segunda-feira, junho 28, 2021

Não se deixar apanhar pelo surreal

 O insólito aconteceu na sexta-feira passada, dia 18 de Junho, na Ilha do Sal. A CVA tinha anunciado com fanfarra a retoma da sua actividade com um voo Sal/Lisboa/Sal depois de um ano de paralisia devido à pandemia da Covid-19.

O voo atrasou-se várias horas e acabou por não se realizar, supostamente por causa de um braço de ferro entre a CVA e a ASA. As partes abstiveram-se de apresentar razões para o impasse e com o desembarque dos passageiros, para espanto de todos, ficou-se a saber que a CVA no seu voo inaugural de retoma iria levar 4 passageiros a Lisboa.

O surreal da situação não terminou aí. No domingo, o Primeiro-ministro numa entrevista à TCV quanto ao futuro da CVA começou por dizer que “está sobre a mesa uma discussão que iremos fazer já na próxima semana” para logo acrescentar, “mas com a decisão já quase tomada” de iniciar um processo de reverter a participação dos islandeses na empresa. Marcou-se uma conferência de imprensa no dia seguinte para um posicionamento do governo sobre o assunto com a presença do vice-primeiro-ministro e do ministro do turismo e transportes, mas foi cancelada sem qualquer explicação. No mesmo dia o PM confirmou a decisão do governo em reaver os 51% da CVA e, depois de um encontro com o presidente angolano João Lourenço, avançou logo que a relação entre os dois países no sector dos transportes pode ser reforçada e que existindo uma parceria nos transportes aéreos inter-ilhas, a concessão por seis meses assinada com a empresa angolana BestFly, “há possibilidades de estabelecer boas parcerias nos transportes aéreos internacionais e também no sector marítimo”.

Não deixa de ser espantoso o processo de tomada de decisão em matéria de governação e também a rapidez com que se encontram “soluções” para sectores comprovadamente complexos como o é dos transportes aéreos num país arquipélago como Cabo Verde. O acumular de dívidas e de outros prejuízos não parece ser suficiente travão para que de forma ponderada se encontre um caminho seguro para um sector tão essencial. Salta-se de uma solução para outra sem muita preocupação com os custos do passado das sucessivas reestruturações, nem com os custos do presente nas ineficiências criadas e oportunidades perdidas e nem com os custos futuros das alternativas entretanto encontradas para suprir serviços essenciais inter-ilhas e na ligação do país com o exterior. A questão recente à volta da Binter e dos voos domésticos foi elucidativa a esse respeito. Num editorial deste jornal de 18 Novembro de 2020 e a propósito da inactividade da CVA em tempos e pandemia e da teimosia em manter os aviões com leasing activo estacionados na Florida fez-se um apelo para “parar de cavar” para não se afundar mais no proverbial poço com os seus inerentes riscos fiscal e político. A tentação nestas e noutras situações similares não é, porém, de parar de cavar, mas sim de mudar apenas de lugar ou simplesmente de direcção sem que realmente se saia do poço.

Desde o último trimestre de 2019 que a CVA com as suas operações de hub entrou em dificuldades. Segundo o relatório de contas do quarto trimestre de 2019 do grupo Icelandair, tais dificuldades só poderiam ser superadas com um forte financiamento vindo não se sabe de onde, considerando que a parceria estratégica não incluía uma componente financeira. A parte islandesa contava com a comparticipação do Estado de Cabo Verde, enquanto este procurava libertar-se das responsabilidades com a venda de todas as acções na sua posse. O primeiro trimestre de 2020, segundo o relatório de contas da Icelandair, também não foi melhor. A partir de 19 de Março veio a pandemia da Covid-19 com a paralisação do tráfego aéreo em quase todo o mundo e particularmente nos mercados em que a CVA podia pretender operar. Talvez tivesse sido o momento para se dar um outro destino à parceria invocando algum tipo de “force majeure”. Preferiu-se ficar pelo teatro de se ter uma companhia de aviação sem voos, mas com aviões – supõe-se em regime de leasing – estacionados na Florida.

Na Assembleia Nacional ouviram-se ao longo de meses seguidos várias vozes a perguntar por que os aviões não estavam em Cabo Verde. A questão óbvia deveria ser porquê acumular custos com leasing de aviões quando o mercado da aviação praticamente não existe e uma eventual recuperação terá provavelmente características completamente diferentes. Com a proximidade das eleições, primeiro as autárquicas, em Outubro, e depois as legislativas, em Abril, o risco político que sempre esteve associado às operações da TACV tornou-se maior, retirando espaço de manobra na abordagem dos problemas da empresa. Mais difícil se tornou tomar decisões para resolver a situação e mais histriónico se tornou o discurso a perguntar pelo paradeiro dos aviões. O surreal disso tudo atingiu o seu ponto máximo em meados de Abril quando finalmente chegou um dos Boeing 757 ficando de seguida estacionado no aeroporto sem passageiros e sem voos programados. Quando na sexta-feira passada procurou simular uma retoma tudo se esboroou à volta – a realidade da companhia ficou exposta a todos e o governo sentiu-se forçado a agir.

