos 11 juízes, pôs fim a algo similar que visava diminuir o papel do parlamento na discussão do Brexit
Em Cabo Verde a construção das instituições democráticas não foi acompanhada de uma adesão activa e engajada com os princípios e valores liberais. Para isso contribuiu uma inusitada preocupação em desculpar o regime de partido único cujos valores estavam nas antípodas do regime democrático. Por outro lado, falta à sociedade civil a base económica para uma verdadeira autonomia perante o Estado e na luta de todos e de cada um para se “desenrascar” faltam razões fortes para a defesa da liberdade económica, da igualdade de oportunidades e das bases para a criação de riqueza. Nestas condições a pressão para a “desconsolidação” democrática é real. Vê-se na descredibilização do parlamento, no comportamento às vezes pouco curial dos órgãos de soberania e seus titulares, nos ataques ao sistema judicial, no assalto populista aos partidos e na movimentação de interesses corporativos junto do Estado.
Inicia-se um novo ano político e é sempre de desejar que seja diferente e se reoriente para preparar o país para eventuais consequências das incertezas criadas designadamente pela guerra comercial em curso entre os Estados Unidos e a China, a instabilidade no Médio Oriente e no mercado petrolífero e a quase certa quebra na dinâmica da economia mundial. Cabo Verde cresceu nos dois primeiros trimestres deste ano acima dos 6%. Isso é bom, mas deve-se em grande medida ao impacto da conjuntura internacional favorável sobre as exportações e o turismo. Ninguém garante que continue assim. Os efeitos das incertezas, já visíveis no horizonte, serão maiores se o país, entretanto, não melhorar a sua competitividade e produtividade. E isso só se consegue com instituições fortes, uma sociedade engajada e uma profunda mudança de atitude.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 931 de 2 de Outubro de 2019.

segunda-feira, setembro 30, 2019

Dia Nacional dos direitos humanos

O governo de Cabo Verde com a aprovação da Resolução 123/2018 que declarou o 25 de Setembro Dia Nacional dos Direitos Humanos deu por duas razões um passo importante ao fazer as pessoas, a sociedade e as instituições do Estado mais conscientes da importância da garantia do exercício desses direitos para uma convivência em liberdade, na paz e confiança na justiça.
Primeiro, com a consagração de um dia próprio para a comemoração dos direitos humanos separado da data internacional de 10 de Dezembro, convidou a que no país se faça uma reflexão sobre o caminho percorrido e se invoquem os sacrifícios passados para os resgatar. Por essa via, eleva-se a sensibilidade face a qualquer violação presente e futura dos mesmos e reaviva-se a memória do que acontece quando os indivíduos são despojados dos seus direitos e ficam indefesos perante eventuais abusos das autoridades e de outros poderes na sociedade.
Segundo, ao fazer coincidir a o dia nacional dos direitos humanos com a data de entrada em vigor da Constituição de 1992 ajuda a cimentar na mente de todos e em particular das instituições a importância de se ver os direitos humanos como o pilar base da democracia liberal e constitucional. Em simultâneo deixa claro que a afirmação constitucional do primado da lei como princípio fundamental, a declaração que o exercício do poder só é legitimo se for conforme à Constituição e a garantia da independência dos tribunais visam fundamentalmente salvaguardá-los por forma a que em liberdade e com “governo consentido” todos possam exercer o seu direito à felicidade.
O gesto do governo em criar um dia nacional para os direitos humanos ganha particular pertinência quando se notam tendências de os considerar excessivos ou até contraproducentes em certos momentos, designadamente de emergência securitária. Sente-se isso, por exemplo, em discursos populistas, na postura das instituições ligadas ao combate ao crime e ao terrorismo e em atitudes de indivíduos ou grupos atraídos por um certo justicialismo demagógico. Há que contrariar essas tendências e trabalhar para desenvolver uma sensibilidade nas pessoas e na sociedade que permita reacção imediata na forma de repúdio, denúncia e exigência de acção das autoridades perante o que configurar atropelo de direitos. Particular atenção se deve prestar à polícia e outras forças de segurança que, por força da acção coerciva que são chamadas a exercer, podem incorrer em excessos na sua actuação ou em flagrantes demonstrações de abuso de poder. Das queixas apresentadas à Comissão Nacional para os Direitos Humanos e Cidadania, a polícia é a mais visada, segundo a presidente da referida comissão em declarações recentes à imprensa. É facto que essas queixas em geral não provocam da parte das autoridades reacções que vão além do inquérito interno. Mesmo em situações de mortes violentas em circunstâncias complicadas (mortes nas esquadras, o caso de Monte Tchota, etc.) fica-se por saber se houve auditoria externa ou qual foi o papel do Ministério Público no aclaramento dos acontecimentos e na defesa dos direitos dos cidadãos.
Em Cabo Verde constata-se uma deficiente sensibilidade em relação aos direitos humanos. A explicação para isso estará por um lado nas muitas décadas, quarenta e oito anos de salazarismo e quinze anos de partido único, vividas com regimes avessos aos direitos humanos e que submetiam o indivíduo e a sua dignidade ao poder do Estado, na perspectiva de Mussolini de tudo no Estado, nada contra o Estado e nada fora do Estado. Uma outra razão terá a ver com a forma com a transição política para a democracia se verificou em que tudo foi feito para negar uma descontinuidade entre os dois regimes, o democrático e o de partido único, e para não assumir de forma consequente que em termos de princípios e valores encontram-se nas antípodas um do outro. O resultado é que não se depara em Cabo Verde com situações como aquela do Chico Buarque num concerto em Portugal a referir-se aos jovens como “mocidade portuguesa” e a ter em reacção o silêncio geral e olhares de incompreensão. Ou do embaixador alemão, com a memória da juventude hitleriana, a dizer “não gosto de manipulação de crianças”, quando convidado a opinar pelo seu anfitrião sobre um espectáculo de crianças de um país africano seguindo coreografia norte coreana. Pelo contrário. Ainda hoje referências de violência nos anos de partido único contra pessoas, comprovadas por testemunhas vivas, pela imprensa da época e outras fontes, são apresentadas pela comunicação social pública como “alegadas torturas”. Recentemente com a discussão e aprovação da lei da reparação das vítimas da tortura viu-se a reacção de vários sectores de opinião ostensivamente a negar o acontecido e a discordar que se fizesse o mínimo para os que claramente foram injustiçados no passado, sofrendo na pele e na alma a sanha do aparelho repressivo do regime.
Em tal ambiente de dúvidas e disputas político-partidárias sobre os valores e princípios que estão na base dos direitos humanos dificilmente as instituições democráticas vão assumir pronta e integralmente tudo o que a Constituição consagra. Se mesmo em países com democracia mais consolidada com é o caso de Portugal fala-se em “deficiente sensibilidade e preparação constitucional” de polícias, procuradores e juízes que são quem no Estado de Direito democrático devem ser os garantes do exercício dos direitos fundamentais, imagine-se o caminho que ainda se tem que percorrer aqui em Cabo Verde. A iniciativa do governo em criar o Dia Nacional dos Direitos Humanos tem, pois, uma especial utilidade. Para além de celebrar essa conquista de civilização que são os direitos humanos e contribuir para uma cidadania mais participada e atenta, deve ser um dia para se dedicar uma especial atenção às instituições que a Constituição confia a defesa desses mesmos direitos e avaliar o progresso delas na assunção completa dos valores constitucionais na aplicação da lei.
Humberto Cardoso

Editorial originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 930 de 25 de Setembro de 2019.

