segunda-feira, dezembro 03, 2018

É a hora do sector privado?

Há anos que governantes de todos os quadrantes políticos vêm prometendo delegar para o sector privado um papel preponderante na economia nacional. Uns talvez façam a promessa com convicção e outros nem tanto. E assim é porque após a queda do muro de Berlim e do desmoronar das economias estatizadas e de planificação central já ninguém defende a marginalização ou o aniquilamento da economia privada. Também há que ter em conta os incentivos para se estar em sintonia, pelo menos formalmente, com os relatórios das organizações multilaterais que insistem na importância do sector privado e põem ênfase particular no empreendedorismo e no seu papel na criação de empregos e no crescimento económico.
Não fica, pois, nada fácil escapar ao “discurso” dominante, ou pretender que não se o absorve nos programas de governação quando os tempos, o envolvente externo e as dependências múltiplas o favorecem. O problema é que os anos e os governos passam e, independente de mais ou menos convicção na promoção do sector privado, o panorama global fundamentalmente não se muda muito e a centralidade do Estado na economia mantém-se.
De facto, na prática, não se nota evolução significativa no sector privado capaz de desencadear a transformação estrutural essencial para o desenvolvimento sustentado do país. A conexão com o investimento externo ainda não é suficientemente expressiva. Nichos ou segmentos dinâmicos do mercado interno e externo estão por ser identificados. Os investimentos públicos não se têm mostrado particularmente vantajosos para o empresariado nacional. O aprovisionamento do Estado em bens e serviços não dá sinais claros de fazer parte de uma política compreensiva de apoio e estímulo à actividade económica local e nacional. A preocupação com o financiamento tem dado resultados na facilitação de crédito bancário, mas muito aquém do esperado. As dificuldades das empresas são múltiplas e não se resumem ao financiamento, mas têm também a ver com a relação com a administração pública burocratizada, os custos de factores, os problemas de transportes, concorrência desleal e falta de regulação, o que facilita a actividade informal.
Não espanta que após longos anos de discurso, supostamente a favor de uma economia de iniciativa privada, o que se constata no país é que se estará perante um sector em algumas áreas estagnado, noutras em retirada e noutras ainda com alguma dinâmica e mesmo mostrando potencialidade, mas já sem evidente possibilidade de ir mais além. A agricultura sem muitos produtos de alto valor acrescentado e com limitações de mercado – entre outras razões por causa de transportes, standards de segurança alimentar e deficiências nas redes de distribuição – dificilmente consegue sair do nível de subsistência, com toda a precariedade que acarreta. No comércio a retalho é visível como a presença de lojas ligadas a grupos estrangeiros vêm ganhando espaço em todo o território nacional, chegando ao ponto de, em algumas ilhas, terem atitudes monopolistas. Foi notório como o empresariado nacional na construção saiu beliscado dos investimentos nas obras públicas durante a primeira metade desta década devido às opções que objectivamente favoreceram outros operadores.
Também a falta de uma política adequada para os transportes marítimos não privilegiou a classe dos armadores e, pelo contrário, contribuiu para os deixar numa situação em que poderão vir a ficar de fora da solução encontrada para garantir as ligações inter-ilhas. No sector da pesca, mesmo com o Frescomar e outras oportunidades que surgiram, não se chegou a focalizar com determinação no aumento da capacidade nacional de captura de peixes e no que poderia representar para a consolidação de privados nacionais no sector. Faltou uma estratégia deliberada nesse sentido, como faltou noutros sectores designadamente os ligados às tecnologias de informação e comunicação em que o foco na NOSI impediu que oportunidades outras, designadamente nas chamadas Business Processing Operations (BPOs), fossem consideradas e apoiadas. A ausência de uma estratégia para o sector privado nacional mostrou-se ainda mais quando investimentos de grande dimensão se realizavam no turismo e não houve preocupação sistemática para procurar pontos de entrosamento com a actividade empresarial nacional na perspectiva de a fortalecer, de a incentivar a ser competitiva e de a elevar em qualidade. Devia ser a oportunidade, há muita esperada, de dar o salto na actividade privada do país sob estímulo de uma procura externa intensa, permanente e próxima, ou seja de “exportar cá dentro”. As situações caóticas permitidas na ilha do Sal e da Boavista são consequência dessa ausência de políticas que ainda mais sacrificam as pessoas que vão ali trabalhar, negando-lhes qualidade de vida e os meios para se valorizarem e crescerem com a expansão do turismo nas suas vertentes possíveis.
A UNCTAD do sistema das Nações Unidas, no seu último relatório de Novembro de 2018 sobre a importância do empreendedorismo na transformação estrutural dos países menos desenvolvidos (LCD), foi clara em dizer que muitas vezes o discurso do empreendedorismo é feito só na perspectiva de auto emprego, de combate à pobreza e de melhoria de qualidade de vida. Ou seja, a acção do Estado, e de outras entidades próximas, fica pela promoção do empreendedorismo de necessidade e não dá a devida atenção ao empreendedorismo de oportunidade, aquele que pode operar transformações estruturais passíveis de garantir sustentabilidade futura ao desenvolvimento do país. No relatório insiste-se nas políticas industriais dirigidas, para fazer crescer o sector privado nacional em áreas chave e estratégicas, na perspectiva de exportação ou de criar aglomerados de empresas conexas. Aconselha-se que se optimize o impacto dos investimentos externos com uma maior articulação com empresas nacionais fornecedoras de bens e serviços. Diz-se claramente que o Estado não deve ficar pelo financiamento, deve ir mais além e apoiar o empreendedor em várias fases do seu negócio, designadamente no desenvolvimento do produto e dos mercados e em ganhar dimensão, como aliás fazem os fundos de capital de risco em vários países. Outro instrumento que aconselham a usar para estimular é o aprovisionamento em bens e serviços no quadro de uma política clara e transparente e que revele opções, sofisticação de procura e visão de futuro, como fez a Costa Rica para dar espaço e incentivar o sector privado a desenvolver-se no sentido escolhido.
Os países bem sucedidos na luta pelo desenvolvimento não foram certamente os que que se deixaram ficar por slogans como start ups e adopção de modismos à volta da inovação e empreendedorismo. Já se teve disso no passado recente e vê-se onde o país e o seu sector privado se encontram neste momento. Como frisa o relatório citado há que se ultrapassar esses discurso e mover-se decididamente com políticas compreensivas e abrangente para a transformação estrutural do país, a exemplo do que os países bem sucedidos fizeram. Continuar a falar do sector privado e vê-lo a mirrar todos os dias, a perder oportunidade, a não ser competitivo e a frustrar-se com a indiferença do Estado não é o que certamente se pretende. O país é pequeno e amiúde revela falhas de mercado, ou insuficiência no funcionamento, que o mercado por si só não consegue desenvolver. Aí precisa do Estado empreendedor de que fala Mariana Mazzucatto e encontra respaldo no exemplo de vários países desenvolvidos. Nesses países, o Estado teve um papel decisivo para darem o salto em frente, crescerem e internacionalizarem-se. Por ai é que se tem que caminhar, para que finalmente o sector privado possa desempenhar esse prometido papel preponderante.


Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 887 de 28 de novembro de 2018.

segunda-feira, novembro 26, 2018

Verdades sem rebuço

De tempos em tempos ouvem-se vozes a insistir que o país “caía na real”. Com tal apelo pretende-se que se vá para além da cacofonia diária, em que tudo parece girar à volta de conferências, workshops, auscultações da população e socializações entremeadas de celebração de datas internacionais, e se procure ter uma abordagem estratégica para os problemas do país.
Uma recente chamada à realidade é o Diagnóstico Estratégico do País (SCD) produzido pelo Banco Mundial e apresentado numa cerimónia pública presidida pelo Vice-Primeiro Ministro e Ministro de Finanças. O ponto de partida do documento é a constatação que a crise financeira de 2008 com os seus efeitos súbitos, dramáticos, e sustentados no crescimento económico deixou a nu o esgotamento do modelo de desenvolvimento de Cabo Verde. Perante isso a questão que se coloca é em que medida os governantes nos anos seguintes à crise se aperceberam que o país teria que adoptar um outro modelo e reconheceram a urgência das reformas a serem feitas para que o crescimento económico fosse retomado.
A realidade do crescimento raso que se abateu sobre o país nos oito anos pós-crise acompanhado do crescimento da dívida pública em mais de 70 pontos percentuais segundo o texto do diagnóstico SCD indicia que no essencial não se arrepiou caminho do outro modelo. Simplesmente continuou-se a injectar mais recursos agora provenientes do endividamento externo na economia de forma mais ineficiente e com menos retorno (20%). Em relação ao turismo, mesmo com o aumento do número de turistas não houve uma reorientação estratégica do sector e o resultado é o que diz o BM: “embora a chegada de turistas continuou a crescer, o lucro por visitante diminuiu para quase metade entre 2007 e 2015”. Não se conseguiu que o tecido económico e empresarial cabo-verdiano se articulasse suficientemente com os investimentos estrangeiros de forma a dinamizar globalmente a economia nacional. Contribuiu para isso, entre outros factores, a preocupação dos operadores turísticos com a “falta de confiabilidade do abastecimento local e da segurança alimentar”.
Felizmente nos últimos dois anos, em boa parte devido à dinâmica do espaço europeu e da economia mundial e também devido à mudança para um governo mais amigo da actividade empresarial, o país já está a crescer a taxas entre 4 e 5 por cento do PIB que, segundo os especialistas, correspondem ao nível do potencial de crescimento. Mas como reconhecem todos, o país precisa crescer muito mais e para isso tem que fazer as reformas para elevar o potencial. O SCD aconselha que tem que mudar de paradigma e adoptar um novo modelo económico. O outro esgotou-se há muito, em 2008, como foi referido anteriormente. No documento do BM diz-se que, a curto prazo, só há dois caminhos possíveis: 1- diversificar o turismo para deixar de ser apenas sol, praia e mar e para também abranger as outras ilhas com as ofertas que eventualmente terão em ecoturismo, trekking, aventura e história; 2- Explorar nichos de produtos e nichos de mercados como o comércio orgânico, mercado étnico, produtos de nostalgia e em geral produtos de baixo volume e alto valor agregado. Em relação aos sectores que, há anos, tanto o actual como o anterior governo vêm assinalando como grandes apostas do país, designadamente o centro financeiro, tecnologias de informação e comunicação e hub logístico para aviação e transportes marítimos o BM só os vê como viáveis a médio prazo.
O cepticismo do BM tem a ver com os grandes constrangimentos que persistem em Cabo Verde e retiram competitividade à economia, contribuem para baixa produtividade, não lhe permitem potenciar as suas vantagens comparativas e deixam o seu ambiente de negócios pouco atractivo. O documento identifica onze empecilhos que agrupa em quatro categorias: falta de capital humano, fraca conectividade, ineficiência e ineficácia do sector público e falta de resiliência a choques externos, climáticos e outros. Por isso considera que para se ter uma economia centrada em logística não basta construir grandes infraestruturas. Há que criar uma plataforma de negócios para os quais o ambiente actual não é o ideal. O mesmo se passa com as TIC e com o centro financeiro que para além disso são afectados pelo alto custo da energia, pela qualidade relativamente baixa do ensino e pelas fragilidades no domínio dos transportes. Daí o BM não ter grande esperança no arranque desses sectores pelo menos a curto prazo particularmente quando na administração pública se constata, por exemplo, que a concretização das reformas é fraca, privilegiam-se processos em detrimento de resultados, falta coordenação entre os organismos, há baixa capacidade técnica e a descentralização não foi eficaz.
O que o Banco Mundial aponta no seu documento de diagnóstico não difere muito do que foi dito e redito em Cabo Verde em vários momentos. O problema aparentemente é como diz Thomas Friedman é que não há energia de baixo para forçar as reformas nem vontade de cima para as fazer valer e materializar. Resta a pressão que vem de fora e traz as exigências em termos de competitividade, produtividade e qualificação nos domínios do conhecimento indispensáveis para melhor integração nas cadeias globais de valor. Essa pressão revela-se em sociedades bloqueadas pela inércia como último recurso para encontrar energia e vontade para mudar o modelo de desenvolvimento e imprimir dinâmica sustentada à economia. Não desapareceram as tentações em reproduzir o modelo que há dez anos se mostrou claramente esgotado.
O GAO ainda ontem, dia 20, em comunicado, chamava a atenção que, em matéria de negociações para a privatização da TACV, não obstante ser “importante demonstrar resultados para garantir o apoio ao orçamento, as autoridades devem procurar cumprir com os princípios de competitividade, abertura e optimização da afectação dos recursos”. A este reparo não deve ser alheio a informação no SCD do Banco Mundial que o plano de negócios com a Icelandair “exige que o governo assuma o custo de aquisição (procuring na versão inglesa) de uma nova frota (aproximadamente cinco aviões)”. Como o Banco Mundial, também o GAO deverá estar preocupado como o facto de o custo do empreendimento ir “certamente aumentar ainda mais o stock da dívida”. O governo através do VPM e Ministro das Finanças finalmente clarificou que os aviões são adquiridos em regime de leasing e nesse quadro toda a operação é da responsabilidade da TACV e do accionista Estado mas que com a privatização deverá passar para os accionistas. Mas a verdade é que se desconhecia que depois de terminado o contracto de gestão com a Icelendair e antes da privatização devia verificar-se a expansão da frota não com os 11 aviões prometidos da Icelendair mas com cinco adquiridos na base de leasing com custos assumidos por Cabo Verde. Mais transparência nos assuntos públicos é fundamental para que o país não fique amarrado em modelos que já se esgotaram e submerso em constrangimentos que não reconhece ao mesmo tempo que lhe é acenado com possíveis futuros para os quais nem sabe que não está preparado para construir.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 886 de 21 de novembro de 2018.