O Primeiro-ministro, questionado se teria sido um erro a escolha de parceiros, foi peremptório em dizer que não. A culpa de alguma coisa ter corrido mal é atribuída à pandemia da Covid-19. Aparentemente está-se mais uma vez perante mais um caso em que os custos das opções tomadas não são assumidos, erros não são reconhecidos e improvisam-se soluções desde que se acautele os fluxos financeiros necessários para o país continuar a funcionar. Décadas de dependência externa tendem a provocar desfocagem da realidade das coisas, perdendo-se no processo a relação entre custo e benefício, investimento e retorno e meios utilizados e resultados obtidos. Parece às vezes que se trata de um gigantesco “Ponzi scheme” ou “jogo da bolha” em que o que interessa fundamentalmente é ter sempre novos entrantes para retroalimentar o sistema. Ineficiências, vulnerabilidades e desigualdades que vão-se acumulando e a sustentabilidade a prazo que não se pode garantir, não parece que atraiam atenção suficiente.

Cortar com este estado de coisas é fundamental particularmente agora que é visível para todos o impacto terrível que a pandemia está a ter em todos os domínios da vida das pessoas e também na economia, condicionando em boa medida o futuro do país. A captação de recursos financeiros de forma directa ou com reestruturação da dívida externa por si só não vai resolver o problema. Há necessidade de uma mudança de atitude que entre outros aspectos importantes se traduza na exigência de mais accountability (prestação de contas) aos governantes, ponha enfase na necessidade de auto-responsabilidade e fomente mais solidariedade para com os outros. Só com uma nova atitude é que se pode esperar que recursos que eventualmente forem disponibilizados não serão utilizados como no passado obtendo resultados limitados e insustentáveis em termos de rendimentos das pessoas e na diminuição das vulnerabilidades que hoje todos dizem reconhecer e querer combater. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1021 de 23 de Junho de 2021.

segunda-feira, junho 21, 2021

Pluralismo reforça estabilidade

 Foi aprovada esta segunda-feira a moção de confiança ao Governo após a apreciação do seu programa. Finalmente depois das eleições de 18 de Abril, há quase dois meses atrás, vai-se ter um governo legitimado para mais um mandato de cinco anos e em pleno uso das suas competências constitucionais.

Já se fazia tarde, considerando os extraordinários desafios postos pela pandemia da covid-19 e pela crise económica e social que a acompanha. A demora, sentida como excessiva nesta situação em particular, deverá ser um lembrete para no momento próprio em sede de revisão constitucional se adequar os prazos que marcam o processo de transição de uma legislatura para outra e a transferência de poder para um novo governo. De qualquer forma já se tem governo e se espera que a maioria absoluta obtida em Abril garanta a estabilidade política que o país precisa nestes tempos calamitosos e que, supõe-se, terá sido um dos grandes determinantes do voto nas eleições.

Estranhamente, considerando o resultado eleitoral obtido, constatou-se que os dias que antecederam a aprovação da moção de confiança foram rodeados de alguma tensão. Em princípio não devia haver nenhuma, mas a aparente existência de fracturas internas expostas tanto em processos eleitorais como em relatos na imprensa citando fontes do grupo parlamentar deixou antever que poderia aparecer problemas. As dúvidas, porém, dissiparam-se rapidamente logo no início da sessão parlamentar com as declarações da UCID. Mesmo sem ainda ter feito a apreciação do programa do governo, dispôs-se logo em aprovar a moção de confiança. O enunciar de algumas reivindicações por parte da UCID seguidas imediatamente da disponibilidade do governo em dar uma resposta positiva deixou claro para todos que previamente as duas forças políticas tinham acordado em garantir a maioria necessária para a aprovação da moção de confiança.

No fim do dia tudo ficou claro na votação da moção com 42 votos a favor (38 do MpD e 4 da UCID) e 30 abstenções do PAICV. Pela primeira vez na história parlamentar cabo-verdiana uma outra força política que não a maioria votava uma moção de confiança do governo. Assim é porque no parlamento cada partido tem uma plataforma eleitoral contendo a sua perspectiva de governação e ocupa o número de lugares de deputados correspondentes aos votos recebidos. Ou seja, no parlamento há uma configuração plural recebida das urnas que convém manter pelo respeito pelos eleitores e para o bem da democracia e da persecução do interesse geral pela via do exercício do contraditório. Não faz sentido que no momento seguinte um partido dê o seu voto de confiança ao projecto de governação de outro.

Situação diferente seria se das eleições resultasse a possibilidade de governos minoritários ou governos de coligação. Até agora não se verificou tal situação e por isso não houve necessidade de acordos partidários de coligação pré-eleitoral, ou pós-eleitoral, ou mesmo do tipo da chamada “geringonça” portuguesa. A acontecer, porém, os acordos devem ser transparentes e claros, envolvendo, quando se trata de coligações, para além das convergências programáticas, a participação no governo.

O que, contudo, se passou na passada segunda-feira, não é claro. Depois da apresentação do programa do governo pelo Primeiro-Ministro, a UCID, pela voz não do seu presidente, mas de um deputado independente, veio declarar ainda no início do debate o seu sentido de voto favorável ao governo e prosseguiu entremeando a sua intervenção com reivindicações que depois veio-se a constatar, tiveram acolhimento da parte do governo. Aparentemente o jogo político ali patente tinha o objectivo de, à partida, declarar garantido o voto da aprovação da moção de confiança. Com isso provavelmente queria-se esvaziar qualquer ideia de que o governo podia não ter maioria suficiente para passar a moção.