segunda-feira, setembro 23, 2019

Sobrevivência vs. desenvolvimento

Chegaram as chuvas. Depois de uma ausência de dois anos seguidos o arquipélago foi contemplado pela queda das águas num primeiro do que se espera sejam vários “rounds” de chuva.
Chegaram as chuvas. Depois de uma ausência de dois anos seguidos o arquipélago foi contemplado pela queda das águas num primeiro do que se espera sejam vários “rounds” de chuva. A alegria no rosto de todos revela mais uma vez o efeito poderoso que “azágua” tem na psique cabo-verdiana. Mobiliza pessoas de volta para os campos, dá um outro vigor aos camponeses que em antecipação já tinham semeado em pó e renova a esperança de todos que o ano agrícola será de fartura. Há séculos que os cabo-verdianos vivem o drama de esperar que as chuvas caiam, que venham no tempo certo e que não causem demasiados estragos. Demasiadas vezes não acertam. A história do arquipélago é em muitos aspectos tributária do facto do sonho não se concretizar e em vez do bom ano desejado se ter que lidar com a tragédia das secas, com mortes do gado e não raramente ao longo da história também com o horror das mortandades resultantes das fomes. Toda essa luta pela sobrevivência numa terra em que realmente não chove e deixa as populações completamente desamparadas perante os efeitos de secas sucessivas moldou este povo como nenhum outro. Contribuiu com os ingredientes certos para gerar uma nação, a partir das gentes a labutar nas diferentes ilhas, caracterizada por um rosto e marcas culturais sem igual nas várias experimentações humanas na bacia do Atlântico que se sucederam à descoberta do Novo Mundo.
O sucesso na luta pela sobrevivência foi fundamental para a cabo-verdianidade. No meio da precariedade reinante alimentou os laços de solidariedade, ajudou a criar um ethos e uma ética de trabalho que sempre distinguiu os cabo-verdianos no país e no estrangeiro e dirigiu o foco das famílias e da sociedade para a necessidade de educação e da relação com o mundo. Sentimentos de fatalismo, ressentimento e menoridade falharam em se instalar. Pelo contrário, o amor à terra natal, a sodade e a morabeza tornaram-se elementos distintivos da alma do cabo-verdiano nos quais todos procuram se rever. Com a independência nacional e a ajuda externa mais abrangente e substancial, porque não limitada ao que Portugal poderia oferecer, a questão da sobrevivência deixou de se colocar. Como diria o poeta “as estiagens deixaram de nos meter medo”. O país com mais apoio financeiro e de outro tipo e maior acesso a mercados estaria pronto para passar de uma postura de sobrevivência para uma de luta pelo desenvolvimento. Com sorte e perspicácia dos governantes talvez pudesse capitalizar sobre as qualidades adquiridas no confronto com as dificuldades do país e fazer da luta pelo desenvolvimento também uma caminhada de sucesso. Quis o destino que não fosse assim.
As secas de 2017 e 2018 vieram relembrar com particular brutalidade que a vulnerabilidade das populações no mundo rural e a precariedade da sua existência não foi alterada substancialmente desde da independência. É um facto que investimentos de muitos e muitos milhões foram feitos ao longo de décadas e nos últimos anos em barragens, sistemas de irrigação e acções múltiplas de apoio a agricultores. A verdade porém é que não se submeteram a qualquer estratégia coerente de desenvolvimento e o resultado é o que se vê: a produtividade manteve-se baixa, a qualidade fraca, o mercado restrito e os canais de distribuição ineficientes. Deixaram as populações a funcionar numa lógica de sobrevivência e quando a seca adveio com particular dureza ficaram completamente expostas e mais uma vez teve-se que pedir ajuda internacional para minimizar o impacto no rendimento das pessoas e nos seus pertences. Alternativas de emprego e rendimento em sectores como a indústria e os serviços não foram construídas porque faltou visão, empenho para fazer as reformas no ambiente de negócios e não se apostou na educação com inteligência e sentido estratégico.
Olhando retrospectivamente pode-se constatar que realmente nunca se chegou a operar a mudança completa do paradigma de sobrevivência para o de desenvolvimento. Há provavelmente várias razões para isso mas é evidente que a principal é política. Num país de escassez brutal de tudo e funcionando numa lógica de sobrevivência, detém de facto o poder quem administra os recursos, garante os acessos e escolhe os ganhadores. O aumento expressivo de ajuda externa no período pós-independência serviu para legitimar o partido único que dizia querer acabar com as fomes e educar toda a gente. Nos anos que se seguiram o Estado cresceu de forma acelerada e com ele uma classe média a ele subordinada e grata enquanto se reduzia a parte da estrutura produtiva do país nas mãos de privados. Com tanta gente no Estado, nas empresas públicas e nas FAIMO na condição de dependentes é evidente que não havia espaço para se cultivar os valores civis e éticos indispensáveis ao desenvolvimento.
Desenvolvimento precisa de liberdade, autonomia, iniciativa e criatividade, para além de um ambiente socioeconómico e político que respeita os direitos da propriedade, dá garantia de cumprimento de contractos, trata a todos por igual e tem tribunais independentes para dirimir conflitos. O problema é que ao não existirem durante muitos anos ficou difícil institucionalizá-los na sua plenitude ao longo da segunda república. Nestas condições a resistência às reformas de todo o tipo e em particular às reformas económicas é enorme. É só ver a resistência da administração pública em adoptar procedimentos mais expeditos, o apoio transversal na sociedade que se dá à economia informal e o suporte explícito de que gozam certos interesses corporativos com prejuízos evidentes para o país. Contribui para a manutenção desta situação o facto de a ajuda externa e da cooperação ter mantido um papel proeminente e praticamente nos mesmos moldes mesmo nos anos de regime democrático não obstante a retórica no sentido diferente. Sem uma alteração dos hábitos a tendência é para as instituições e os actores deixarem-se ficar no seu papel tradicional e resistir às reformas que eventualmente irão enfraquecer o seu status sócio-económico e afectar negativamente nos meios que poderá aceder ou disponibilizar. Por aí se vê o quanto tem sido difícil pôr de lado a perspectiva de sobrevivência e abraçar a via de desenvolvimento.
Entretanto o país vai sulcando o seu caminho ainda com a pessoas a sonhar que as chuvas poderão trazer a felicidade, ou na falta delas, a água das barragens ou a água dessalinizada servirão para isso e para manter fixa as populações nas zonas rurais com as suas culturas de subsistência. Num outro registo assiste-se ao esforço de outros sectores como o turismo, a construção civil, o comércio, transportes e os serviços em geral em se manterem de pé perante os efeitos erosivos de uma economia em vários aspectos desestruturada e dominada pela informalidade. Em acréscimo têm ainda de suportar os custos de água, energia e outros produtos e serviços tornados caros precisamente por falta de eficácia na acção do Estado para pôr cobro à situação existente. Concluindo, pode-se dizer que sem a solidariedade de outrora, em que realmente estava em jogo a sobrevivência, todos quererão arrebatar o seu quinhão onde puderem e não haverá vontade crítica e orientação compreensiva e estratégica para efectivamente se criar valor e prosperar com benefícios para todos.