segunda-feira, novembro 19, 2018

Parlamento em baixa

A violência física envolvendo dois deputados constituiu um momento baixo do parlamento que há muito se previa que acabaria por acontecer. É um facto que a actuação dos políticos em sede parlamentar ao longo da legislatura iniciada em Abril de 2016 tem-se caracterizado por uma dinâmica negativa que vem contribuindo para aumentar a crispação política no país.
 Era de esperar que após 15 anos seguidos de governação por um mesmo partido não haveria muito espaço para acomodações, compromissos e consensos entre as forças políticas. Sempre se nota alguma tensão e muita recriminação enquanto um novo governo assume em pleno os problemas do país e procura colocar a máquina do Estado sob a sua orientação. Nas democracias maduras esse período não passa de seis meses. Em Cabo Verde a crispação tende a manter-se ao longo do mandato como se a todo momento se estivesse em período pré-eleitoral. Nesta legislatura, por razões a que não são alheias manifestações do populismo nos dois grandes partidos, está pior, como os acontecimentos da semana passada no parlamento demostraram.
A democracia cabo-verdiana sempre teve um nível relativamente elevado de crispação política. Diferentemente da generalidade de casos de transição para a democracia, depois das eleições livres de 13 de Janeiro de 1991 ficou na Oposição precisamente a força política que tinha encarnado o regime anterior ditatorial. Não houve o tipo de aliança, como a do PS-PSD em Portugal, ou do PSOE-PP em Espanha ou do PS francês com a UPM, fortemente engajada na consolidação das instituições democráticas e em pleno acordo com o novo figurino constitucional. Com o lastro constituído pelo legado do regime de partido único a pesar a todo o momento o comprometimento com a construção da democracia dificilmente podia ser total e os pontos de tensão com o novo governo certamente que seriam múltiplos. A expectativa de todos era que com o tempo a crispação inicial evoluísse para a tensão normal e salutar que deve existir entre forças políticas na situação e na oposição. Infelizmente não aconteceu na medida desejada e a nossa democracia perde com a falta de consenso necessário para que o dissenso aconteça e revele e demonstre na prática as virtualidades do pluralismo na realização do interesse público.
Os efeitos do não comprometimento completo com a democracia e a crispação excessiva que isso gera fazem-se sentir primordialmente na Assembleia Nacional. E assim é porque em democracia é no parlamento, órgão colegial, que a nação se vê representada “na diversidade dos seus interesses e na pluralidade das suas opiniões”. Nesta perspectiva, se há correntes elitistas que negam que todos os interesses devem estar representados, ou se há forças políticas que se consideram mais legítimos para governar do que os outros, o parlamento, enquanto instituição central da democracia, é o alvo a abater. No caso de Cabo Verde tanto a herança do salazarismo como a do regime de partido único após a independência conspiram para denegrir o parlamento democrático, para manter vivo o espírito anti-partido e anti-política. No processo os descontentes da democracia e do parlamentarismo levantam problemas de representatividade, questionam o papel dos partidos políticos e esforçam-se por demonstrar como o exercício do contraditório e todo o debate democrático é uma grande perda de tempo e de recursos. Daí é um passo para considerarem os deputados como sendo do piorio: preguiçosos, gananciosos e ciosos dos seus privilégios.
É verdade que não são poucas as vezes que se se depara com situações de ineficácia da actividade parlamentar se não mesmo de bloqueio com consequências para o funcionamento normal das instituições. Ou que os partidos deixam-se apanhar pelo caciquismo e alimentam clientelas, ameaçando rigidificar o sistema democrático. Ou ainda que a ânsia de se manter no poder a todo o custo para além de prejudicar a renovação democrática e mesmo a integridade de todo o sistema político seja o veículo da corrupção que descredibiliza a democracia como se viu recentemente no Brasil. Historicamente sabe-se que saídas para tais situações que não optaram por mais institucionalização democrática e concomitantemente pela real independência do poder judicial e pela garantia da liberdade de imprensa rapidamente degeneraram em regimes autoritários e consequente compressão dos direitos fundamentais dos indivíduos. Na primeira república portuguesa viu-se como a liberdade dos deputados de votar noutros partidos ou mudar de bancada levou a instabilidade governativa e posteriormente ao golpe de estado militar e aos 48 anos de salazarismo. Na república de Weimar a incapacidade dos pequenos partidos democráticos em criar soluções de governo levou à ascensão do partido nazi e à entrega do cargo de chanceler a Adolfo Hitler. Na França da IV república a instabilidade governativa provocada pela fragilidade do sistema partidário só foi ultrapassada com o regresso de De Gaulle e a fundação da V república.
Actualmente nas várias democracias em crise há dúvidas quanto aos modelos de representação no parlamento juntamente com muita contestação do papel dos partidos e críticas severas ao comportamento dos políticos. Duvida-se da capacidade da classe política não só em realmente entender os problemas do momento e os anseios da população como também em ser efectivo a confrontar os desafios do crescimento, do desemprego e da crescente desigualdade social face designadamente às forças da globalização, à pressão das migrações, ao impacto do tráfico de drogas na criminalidade e aos efeitos nocivos da corrupção na sociedade. O acesso massivo da generalidade das pessoas às redes socias transforma as dúvidas numa onda de indignação e contestação que já mudou o destino de vários países com destaque para a América de Trump e ultimamente para o Brasil de Bolsonaro.
Curioso é o papel que os próprios políticos têm tido em todo esse processo de desgaste da democracia representativa. Demagogicamente muitos seguem pelo caminho do discurso anti-político e anti-partido apresentando-se acima dos partidos e minimizando o debate democrático essencial para se fazer política. O resultado prático é todo o excesso de protagonismo que se nota no parlamento em que muitos procuram destacar-se com discursos que não contribuem para a clarificação das questões e eventuais entendimentos, mas alimentam a crispação já de si elevada. O outro efeito é o de enfraquecimento das direcções de grupo parlamentares com consequências graves na eficácia dos trabalhos.
É evidente que para evitar situações como a verificada na semana passada e travar o desgaste do parlamento aos olhos da sociedade não se pode ir pelo caminho da perseguição dos deputados, mas pela melhoria do trabalho político que dê melhor consistência e coerência à actuação dos grupos parlamentares e se traduza num ethos e numa ética individual que dignifique a instituição parlamentar. Pena que os critérios populistas seguidos na formação das listas tenham produzido verdeiros impedimentos a que se avance para um outro patamar da actividade política, como aliás é visível a todos.


Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 885 de 14 de Novembro de 2018.

segunda-feira, novembro 12, 2018

Não há reformas sem sólida vontade política

Os dados do Doing Business 2019 que colocam Cabo Verde na posição 131 entre 190 países não são encorajadores. Há anos que primeiros-ministros e ministros dos sucessivos governos vêm declarando o seu comprometimento na melhoria da competitividade do país e do ambiente de negócios.
Os resultados não têm sido expressivos. A exemplo do que outros países fizeram cria­ram-se task forces e unidades de competitividade para melho­rar os rankings de Cabo Verde. Infelizmente os esforços desen­volvidos não resultaram como esperado, contrariamente ao que aconteceu em países como o Ruanda, a Estónia, a Finlândia e a Índia. Em alguns desses países conseguiu-se que melhorassem mais de 50 pontos nos rankin­gs. Os mesmos cinquenta pon­tos que o primeiro-ministro Dr. Ulisses Correia e Silva vem insis­tindo que é o objectivo a ser al­cançado nos próximos dez anos mas até agora não se viu movi­mento significativo dos rankings nessa direcção. Pelo contrário.
As dificuldades com que o ac­tual governo se depara no pro­cesso de melhoria do ambiente de negócios não são muito di­ferentes das enfrentadas pelo governo anterior. São dificul­dades para as quais contribuem extraordinariamente a atitude, os procedimentos e o modo de agir da administração do Estado. Em 2015, depois de quase quin­ze anos no topo da direcção da administração pública enquan­to primeiro-ministro, o Dr. José Maria Neves queixou-se várias vezes de problemas no funciona­mento do Estado com impacto nos custos de contexto, no am­biente de negócios e na competi­tividade do país. Era evidente na época a sua frustração e quase impotência perante a postura da administração que ele próprio dizia que precisava ser mais im­parcial, mais universal e menos partidarizada. Ainda hoje é cla­ro que os problemas persistem e pelos resultados do Doing Busi­ness vê-se que o actual governo mostra a mesma incapacidade em alterar as coisas, mudar os comportamentos e introduzir procedimentos mais expeditos.
Razão talvez para se concluir que vontade política dos gover­nos não consegue sobrepor-se à cultura administrativa que impregna toda a máquina do Estado e impor-lhe uma outra orientação e uma outra atitude. De facto, tudo leva a crer que a cultura administrativa que não serve os cidadãos, não serve os negócios e não é efectiva na implementação das políticas governamentais sufragadas na urna, sobrevive a mudanças de governo e até se reproduz quan­do se lhe dá oportunidade como aconteceu a nível dos municí­pios. A administração munici­pal, supostamente mais próxima das pessoas, não é menos buro­crática, centralizadora e insensí­vel para com os utentes. E é de esperar que a persistir a actual cultura administrativa no país, dificilmente, no caso da criação das regiões, a nova administra­ção regional vai criar um novo paradigma de relação com cida­dãos, utentes e operadores eco­nómicos.
Na origem e posterior evolu­ção da postura da administração do Estado certamente que se po­derá descortinar os contributos da administração salazarista e do regime de partido único e os efeitos das tentativas de reforma verificadas nos 27 anos de de­mocracia. As marcas dessa longa história ainda hoje são visíveis, mas o factor que deverá ter con­tribuído para que, no essencial, se mantenha igual a si própria, é a persistência de uma economia de reciclagem de fluxos externos que põe o Estado no seu centro. A máquina estatal enquanto re­cipiente e distribuidora desses fluxos que dinamizam a econo­mia do país naturalmente que ajuda a criar e a reproduzir na sociedade dependências múlti­plas. Por essa via acaba por ser­vir certos interesses políticos e alimentar uma classe média liga­da ao Estado e um sector privado atento aos acessos, facilidades e oportunidades que lhe são ofe­recidas ou disponibilizadas. Em tal ambiente em que eufemisti­camente o Estado posiciona-se no “topo da cadeia alimentar” é mais que evidente que qualquer reforma dirigida para lhe retirar essa posição dificilmente terá bom resultado. Não é pois de es­tranhar que apesar de todos os esforços para encaminhar o Es­tado para o papel de facilitador e regulador, enquanto o prota­gonismo na sociedade se deslo­caria para os indivíduos, para os empreendedores e para o sector privado, nenhum governo con­seguiu tal desiderato. O paradig­ma mantém-se, e todos sabem disso. Agora há quem espere que a regionalização num passe de mágica faça as transformações que até aqui reformas passadas não conseguiram.
Trabalhar para a competiti­vidade, ceder protagonismo às pessoas e empresas e ter a admi­nistração pública a renovar-se como facilitador e estrutura sen­sível às necessidades das pessoa e da economia significaria uma viragem profunda na mentalida­de geral do país. Representaria um comprometimento sério e consequente com os objectivos de crescimento e emprego para além dos discursos oficiais que são feitos em boa medida com o intuito de manter as transferên­cias externas para o país. Prova­velmente em 2018, 43 anos após a independência não se estaria a organizar uma conferência em Paris com os parceiros para se efectivar “finalmente” uma nova fase, nas palavras do Mi­nistro das Finanças Olavo Cor­reia, na qual “queremos delegar ao sector privado um papel mais preponderante” , “por forma a que ao invés de continuarmos a aumentar o endividamento público, termos investimentos privados a financiar projectos estruturantes em Cabo Verde”. Também não se estaria a ali­mentar em nome do “desenvol­vimento harmonioso” das ilhas modelos de crescimento com base em factores endógenas re­legando para o segundo plano o esforço nacional para se inte­grar na economia mundial com atracção de capital, acompanha­do de tecnologia e mercado, e com o aumento e qualificação do fluxo turístico. Historicamente, prova-se que Cabo Verde apenas conseguiu prosperar quando de alguma forma a sua economia se articulou com vantagens na eco­nomia mundial.
Manter o olhar virado para dentro do país convenientemen­te serve a cultura administrati­va que ajuda a manter o Estado no topo da cadeia alimentar. Só pondo de lado o modelo que até agora deixou o país dependente das transferências externas é que se pode almejar criar estruturas produtivas de base na iniciativa privada capazes de propiciar o crescimento e os empregos que tanto precisamos. Para romper o círculo vicioso é fundamental que a vontade política do go­verno se faça sentir com deter­minação, foco e sabedoria para ultrapassar as barreiras que até agora deitaram por terra todas as reformas da administração e poder contribuir para que final­mente o país se torne competiti­vo e produtivo.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 884 de 07  de Novembro de 2018.

segunda-feira, novembro 05, 2018

Sensibilidade democrática + competência tecnocrática

Uma das grandes contradições dos tempos actuais é ver em várias democracias os diferentes actores políticos, mas também grupos sociais e indivíduos a agirem de uma forma que fragiliza as instituições, mina confiança na classe política e abre caminho para derivas arriscadas de natureza autoritária e populista. Já aconteceu, está acontecer e tudo indica que vai continuar a acontecer num país ou outro. As consequências saltam à vista nos resultados recentes das eleições brasileiras como se mostrara, por exemplo, no Brexit, nas eleições americanas, húngaras e italianas.
 Mesmo sabendo qual tem sido o desfecho dessas derivas, continua-se a fustigar as instituições da democracia representativa, ora alimentando utopias construídas na base da democracia directa ou à procura do Santo Graal da representatividade política em círculos uninominais e em deputados desligados dos partidos, ou ainda, mais frequentemente, apostando em figuras providenciais armados de soluções simplistas para todos os problemas das pessoas e da sociedade.
Cabo Verde não está isento destas manifestações. A crispação que caracteriza a relação entre as principais forças políticas, como ficou mais uma vez evidente nas sessões parlamentares de Outubro, contribui para desqualificar o parlamento e desencorajar os cidadãos face à polarização das posições dos intervenientes. Também como já foi bem notado, em geral, leva à “simplificação até o absurdo dos argumentos e ao esvaziamento do sentido das palavras à procura de excitação das emoções que não são só prejudicam a qualidade do debate público como têm sentido tóxico sobre a cidadania”. Viu-se, por exemplo, no debate sobre a situação da justiça como não se conseguiu dar o salto para a avaliação das razões por que a justiça ainda não tem a eficácia desejada, não obstante os significativos meios que lhe são destinados. Preferiu-se ficar pelo confronto à procura de ganhos partidários efémeros quando se podia procurar trabalhar no âmbito de um pacto entre várias forças que poderia compreender: 1- a reavaliação do modelo de justiça que resultou da revisão constitucional de 2010 com poderes de gestão e meios financeiros, inéditos em figurinos constitucionais próximos, atribuídos aos conselhos de magistratura. 2- a operacionalização urgente da inspecção judicial para garantir aos conselhos instrumentos indispensáveis para a gestão eficaz dos juízes e procuradores e das secretarias judiciais; alterações no próprio formato do debate sobre a situação da justiça de modo a que o papel dos conselhos não fique só pela apresentação de relatórios sem a possibilidade de se explicarem e de se defenderem. As pessoas querem mais justiça, querem ter a quem claramente exigir responsabilidades e dispensam espectáculos de acusações mútuas politicamente motivadas cujo único efeito é de efectivamente deixar o sistema de justiça e os seus agentes à salvo de críticas. Não estranha que os avanços na eficácia da justiça não acompanhem no ritmo desejado os muitos milhões que têm sido investidos no sistema.
Algo similar verificou-se na discussão e aprovação da lei sobre a regionalização. Do debate ficou-se com a impressão que a preocupação maior foi mais no sentido de tentar provar que o “outro” não queria a regionalização do que em expor para a nação as razões por que seria vantajoso para o país criar uma região em cada das oito ilhas, com excepção de Santiago onde se pretende que haja duas regiões. Normalmente tais tácticas em iniciativas que exigem dois terços dos deputados para serem aprovadas resultam em chumbo da proposta de lei seguido de recriminações mútuas. A surpresa foram os votos inesperado de dois deputados do Paicv e a ausência de vários outros que viabilizaram a iniciativa, mas que não diminuíram a crispação. Pelo contrário, face à fragilidade da actual liderança da oposição que já tinha sido evidenciada na eleição à justa do líder parlamentar e que com o novo incidente ficou mais clara, a reacção das bancadas foi mais crispação e mais um contributo para diminuir a imagem dos políticos. Assim, de um lado, a reacção foi de regozijo pelo facto de alguns deputados da nação supostamente se terem libertado das amarras do partido e alinharem com o sentimento do eleitorado do seu círculo. Do outro lado, sucederam-se vozes a acusar de deslealdade e indisciplina partidária e até a aventar possível expulsão do grupo parlamentar. Em qualquer das reacções, faz-se por não compreender a natureza do mandato do deputado e aprofunda-se nas pessoas o mau entendimento de como realmente funciona o parlamento. Mais uma vez questões de fundo como são no caso a regionalização cedem lugar a questões mais imediatas de luta partidária ficando por esclarecer o que realmente se quer com a criação de regiões, como por exemplo: se é pela via da regionalização que se pretende chegar a uma administração pública mais isenta e imparcial, mais efectiva e sensível às necessidades dos utentes; também se é por essa via que se pretende diminuir os custos de contexto e ser mais eficaz na atracção de investimentos, em particular, de investimento externo; ainda se é pela potenciação de factores locais que se estará em melhor posição de formar capital humano e ganhar competitividade no quadro global do país.
Recentemente numa entrevista ao jornal Público o filósofo espanhol Daniel Innerarity lembrou que não podemos prescindir dos sistemas inteligentes, ou seja, de sistemas com cultura, normas, regras inteligentes porque quando se tem isso a sociedade até pode funcionar com gente relativamente medíocre. Já o contrário, ou seja, se há vazios normativos, com culturas políticas torpes e sem regras razoáveis mesmo de gente inteligente só se consegue que actuem de maneira muita estúpida. Actualmente o mundo encontra-se numa encruzilhada e é grande a tentação para se pôr em causa as instituições democráticas existentes, vilipendiar a política que privilegia a verdade, os factos e a honestidade na busca do interesse público e quebrar regras indispensáveis à manutenção de um ambiente de civilidade, de respeito pela opinião contrária e de cooperação necessário para que todos possam contribuir e beneficiar da “inteligência colectiva” de que fala Innerarity. Há que resistir a essa tentação e isso exige duas importantes qualidades cada vez mais escassas neste ambiente renitente às regras e manifestamente anti-político e anti-partidos que são a sensibilidade democrática para se manter intacto o sistema de liberdade e pluralismo essencial à democracia e a competência tecnocrática necessária para responder aos extraordinários desafios que o país enfrenta e que exigem que potencie os seus parcos recursos e estrategicamente se posicione para construir um futuro de prosperidade para todos.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 883 de 31 de Outubro de 2018.