O MpD ganhou com maioria absoluta e não devia haver razões para que a vitória não se traduzisse numa maioria parlamentar coesa. É verdade que na sequência do processo de eleição da direcção do grupo parlamentar e dos membros da mesa da assembleia nacional terão ficado mágoas ou surgido sinais de alguma fractura. Mas certamente que não seriam nada de tão profundo que não pudesse ser ultrapassado, considerando o forte engajamento de todos na recente campanha eleitoral. Pode-se compreender que não se quisesse correr o risco de se ver o governo cair por falta da maioria necessária para aprovar a moção de confiança e a solução encontrada foi recorrer à UCID. O problema é que ao não resolver o problema internamente e servir-se de uma solução do exterior num momento importante, mas pontual, não elimina a questão de fundo e cria outros talvez mais difíceis de resolver.

Dá-se um sinal de fraqueza, porque está-se a dizer que afinal a maioria absoluta não é segura e cria-se uma dependência da UCID num momento algo difícil para esse partido porquanto não conseguiu nas últimas duas eleições atingir os grandes objectivos de conquistar a câmara municipal de S. Vicente, eleger deputados nas outras ilhas e ter dimensão exigida para constituir um grupo parlamentar. O país quer estabilidade política e isso não é garantido com uma espécie de “geringonça” não assumida em particular nos seus custos. Quem deve garantir estabilidade é quem recebeu o voto maioritário para isso e tem a responsabilidade de tudo fazer para restaurar a coesão interna no seu grupo e assegurá-la ao longo de toda a legislatura. Não é via coligações informais que se baixa a crispação política, mas fundamentalmente com disposição para o diálogo, com a aderência aos factos e com capacidade de chegar a compromissos a partir de um entendimento de base em que todos procuram o interesse do país e ninguém é mais patriótico do que o outro. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1020 de 16 de Junho de 2021.

segunda-feira, junho 14, 2021

Plano credível para construir o futuro

 

A pandemia da Covid-19 poderá estar a aproximar-se do seu término. Em alguns países já se respira ares de normalidade e se fazem planos de regresso ao trabalho fora de casa, de viagens ao estrangeiro e de participação em actividades culturais, desportivas e outras que atraem multidões.

Está-se, porém, longe de dar como garantido o regresso ao que era habitual. A vacinação ainda é muito desigual num mundo altamente conectado que deixa todos expostos a surtos repentinos em qualquer ponto do globo. Também a enorme exposição de pessoas ao coronavírus abre o caminho para o aparecimento de mutações que além de se revelarem mais transmissíveis e eventualmente mais letais permitem ao vírus contornar as vacinas pondo em causa o esforço de imunização das pessoas. E ainda não é de se desprezar o número considerável dos que duvidam e se opõem às vacinas e com essa atitude criam e mantêm um espaço onde o vírus pode circular, mutar e, de um momento para outro, saltar para a população.

Apesar das incertezas que se mantêm e a realidade de se poder vir a enfrentar novas vagas de covid-19 acompanhadas de recuos no progresso em direcção à normalidade, não se pode deixar de pensar no futuro e em tentar resolver os graves problemas criados pela crise pandémica levando à perda de emprego e à perda de rendimento para muita gente em todos os países do mundo. Contudo, agir não significará simplesmente retomar o fio do que antes se fazia. Aliás, nem é fazer o mesmo, nem se pode esperar que tudo será resgatável ou até mesmo que as actividades possíveis possam ser retomadas em pleno no imediato. Compreender isso é fundamental, por um lado, para temperar as expectativas de regresso rápido aos níveis de crescimento anteriores e, por outro, para utilizar os recursos existentes com eficiência e eficácia mais apuradas para minimizar o impacto da crise nas pessoas e na economia e preparar o futuro.

Transformações importantes aconteceram nas relações comerciais e na forma como os países vêem a globalização. Rivalidades hegemónicas assumidas, em particular, entre os Estados Unidos e a China e derivas nacionalistas na forma de “políticas industriais” adoptadas por vários países e blocos económicos já indiciam que mudanças a nível global afectando a produção e a circulação de bens e serviços e a movimentação de capitais poderão ter caracter permanente. Navegar nesse novo oceano de interesses não será fácil, em particular, quando comportar a exigência de escolher o lado a seguir, seja em matéria de tecnologia, seja de opções de investimento e até de vacinas. Mas nem tudo será mau.

Do lado positivo para os países em desenvolvimento o fim da pandemia traz no seu seio a possibilidade de que taxas elevadas de crescimento nos países ricos tenham forte impacto em particular nas exportações e no turismo, dinamizando o resto da economia. Também o facto de a Covid-19 ser global obriga a que para a vencer definitivamente se tenha que, a par de acções de vacinação, ajudar os países mais vulneráveis na retoma da economia para poderem efectivamente combater a pandemia. Nesse sentido e, de acordo com Martin Wolf no Financial Times, é grande a perspectiva de que um volume enorme de recursos financeiros em forma de doações, empréstimos concessionais e perdão da dívida externa poderá constituir um autêntico “maná para os pobres”. Acrescenta ainda que tal sorte grande só será proveitosa se for para apoiar os governos que têm planos credíveis para recuperar o terreno de desenvolvimento perdido e que não se tente comprar reformas via condicionalidade.