segunda-feira, setembro 16, 2019

Corrupção e populismo ameaçam as democracias

A democracia corre perigo em todo o lado. Há mesmo quem fale em recessão mundial da democracia. O mais recente exemplo das ameaças com que a democracia se depara vem precisamente do Reino Unido e da Inglaterra onde as ideias liberais, o parlamentarismo e o constitucionalismo assentaram arraiais pela primeira vez nos tempos modernos. Na confrontação sobre o Brexit, o processo de saída da União Europeia, tem-se assistido a um esforço deliberado do governo em minimizar o papel do parlamento. Primeiro recorreu-se a expedientes procedimentais que efectivamente o impediriam de deliberar sobre as questões cruciais do país. Agora o primeiro-ministro Boris Johnson prepara-se abertamente para, nas próximas eleições, se apresentar como paladino da vontade popular contra a vontade do parlamento num embate que promete opor a democracia directa à democracia parlamentar. A exemplo de outras democracias em que fenómenos semelhantes estão a acontecer, vê-se que o objectivo de certas movimentações políticas é ter dirigentes que se colocam acima da lei, que minam as instituições e submetem o interesse geral aos caprichos particulares. Para conseguir os seus intentos não têm qualquer pejo em cavalgar medos, paixões e preconceitos de multidões.
Em Cabo Verde sente-se também o impacto do mesmo populismo que vem causando estragos consideráveis tanto nas novas democracias como nas mais consolidadas. Os seus promotores, refugiando-se ora em discursos identitários, ora num mal disfarçado desprezo pelo pluralismo e ora numa hostilidade aberta às elites, supostamente querem apresentar-se como a cura ou a via para se ultrapassar os males da democracia, corrigir desigualdades e assimetrias regionais e promover melhor cidadania. Na prática, o que conseguem é a degradação institucional com perdas em eficiência e eficácia, um aumento de resistência a reformas essenciais para se ter prosperidade e alterar o quadro da desigualdade e acréscimos num cinismo na esfera pública que mina a confiança entre as pessoas, impede a cooperação entre elas e deixa cada uma perdida na sua verdade. Perante esta força há que contrapor uma outra em sentido contrário e é urgente que isso aconteça porquanto vem aí o ciclo eleitoral com os três certames autárquico, legislativo e presidencial e conhece-se perfeitamente o efeito da polarização que as eleições provocam.
As forças do populismo, porém não estão sozinhas nessa acção de erosão da democracia e das suas instituições. Paradoxalmente os cúmplices no processo vão-se encontrar nos partidos, na classe política em geral e em detentores de cargos públicos cujas instituições no “final do dia” são os alvos preferidos do populismo e da demagogia que ameaça a generalidade das sociedades democráticas. Exemplos encontram-se em todo lado sendo o caso do Reino Unido referido acima o mais recente. E na maior parte dos casos trata-se de gente do sistema político e não “outsiders” como Donald Trump. É só ver o caso de candidatos a deputado e a primeiro-ministro que, em cima das eleições, ao afirmar que não lhes interessa o cargo de deputado, diminuem o papel do parlamento enquanto órgão representativo do povo. Ou os vários casos de detentores de órgãos de soberania que na relação com os outros órgãos põem em causa o princípio da separação de poderes deixando-os fragilizados e desacreditados. Ou ainda o espectáculo oferecido pelos partidos, a digladiarem-se como se inimigos fossem, revelando falta de tolerância mútua, défice de honestidade nos argumentos e fraca adesão à verdade dos factos.
O efeito erosivo do populismo sobre as democracias, nos últimos tempos, vem-se fazendo sentir indiscriminadamente nas velhas e novas democracias. Tem encontrado no ambiente actual, dominado pelas novas técnicas de comunicação e dinamizado pela acessibilidade oferecida pelas redes sociais, as condições certas para se aprofundar ainda mais e pôr em causa os alicerces institucionais do sistema. A tolerância cada vez maior da sociedade a expressões de individualismo destemperadas têm contribuído para uma esfera pública dominada por manifestações quase narcisísticas de indivíduos na ânsia de se mostrarem autênticos, por comportamentos de políticos a copiar celebridades e por tentativas de fazer da governação, em parte, um espectáculo em ilusionismo. Os excessos, as fugas às normas estabelecidas e o aproveitamento directo ou indirecto dos cargos têm encontrado um travão no sistema judicial e nos tribunais independentes.
Não é por acaso que choques terríveis com os juízes se têm verificado em países como Polónia, Hungria e os Estados Unidos à medida que se acentua a deriva autoritária. A exigência que o Estado no exercício do poder deve respeitar a Constituição e as leis democraticamente criadas faz do poder judicial o guardião do sistema democrático. Torna-o também num alvo a abater ou a desacreditar para quem quer exercer o poder colocando-se acima da lei e considerando-se como único capaz de representar o interesse geral e de realizar o bem comum. A tentação de instrumentalizar o sistema também é grande tanto de quem selectivamente pela judicialização da política recorre aos tribunais como forma de fazer política por outros meios como daqueles que pela politização da justiça põem em causa a credibilidade do sistema atribuindo-lhe desígnios que violam a separação de poderes. As experiências recentes da crise nas democracias reafirmam a importância de se ter um sistema judicial íntegro, tecnicamente capaz e credível. Em tempos de fragilização das instituições democráticas o último recurso são os juízes. Por isso mesmo não se devem deixar apanhar nem pelos excessos de protagonismo pessoal que caracteriza os tempos actuais nem muito menos pelo tipo de justicialismo anti-classe política que às vezes se manifesta.
Uma outra ameaça com que as democracias se confrontam é a corrupção. Aliás, uma parte da energia que move os populismos nos tempos actuais vem da extrema sensibilidade contra a corrupção nas suas diferentes formas que se desenvolveu na pós- crise financeira de 2008. Desvio de fundos públicos para privados, tráfico de influências, conflito de interesses, subornos, lavagem de capitais hoje são práticas mal vistas e condenadas transversalmente nas sociedades democráticas. As pessoas ainda ressentem-se do facto de que com a austeridade e perda de rendimentos terem pago a crise enquanto os seus autores no sector financeiro saíram praticamente ilesos. Qualquer esperança de conter a deriva para o populismo passa por uma luta efectiva contra a corrupção. Nisso é fundamental um sistema judicial íntegro e competente que também deve estar salvaguardado de ataques dos que preferem governar acima das leis e em seu interesse próprio. Num país como Cabo Verde em que a dependência do Estado é enorme e abrangente e em que o acesso a oportunidades de negócio pode ser ou não facilitado pelo Estado não é tarefa fácil. Mas é necessário que se concretize para que o desenvolvimento possa acontecer de forma inclusiva e não enviesada só para enriquecer uns poucos bem posicionados e relacionados.
                                                                                                                  Humberto Cardoso

Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 11 de Setembro de 2019

segunda-feira, setembro 09, 2019

Para fechar em definitivo as feridas da alma

A memória dos acontecimentos de 31 de Agosto de 1981 ficou este ano marcada pelo anúncio da promulgação da lei que visa a reparação das vítimas de tortura, em 1977 em S. Vicente e em S. Antão em 1981, feito pelo próprio Presidente da República, Jorge Carlos Fonseca.
A proposta de lei tinha sido aprovada pelo Conselho de Ministros em Maio e depois discutida e favoravelmente votada na Assembleia Nacional em Julho. Finalmente, passados quarenta e dois anos e trinta e oito anos, respectivamente, que se verificaram os dois acontecimentos, pode-se enxergar vislumbres de justiça para com as vítimas do regime de partido único na assunção da responsabilidade do Estado de Cabo Verde, traduzida em compensação financeira para os próprios e seus familiares. Mas, como é evidente, a compensação material não é suficiente e, naturalmente, que esperam o pedido formal de desculpas do Estado para que as feridas da alma, desde então abertas, sejam definitivamente fechadas.
Depois dos órgãos de soberania, o Governo e a Assembleia Nacional, terem feito a sua parte e assegurado a aprovação da lei, é agora o momento para o Presidente da República, enquanto Chefe de Estado, com a apresentação de desculpas reiterar que “o respeito pela dignidade humana e o reconhecimento da inviolabilidade e da inalienabilidade dos direitos humanos são o fundamento de toda a comunidade humana, da paz e da justiça”. A celebração pela primeira vez do Dia Nacional dos Direitos Humanos a 25 de Setembro, por sinal também dia de entrada em vigor da Constituição de 1992, seria o momento perfeito para uma intervenção que fizesse justiça às vítimas.
De facto, o que aconteceu em S.Vicente nos cinco meses a seguir às prisões de 4 de Junho de 1977 e nos muitos meses após o 31 de Agosto de 1981, até aos julgamentos do Tribunal Militar de 20 de Março de 1982, constituiu um ataque sistemático do Estado contra todos os direitos que hoje todos os caboverdianos têm como garantidos. Ninguém hoje é preso, e muito menos torturado ou morto, por expressar o seu pensamento, por se reunir e manifestar. Ninguém é preso por polícias de “Segurança” e retido em prisões militares por dias e meses sem ser apresentado ao poder judicial e muito menos ser julgado por tribunal militar. Ninguém se vê na contingência de não viajar porque lhe negaram “uma autorização de saída”, ou, ainda pior, de lhe ser revogada a nacionalidade cabo-verdiana por decisão do Conselho de Ministros na sequência de processo organizado e instruído pela “Segurança” (artº 14 da Lei de Nacionalidade, BO de 24/07/76).
Na época, todos esses atentados aos direitos humanos tinham suporte em leis que sistematicamente foram produzidas nos primeiros anos após a independência, tais como a lei do boato que estipulava penas de seis meses de prisão (decreto-lei 37/75 de 1975), a lei que permitia à Segurança prender por um total de noventa dias (decreto-lei nº 95/76 de Outubro de 1976) e a lei do tribunal militar que podia julgar civis (decreto-lei nº 121/77 de Dezembro de 1977). Essas são algumas das leis que, com outras do mesmo teor e o suporte de instituições como as forças armadas, polícia e milícias populares, constituíram um aparato de repressão do regime que se manteve intacto até Maio de 1990, data em que a então Assembleia Nacional Popular procedeu à revogação das leis referidas no âmbito da abertura política iniciada três meses antes, a 19 de Fevereiro. O que aconteceu, em Junho de 1977 e no 31 de Agosto de 1981, não foi pois por mero acaso ou excesso de autoridades locais ou agentes menores. Qualquer dúvida a esse respeito, que alguns teimam em manter, desvanece-se facilmente perante a evidência do envolvimento de todo o aparato do Estado e ao teor dos comunicados oficiais e das declarações dos principais dirigentes registadas em jornais e revistas da época.
As críticas que têm sido feitas à lei de reparação ora promulgada vão no sentido de dizer que não é suficientemente abrangente porque não abarca todos os casos de tortura. Também questionam porque só é dirigida para os acontecimentos verificados em S. Vicente e S. Antão. Na linha desses argumentos há quem terá proposto que se adiasse a sua aprovação. A verdade é que indo por aí se estaria, de facto, na proverbial situação de fazer do óptimo o inimigo do bom. Mapear todas as situações de tortura verificadas durante o regime de partido único, para depois agir, significaria adiar indefinidamente uma tomada de posição do Estado no sentido de fazer justiça a vítimas já conhecidas. Foi acertado ficar-se pelos casos que estão amplamente documentados porque alvos de acção repressiva e sistemática do Estado por vários meses e com envolvimento de polícia, forças armadas, tribunais militares e outras instituições do Estado em que não havia dúvidas qual era a cadeia de comando.
Não é por acaso que foram precisos quase trinta anos de regime democrático para que finalmente o Estado garantisse o direito de reparação às vítimas do regime. Até agora, todos os argumentos têm sido bons para se adiar a questão. Felizmente, finalmente conseguiu-se quebrar a barreira criada por esses argumentos e, pela primeira vez, afirmar o princípio básico de justiça e da responsabilidade do Estado para com as vítimas, a começar pelas já amplamente conhecidas e documentadas. Conseguido esse primeiro objectivo, certamente que casos em todo Cabo Verde, alguns até agora mais obscuros, venham a ser tidos em devida conta. para que a justiça chegue a todos. Para isso, como bem diz o sr. Presidente da República no texto de anúncio de promulgação da lei, é importante que se faça a certificação dos factos justificantes da atribuição da pensão de forma objectiva e séria para evitar aproveitamentos indevidos das compensações. Com a abertura feita para se investigar o regime de partido único não parece haver muitas dificuldades em conseguir dados que identifiquem as suas vítimas reais. Afinal, tudo aconteceu aqui no país. Imagine-se, entretanto, o quanto que o Estado poderia ter poupado se esses mesmos critérios tivessem sido aplicados aos processos de pensão dos auto-proclamados combatentes da liberdade da pátria.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 927 de 04 de Setembro de 2019.