segunda-feira, outubro 29, 2018

Patriotismo Virtuoso

O anúncio do novo acordo de pesca com a União Europeia foi a mais recente oportunidade para as acusações se multiplicarem na comunicação social e nas redes sociais de que o interesse nacional não está a ser salvaguardado nas negociações com países estrangeiros. Voltou à baila a questão da compensação financeira dada pela UE que muitos consideram irrisória para a quantidade de peixe (média de 6,5 toneladas) capturado por barcos europeus nas águas de Cabo Verde, mesmo tendo passada de 550 mil dólares para 750 mil euros no novo acordo.
Aparentemente o raciocínio geral reflecte o equívoco de se considerar que Cabo Verde, no âmbito do acordo, estaria a vender peixe aos europeus por cerca de 2 escudos o quilo e não a cobrar uma simples licença pela pesca de uma espécie que, ainda para mais, só se torna disponível porque nas suas migrações atravessa a zona económica exclusiva do país. A indignação de muitos ventilada nos órgãos de comunicação social e nas redes sociais contra os termos do acordo talvez fosse mais produtiva se virada para o questionamento das razões por que o país até agora não conseguiu explorar adequadamente os seus recursos marinhos. Infelizmente o momento político parece mais propício a manifestações que tendem a cair para posições quási xenófobas dirigidas contra europeus e fazem lembrar ritos identitários que nos últimos tempos vêm-se tornando frequentes um pouco por todo o mundo com consequências imprevisíveis e gravosas para as democracias.
Recorrentemente em situações similares em que se procura aprofundar as relações económicas do país com a economia mundial levanta-se um sentimento de rejeição ao que vem de fora, em particular se o objectivo é potenciar a relação histórica de Cabo Verde com os países da União Europeia. É o que aconteceu quando nos anos noventa se fez a transição da economia estatizada para uma economia de mercado com a liberalização da economia, reformas do sistema financeiro, programas de privatizações, medidas de atracção do investimento estrangeiro e abertura para o turismo. Ouviram-se então vozes a acusar de “vendedores da terra, de anti-patriotas e de agentes do estrangeiro” aos que apoiavam as reformas que abriam o país para a modernidade. Vozes no mesmo timbre continuam a fazer-se ouvir sempre que se anunciam medidas que configuram maior aproximação com a Europa e a América. Ilustram esse facto os casos recentes da proposta do governo de isenção de vistos para cidadãos da União Europeia e do acordo SOFA com os Estados Unidos e agora toda a polémica sobre o acordo de pesca.
A questão em todos estes momentos não é de se ter opiniões diferentes sobre as reformas, sobre iniciativas tomadas ou compromissos assumidos. Isso é salutar e fundamental para a democracia porque ninguém tem a fórmula certa para desenvolver o país. Só com o debate democrático é que se pode almejar ficar mais próximo do caminho certo evitando a crispação política paralisante que resulta da polarização de opiniões e do extremar de posições sempre que actores políticos e sectores da sociedade vêem as opiniões e as acções dos outros como ilegítimos, como anti-patrióticos e como nocivos para o país. Aí tudo emperra, a confiança nas instituições cai e abre-se o caminho para a demagogia e o populismo. O exemplo do Brasil é bastante ilustrativo. Mostra o que acontece quando as convicções substituem os factos, as verdades são aquelas ditadas pela conveniência e o ressentimento alimenta lutas identitárias e tribais.
No caso de Cabo Verde – em que se está perante uma sociedade sem fracturas de natureza etnolinguística e religiosa e sem traumas geradoras de ressentimentos – é estranho que a política seja tão polarizada a ponto de impedir efectivamente que reformas profundas sejam implementadas em sectores-chaves como administração pública, segurança, justiça e educação e também na estruturação da economia nacional. O que alguns países africanos de sucesso como Botswana, as Maurícias e as Seicheles conseguiram na criação de consensos nacionais apesar da complexidade étnicas e linguista, Cabo Verde, com uma sociedade mais homogénea, não conseguiu. O facto de se ter forçado e se continuar a forçar Cabo Verde a ver a sua identidade nacional como produto de lutas e resistências contra o colonialismo e como mais uma “nação forjada na luta de libertação” tem consequências. Cria uma tensão e uma dinâmica de divisão no tecido social cujos efeitos na política já se notam no confronto que opõe os que se proclamam patriotas e “amantes da terra” e os que estes, do alto da sua pretensa superioridade, consideram-se “vendedores da terra ou antipatriotas ”. Pode ser uma questão de tempo até que divisões tendo como base o lugar de origem e eventualmente outros factores comecem a afectar decisões políticas, a mudar a relação com o legado cultural diverso do país e a condicionar até o que as pessoas poderão ambicionar ser e fazer. Paradoxalmente é numa sociedade que há séculos emergiu consciência nacional é que precisamente se veio criar uma crise identitária que, para além de fragilizar toda a nação, dificulta o progresso e a preservação da unidade renovada na liberdade e no pluralismo. Uma vítima já bem identificada deste estado de coisas é a língua portuguesa como bem reconhecem as autoridades brasileiras ao exigir aos estudantes cabo-verdianos a proficiência na língua escrita e falada como requisito de entrada nas suas universidades.
Ultrapassar os obstáculos para o debate democrático, de modo a que não se caia na tentação de retirar legitimidade a ninguém e também de colocar entraves à participação a todos os níveis, é fundamental. A forma não conflituosa com que a ideia da nação se desenvolveu em Cabo Verde devia ser o ponto de partida na construção de uma nação segura nas suas relações com o estrangeiro, porque ciente que não é afectada pelas mazelas da discriminação racial, ou por lealdades tribais e religiosas que não lhe deixam ver o todo e distinguir qual é o seu interesse. Pelo contrário, deve alimentar a certeza que pode triunfar não obstante todos os obstáculos e, como no caso da cooperação com a União Europeia no âmbito das pescas, focalizar-se nos instrumentos que lhe vão permitir para criar emprego, diversificar a economia, e desenvolver uma base produtiva voltada para a exportação. É disso que o país urgentemente precisa e não ficar a pasmar e dilacerar-se dividido nas suas dúvidas quando à questão de onde veio e para onde vai.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 882 de 24 de Outubro de 2018.