O vice-primeiro-ministro Olavo Correia, na semana passada, colocou em cinco mil milhões de euros o financiamento que Cabo Verde precisa investir nos próximos dez anos. Para o ministro “sem uma solução para a dívida pública actual, dificilmente [Cabo Verde] conseguirá fazer investimentos em sectores da saúde, água, saneamento, qualificação urbana e do fomento empresarial”. Para Cabo Verde, como para os outros países endividados e vulneráveis, o problema é se, conseguido o perdão ou a reestruturação da dívida, o financiamento que daí resulta irá para implementação dos tais planos credíveis referidos por Martin Wolf. Aliás, trata-se de um verdadeiro dilema com que a generalidade dos países se deparam – sejam eles ricos da União Europeia nas vésperas de aceder a biliões em ajuda pós-pandémica ou pobres à espera de perdão da dívida – sempre que estão em vias de receber investimentos massivos destinados ao desenvolvimento.

Não há garantia que os recursos serão usados para construir o futuro ou se serão destinados para o “mais do mesmo”, desperdiçados em projectos de estimação ou dissipados em devaneios ideológicos e jogadas de poder. Da qualidade do debate democrático a começar pela apreciação do programa do governo no parlamento e posterior discussão e aprovação do orçamento do Estado irá depender muito do que de produtivo e eficaz se vier a fazer dos financiamentos conseguidos. Objectivos, estratégias e prioridades terão que ser discutidos e assumidos. Não se pode é ficar pela proverbial “lista de lavandaria” de medidas ou listagem sem encadeamento, sem um tempo próprio para implementação e sem uma orientação para resultados.

De se evitar também é a condicionalidade de que fala Martin Wolf. Segundo este economista comprar reformas com condicionalidade quase nunca funciona. O problema é que quando instalado o hábito de se deixar condicionar pelas prioridades “du jour” dos doadores para poder obter financiamento reformas não acontecem, recursos são desperdiçados, vulnerabilidades persistem e o futuro fica comprometido. Permitir que isso aconteça outra vez não é aceitável. Depois da pandemia e com as incertezas no horizonte seria de uma irresponsabilidade sem paralelo. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1019 de 9 de Junho de 2021.

segunda-feira, junho 07, 2021

Rotina democrática e eficácia governativa

 

Depois da presidência tumultuosa de Donald Trump a expectativa geral em relação ao novo presidente Joseph Biden é que a sua governação seria “boring”, ou seja, um misto de enfadonho e aborrecido. A acontecer, para muitos, curiosamente, seria uma boa notícia.

Já era geral o cansaço com uma presidência feita de sobressaltos, euforias e fantasias. Almejava-se um presidente que, como disse Leon Panetta, um ex-secretário de defesa americano, priorizasse o que é importante e não o que no momento obceca as redes sociais, que evitasse brigas sem fim e sem saída com opositores e que fosse capaz de focar nas consequências da acção imediata e de também antever os problemas distantes que só podem ser enfrentados com planeamento de hoje. O sucesso conseguido nos últimos meses pela administração Biden no controlo da pandemia da covid-19, na vacinação em massa e na implementação de medidas de apoio à economia e de garantia do rendimento das pessoas veio confirmar as vantagens do regresso ao que é previsível e até ás vezes “chato”.

Muitos noutros países com líderes que preferem fazer campanha em vez de governar, transformar actos de governação em espectáculo e distorcer a realidade para garantir a sobrevivência política certamente que gostariam que lhes acontecesse o mesmo. O retomar de uma certa normalidade seria para eles bem-vinda, a começar pelo que o presidente Jorge Carlos Fonseca no seu discurso na tomada de posse do novo governo chamou de rotina democrática, ou seja “nada mudou, há procedimentos que se repetem, gestos que parecem cristalizar-se, e, citando Bobbio, de transformar a democracia em costume, a única forma de ela adquirir o estatuto de irreversibilidade. A experiência de derivas iliberais e até anti-democráticas de contestação das eleições e ataques ao sistema judicial e aos órgãos de comunicação social confirma isso. Mostra como o não cumprimento das normas democráticas, o conluio para contornar os procedimentos existentes e a ausência de debate crítico deixam as sociedades completamente expostas. Em momentos de crise profunda como a de actual pandemia é a própria sobrevivência que pode ser posta em causa. As situações extremas vividas nos Estados Unidos, no Brasil e na Índia são ilustrativas a esse respeito.

A tentação de fugir dessa rotina democrática é grande. Nos últimos anos tem-se tornado maior sob a pressão populista e a tendência de alguns partidos tradicionais em se apropriarem de algum discurso anti-sistema. Quando não é discurso são as práticas que fugindo às normas e procedimentos existentes põem em causa as instituições democráticas e alimentam o descrédito em relação ao papel dos partidos políticos. Tem acontecido com demasiado frequência em várias democracias com consequências mais ou menos graves. Em Cabo Verde e nas últimas semanas viu-se o que aconteceu à volta da sessão constitutiva da assembleia nacional. O papel do deputado saiu desvalorizado aos olhos do público, a liderança partidária passou uma imagem de fragilidade e a estabilidade futura do governo tornou-se motivo de preocupação na sequência de pronunciamentos de deputados da maioria.

Tudo porque não se seguiu com rigor esperado todo o processo que seguindo o regimento e os estatutos dos deputados deve presidir à constituição dos grupos parlamentares com a sua direcção própria seguida da indicação dos membros da mesa e votação na plenária da assembleia nacional. Com isso baralhou-se por completo a relação entre os órgãos partidários e os deputados, enfraquecendo uns e outros e pondo em risco a coesão interna. Espera-se é que haja um esforço de ultrapassar o mau passo inicial e compreender que fazer política é mais influenciação e compromisso do que imposição. O eleitorado votou estabilidade governativa e é da responsabilidade de todos, com o respeito pelas regras democráticas e pela dignidade dos cargos garantir que assim seja, em particular nestes tempos de pandemia e de crise económica e social.