terça-feira, agosto 06, 2019

À procura de respostas

O ano parlamentar termina hoje dia 31 de Julho. O último acto vai ser o Debate sobre o estado da Nação que desde a revisão constitucional de 1999 foi instituído como o momento alto de responsabilização política do governo perante a Assembleia Nacional.
A expectativa geral é que depois do discurso do primeiro-ministro, a mostrar as condições em que se encontra o país nos diferentes sectores e também a revelar as suas linhas de actuação e as prioridades da sua governação no futuro próximo, deverá seguir-se o posicionamento dos deputados num exercício do contraditório elucidativo das questões nacionais acompanhado de propostas alternativas e de avaliação de percurso. Infelizmente raramente a qualidade do debate satisfaz, porque tende a descambar para acusações mútuas que não acrescentam valor ao processo democrático de encontrar o melhor caminho para o país. Não obstante, alimenta-se sempre a possibilidade de ser desta vez que o debate vai-se mostrar positivo e confirmar as virtualidades da democracia representativa.
Há certo tipo de confrontos que não deviam acontecer considerando que as duas maiores forças políticas já tiveram a possibilidade de se alternar na oposição e no governo. Têm a obrigação de conhecer os reais constrangimentos do país, de saber quais os limites em matéria orçamental e de dívida externa que não se pode ultrapassar e, com esses dados, ponderar bem as metas propostas e as promessas feitas. Se essas balizas fossem seguidas o discurso político não ficaria por abordagens primárias que invariavelmente asserta que a situação das populações resulta de algum tipo de abandono ou de discriminação. Não se insistiria num discurso que tende a reduzir a relação com os governantes a momentos de reivindicação seguidos de entregas, inaugurações e actos de desencravamentos sem que todo esse investimento público se traduza realmente em ganhos significativos e sustentáveis, em forma de rendimento e de qualidade de vida. Nem a confrontação política seria na linha de que o adversário, para conseguir vantagem política, deseja que as coisas não corram bem, do tipo “que não haja chuva, que os aviões não voem, os barcos não navegem, falte luz e água, etc”. Infelizmente, o facto é que, apesar de toda a experiência dentro e fora da governação, a opção preferida é no essencial por reproduzir o paternalismo do Estado. Só que esse é o caminho aberto para se manter o estado de crispação política em que a atitude assumida por muitos intervenientes, em particular no parlamento, é de “recadeiros” de interesses particulares, cada um procurando suplantar ao outro nas denúncias de abandono e em fazer levar a “quem de Direito” as reivindicações das populações.
Há quem veja na democracia o sistema político mais adequado para se lidar com a realidade complexa das sociedades humanas. Ninguém nega que o exercício da liberdade e a defesa do pluralismo têm sido os instrumentos fundamentais para, face a problemas complexos, se evitar ser levado por soluções simplistas e também de não ficar preso e sem alternativa quando enveredar por uma via sem saída ou sem muito potencial. Também a aceitação do facto de que não é possível captar a verdade absoluta e conhecer o caminho certo para a prosperidade abre o caminho para o diálogo, para negociações e para os compromissos necessários à prossecução dos objectivos de toda a comunidade. Não se cai na tentação de demonizar o outro, de o encarar como inimigo e de ver motivos obscuros nas suas propostas. Evitando isso o discurso deixa de ser primário, tribal ou de reivindicação de identidades complicadas para ser o da cidadania, da igualdade e da criação de oportunidades para todos.
O problema é quando a democracia transmite sinais que fraqueja no que é expectável que deva oferecer e as instituições se mostram desorientadas com falhas na representatividade e com dificuldades em oferecer estabilidade. Sucedem-se movimentações da sociedade civil e aparecem múltiplas propostas para se alterar o sistema eleitoral e promover formas de democracia directa não só no país como também nos partidos. A par disso, nota-se um excesso de protagonismos pessoais dos titulares de cargos políticos e défice de conformidade com os procedimentos. Também abre o caminho para ser desafiado e até confrontado com opções que, embora democráticas, pelo facto do poder conquistado ter legitimidade nas urnas dada pelo voto popular, apresentam práticas que beliscam os direitos fundamentais e a independência do poder judicial. Falha assim na sua função central que é de garantir a via para a prosperidade, na liberdade e segurança. Não tarda muito que a impaciência das populações se venha a manifestar e que as tentações do populismo se tornem cada mais difíceis de evitar com claro prejuízo para a consolidação da democracia representativa, a única que historicamente defendeu a liberdade.
O debate sobre o estado da Nação em ambiente de tensões populistas dificilmente vai poder trazer à luz do dia as extraordinárias questões que se colocam ao país a começar por: como fazer da administração pública uma máquina eficiente e eficaz; como baixar os custos de contexto e os custos de factores como água e energia; como assegurar transportes previsíveis, seguros e a custos baixos entre as ilhas e entre o arquipélago e o exterior; como fazer os operadores nacionais ganhar mais com o investimento directo estrangeiro e o turismo; como articular a disponibilidade financeira com outras medidas para que o financiamento das empresas se concretize e aumente a formalidade e a produtividade da economia; como mover as escolas, os professores e os alunos para abraçarem a luta pela qualidade; como organizar o mercado de trabalho para ser mais qualificado e mais produtivo; como orientar estrategicamente o sector da saúde para garantir sustentabilidade futura; como direccionar a agricultura e a pecuária para produtos de maior valor acrescentado; como reequacionar o embargo para que produtos de Santo Antão tenham acesso aos mercados de Sal e Boa Vista; como promover S. Vicente no exterior para que os investimentos já feitos tenham um maior retorno; como efectivamente fazer circular pessoas, bens e serviços na ilha de Santiago para que não haja discrepâncias tão graves no PIB per capita entre vários pontos do seu território; como modelar uma política de habitação que em simultâneo dê atenção às migrações internas, aos défices de habitações e à mobilidade de mão-de-obra e finalmente como reorganizar as forças de segurança para fazer de Cabo Verde um país seguro, com capacidade de responder a emergências diversas e fiscalizar as suas águas e costas. Mas são essas questões que as pessoas que têm manifestado pelas diferentes ilhas querem respondidas. Esperemos seja este o debate sobre o estado da Nação que lhes vai fazer a vontade.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 922 de 31 de Julho de 2019.