segunda-feira, outubro 22, 2018

Demagogos vs. Pedagogos

Iniciou-se o novo ano parlamentar e logo se fez notar a falta de eficácia nos trabalhos da Assembleia Nacional. Estavam agendadas perguntas a ministros, em particular ao ministro da economia por solicitação do Paicv que queria respostas do governo sobre o que classificou de crise nos transportes aéreos e o tipo de contracto assinado com a transportadora aérea Binter.
 Considerando a actualidade da questão que veio na sequência das tensões entre a a Binter e Agência de Aviação Civil foi surpresa geral que os sujeitos parlamentares não conseguiram gerir adequadamente o tempo disponível para que esclarecimentos sobre a matéria fosse prestada pelo governo. Persistiram na forma costumeira como utilizam o tempo parlamentar com desperdício notório em interpelações à mesa que fogem claramente do figurino previsto para esse instituto no regimento. É de se perguntar se alguém de facto na AN estava interessado em que o assunto fosse a debate.
Claro que logo a seguir todos se acusaram mutuamente de não quererem o questionamento do membro do governo. Uma coisa é certa: a Nação é que ficou por ser esclarecida em sede do contraditório como devia. O mais estranho é que o governo e a sua maioria não se tenham esforçado mais para aproveitar a oportunidade e clarificar as questões sobre o transporte aéreo doméstico eliminando as incertezas que terão sido criadas com a reacção da Binter sobre os novos preços máximos fixados pela AAC. Os interesses do governo e da oposição não são simétricos. A responsabilidade do país cabe a quem governa assim como também lhe cabe garantir às pessoas, à sociedade e aos operadores económicos um ambiente de tranquilidade, de previsibilidade e de certeza onde todos os eventuais conflitos são dirimidos sem sobressaltos desnecessários. Se o ministro tivesse tido oportunidade de expor as posições do governo perante os representantes da nação na quarta-feira passada hoje ter-se-iam dados mais concretos sobre a situação dos transportes aéreos e provavelmente não se estaria perante mais um desencontro de posições sobre o futuro dos transportes marítimos, designadamente sobre a questão do serviço público e da exclusividade trazida no comunicado da associação dos armadores.
As democracias, enquanto sistemas de governo com base no voto popular periódico, legitimam-se no dia-a-dia pela sua disponibilidade em prestar contas e serem fiscalizadas através de checks and balance dos órgãos de soberania e pela sua abertura em serem permanentemente escrutinadas pelos órgãos de comunicação social e pela sociedade no seu todo. É evidente que se as decisões políticas forem vistas como tomadas fora do processo democrático, ou se não são debatidas e contestadas no parlamento ou ainda se procura evitar que os médias façam luz sobre como o poder é exercido, inevitavelmente um muro de desconfiança acabará por separar os cidadãos dos poderes públicos. Parte do que hoje se chama crise da democracia resulta dessa erosão das instituições, da falta da acountability geral e da subordinação da classe política aos ditames de um eleitoralismo que se centra no impacto político partidário de curto prazo e confronta problemas complexos da sociedade procurando varrê-los para debaixo do tapete ou chutando-os para frente, esperando que se resolvam por si.
Curiosamente nota-se em muitos casos que quem devia primar pela defesa das instituições é o primeiro a juntar a sua voz à dos eternos descontentes da democracia e a pôr em causa os direitos fundamentais e a democracia representativa. Minam as instituições democráticas e, acto contínuo, à procura de ganhos políticos, assumem a dianteira na crítica às insuficiências daí resultantes. Nem se dão conta que abrem portas a demagogos e candidatos a autocratas.
Há pouco tempo numa entrevista a um jornalista do New York Times o novo presidente da Colômbia Iván Duque dizia que um populista é sempre um demagogo e do que hoje as sociedades não precisam são de demagogos. Precisam, acrescenta ele, de pedagogos que podem dizer a um país “ onde queremos ir, como fazer para que o queremos aconteça e o que é todos têm que dar para realizar esses objectivos”. Infelizmente essa não parece ser a opinião de muita gente. A atracção por demagogos está a se mostrar forte tanto nas democracias mais consolidadas designadamente nos Estados Unidos e na Europa como nas democracias mais recentes como bem testemunha a ascensão meteórica de Bolsonaro, no Brasil. Para muitos desses políticos emergentes fica mais fácil juntar-se a forças dirigidas contra as instituições democráticas e pretender oferecer soluções fáceis para problemas complexos do país e da sociedade. Paradoxalmente usam a condenação geral da corrupção para fazer as pessoas deixarem de confiar nas instituições e se entregarem cegamente sob protecção de um chefe, ditador ou autocrata que se lhes apresenta como moralmente superior, ou como autêntico ou ainda com um outsider, um político diferente de todos os outros.
Em resposta a esta tendência que é actualmente um perigo imediato para as democracias há que, como diz o ex-primeiro ministro espanhol Felipe Gonzalez num entrevista ao jornal El País, negar respostas simples a situações complexas e ser politicamente responsável fazendo a sociedade encarar-se a si própria com os problemas que a afligem. A urgência em agir de forma a conter a erosão de confiança dos cidadãos nas instituições é cada vez maior. Incertezas em relação ao futuro têm aumentado com o enfraquecimento da aliança entre as democracias e com os ataques ao comércio livre e recentemente às organizações multilaterais designadamente as Nações Unidas e as instituições de Bretton Woods. O FMI, no World Economic Outlook de Outubro, previu em baixa o crescimento mundial no próximo ano por conta desses desenvolvimentos.
Mais uma razão para a classe política nacional deixar de se fixar em ganhos imediatos com prejuízo para as instituições e perda na confiança dos cidadãos na democracia. É o momento para se apresentarem como actores que sabem que a dinâmica da democracia depende do pluralismo na sociedade e do contraditório exercido no parlamento. Devem dar provas que actuam com conhecimento profundo que “o que nos une é maior e mais fundamental do que aquilo que nos separa”. E é com essa consciência que se pode, de facto, pretender servir o país no governo ou na oposição e trabalhar na defesa e consolidação da democracia, o único regime que a história já mostrou que pode garantir a liberdade e levar à prosperidade.

Humberto Cardoso



Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 881 de 17 de Outubro de 2018.

segunda-feira, outubro 15, 2018

Não há inclusão sem qualidade

Para este ano lectivo o lema adoptado foi “Mais Educação, Mais Inclusão”. No ano de 2017 tinha sido “Educação: um compromisso para o presente e para o futuro” e em 2016 fora “Todas e Todos Sem Distinção de Nenhuma Ordem, Têm Direito a Uma Educação de Qualidade”. Todos belos lemas em que os objectivos de inclusão, qualidade e compromisso com o futuro são reafirmados como, aliás, desde há décadas o foram pelos sucessivos governos. O problema porém é que todos constatam no dia-a-dia: a inclusão tem sido em boa parte uma miragem; a qualidade é o objectivo mais sacrificado; e há que reconhecer que o compromisso com o futuro não tem sido cumprido quando se vê os muitos jovens desempregados saídos de todos os níveis de ensino. Por outro lado, já é notória a procura activa por franjas cada vez mais amplas da classe média do país de outras soluções que não a escola pública para colocar os filhos.
Cabo Verde tem algumas características que em outros países foram factores que os impeliram para ter uma educação de qualidade a nível mundial. Como Singapura, Estónia, Irlanda e Finlândia, Cabo Verde é um país pequeno, jovem e pobre, se não mesmo desprovido de recursos naturais. Também tem uma consciência nacional de há muito consolidada que devia traduzir-se em propósitos colectivos de sacudir a dependência, engajar o mundo com inteligência e desenvoltura e potenciar a capacidade de todos na construção do caminho para a prosperidade. Ou seja, tem vários dos ingredientes que nos países referidos e outros similares serviram de motivação para a construção de sistemas de educação capazes de resultados que competem com os mais altos atingidos a nível mundial. Saber por que apesar dos propósitos declarados aqui não se conseguiu pôr de pé uma educação de qualidade é crucial e devia anteceder estratégias e planos de reorientação do sistema educativo no sentido de maior eficácia e impacto na vida das pessoas e no desenvolvimento do país.
A Ministra da Educação recentemente lembrou numa intervenção no fórum sobre educação que no final do século XX Cabo Verde já tinha atingido as metas mundiais quanto à universalidade da educação básica e a paridade do género mas que se registavam ainda baixos níveis de aprendizagem e a persistência de práticas educativas desajustadas que afectavam a permanência no ensino secundário e estariam na origem da falta de sintonia entre a formação e o mercado de trabalho. A constatação da ministra traduz uma realidade muito conhecida que é a disparidade entre, por um lado, os investimentos feitos e os números publicitados que projectam uma imagem de sucesso do sistema de ensino e, por outro, os resultados concretos que ficam invariavelmente aquém do que na prática são precisos para ter impacto no desenvolvimento.
Os países que apostaram na educação como base fundamental para o crescimento económico não se limitaram a ficar pela mediania e por comparações com os piores na sua vizinhança. Ambicionaram sempre competir com os melhores no mundo. Por isso, certificaram-se que a democratização do ensino não podia acontecer sacrificando a qualidade. Em Singapura, por exemplo, os melhores professores são encaminhados para as escolas com maiores dificuldades porque fazem questão que todos os alunos tenham o melhor nível de ensino possível. É claro para os seus dirigentes que não há qualidade de ensino sem uma aposta séria na qualidade dos professores. Andreas Schleicher, director de Educação da OCDE e administrador dos testes PISA é peremptório em dizer que “nenhum sistema educativo pode ser melhor que a qualidade dos seus professores”.
De facto, não se pode pretender melhorar a qualidade do ensino sem colocar o foco na formação do professor, nos critérios meritocráticos que devem presidir à sua ascensão na carreira e no reconhecimento social que o seu trabalho deve merecer. Por isso, nos países de maior sucesso educativo os melhores graduados das escolas são atraídos para a profissão de professores e grandes investimentos são postos na sua formação específica e em instituições especialmente preparadas. Também os políticos querendo dar maior ênfase ao papel dos professores não podem propor-se simplesmente a satisfazer “reivindicações de natureza sindical” em termos de promoções, progressões e reclassificações ainda para mais, na perspectiva político-eleitoralista que muitas vezes é apresentada. A melhoria das condições dos professores, uma prioridade numa sociedade que quer desenvolver-se, tem que ser acompanhada de exigências de formação e de melhoria objectiva e quantificável do trabalho docente prestado.
A Educação deve ser vista como um ecossistema em que vários elementos concorrem para a sua estabilidade, foco e progresso. Para além da qualidade dos professores é fundamental o comprometimento de toda a sociedade com a procura do conhecimento, com o cultivo da excelência e com adopção de critérios meritocráticos na progressão nas carreiras e na ascensão profissional. Não se pode ficar por uma perspectiva que terá vingado no passado em que mandar os filhos para a escola e, a partir do diploma adquirido, dar um salto para um trabalho seguro no Estado era uma forma de contornar as incertezas derivadas da fragilidade económica do país. O engajamento das pessoas e do próprio Estado na educação deve ser outro: menos instrumental e paternalístico como outrora foi e mais potenciador do desenvolvimento do indivíduo e da sua capacidade de contribuir para a sua prosperidade pessoal e do seu próprio país. Por isso mesmo, mais inclusivo, mais enriquecedor e mais comprometido com o futuro.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 880 de 10 de Outubro de 2018.

segunda-feira, outubro 08, 2018

Ameaças de Lock-out?