Também o processo de indigitação e formação do novo governo não ficou isento de pequenas tensões, perplexidade perante certas iniciativas e falta de clarificação quanto ao estatuto do governo. Não devia ser assim considerando que se trata do VIII governo constitucional e a rotina democrática já devia ter sido estabelecida. A pressa em chamar os partidos para se pronunciarem sobre a indigitação do primeiro-ministro quando ainda nem os resultados oficiais das eleições eram conhecidos deixaram muita gente perplexa. O desejo inexplicável de se ter o elenco governamental o mais depressa possível, quando se sabe que o governo em exercício só é demitido no final da legislatura e essa data é constitucionalmente o vigésimo após a publicação dos resultados eleitorais, tornou as coisas ainda mais surrealistas. Fez lembrar o desorientamento verificado em 2016 na sessão constitutiva da assembleia nacional com a suspensão dos futuros membros do governo e naturalmente que leva as pessoas a perguntar porquê repetir o episódio.

Agora com o novo governo empossado, mas ainda por ser apreciado o seu programa de governo no parlamento e aprovada a moção de confiança, assiste-se a um nível de protagonismo dos membros do governo que não seria de esperar nesta fase. Constitucionalmente o governo está em gestão, ou seja, limitado à prática de actos estritamente necessários à gestão corrente dos negócios públicos e à administração ordinária. Éestranho, por exemplo, ver ministros com pastas recém-criadas a solicitar encontros ao presidente da república e a apresentar políticas do sector, quando nem o programa do governo foi apresentado ao parlamento que é o órgão de soberania perante o qual o primeiro-ministro e os seus ministros são politicamente responsável.

A predisposição em não cumprir com a rotina democrática e em não deixar que a democracia se transforme num costume não traz qualquer benefício ao país. Pelo contrário, exacerba os protagonismos pessoais, faz da política um espectáculo, rouba tempo para se estudar as questões, não se fazem as devidas ponderações das questões e nem se encontram e se comunicam as melhores soluções. De passagem baralha a relação entre órgãos de soberania com consequências tanto na imagem pública de uns e outros – há quem pareça mais forte e quem se mostre fraco ou submisso – como na própria eficácia do sistema de separação de poderes, fundamental para o funcionamento na democracia.

Para alguns, como aconteceu noutros países, pode parecer uma governação criativa, inovadora e propiciadora de momentos apaixonantes e por isso atractiva. A história recente mostra como tudo isso é enganador e como a eficácia governativa é seriamente posta em causa quando não se cumprem as normas e se passa por cima dos procedimentos existentes. Mas não é só eficácia que se perde. Com essa desconstrução da cultura democrática e das suas instituições também se compromete a liberdade, a confiança e a solidariedade de que tanto se necessita nos tempos actuais.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1018 de 2 de Junho de 2021.

segunda-feira, maio 31, 2021

Começo atribulado

 

A nova legislatura inaugurada a 19 de Maio não começou bem. Contrariamente ao que aconteceu nas legislaturas que se seguiram ao 13 de Janeiro de 1991 a eleição da mesa da assembleia nacional não se revelou pacífica e as candidaturas não foram tidas como consensuais.

Todo o processo, desde a selecção de candidatos até a apresentação ao conjunto dos deputados eleitos foi motivo de disputa interna no partido maioritário, constituiu oportunidade para jogadas das forças políticas da oposição e deixou antever fracturas na maioria parlamentar que a persistirem poderão pôr em perigo a estabilidade governativa. Nas eleições passadas as propostas de presidente da assembleia e dos outros membros da mesa foram aceites por larga maioria. Nesta legislatura rejeitou-se publicamente uma candidatura a presidente e houve votação maioritária contra um dos vice-presidentes. Declarações posteriores de algumas personalidades e posicionamentos acalorados nas redes sociais deixaram entender, parafraseando Hamlet, que “há algo de podre no reino da Dinamarca”.

Alguma coisa falhou e o mais provável é que tenha sido na relação entre o partido e os deputados. O sistema eleitoral como é construído dá aos partidos exclusividade na apresentação de candidatos a deputados que depois são submetidos ao voto popular. Pode-se, pois, dizer que o deputado eleito tem um mandato duplo do partido e do povo. O regimento da AN e os estatutos dos deputados regulam nos diferentes actos do parlamento o exercício com nuances desse duplo mandato. A eleição da mesa da assembleia nacional e em particular do seu presidente (PAN) é um dos actos em que de certa forma se modera a parte partidária. Para a eleição do PAN as propostas vêm de grupos de quinze a vinte deputados e o voto é secreto. Quer dizer que do partido só pode vir um esforço de influenciação dos seus deputados, mas não de imposição. Fazer diferente cria tensões nos grupos parlamentares com eventuais implicações na estabilidade governativa, desvaloriza o deputado e dá razão aos críticos da democracia representativa que nela só vêem uma partidocracia.