quarta-feira, julho 31, 2019

A magia dos milhões

Falar de milhões é uma constante do discurso público em Cabo Verde. Até parece que se não se trouxer à baila os milhões a comunicação política não tem significado. Da boca de governantes ouve-se quase a martelar a referência a milhões de escudos, milhões de contos, milhões de euros e milhões dólares.
São milhões que vêm da ajuda externa, milhões que foram disponibilizados em linhas de crédito, milhões que vão ser investidos e milhões que serão gastos. Pelo número de vezes que são repetidos os anúncios de milhões o mais normal é que se fique com a impressão que de facto há “dinheiro que não acaba”. A repetição justifica-se porque de alguma forma se criou a ideia em Cabo Verde que a principal função do governo é ir buscar dinheiro lá fora para depois distribuir no país. Uma função que historicamente serviu para legitimar o poder e instituir o paternalismo do Estado a partir do qual laços de dependência estabeleceram-se em todas as direcções.
Não espanta pois que seja prevalecente no país a ideia que desenvolver significa, fundamentalmente, mobilizar recursos e fazer obras. Tudo o resto, designadamente melhorar o ambiente de negócios, aumentar a eficácia dos serviços do Estado, apostar na educação, ser proactivo na atracção de investimento externo, densificar o tecido empresarial e promover as exportações não deixa de ter importância pelo menos no discurso, mas na prática é secundarizado. Quanto aos resultados conseguidos depois de aplicados os recursos e feitas as obras não se lhes dispensa demasiada atenção. Aos críticos pode-se sempre dizer que há obra feita e que o governo cumpriu com a sua parte. E também que cabe à sociedade, ao sector privado e, em tempo de alternância, ao novo governo gerir com eficiência e eficácia o que se conseguiu da acção do Estado. Para quem no momento dirige o país o foco estará sempre em conseguir mais recursos e em fazer mais obras. Afinal, acredita-se que a governação é mais avaliada pelo que se anuncia e depois se inaugura do que pelo que o país realiza em matéria de crescimento, emprego e mais prosperidade para todos.
Imagine-se que corrigir as distorções no processo de desenvolvimento e do papel do governo, induzidas durante décadas por tais práticas, não será tarefa fácil. Deixaram marcas na estrutura produtiva do país pouco diversificada e tornada ineficiente pela informalidade e baixa produtividade. E também nas fragilidades do sector privado que dificilmente conseguiu singrar confrontado com custos excessivos de factores, deficiências de transporte, regulação inadequada e mercado exíguo e fragmentado. Vêem-se na cultura administrativa que com o papel dominante do Estado se impôs a toda a sociedade e que, focalizada em processos e procedimentos e quase indiferente a resultados, se revela hostil ao mundo de negócios. E ainda nas expectativas da população que geralmente quando algo acontece nas suas comunidades é porque estão a ser “contempladas” com alguma obra, ou tidas com “ganhadoras” de alguma infraestrutura ou a ser satisfeitas nas suas “reivindicações”. Sendo prevalecentes no Estado, na sociedade e na economia essas distorções levam a uma rigidez e a uma inércia que tornam difícil mudanças rápidas. E isso é particularmente preocupante quando ainda se precisa continuar a mobilizar recursos e a fazer obras e no processo a correr o risco de ser engolido pela máquina existente e nunca poder alterar os procedimentos e a cultura subjacente no sentido desejado.
Sem mudança efectiva e com o andar dos tempos, mesmo com principais indicadores macroeconómicos a se mostrarem estáveis, custos enormes tendem a acumular-se e poderão acabar por afectar a todos. A dívida pública, o défice orçamental, as dificuldades financeiras das empresas públicas, a vulnerabilidade do país a choques externos, o nível elevado dos créditos malparados, a alta taxa de desemprego e o crescimento ainda relativamente baixo considerando a conjuntura externa favorável são alguns dos sinais a se ter em devida conta. Um outro sinal é o custo elevado que se tem que suportar para continuar a ter energia e água sem ruptura e com qualidade, acontecendo o mesmo com os transportes aéreos e já previsto para os transportes marítimos que vão exigir subvenção estatal de 300 mil contos anuais. Em sectores estratégicos para o futuro como são por exemplo a segurança, a educação e a saúde os custos em não se poder ultrapassar a rigidez e a inercia de décadas poderão efectivamente pôr em risco o almejado para o futuro do país. Perante estas realidades a tentação de adiar ou de ignorar os problemas existentes como tem sido a norma até recentemente não é de todo uma opção a considerar.
Uma outra consequência de cada vez mais se tornarem notórias as dificuldades em mudar o país, em conseguir crescer a taxas elevadas e em debelar o desemprego é a de predispor as pessoas para uma espécie de corrida geral para a captura dos recursos disponíveis. E aí é claro que a pressa e a ambição em vencer em detrimento dos outros acabe por lançar pela janela fora os valores da verdade, da justiça e da solidariedade indispensáveis para se ter o nível de cooperação entre as pessoas e todos puderem prosperar. Haverá quem vai se apresentar como vítima e ou como tendo direito a discriminação positiva. Bodes expiatórios vão ser encontrados conforme a conveniência de uns e outros e manifestações de euforia vão ceder lugar a frustrações e mesmo a ressentimos sempre dirigidos a outrem. No mundo de hoje - em que as tecnologias que prometeram tornar as pessoais mais sociais acabaram por as confinar em grupos identitários cada vez mais restritos - dinâmicas do género têm efeitos cada vez mais perversos. No processo perde-se o sentido do todo nacional, toda a questiúncula é colorida pelas rivalidades das ilhas e o desenvolvimento fica comprometido porque é evidente que não vai resultar do somatório da actividade nas ilhas mas fundamentalmente do que o país pode engajar e ganhar de uma relação estreita com a economia mundial.
Da postura do governo irá depender muito se se vai conseguir travar a degeneração deste processo em curso há décadas. Se ficar pelo debitar de milhões e pelas obras que prometem desenvolvimento em vez de engajar-se efectivamente na remoção de obstáculos e na criação de condições para que a máquina económica e produtiva do país possa funcionar, vão se sentir os efeitos do esmorecimento geral, impaciência e falta de confiança da população. As pessoas precisam que se lhes mostre um outro caminho, onde serão realmente protagonistas, em que as dificuldades não estarão escondidas e em que os frutos do esforço colectivo serão de forma justa partilhados por todos. Basta de paternalismos, de passes de mágica e de eleitoralismo divisivo.


Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 921 de 24 de Julho de 2019.

segunda-feira, julho 22, 2019

Será que tem tudo para dar certo?