O país foi surpreendido no passado dia 24 de Setembro pela posição da companhia aérea Binter de considerar que deliberações da Autoridade Aeronáutica (AAC),com que não concorda, a “libertam de compromissos” tomados com o governo actual e o anterior. Imediatamente parou vendas a partir de 28 de Outubro, data em que os novos preços máximos dos bilhetes de avião inter-ilhas iriam, segundo directiva da AAC, entrar em vigor.
Sendo a única operadora nos vôos domésticos, era evidente a confusão que se gerou quando de repente se tornaram incertas as ligações entre as ilhas. No dia 26 a Binter, referindo-se a “reuniões frutíferas”, em relação às quais e não se sabe se foram internas ou com alguma entidade externa à empresa, retomou a venda de bilhetes depois de endereçar à AAC um pedido para reavaliar o quadro tarifário publicado com as baixas nas tarifas máximas. Os dois dias de incertezas vieram lembrar a fragilidade que caracteriza o transporte aéreo nas linhas domésticas em Cabo Verde, as enormes dificuldades com que a TACV se confrontou e que a levaram à situação da falência e a importância estratégica para o país que é assegurar a todo o tempo que meios existam e a preço adequado e justo para ligar por via aérea regular todas as ilhas.
Os problemas nos transportes aéreos já vêm de longe e as soluções não têm deixado de ser polémicas. Na sequência de problemas financeiros graves da TACV, a Binter, a partir de 1 de Agosto de 2017, ficou sozinha no mercado doméstico. Três meses antes, a 25 de Maio, tinha assinado com o governo um acordo em que cedia 49% do seu capital social de 647 mil contos à entidades públicas e privadas cabo-verdianas. Desses 49%, trinta por centro seriam em troca da “posição comercial” da TACV e os restantes 19% seriam preenchidos até 1 de Junho de 2018. O acordo incluía a integração de administradores representantes dos accionistas caboverdianos. Acontece porém que até à data referida de início de Junho deste ano nada do que tinha acordado foi cumprido. De acordo com o BO de 7 de Maio de 2018, a Binter um ano depois ainda é uma sociedade unipessoal e tem todos os administradores nomeados pelos accionistas canários. Interpelado pelos jornalistas a 29 de Maio sobre qual foi o destino dos 30% que resultaram da cedência da posição comercial da TACV e porque não estão administradores cabo-verdianos, a resposta do Vice-Primeiro Ministro e Ministro de Finanças quando deste ano foi é peremptória: “Nós acordámos a entrada do Estado de Cabo Verde com 30% do capital pela saída na operação doméstica. Nós não queremos ser accionistas de empresa para termos administradores públicos juntamente com privados. Nós queremos que a empresa preste um bom serviço para os cabo-verdianos”. Quanto aos restantes 19%, o Ministro de Finanças já em várias ocasiões manifestara que o governo não tinha interesse em comprar.
Com esta declaração do Vice-Primeiro Ministro fica-se a conhecer a intenção futura do governo em relação à participação do Estado na Binter e o facto de não corresponder ao que inicialmente foi acordado. Não se fica a saber é o que vai acontecer entrementes e a falta de transparência ou défice na comunicação governamental não ajuda ninguém. Viram-se os problemas que foram criados antes porque várias questões não teriam ficado claras no referido acordo, designadamente, a das evacuações médicas e o transporte aéreo de mercadorias. Hoje assiste-se ao contencioso com a AAC quanto aos procedimentos para fixação das tarifas máximas. Amanhã poder-se-á estar a discutir sobre eventuais subsídios para as rotas de “baixa densidade de tráfego” como determina a resolução nº 24 de 10 de Março de 2016.
Este incidente porém trouxe à baila algo que já tinha acontecido antes, mas que agora, tratando-se dos transportes aéreos, tomou uma outra dimensão. Uma empresa suspendou a sua actividade, neste caso de venda de bilhetes de avião, como forma clara de pressão política. Aliás, se alguma dúvida houvesse quanto ao que pretendia, dissipou-a imediatamente ao considerar-se liberta de todos os compromissos tomados com o governo. O problema é se é legítimo ou mesmo legal e constitucional fazer isso. Para os constitucionalistas, a proibição de lock out no nº 3 do artigo 67 da Constituição visa também “vedar às entidades patronais o recurso ao encerramento da empresa como meio de pressão política”. E vão mais longe e dizem que a proibição abrange profissionais autónomos e os produtores independentes pelo que não podem fazer da paralisação da actividade uma arma para atingir certos interesses .
Nestes dois últimos anos já se tinha assistido também a movimentações de empresas envolvendo paralisia de actividade que podem configurar lock-out e todas com objectivo de pressão política. É só lembrar do encerramento das cerca de 30 lojas chinesas na Boavista em Agosto de 2016 em resposta à fiscalização dos serviços das finanças que consideraram discriminatória. Ou então o encerramento da empresas Frescomar em dois momentos: a 10 de Junho de 2016, para levar os trabalhadores em manifestação contra críticas dos moradores de Lazareto, e a 18 de Outubro, também numa manifestação contra a Câmara Municipal de S. Vicente. Curioso que nestas duas situações não haja registo de reacção das autoridades para pôr cobro ao que aparentemente é ilegal fazer-se em resposta a diferendos com comunidades, serviços públicos ou autoridades reguladoras. No caso da “greve” das lojas chinesas segundo a imprensa da época, o problema foi ultrapassado mas com a intervenção da embaixada chinesa. Pergunta-se se o Ministério Público abriu algum inquérito a uma prática com evidentes prejuízos para o público e dirigidas a pressionar politicamente as autoridades.
A fazer escola este tipo de atitudes, que no caso do transporte aéreo que une as ilhas são facilmente perceptíveis as consequências, pode-se estar a abrir uma caixa de Pandora que depois será difícil fechar. Pergunta-se é se, ficando as autoridades em geral e o governo em particular em silêncio quando confrontadas com essas tácticas fora do quadro legal, não se estará a impedir que o melhor ambiente para que os conflitos sejam dirimidos correctamente e com transparência seja criado. Para evitar que isso aconteça, tais tácticas têm que ser combatidas e criadas as condições para que as instituições nacionais, designadamente as autoridades reguladoras, se afirmem e se constituam no activo essencial que é fundamental em actividades chaves para o futuro do país como é o caso da aviação civil.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 879 de 03 de Outubro de 2018.

segunda-feira, outubro 01, 2018

Ser consequente na defesa dos direitos humanos

Este ano de 2018 celebra-se em todo o mundo o septuagésimo aniversário da Declaração Universal dos direitos humanos. As comemorações em vários países convergem para 10 de Dezembro, o dia em que em 1948 a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou por esmagadora maioria a carta dos direitos humanos. Em Cabo Verde a passagem de mais um aniversário da Constituição – aconteceu ontem, dia 25 de Setembro – é um bom momento para relembrar a importância dos direitos humanos. Foi em 1992 que tais direitos se viram efectivamente integrados na Lei Magna de Cabo Verde. Na Lei de Organização do Estado (LOPE) aprovada em 1975, logo a seguir à independência, foram simplesmente ignorados. A Constituição de 1980 já os registou, mas restringiu-os de seguida sujeitando-os aos ditames da lei ordinária (art. 47) e proibindo o seu exercício contra as instituições do regime de partido único (art. 34º).
O Mundo sentiu a necessidade da uma decla­ra­ção solene dos direitos humanos na sequência dos horrores da segunda guerra mundial e em particular do profundo choque que foi conhecer a forma sistemática como o Estado nazi agiu para esmagar indivíduos e proceder ao aniquilamento de grupos étnicos, com destaque para os mais de 6 milhões os judeus liquidados nos campos de concentração de Auschwitz, Dachau e Treblinka. Às víti­mas da ferocidade nazi jun­taram-se depois os muitos milhões enviados pelo comunismo para os gulags e os campos de reeducação para relembrar da importância de se salvaguardar os indivíduos da prepotência e violência do Estado. A Magna Carta forçada ao rei inglês João, há mais oitocentos anos, já era sinal dos tempos que o exercício do poder deveria verificar-se dentro da lei e que os indivíduos em caso algum devem ser atropelados nos seus direitos. Séculos depois a declaração dos direitos humanos da revolução francesa e a Bill of Rights americana serviram para consolidar o princípio de que democracia é um governo de poder limitado em o que governo além de se sujeitar à lei na prossecução dos seus objectivos deve respeitar os direitos do indivíduo, não os comprimindo em caso algum.
Em Cabo Verde a inexistência de direitos fundamentais estabelecidos, ou de sensibilidade para os defender, abriu caminho para todas as espécies de abusos. Vítimas do regime ao longo dos anos podiam ser encontradas em todas as ilhas, acusadas por crime de lançar boatos, ou presos por mais de três meses sem culpa formada, ou acusados de desobediência por reagirem a autorizações de saída e outros esquemas de controlo das autoridades. Em S.Vicente e S.Antão em particular várias pessoas foram torturadas e houve mortes. Nas outras ilhas aconteceu o mesmo, mas em menor escala. O regime sempre esteve preparado para responder a qualquer desafio ao poder da sua clique dirigente. Por isso é que considerá-lo como quase benigno, tomar os factos e o que aconteceu às vítimas como acidentes ou como excessos de militantes, só serviu para camuflar a sua natureza de sistema repressivo e iliberal instalado no país desde de 1975.
Em simultâneo, deixando de fora as instituições que constituíam esse sistema, não se motivou ninguém para pôr a fim a práticas e desalojar uma cultura institucional desrespeitadora dos direitos fundamentais nesses anos todos. Não é a toa que recorrentemente vêm à tona casos de violência policial, ou que se notam tensões entres os operadores de justiça devido a acusações múltiplas sobre quem é responsável pela falta de eficácia da Justiça. Assim é, em parte, porque o Estado nunca assumiu que torturou e matou. Mudam os governos e nenhuma entidade quer assumir a responsabilidade do Estado perante quem foram as suas vítimas. Mas na falta dessa assunção plena pelo Estado ao mais alto nível como se pode reorientar as instituições para abandonar as práticas anteriores e evoluir no sentido do que se espera no regime democrático.
Este ano de comemoração da declaração universal dos direitos humanos devia ser aproveitado pelos órgãos de soberania para, em nome do Estado, pedir desculpas pelo atropelos graves cometidos contra pessoas nos primeiros 15 anos após a independência, acompanhadas de eventual compensação para os que mais sofreram com a sua família a violência do Estado. Seria um acto de justiça e um acto consequente com a adopção da Constituição de 1992 que com todo o seu catálogo de direitos dos cidadãos foi uma clara reacção a ausência desses mesmos direitos no regime anterior. Também marcaria a disposição firme de lutar contra derivas iliberais que se vêm manifestando nas democracias, comprimindo os direitos dos cidadãos, atacando a independência dos tribunais e procurando condicionar os órgãos de comunicação social e a actividade jornalística na sua tarefa de escrutínio de todos os poderes.
Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 878 de 26 de Setembro de 2018.