É um facto hoje reconhecido que as democracias sejam elas novas, menos novas ou mais maduras vivem uma crise e que ela é fundamentalmente uma crise de representação. Muitos cidadãos não se revêem nas instituições, outros acusam os partidos políticos de servir os seus próprios interesses em detrimento do interesse geral e há ainda quem diga que o sistema político é manipulado para servir uns poucos bem posicionados em certos círculos políticos, financeiros e empresariais. As tentações populistas com origem tanto na esquerda como na direita têm aí a sua fonte de alimentação. Serve-lhes de combustível a indignação, levada às vezes ao paroxismo por alguns, que advém da crença que o cidadão comum não está devidamente representado nas instituições, da convicção que a condução dos assuntos públicos peca por falta de transparência e da percepção que a corrupção reina em muitos negócios do Estado. Também aí encontram motivação para os ataques desferidos contra o parlamento, deputados e partidos políticos e para as críticas à democracia representativa, ao Estado de Direito e ao funcionamento dos tribunais.

A pressão sobre as democracias é maior quando são os próprios partidos políticos acusados de serem os pilares da partidocracia a usar os mesmos argumentos anti-partido e anti-parlamento dos populistas na vã tentativa de conquistar eleitorado e de afirmar lideranças autocráticas no seu seio. Aumenta ainda mais quando dão sinais de confirmar os privilégios dos partidos no controlo das instituições retirando ostensivamente aos eleitos qualquer sinal de autonomia e procurando punir quem ousa cumprir as suas funções com toda a legitimidade que o mandato lhe confere. Ninguém ganha com isso, porque extremando posições o deputado sempre conseguirá manter o seu mandato, mas fora do seu grupo parlamentar e a governação com sustentabilidade precária pode viver momentos de instabilidade. Nestas circunstâncias a hipótese de eventual bloqueio cria tentações complicadas. Em vez de levar a mais diálogo entre as forças políticas pode ser um convite para polarizar ainda mais a situação e até criar tensões com eventual desfecho em novas eleições. Quando, como nos tempos de hoje, se vive uma crise pandémica que exige um grande esforço para ser ultrapassada, abrir caminho para instabilidade e tornar tentador o não diálogo é o pior que pode acontecer.

A apresentação do governo desta legislatura no dia 20 de Maio poderia pela novidade do acto e suas implicações em termos de políticas, de estruturas governamentais inovadoras e de novos protagonismos ter ajudado a ultrapassar o começo atribulado que tinha sido a sessão constitutiva da Assembleia Nacional. Infelizmente tudo parece ter ficado pela constatação de que se estava perante um governo “gordo”, o maior de sempre, quando no passado sempre se tinha prometido governos enxutos. Sem uma explicação da parte do primeiro-ministro quanto às razões – talvez de coordenação sectorial ou de eficácia governativa por que optou por estruturar o seu governo com vice-primeiro-ministro e ministros de Estado e aumentou o número de secretários de Estado – a discussão ficou pela questão primária do tamanho do governo. Mais uma vez a perspectiva populista das prioridades nas despesas do Estado encontrou espaço para dominar toda a discussão pública excluindo todas as outras.

De facto, para certos sectores de opinião e críticos da democracia não é o uso eficiente dos recursos e meios disponíveis e a procura da eficácia na implementação das políticas e na prestação de serviços do Estado os principais objectivos a ser atingidos com a governação do país. O foco segundo eles deve ser posto em denunciar o quanto dos recursos públicos estão a ser consumidos pela “classe política”. Muito do sentimento populista é anti-política e anti-parlamentar. Vêem a prática democrática incluindo debates, deliberações, negociações e o firmar de compromissos como exercícios custosos que causam desperdício de tempo e dinheiro. Cai na armadilha quem aparentemente lhes dá razão apresentando governos pequenos com sacrifício na eficácia da governação.

É o que aconteceu em 2016 quando, contra a realidade de uma administração pública ineficiente, partidarizada e pouco profissional, um novo governo avançou com uma equipa sem dimensão suficiente para, no mais curto prazo, adequar a máquina administrativa herdada às novas orientações e políticas. Foi-lhes reforçado então o argumento e agora cobram o “governo gordo” e procuram nas nomeações razões pessoais e políticas para a outorga de privilégios. Nem as exigências impostas pela pandemia que em toda a parte tem levado à expansão dos serviços prestados pelo Estado parecem predispor as pessoas a uma outra abordagem mais construtiva na busca de eficácia estatal e menos centrada em quem fica com a maior fatia dos recursos públicos. É pena que seja assim, porque a maioria que há um mês votou na estabilidade governativa não quis atrapalhações nas instituições nem abriu a temporada para cada um cuidar de si próprio. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1017 de 26 de Maio de 2021.

segunda-feira, maio 24, 2021

Capital político, verdade e democracia

 

Uma nova legislatura inicia-se hoje, dia 19 de Maio. Irá desenrolar-se nos próximos cinco anos sob a égide do Movimento para a Democracia que conseguiu uma maioria absoluta de deputados nas eleições legislativas de 18 de Abril.

O desejo de estabilidade política e de continuidade governativa expresso na votação e que fez a balança cair por um dos concorrentes deveu-se em boa parte à actual crise pandémica que restringe radicalmente a actividade económica ao nível global e local e às outras crises económica e social a ela associadas que afectaram profundamente a vida, os rendimentos e as expectativas das pessoas. Sem vontade para aventuras, o eleitorado mostrou querer governos estáveis e especialmente sensíveis às dificuldades das populações em vários domínios básicos como emprego, saúde, educação e segurança. Com o arranque de uma nova legislatura é o que as pessoas esperam ter e o que o partido vencedor deve poder oferecer.