Pelos dados do INE relativos ao 1º trimestre de 2019 e os dados definitivos de 2017 e projectados de 2018 pode-se ver que o estado da economia nacional continua animador. Isso apesar de se estar ainda muito longe do prometido crescimento médio de 7% no quinquénio 2016/2021.
Cresceu 3,7% em 2017, 5,1 em 2018 e o FMI espera que nos próximos anos a taxa se mantenha nos 5% do PIB. Para a instituição internacional a perspectiva futura do país continua positiva apesar dos riscos da dívida pública, actualmente em níveis dos mais elevados do mundo, e da própria conjuntura económica mundial que dá sinais de algum arrefecimento.
A aprovação pelo FMI na segunda-feira, 15 de Julho, de um Instrumento de Coordenação de Políticas (PCI na sigla inglesa), a pedido de Cabo Verde, para monitorizar reformas e assegurar que metas nos indicadores macroeconómicos sejam cumpridas, vai no sentido de se acrescentar à vontade interna uma pressão do exterior e conseguir que, entre outros, o objectivo da sustentabilidade da dívida seja garantido. Também Cabo Verde ao solicitar esse instrumento sem que fosse obrigado pela necessidade de recorrer aos fundos do FMI quis certamente transmitir um sinal de confiança aos investidores, financiadores e a outros operadores. E natural­mente que espera uma resposta deles com impacto no país em particular na criação de riqueza e no aumento de empregos disponíveis.
O optimismo, que os números de crescimento depois de anos com valores rasteiros parecem autorizar, deve porém ser temperado pela realidade com que as pessoas se deparam no dia-a-dia. Aliás, a impaciência com dificuldades, constrangimentos e promessas não cumpridas já demonstrada nas manifestações de rua em diferentes ilhas e pontos do território nacional é ilustrativa a esse respeito. Deixa entender pelo menos três coisas: uma, que os obstáculos, resistências e inadequações representadas por pessoas, instituições e valores prevalecentes constituem um lastro difícil de se livrar inteiramente; outra, que o presente ritmo de crescimento está aquém do que seria necessário para que realmente afectasse a vida das pessoas: e outra ainda que as políticas poderão não estar à altura da complexidade dos problemas do desenvolvimento. Conseguir elevar o esforço nacional para atingir resultados e melhorar a vida das pessoas é o grande desafio que se coloca a todos no momento actual de vida do país. Não é evidente que se tenha, de facto, ideia da dimensão do desafio.
É curioso como, contra toda a evidência histórica, se insiste em passar a mensagem que o desenvolvimento é um objectivo perfeitamente ao alcance de todos. A verdade é que segundo o FMI entre 180 países só 36 são desenvolvidos ou como classifica o Banco Mundial apenas 81 com mais 12 mil dólares anuais ascendem à posição de países com alto rendimento. Historicamente, crescimento acelerado da economia só se verificou com a industrialização, particularmente a partir do século XIX, e em muitos poucos países. Na última metade do século XX e especialmente nas últimas décadas alguns países conseguiram romper com ciclos de pobreza e baixo crescimento para ascender a condição de países desenvolvidos. Para isso contribuiu imenso o processo de globalização com a abertura dos mercados, as facilidades de circulação do capital e o desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação e as múltiplas revoluções em matéria de transporte. Mesmo assim os casos de sucesso são poucos e situam-se principalmente no Sudeste asiático. Alguns outros não conseguiram escapar da chamada armadilha do rendimento médio “middle income trap” enquanto muitos, designadamente no continente africano, nem do ciclo da pobreza dão sinais claros de se libertarem.
Perante uma realidade tão dura espanta a ligeireza com que já se tornou habitual em Cabo Verde confrontar a problemática do desenvolvimento. Quantas vezes se ouviu dos governantes e políticos a expressão de que o país, uma ilha ou um município “tem tudo para dar certo”, como se fosse fácil determinar todos os ingredientes do desenvolvimento e através de alguma fórmula mágica produzi-lo quando se mostrasse conveniente. A experiência de avanços e recuos de países ricos em recursos naturais e tão diversos como o Brasil, Angola, Congo, Argentina, Irão e Paquistão demonstra que ninguém de facto “tem tudo para dar certo”. Os que conseguiram realizar a proeza e se tornaram países desenvolvidos foram aqueles que no processo souberam cultivar os valores certos, construir as instituições adequadas e promover o envolvimento massivo das famílias, da sociedade e do Estado numa educação de excelência. Não se deixaram apanhar no ilusionismo das políticas miraculosas, na facilidade que a ajuda externa parece oferecer com soluções à medida e no canto de sereia que é aposta na venda de recursos naturais como o petróleo, diamantes e minerais. Infelizmente não foi o que aconteceu em Cabo Verde.
Nas ilhas, com a pobreza de recursos naturais e a falta de chuvas, a fome e a emigração e também a distância dos grandes centros economicamente dinâmicos, devia imperar um espírito realista e pragmático. Outrossim, a vivência de séculos muitas vezes no limiar da sobrevivência somente pontuado por momentos efémeros de prosperidade devido a chuvas irregulares, interesse externo pontual por facilidades de navegação e alguma procura externa por bens e serviços condicionou a dimensão da população e permitiu a emergência de uma realidade humana e cultural única que podia traduzir-se em vantagens num ambiente económico de interacção com o mundo. O mais normal é que o país potenciasse isso tudo para traçar um caminho para além da pobreza e isolamento como Estado independente. Outros em situações similares como as Maurícias fizeram-no. Abriram-se ao mundo, industrializaram-se e fundamentalmente disponibilizaram-se para se adaptar. Com alterações profundas a verificar-se no comércio mundial souberam passar dos têxteis para a electrónica, depois para o digital e mais tarde para os serviços financeiros e o turismo de grande valor acrescentado.
Cabo Verde apoiado na ajuda ao desenvolvimento que afastava para a longe a ameaça da fome deixou-se levar por muito tempo pelo ilusionismo, seja ela da espera da chuva, da sua importância geoestratégica ou sua riqueza marinha. A factura paga por isso mostra-se nas empresas públicas quase falidas, nos investimentos sem o retorno prometido, na baixa produtividade do trabalho, no desemprego a dois dígitos e no sistema de ensino desadequado para a empregabilidade e para fazer o país competitivo e inovador. Não obstante continua o jogo de promessas de obras que depois não resultam em soluções de desenvolvimento. Para reparar o mal procura-se compensar com novas promessas de obras num círculo vicioso que cria paulatinamente impaciência, frustração e em certos casos ressentimento profundo, com todas as suas consequências. Como é evidente o eleitoralismo dominante na política cabo-verdiana dificulta que se encontre energia e foco para se escapar deste círculo vicioso. Talvez a pressão externa via o instrumento do FMI se revele providencial para que se consiga finalmente fazer as reformas necessárias, manter a disciplina fiscal e diminuir o défice e a dívida pública. Também seja instrumental para ultrapassar as quezílias partidárias e fazer a reforma do ensino que prioritariamente o país precisa. Que assim seja.
Humberto Cardoso



Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 920 de 17 de Julho de 2019.