sexta-feira, setembro 28, 2018

Ser consequente na defesa dos direitos humanos

Este ano de 2018 celebra-se em todo o mundo o septuagésimo aniversário da Declaração Universal dos direitos humanos. As comemorações em vários países convergem para 10 de Dezembro, o dia em que em 1948 a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou por esmagadora maioria a carta dos direitos humanos. Em Cabo Verde a passagem de mais um aniversário da Constituição – aconteceu ontem, dia 25 de Setembro – é um bom momento para relembrar a importância dos direitos humanos. Foi em 1992 que tais direitos se viram efectivamente integrados na Lei Magna de Cabo Verde. Na Lei de Organização do Estado (LOPE) aprovada em 1975, logo a seguir à independência, foram simplesmente ignorados. A Constituição de 1980 já os registou, mas restringiu-os de seguida sujeitando-os aos ditames da lei ordinária (art. 47) e proibindo o seu exercício contra as instituições do regime de partido único (art. 34º).
O Mundo sentiu a necessidade da uma decla­ra­ção solene dos direitos humanos na sequência dos horrores da segunda guerra mundial e em particular do profundo choque que foi conhecer a forma sistemática como o Estado nazi agiu para esmagar indivíduos e proceder ao aniquilamento de grupos étnicos, com destaque para os mais de 6 milhões os judeus liquidados nos campos de concentração de Auschwitz, Dachau e Treblinka. Às víti­mas da ferocidade nazi jun­taram-se depois os muitos milhões enviados pelo comunismo para os gulags e os campos de reeducação para relembrar da importância de se salvaguardar os indivíduos da prepotência e violência do Estado. A Magna Carta forçada ao rei inglês João, há mais oitocentos anos, já era sinal dos tempos que o exercício do poder deveria verificar-se dentro da lei e que os indivíduos em caso algum devem ser atropelados nos seus direitos. Séculos depois a declaração dos direitos humanos da revolução francesa e a Bill of Rights americana serviram para consolidar o princípio de que democracia é um governo de poder limitado em o que governo além de se sujeitar à lei na prossecução dos seus objectivos deve respeitar os direitos do indivíduo, não os comprimindo em caso algum.
Em Cabo Verde a inexistência de direitos fundamentais estabelecidos, ou de sensibilidade para os defender, abriu caminho para todas as espécies de abusos. Vítimas do regime ao longo dos anos podiam ser encontradas em todas as ilhas, acusadas por crime de lançar boatos, ou presos por mais de três meses sem culpa formada, ou acusados de desobediência por reagirem a autorizações de saída e outros esquemas de controlo das autoridades. Em S.Vicente e S.Antão em particular várias pessoas foram torturadas e houve mortes. Nas outras ilhas aconteceu o mesmo, mas em menor escala. O regime sempre esteve preparado para responder a qualquer desafio ao poder da sua clique dirigente. Por isso é que considerá-lo como quase benigno, tomar os factos e o que aconteceu às vítimas como acidentes ou como excessos de militantes, só serviu para camuflar a sua natureza de sistema repressivo e iliberal instalado no país desde de 1975.
Em simultâneo, deixando de fora as instituições que constituíam esse sistema, não se motivou ninguém para pôr a fim a práticas e desalojar uma cultura institucional desrespeitadora dos direitos fundamentais nesses anos todos. Não é a toa que recorrentemente vêm à tona casos de violência policial, ou que se notam tensões entres os operadores de justiça devido a acusações múltiplas sobre quem é responsável pela falta de eficácia da Justiça. Assim é, em parte, porque o Estado nunca assumiu que torturou e matou. Mudam os governos e nenhuma entidade quer assumir a responsabilidade do Estado perante quem foram as suas vítimas. Mas na falta dessa assunção plena pelo Estado ao mais alto nível como se pode reorientar as instituições para abandonar as práticas anteriores e evoluir no sentido do que se espera no regime democrático.
Este ano de comemoração da declaração universal dos direitos humanos devia ser aproveitado pelos órgãos de soberania para, em nome do Estado, pedir desculpas pelo atropelos graves cometidos contra pessoas nos primeiros 15 anos após a independência, acompanhadas de eventual compensação para os que mais sofreram com a sua família a violência do Estado. Seria um acto de justiça e um acto consequente com a adopção da Constituição de 1992 que com todo o seu catálogo de direitos dos cidadãos foi uma clara reacção a ausência desses mesmos direitos no regime anterior. Também marcaria a disposição firme de lutar contra derivas iliberais que se vêm manifestando nas democracias, comprimindo os direitos dos cidadãos, atacando a independência dos tribunais e procurando condicionar os órgãos de comunicação social e a actividade jornalística na sua tarefa de escrutínio de todos os poderes.
Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 878 de 26 de Setembro de 2018.

quarta-feira, setembro 26, 2018

Com clareza ganha-se eficiência

Da Conferência Internacional comemorativa dos 20 anos da assinatura do Acordo de Cooperação Cambial entre Portugal e Cabo Verde saiu pelo menos uma novidade: O doutor João Serra, Governador do BCV, foi claro a defender que a adesão de Cabo Verde à moeda única da CEDEAO não vale a pena.
Justificou a sua declaração afirmando que “nós quase não temos relações económicas com a África: quer com a CEDEAO, quer com a África no seu todo. E continuou: “90% das nossas importações vêm da Europa, 90 das nossas exportações vão para a Europa, 90% das nossas remessas dos emigrantes vêm da Europa, 90% dos investimentos externos vêm da Europa” pelo que Cabo Verde não tem vantagens em alterar a sua ligação. O facto curioso é que insistiu em dizer que fazia a defesa dessa posição do “ponto de vista técnico”.
Os dois políticos presentes na abertura e no fecho da conferência, respectivamente o Vice-primeiro ministro e o primeiro-ministro, não aproveitaram a ocasião para clarificar qual é realmente a opção política definitiva quanto ao futuro da moeda nacional. Limitaram-se a apoiar o acordo cambial existente, mas relembrando o VPM o “enquadramento africano e a perspectiva de criação de moeda única africana” e o PM a necessidade da “âncora na Europa, mas sem prejuízo da integração regional”. Mesmo com os dados sobre as relações económicas com a África apresentados pelo governador do banco central a preferência foi manter uma posição ambígua sobre a matéria. Para revelar a sua posição o governador teve que se socorrer da sua condição enquanto técnico.
É evidente que o país nada ganha com a falta de clareza em questões fundamentais. Dissipam-se recursos, não se age estrategicamente e dificilmente se consegue manter a motivação e o foco da nação no que realmente precisa fazer para vencer os desafios do desenvolvimento. Várias serão as razões por que colectivamente se persiste nesta atitude tão perniciosa de não confrontar a realidade como ela se apresenta. Entre elas estará a sempre presente tentação de atirar os problemas para debaixo do tapete, como se aí desaparecessem ou se resolvessem por si próprios. Não deixarão de contribuir também os vestígios de amarras ideológicas e de sentimentalismos bacocos, que outrora serviram para legitimar regimes anti-democráticos e para sustentar engenharias sociais duvidosas, como projectos de construção de nações e do homem novo. Só assim se explica que, mesmo com a economia a funcionar em 90% com a Europa, quer-se é integração africana, e pouco interessa para o caso que o professor doutor João Estêvão, nessa conferência do BCV, tivesse demonstrado que desde do século dezoito a relação económica de Cabo Verde com África sempre foi marginal. Ou que recentemente, na sequência da rejeição da presidência cabo-verdiana da CEDEAO, o governo tenha achado por bem criar uma pasta ministerial de integração africana. Ninguém percebeu a estratégia por detrás dessa iniciativa. Talvez mais um caso de sentimentos a sobrepor-se a interesses.
Mais complicado ainda é que, sem se definir ao mais alto nível e sem ambiguidades o futuro da política monetária do país, se procure aprofundar o acordo cambial na perspectiva de aumentar a linha de crédito que suporta a convertibilidade do escudo caboverdiano. Inicialmente estimada em 50 milhões de euros, parece que hoje é considerada insuficiente não só porque a economia de Cabo Verde tem uma outra dimensão como, particularmente depois da liberalização de capitais, o BCV, segundo o governador na sua intervenção, perdeu a sua “função de prestamista de última instância”. O levantamento do controlo do movimento de capitais tem um preço: pode potenciar ataques especulativos à moeda cabo-verdiana. E como acrescenta o governador isso pode acontecer mesmo “num contexto de disciplina de disciplina macroeconómica”.
O aumento na linha de crédito de apoio cambial serviria também para apoiar em caso de acção de especuladores. O problema é se quem faculta a linha de crédito o faz contando com essa possibilidade e considerando os riscos inerentes. O economista americano Jeffrey Sachs, quando liderou a equipa técnica que dirigiu todo o processo de convertibilidade do zloty polaco nos fins dos anos oitenta e início de noventa, foi peremptório em dizer que a marca de maior sucesso do processo foi o facto de nunca ter sido necessário recorrer a linha de crédito criada para o suportar. Com isso reforçaram grandemente a confiança na sustentabilidade da convertibilidade do zloty. Nesta perspectiva, parece pior sugerir que alguma vez linhas de crédito similares sirvam para responder a ataques especulativos contra a moeda nacional. Ainda por mais, como é caso, quando não há clareza total do que se pretende no futuro com a “integração africana”.
Apesar das críticas vindas de vários quadrantes, optou-se por liberalizar completamente o movimento de capitais. Supõe-se que no processo de decisão tiveram em devida conta a história económica de vários países, em particular dos apanhados pela crise de 1997 e os problemas posteriores do Brasil, Argentina e Rússia, que aconselharam a manutenção de controlos na saída de capitais. No mesmo sentido aponta o caso recente da Turquia, que assistiu em poucos dias à queda do valor da sua moeda em 40%. No caso de Cabo Verde está-se para ver os influxos de capitais que a liberalização poderá facilitar e como os benefícios irão contrapor-se aos eventuais riscos. A vontade geral é que tudo corra bem. Para assegurar isso é importante clareza nas políticas, agir com pragmatismo e não deixar-se apanhar nem pela ideologia, nem por sentimentalismos.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 877 de 19 de Setembro de 2018.

quinta-feira, setembro 20, 2018

Para quando a real descolagem?