Para isso é fundamental projectar uma imagem de visão, determinação e competência na condução dos assuntos do Estado e por essa via manter mobilizada a vontade da população, não só para enfrentar com sucesso a pandemia como também para preparar o país para uma retoma que em muitos aspectos não irá repetir o que já existia. Não é, porém, uma tarefa fácil em particular quando se está em processo de transição de uma legislatura para outra. O tempo demasiado longo (vinte dias) para a inauguração do novo parlamento e a posse do novo governo não ajuda. Piora a situação se durante esse período de forma inexplicável se sucedem dúvidas quanto aos procedimentos a seguir como se tratasse da primeira vez que se está a fazer a transferência de poder, quando na realidade já se vai no VIII governo constitucional desde 1991.

A perplexidade aumenta quando na eleição dos membros para a mesa da nova assembleia nacional avança-se, para de seguida recuar, com um candidato que dificilmente podia traduzir a vontade de renovação e de inversão da descredibilização do parlamento visível nos dados do Afrobarómetro publicados em Fevereiro último. Foi a oportunidade dada às forças políticas da oposição de mostrarem frontalmente a sua discordância em matéria normalmente de largo consenso no parlamento e condicionar as opções assumidas pela maioria. Naturalmente que isso acabou por afectar a imagem do partido maioritário ao trazer dúvidas quanto ao grau realmente existente da sua coesão interna. E o novo governo gratuitamente deixou escapar sinais de fraqueza quando pelo contrário, considerando a situação pandémica do país, quer-se sinal forte da estabilidade política desejada pela maioria dos eleitores e que o país precisa.

Foi um exemplo de desperdício de capital político que não se deve repetir. Os tempos estão difíceis e podem ainda agravar-se até ao momento que se espera seja o mais breve possível em que com as vacinas se consiga travar a marcha da covid-19 e passar à tarefa de colocar o país no caminho do crescimento económico. Também não vai ser fácil superar o efeito acumulado da quebra da actividade económica, do peso da crescente dívida pública e das incertezas que eventualmente vão acompanhar a retoma do turismo e da procura externa de produtos e serviços nacionais. Conseguir que se avance com segurança vai exigir que mais do que nunca se conjugue ousadia com realismo, se focalize mais em resultados do que em espectáculo e se aposte mais em educar e formar do que em obras e projectos que são não pontes palpáveis para o futuro.

Para isso é necessário usar bem o capital de confiança recebido e não deixa-lo perder-se nos passos falsos que descredibilizam as instituições, confirmam os piores sinais da partidocracia e põem em causa o engajamento real dos políticos com o interesse público. A aderência a factos e o comprometimento com a verdade também são fundamentais para renovar a confiança. Na criação e implementação das políticas públicas não se pode ir pelo caminho do ilusionismo. Mais cedo ou mais tarde os custos que com o tempo se tornaram esmagadores serão sentidos. O que na última semana se passou com os transportes aéreos no arquipélago não devia mais repetir-se, mas infelizmente ninguém parece querer garantir isso.

De facto, nas intervenções públicas insiste-se em dizer que o mercado dos transportes aéreos em Cabo Verde pode ser rentável e comportar um, dois e até três operadores. A realidade de todos conhecida de décadas da aviação comercial no mercado domésticos não corrobora em nada essa afirmação. Isso não impediu que em Novembro de 2016 quando a Binter começou a operar e a TACV também fazia voos interilhas se tenha repetido isso. Seis meses depois viu-se o que aconteceu. Em Maio de 2017 anunciava-se que a Binter iria ficar com todo o mercado doméstico de transporte aéreo de passageiros e que o Estado passaria a deter 30% do capital do seu capital social em troca de posição comercial da TACV nesse mercado. Dias atrás fez-se oficialmente público que a Binter depois de várias ameaças ia finalmente embora e que seria substituído através de um contrato de concessão emergencial de seis meses pela companhia BestFly. Entretanto a Binter parece ter voltado atrás na sua decisão e em consequência o país vai ter mais uma vez dois operadores aéreos.

Não se sabe até quando o “armistício” vai durar, mas ouve-se mais uma vez das autoridades que é possível pela via do mercado resolver os problemas dos transportes aéreos. O facto é que toda a gente sabe por experiência que não é assim e está ali a TACV com as suas dívidas monstruosas a provar isso. Em matéria de transportes aéreos e também marítimos como, aliás, em vários domínios, Cabo Verde tem um problema de escala e, em consequência, pela via simples do mercado dificilmente vai poder fornecer certos serviços e produtos de forma rentável. Outros arquipélagos como as Canárias, Madeira e Açores têm problemas similares de transportes aéreo e marítimo apesar de poderem contar com uma parte da procura nos transportes interilhas nos milhões de turistas que as visitam. Não é o caso de Cabo Verde, onde essa percentagem é ainda pequena. Mais uma razão para se aderir à realidade e produzir políticas públicas que reflictam isso e que por isso mesmo gozam da confiança das pessoas para as quais são dirigidas ou para outras que delas precisam para poder investir, expandir negócios e exportar.