segunda-feira, julho 15, 2019

Não se deixar levar pela divisão

Neste ano de 2019 a comemoração do 5 de Julho, dia da independência, ficou marcada pela habitual cerimónia oficial na Assembleia Nacional e pela manifestação de mais de uma dezena de milhar de populares nas ruas de S. Vicente.
No parlamento os actores políticos aparentemente alheios à situação real sucediam-se nos discursos de auto-congratulação por, supostamente, se ter feito de um país dado como inviável no momento da independência o Cabo Verde de hoje com desenvolvimento sustentável. Nas ruas do Mindelo com os pés no chão as multidões cansadas de discursos sem consequência relembravam o quanto isso tem de ilusório, mostrando as dificuldades quotidianas de existência. O contraste nas posições não ficou por aí. No acto oficial ainda se insistiu nos discursos a homenagear os auto-intitulados obreiros da independência, passando uma esponja pelos 15 anos de ditadura que protagonizaram, deixando cair para segundo plano a necessidade da união de todos os caboverdianos numa comunidade política de liberdade, pluralismo e respeito pela dignidade humana. Já na manifestação, o exercício vigoroso da liberdade garantiu que fosse ouvida a voz dos que temem que o seu presente e futuro continuem a estar comprometidos por opções governativas que em legislaturas alternadas e até agora não se mostraram à altura de produzir os resultados prometidos.
Este encontro díspare de discursos, percepções e expectativas no dia 5 de Julho já se tinha verificado há dois anos atrás em 2017. Também na altura ficou um registo no editorial deste jornal como sendo uma voz da sociedade civil cabo-verdiana que se devia escutar com muita atenção. No seio da classe política e nas reacções do governo a tentação então foi de ver jogadas políticas, desvalorizar as questões colocadas e de praticamente ignorar os desejos de uma franja crescente de cidadãos numa participação política livre de amarras político-partidárias. Outra vez, em 2019, algo atenuado, repetem-se algumas dessas apreciações. É pena que seja assim, porque corre-se o risco de perder mais uma oportunidade de se fazer uma análise aprofundada do fenómeno político cabo-verdiano e de como poderá vir a ser influenciado pelo que se passa em outras democracias. O ciclo eleitoral começa no próximo ano de 2020 com as eleições autárquicas provavelmente separadas das legislativas por seis meses e estas das presidenciais também por seis meses, facto que já por si só define este ciclo como diferente por ser mais fácil o contágio. Se se juntar a isso que vão ser eleições onde pela primeira vez se irá sentir todo o efeito disruptivo das redes sociais, como vem acontecendo em várias democracias desde o referendo do Brexit e da eleição de Trump, tudo leva a crer que irão apresentar características nunca antes vistas. Razão bastante para análises e apreciações mais cuidadas e que não fiquem pelos clichés dos tempos passados.
Um outro aspecto a ter em devida consideração é que essas manifestações não são um simples sintoma de um mal-estar que seria típico de S.Vicente por resultarem de reivindicações só ali feitas. Há quem fale de bairrismo numa espécie de reacção ao centralismo do Estado, mas isso seria redutor. Razões outras e mais transversais em todo o país deverão existir. É o que justificam as manifestações já verificadas noutras ilhas e com exigências similares, mas, obviamente, numa escala mais reduzida pois não têm o nível de concentração urbana e a mesma tradição de agitação política de S. Vicente. Por isso, a haver descontentamento em relação a questões abrangentes como emprego, rendimentos, conectividade e serviço deficiente da administração pública o mais natural é que tenha caracter geral e não fique só por uma ilha. Afinal trata-se de um país e de um estado unitário e não se espera que haja políticas implementadas na perspectiva que vão beneficiar uma ilha e descriminar outras. Investimentos feitos em qualquer ponto do território ganham sentido e legitimidade se tiverem sempre presente o interesse geral. Havendo mal-estar em qualquer ponto do país deve-se analisar para saber que medidas de política ficaram aquém dos resultados propalados em vez de se assumir que com protestos e reivindicações as pessoas estão a reagir a bairrismos e a outros interesses menores.
S. Vicente, por razões designadamente da sua história económica, legado cultural e vivência urbana foi alvo de investimentos em consonância com a sua vocação de elo de ligação do país à economia mundial. Como é uma evidência histórica que os momentos de alguma prosperidade gozada no país estão intimamente ligados à satisfação de alguma procura externa via prestação de serviços ou exportações, tais investimentos faziam sentido e esperava-se um retorno que devia beneficiar todo o país. Não aconteceu em boa medida porque depararam-se com políticas contrárias à abertura ao mundo, não foram articuladas com medidas de políticas noutros sectores e em muitos casos não foram feitos no tempo próprio. O país perdeu com isso e não é por acaso que hoje a sua economia se apresenta pouco diversificada e ainda muito dependente do turismo resultante da procura externa para o “sol e mar” que as ilhas do Sal e da Boa Vista magnificentemente oferecem.
O mal-estar de S.Vicente deve ser assumido como o mal-estar do país no seu todo por ver investimentos nacionais vultuosos feitos ainda sem o retorno desejado na criação de riqueza e empregos desejados. Deve ser uma mola a impulsionar para acção, para se remover os obstáculos e simplificar o processo de decisão estatal, clarificar a política de atracção de investimento externo e apostar fortemente na formação dos recursos humanos. Não é razoável subutilizar investimentos já realizados particularmente quando se sabe que com a dívida pública nos três dígitos há fortes constrangimentos para investimentos do Estado. Pelo contrário, há que os potenciar e por isso há que fazer aposta forte e urgente em S.Vicente.
O país tem que ser sempre visto no seu todo mas como os recursos são escassos devem ser empregues de forma a trazerem o máximo de retorno e criarem o maior número de empregos. Porém, políticas de redistribuição para assegurar a sustentabilidade da diversidade no quadro nacional e decisões no planeamento do investimento na perspectiva de potenciar o país para aproveitar oportunidades futuras não podem ignorar nenhuma ilha. Mais do que nunca a ideia da nação que há mais de um século une todos os cabo-verdianos deve ser a base de sustentação para a construção de um futuro comum e factor fundamental para não permitir que manifestações de frustração e ressentimento e também de bairrismos e impulsos hegemónicos se coloquem no caminho do desenvolvimento e da prosperidade desejados. Não deve haver dúvidas a ninguém que a divisão é, por excelência, o sentimento que a história destas ilhas regista como o mais anti-caboverdiano.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 919 de 10 de Julho de 2019.

segunda-feira, julho 08, 2019

A independência não é matéria de disputa política

Na sexta-feira passada, dia 28 de Junho, a Assembleia Nacional aprovou na generalidade a proposta de lei do Governo que define a pensão financeira a atribuir às vítimas de tortura e maus tractos ocorridos em S. Vicente e S. Antão em 1977 e 1981.
O acto foi um grande acontecimento na medida em que confirmou a centralidade do princípio de respeito pela dignidade humana na relação entre o Estado e os cidadãos como bem estabelece a Constituição de 1992. Ficou claro que havendo situações como as das prisões e torturas de 1977 e 1981 em que cidadãos ficaram completamente indefesos perante o poder do Estado, sofrendo danos físicos, psicológicos e morais no processo, é de elementar justiça que no mínimo recebam reparação do Estado. A responsabilidade civil e objectiva do Estado assim o exige e, por isso mesmo, não colhe trazer para o debate a determinação dos culpados como passo prévio para se decidir a reparação. O Brasil, por exemplo, tem uma lei de amnistia dos agentes da ditadura, mas nem por isso tal facto constitui impedimento para o Estado fazer reparações financeiras aos que sofreram torturas e outros danos durante o regime dos militares.
O debate parlamentar que antecedeu a aprovação da proposta de lei deixou-se levar pelos caminhos mais primários do discurso político. A bancada do PAICV pôs-se na posição impensável num parlamento democrático de defender o regime de partido único, os seus actos e os seus dirigentes. Logo depois já estava a acusar as vítimas de tortura de terem sido agentes contra a independência e a dizer que a haver maus tratos os culpados encontravam-se entre os futuros dirigentes do MpD. Ao longo da discussão do diploma várias outras tácticas foram utilizadas para desvalorizar a matéria. Além de desacreditar as vítimas, ainda se tentou em intervenções sucessivas banalizar o sucedido em 1977 e 1981 aludindo a tortura no regime democrático, questionando o porquê do foco nos acontecimentos de S. Vicente e S. Antão e aliciando pessoas a requerer pensão do Estado por razões espúrias. No ambiente criado, não houve possibilidade real de debate, mas assistiu-se a mais um desses exercícios patéticos de ilusionismo que não resistem minimamente ao crivo dos factos históricos.
As prisões em S. Vicente e S. Antão destacam-se de todos os abusos verificados durante os anos da ditadura por envolver de uma só vez dezenas de pessoas, na generalidade gente transversalmente conhecida e respeitada na sociedade. Incluíam comerciantes, negociantes de bordo, proprietários agrícolas, mecânicos e empregados comerciais. De acordo com Aristides Pereira, no livro de José Vicente Lopes (Minha vida, Nossa história, pág. 248), foi praticamente por uma decisão sua é que as prisões não abrangeram o Dr. Baltasar Lopes da Silva. Pelos alvos escolhidos pode-se perfeitamente inferir que o móbil do então regime seria atingir figuras proeminentes locais numa lógica de consolidação de poder. O que não é muito diferente do que regimes similares fizeram no passado servindo-se também dos mesmos argumentos de uma suposta aliança de elementos da elite local com inimigos externos.
Também pelo âmbito da operação desencadeada nos dois momentos estava-se a testar e a demonstrar o aparato repressivo que desde a independência vinha sendo montado suportado pela legislação que permitia prender durante cinco meses sem culpa formada (decreto-lei 96/76) e um Tribunal Militar (decreto-lei 122/77) que podia julgar civis. Só em Maio de 1990 é que se começou a desmantelar o sistema com a revogação da lei do Boato e do decreto-lei 96/76. Ninguém e muito menos os representantes da nação em sede de discussão de proposta de lei podem negar que esse aparato existiu ou dizer que desconhecem para que fim foi criado. Está presente com os seus objectivos e estrutura nos Boletins Oficiais de 1975-90 e a forma como também actuou na Brava em 1979, na Praia em 1980, em S.Vicente em 1987 está suficientemente reportada nos jornais, revistas e outras publicações do regime. Uma preparação séria para o debate deveria ter implicado pelo menos uma visita aos arquivos da Assembleia Nacional para conhecer o período contemplado no diploma.
Pela mesma linha não se pode dizer, para desculpabilizar o regime, que as prisões, sevícias e torturas eram exemplos de excesso das autoridades. Não, era a ditadura a mostrar a sua verdadeira face. De facto excessos acontecem nas democracias e são reparáveis através de recursos e de acções judiciais de responsabilização do Estado. E é assim porque a democracia liberal funciona num quadro legal constitucional em que os direitos fundamentais constituem um limite ao poder do Estado e é dever do Estado protegê-los através dos mecanismos de separação de poderes e da garantia da independência dos tribunais. Não é o que se passa nas ditaduras, dai que tenha tanta importância a proposta de lei de reparação dos danos sofridos pelas prisões e torturas do partido único. Era a única via para se realizar alguma justiça.
A reacção à lei veio porém mostrar que ainda se procura instrumentalizar a independência nacional para dividir e atingir objectivos políticos como se fazia no tempo do partido único em que a república se legitimava com a causa da independência. Seguindo essa linha, ontem como hoje, há quem ache que pode acusar os outros de ser do contra ao mesmo tempo que se considera acima de qualquer crítica na forma como exerceu ou vê o exercício do poder. Mas com isso o que se consegue é manter a sociedade polarizada e impedida de beneficiar da dinâmica gerada pelo pluralismo de ideias e pelo exercício da cidadania em ambiente de civilidade e confiança. Há pois que assumir em pleno a II República que com Constituição de 92 tem nos seus alicerces o respeito pela dignidade humana, e reconhece a inviolabilidade dos direitos como fundamento da comunidade humana, da paz e da justiça. Nas vésperas do 44º aniversário do Cabo Verde independente, a independência não deve ser matéria de disputa política e nem pode ser motivo de desunião.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 918 de 3 de Julho de 2019.