Ultrapassado o meio do mandato (965 dias de um total de 1825) do governo de Ulisses Correia e Silva impõe-se que se faça uma avaliação dos resultados das políticas no país, em particular, no que toca à questão crucial trazida à liça no momento eleitoral de 2016.
Na eleições legislativas de então o que estava em disputa era quem conseguia transmitir confiança que com a sua maioria e as suas políticas conseguiria operar uma mudança estrutural na economia que permitisse ao país alcançar taxas de crescimento elevadas, mais de 7% ao ano, e também debelar o desemprego a curto e médio prazo, em particular para os jovens. O paradoxo da quase estagnação económica dos cinco anos anteriores enquanto se verificavam investimentos vultuosos de centenas de milhões de dólares designadamente em portos, aeroportos, asfaltagem de estradas e construção de habitação social deixou nas pessoas uma vaga sensação que algo de profundo teria que mudar no modelo de desenvolvimento e na forma de governar o país. Uma outra via teria que ser encontrada para vencer os grandes desafios do desemprego e da pobreza e manter a esperança que é possível construir uma base económica e institucional sustentável para se ganhar a batalha da prosperidade para todos.
A realidade económica dos últimos dois anos com taxas de crescimento de 4,7% em 2016 e 3,9% em 2017 pode não ser a mesma dos anos anteriores, mas ainda está longe da dinâmica prometida dos 7% ao ano. Não é por acaso que os efeitos nos rendimentos das pessoas ainda não se mostrem expressivos. As previsões de organizações internacionais como o FMI apontam para crescimento até 2020 de cerca de 4,1 %. Para alguns observadores o potencial de crescimento não foi alterado. Faltam realizar as reformas estruturais que, ao fazer o país mais competitivo e mais produtivo, poderiam elevar esse potencial. Nos anos 90 as políticas de liberalização da economia e de construção da economia de mercado elevaram extraordinariamente o potencial da economia abrindo caminho para taxas de crescimento que chegaram a atingir dois dígitos e que até 2007-2008 permitiram níveis de crescimentos dos mais altos registados na história recente do país.
Repetir a proeza de elevar o potencial não tem sido fácil. Resistência às mudanças abunda e os sucessivos governos têm falhado em transmitir às pessoas e à sociedade a enormidade da tarefa que é ultrapassar os constrangimentos que à partida se colocam numa economia pequena, fragmentada, com reduzida base produtiva e pouco diversificada. A invulgar rotação de ministros pelas pastas da economia e o facto de quase ninguém sair incólume dos múltiplos embates com os interesses instalados e que beneficiam do status quo devia indiciar o grau de dificuldade que é construir em Cabo Verde uma economia moderna, competitiva e com níveis elevados de produtividade. Neste particular é de relembrar que o governo de José Maria Neves em quinze anos teve sete ministros de economia e que o ministério da Economia criado pelo novo governo já se dividiu em dois em menos de dois anos, perdendo pelo caminho a favor do ministério das Finanças departamentos importantes como o de gestão de projectos e a tutela efectiva de empresas públicas em sectores-chave da economia nacional. Infelizmente, ou porque não se dá a devida importância à necessidade de reformas económicas, ou porque fica mais fácil manter-se no quadro do modelo de reciclagem da ajuda externa, mais ou menos disfarçado por retóricas desenvolvimentistas em voga nos fóruns internacionais, o que se constata geralmente é que o ministro da economia não tem o peso político que seria de esperar para fazer as reformas e enfrentar o sistema vigente.
A verdade é que se continua a não arregimentar vontade política favorável às reformas, a não combater os interesses instalados e a não tornar mais eficiente todo o processo produtivo mesmo sabendo que o futuro do país depende da economia que se souber construir. Não estranha pois que a reforma da administração pública, essencial para a diminuição dos custos de contexto, se tenha encalhado nas intermináveis discussões sobre a partidarização condimentadas com a bizarra questão das incompatibilidades. Não se pôs suficiente foco na procura de eficiência nos sectores de energia e água e no sistema de transportes com vista a baixar os custos. A atenção oficial, seguindo talvez modismos, centrou-se na inovação como se o país já tivesse instalada a infraestrutura física, institucional e humana para fazer dos avanços tecnológicos e de processos produtivos mais criativos o motor da economia nacional. A grande aposta no privado nacional deparou-se com as dificuldades quase congénitas de um sector que além de constrangido por um mercado exíguo e custos elevados de contexto viu-se a gravitar à volta de um Estado que insistia no papel de facultar acessos, de criar oportunidades e de influenciar decisões de negócios. Quando se pensou e se agiu junto do sector bancário como se o problema do sector privado fosse o financiamento, rapidamente se chegou à conclusão que a questão era mais complexa e que segundo o PCE da Caixa Económica, António Moreira, citado pela Inforpress, “os projectos e os promotores devem reunir as condições de financiamentos, de forma que os projectos sejam elegíveis o promotores credíveis”. Isso porque, segundo ele, o crédito vencido em Cabo Verde “é três vezes aquilo que é o nível da Europa” como resultado dos bancos terem aprovado “créditos cujo nível de risco não deveria ser aceite”.
Ainda com as mudanças na Administração Pública por fazer e o sector privado sem grande protagonismo, a economia continua apoiada no turismo e estimulada pela procura interna onde as transferências para os municípios jogam um papel importante. O problema é que os fluxos turísticos continuam controlados pelos grandes operadores em mais de 90% e direccionados para o mercado de Sol&Mar e aparentemente não se tem feito muito para diversificar a procura numa perspectiva de se impactar mais a economia nacional e de se contornar eventuais quebras no fluxo actual devido, por exemplo, à renovada concorrência da Turquia e dos países do Norte de África e também do Brexit que afecta o maior contingente de turistas que são os ingleses. Quanto à procura interna os efeitos das transferências para os municípios tendem a diminuir se não houver estratégias que criem uma procura efectiva para as ilhas.
Devia ser evidente que uma grande estratégia para atrair investimentos externo e integrar Cabo Verde na economia mundial através do aumento do fluxo turístico e da exportação de bens e serviços é fundamental para o país atingir os níveis de crescimento económico que precisa para se desenvolver. Não parece porém que suficiente importância se esteja a colocar nessa direcção. A impressão com que se fica é que maior esforço tem sido em incursões em direcção Europa, na perspectiva de ajuda, mas isso tem os seus limites. O mesmo se pode dizer da ofensiva junto à China que facilita o crédito mas traz mão-de-obra própria e material para as obras, o que limita imenso o impacto local da construção das infraestruturas, ficando o país mais endividado. Há que voltar a pôr o foco no que de facto se decidiu a 20 de Março de 2016: o país precisa crescer a mais de 7% para garantir o futuro e o governo tem a obrigação de dar a conhecer às pessoas as dificuldades reais e mobilizar vontade nacional para atingir esse objectivo. Mais de dois anos já se passaram. Não há mais tempo a perder.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 876 de 12 de Setembro de 2018.
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segunda-feira, setembro 10, 2018

Enfraquecimento das instituições

Depois de meses a assistir ao desgaste do parlamento devido, entre outros factores, à excessiva crispação das forças políticas, à duvidosa organização e gestão dos trabalhos parlamentares e às ausências prolongadas e injustificadas do primeiro-ministro em sessões sucessivas da Assembleia Nacional, o país depara-se agora com despiques públicos entre o Presidente da República e o governo.
É uma situação que não beneficia ninguém e muito pelo contrário tende a enfraquecer a imagem das instituições e a minar a confiança na democracia. Nos tempos actuais – em que a tentação populista na abordagem e resolução dos problemas associada ao acesso rápido e quase universal das pessoas às redes sociais põe especial desafio às democracias – todo o cuidado é pouco na gestão do processo político essencial para que o desenvolvimento do país se faça na liberdade e no pluralismo. O que menos se precisa é que se aumente e se aprofunde a descrença nos princípios e valores democráticos por razões ligadas à actuação de titulares de órgãos de soberania e de dirigentes políticos ávidos de protagonismo e pouco dispostos a seguir procedimentos já sedimentados, mesmo na nossa jovem democracia, nas relações entre o presidente, o governo e o parlamento.
A tensão entre o presidente da república e o governo, aparentemente à volta do SOFA, veio depois provar que afinal ela tem uma origem mais profunda que é de saber quem tem competência para dirigir a política externa do país. Pelas declarações feitas à TCV, no dia 20 de Setembro de 2017, apercebe-se claramente que o PR pensa que, por exemplo, no caso do acordo SOFA com os Estados Unidos da América o seu papel não deve ser apenas de ratificar o acordo depois de negociado e assinado pelo governo e levado ao parlamento para discussão e aprovação como parece estipular a alínea a) do artigo 136º da Constituição. O PR mostra-se convicto de que em matéria de acordos internacionais não deve apenas ser informado nos encontros regulares com o primeiro-ministro mas que deve “haver acompanhamento das negociações e até em certos casos o assentimento prévio do Chefe do Estado para que na altura da ratificação não haja situações..”. Prossegue suas declarações dizendo que a intervenção é “pedagógica” mas na realidade pela alusão ao “assentimento prévio” do PR em certos pontos negociais a impressão com que se fica é que pretende ter participação efectiva no processo.
É um facto que o PR tem um papel a desempenhar na política externa no âmbito da sua função de representação externa da República. Também é um dado assente que quem constitucionalmente dirige a política interna e externa do país é o governo. Desde os primórdios da Constituição de 1992 o regime democrático cabo-verdiano foi caracterizado como “parlamentarismo mitigado”. Diferentemente do semi-presidencialismo português, o governo em Cabo Verde não é responsável politicamente perante o presidente da república. Por isso estranha que haja quem pense que o PR em Cabo Verde possa ter competências ou protagonismo na direcção da política externa do país que nem no sistema português actual nem no sistema francês no quadro da coabitação Miterrand/Chirac e Chirac/Jospin, todos de pendor presidencial mais pronunciado, os presidentes da república pareciam ostentar. É só ver como na fotografia oficial da recente Cimeira da CPLP a dupla Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa protocolarmente se apresentava enquanto o PR cabo-verdiano se encontrava no centro com o PM Ulisses Correia e Silva distante junto à secretária executiva da CPLP. Não é essa a imagem que se tem, por exemplo, do presidente Miterrand e do primeiro-ministro Chirac nas cimeiras internacionais em que a França participava.

Exemplos que vêm de países recentemente democráticos, mas que já mostram sinais de crise e tendências populistas e autoritárias pronunciadas dão-nos conta de que tudo aparentemente começa quando partes do sistema político começam a bordejar as fronteiras das suas competências e acabam em incursões nas competências das outras. Ao reagir - seja no formato de aceitação de diminuição a que é sujeita, seja da luta que terá que fazer para se reafirmar – a parte agravada incorre no risco de ver a sua imagem diminuída, abrindo espaço para o desprestígio das instituições aos olhos dos cidadãos. Dos ataques que de há muito têm sido dirigidos à justiça e ao parlamento já se vêem as consequências. Com o governo e a presidência da república num terreno movediço que só pode levar ao desprestígio dos envolvidos, a situação só pode piorar. O ambiente de crispação política extrema em que a luta política tende a ficar pelas conveniências do momento e pela postura quase tribal dos militantes e activistas pode deixar o sistema sem defensor consequente perante as múltiplas ameaças que hoje se apresentam contra a democracia representativa e contra o Estado de direito.
Há que arrepiar caminho. Vários exemplos vindos todos os dias de fora dizem-nos que ataque aos media, à eficácia da justiça e ao parlamento não traz nada de bom para a democracia. Que também não é boa opção demonizar a oposição mesmo quando ela lá no íntimo se considera uma espécie de “Dono Disto Tudo” e mais preocupada em preservar o seu legado histórico do que em defender o sistema democrático. Há finalmente que defender as instituições e garantir que se tornem perenes e que sejam colocadas ao serviço de todos. Experiências democráticas confrontadas com derivas populistas ou autoritárias confirmam que só com instituições construídas sobre princípios e valores democráticos é que se pode ter esperança de combater os excessos de protagonismo e conter com eficácia a ameaça que parece pairar sobre todos e que servindo-se de fake news e do ilusionismo põem em causa os factos e a verdade, erigem a desonestidade, o tacticismo conveniente e o eleitoralismo como forma de fazer política e de conquistar e de se manter no poder.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 875 de 5 de Setembro de 2018.