segunda-feira, julho 01, 2019

Voltar-se para fora, o único caminho

Cabo Verde em momentos de decisão estratégica depara-se sempre com o seu velho e permanente problema de fundo que é o de não ter escala. Não pode moldar o mundo à sua vontade e tem constantemente que se adaptar ao novo.
É um país pequeno, ainda para mais um arquipélago de dez ilhas e com uma pequena população desigualmente distribuída por todo o território nacional. Isso significa que muitas vezes se arrasta com problemas sérios de transportes aéreos e marítimos, que os investimentos em infraestruturas têm que ser em grande parte replicados nas diferentes ilhas, que a produção de factores como energia e água dificilmente consegue ser eficiente e que no processo de decisão sobre qualquer projecto público não será fácil ficar só pela relação custo-benefício. Também que a produção local de bens deverá sempre confrontar-se com a disponibilidade reduzida de terra e água, um mercado interno reduzido e fragmentado e a rigidez de mão-de-obra limitada na sua mobilidade não só por eventuais constrangimentos do código laboral mas também por laços afectivos e compromissos que prendem as pessoas à sua ilha.
Os desafios que esta realidade incontornável representam nem sempre foram devidamente encarados pelos governantes. E pior, o Estado que se propôs criar, subordinou-se mais a ditames ideológicos e a um tipo de exercício de poder que passa por manter as populações dependentes do que a um outro papel que implicasse agir para minorar as falhas e as imperfeições do mercado e ainda conseguir mobilizar procura externa que colmatasse os efeitos de falta de escala no país. O custo das políticas desadequadas é hoje sentido em toda a sua dimensão. Depois de já terem passados os tempos em que a ajuda externa permitia que se escondesse a realidade e se pudesse empurrar com a barriga os problemas do país, ainda se esticou mais a corda por mais algum tempo levando praticamente à falência várias empresas públicas e colocando o país entre os mais endividados do mundo.
O resultado é o quadro que se tem actualmente em que são visíveis por exemplo os problemas sérios com que as pessoas, as empresas e a sociedade se deparam no dia-a-dia em matéria de transportes, energia, habitação e também no que respeita à precariedade de uma população rural que não consegue ir muito além de uma agricultura de subsistência e a migrações internas que esvaziam ilhas e provocam convulsões noutras. Tardou que se procurasse fazer uma viragem nas políticas e na atitude que reorientasse o país para fora da armadilha que a sua pequenez e insularidade o pareciam confinar. A inércia das instituições e a cultura que se instalou de desconfiança em relação ao exterior não têm facilitado a mudança. Ainda bem que apesar de todas as dificuldades, a pressão da procura externa no turismo forçou quase por si próprio a que o sector se tornasse o motor da economia quando praticamente tudo o resto badalado nos múltiplos clusters ficava aquém das expectativas criadas. Mas como algo não planeado e não abraçado de forma inteligente, o impacto do turismo no arrastamento da economia e no número e qualidade dos postos de trabalho criados não tem sido o que provavelmente seria com outras políticas e outra atitude. Trouxe custos materiais ambientais e humanos que podiam ser evitados com uma governação compreensiva e mais proactiva.
Para fazer face ao tempo perdido e diversificar a economia de modo a poder suportar-se em bases mais sólidas há que mover com rigor e determinação mas ciente dos constrangimentos que irão emergir. Não se pode pensar que simplesmente de uma penada é possível limpar crenças arreigadas, quebrar posturas institucionais e mudar atitudes hostis à inovação e à abertura com o mundo. É verdade que o crescimento económico que há dois anos atrás depois de um período de estagnação subiu para o patamar dos 4% e dá sinais de poder sustentar-se acima dos 5%. Mas vai precisar de reformas que melhorem o ambiente de negócios e a competitividade externa do país e de investimentos designadamente na educação e formação para aumentar a produtividade de forma a poder crescer acima dos 7 % e aguentar os choques derivados de eventual quebra na procura externa.
Exemplificam a complexidade das tarefas a executar a curto e médio prazo para se conseguir a almejada diversificação da economia, o processo de resgate e de reestruturação da TACV e o que se está a iniciar agora com a concessão dos aeroportos. O primeiro processo acabou por desembocar na privatização da Cabo Verde Airlines, já provida de um plano de negócios que prevê a criação de HUB na Ilha do Sal. O segundo mostra-se vital para a operacionalização do Hub pois como disse Jens Bjarnason, CEO da nova empresa, em entrevista ao Expresso das Ihas, “dentro de alguns anos, teremos de aumentar o tamanho dos terminais e adicionar mais zonas de estacionamento dos aviões”. O número de aviões pretendido é de 12, mas sabe-se que assim como está o Aeroporto do Sal só poderá comportar 7 ou 8 e há que estar à altura de servir os muitos milhares de passageiros em trânsito e um maior número de aviões em rotações rápidas. De facto o que se quer é ir além da pequenez do mercado nacional e conseguir economias de escala na produção de bens e serviços mobilizando a procura externa.
Para isso tem que haver investimento. Uma hipótese seria o investimento público, mas teria os seus senãos designadamente os níveis elevados de dívida do Estado à volta dos 122,8% do PIB e a dificuldade que se concretizasse no timing certo para servir a expansão do Hub. A opção adoptada foi de privatização acompanhada de novos processos de gestão e ainda de investimentos em equipamentos e na própria expansão do aeroporto para se conseguir um upgrade do Aeroporto do Sal. Mesmo assim subsistem dúvidas. Há quem diga que o problema com a proposta do governo é que aparentemente está-se a exigir que uma mesma empresa seja concessionária de todos os aeroportos e aeródromos do país. Ora sendo todos eles deficitários com excepção dos aeroportos do Sal e da Boa Vista é de se perguntar se não seria preferível para garantir o sucesso do hub concentrar a atenção e recursos do parceiro estratégico na ilha do Sal. Compreende-se que o governo com a concessão de todos queira promover o turismo e reforçar a posição competitiva dos aeroportos nacionais, mas há que definir prioridades. Claramente que o sucesso do hub deveria sobrepor-se ao resto por várias razões entre elas os investimentos feitos, os sacrifícios consentidos para o pôr de pé e as oportunidades de negócio que se perspectivam com a sua dinamização.
Na caminhada para libertar o país dos condicionantes que moldaram toda a sua existência, a opção nunca deve ser virar-se para dentro. Voltar-se para fora tem os seus percalços e nada é garantido à partida, mas é o único caminho possível. Agarrá-lo, debater quais as vias para lá chegar e inteligentemente escolher os atalhos é a postura que melhor serve esse propósito. Fundamental para isso, porém deve ser aposta nacional numa subida radical do nível de educação e de formação, em particular das crianças e jovens.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 917 de 26 de Junho de 2019.