Fazer um esforço para aderir à realidade dos factos e à verdade e evitar a tentação de cair no ilusionismo devia ser um dos grandes objectivos de todas as entidades e de toda a sociedade nesta nova legislatura. A democracia só se realiza em pleno e demonstra as suas virtualidades se esse comprometimento com a verdade for aceite por todos e houver um consenso geral da necessidade urgente de o adoptar e cumprir. Conseguir arrepiar o caminho já feito no sentido oposto seria de maior importância para se obter o grau de confiança cívica e social imprescindível para se obter vitórias em tempo de pandemia. Que a responsabilidade imposta aos vencedores das eleições e a quem forma governo para renovar a confiança das pessoas e manter capital político necessário para conduzir reformas, reorientar o país e adoptar a atitude certa de um país que quer criar riqueza e desenvolver seja assumida em pleno.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1016 de 19 de Maio de 2021.

segunda-feira, maio 10, 2021

Pôr o país num outro patamar

 A pandemia continua a sua curva ascendente. Aumentam o número de casos, o número de pessoas hospitalizadas e o número de mortes.

Evitar que o sistema de saúde dê sinais de stress e de eventual colapso passou a ser a primeira das preocupações. No domingo passado em entrevista à TCV o matemático português Oscar Felgueiras a partir da leitura dos dados da evolução do coronavírus nestas últimas semanas fez notar que “Cabo Verde tem cinco vezes o limite definido para que sejam tomadas medidas mais drásticas”. Há urgência em agir, porém só será possível com a mobilização da vontade nacional a um nível muito maior do que o até agora conseguido.

Talvez isso seja já possível agora que as eleições legislativas de Abril já deixaram saber quem vai governar nos próximos cinco anos e que ficou para trás a excessiva polarização sócio-política própria dos períodos eleitorais. Também provavelmente ajudará na adopção de uma nova atitude em relação à pandemia o que, nestes primeiros quatro meses de 2021, se tem assistido em vários países (Estados Unidos, Brasil, Índia) por causa do crescimento exponencial de casos de covid-19, muitos deles com sistemas de saúde muito mais avançados do existente em Cabo Verde. Tem sido um autêntico desastre, mas já previamente anunciado com as incoerências na tomada de posição das autoridades, ambiguidades no discurso dirigido ao público e falta de autoridade na aplicação das regras. De facto, já é tempo para se pôr de lado as diferenças, os egos e as vaidades e focalizar a atenção de todos no que realmente importa: combater a pandemia, apoiar os mais atingidos pela crise económica e social e preparar de forma estratégica o país para iniciar a retoma da economia o mais depressa possível.

Para isso é preciso que se fale claro que a gravidade da situação seja conhecida e que se aja em tempo para que o de mais grave for previsto não venha a acontecer. Poucas vezes alguém foi tão directo como Óscar Felgueiras a analisar os números da pandemia. Falou de um agravamento nos tempos próximos” justificado por “uma incidência elevada, de um crescimento forte” do número de casos, “de uma positividade acima dos 20% que indicia subnotificação”. Disse ainda que o facto de estar a circular a “nova variante do vírus (inglesa) que é mais transmissível, será difícil, por enquanto conter o aumento de novos casos”. Em poucas palavras as pessoas ficaram a saber da tendência actual de aumento de contágio, das insuficiências em detectar os casos, da presença de uma nova variante mais perigosa e da dificuldade real de travar mais infecções. Forma de comunicação similar deveria de há muito ser usada em Cabo Verde à semelhança do que se tem visto nos outros países ao longo deste um ano de pandemia.

Comunicação directa e franca cria confiança e torna as pessoas mais colaborantes. Neste sentido não foi a melhor opção a insistência das autoridades sanitárias em fazer uma comunicação mais descritiva do que explicativa da evolução da pandemia e sem grande preocupação em tornar compreensíveis as medidas tomadas no combate ao coronavírus. Essa insuficiência poderia ser suprida com informação, análises e estudos vindos de investigadores e de instituições como as universidades, mas infelizmente parece que a comunidade científica e académica do país preferiu manter-se distante. Não estranha que em pouco tempo as pessoas sem informação consistente e fidedigna do que se passava se tenham cansado de certas restrições, não tenham encontrado justificações para manter outras e acusado as autoridades de hipócritas em proibir certas actividades a uns e permiti-las a outros.

É só ver como todos vêem insistindo que o aumento dos casos nas últimas semanas é devido às campanhas eleitorais. Não se compreende que provavelmente algum ajuntamento de pessoas terá contribuído, mas que poderá não ter sido o factor principal como se pode ver a partir do exemplo de outros países que estão a passar por segundas e terceiras vagas do coronavírus e também estão numa curva ascendente de covid-19. Entretanto, tomam-se como hipócritas as recomendações das autoridades em evitar aglomerações de pessoas e há maior relutância em as cumprir. Fragilizada a confiança na comunicação, fica mais difícil levar a população a observar as novas recomendações que vão surgindo a partir de um conhecimento cada dia mais aprofundado do vírus. Numa situação em se está sempre na contingência de lidar com variantes que poderão ser mais contagiosas e mais letais, a perda de eficiência na comunicação entre as autoridades e a população pode ter efeitos catastróficos. O caso da Índia é paradigmático a esse respeito.

Confiança é fundamental para se ter comunicação eficiente e mais do que nunca o país precisa que as pessoas confiem nas autoridades sanitárias e sigam as recomendações dadas. As vacinas não são uma panaceia para resolver a epidemia como se pode constatar em vários países. Para manter a covid-19 controlada vai ser necessário a colaboração confiante da população. Até agora só com 16.000 pessoas vacinadas com primeira dose, cerca de 3% da população, Cabo Verde precisa ter a população a cumprir à risca as recomendações das autoridades para minimizar os efeitos do coronavírus. Nesse sentido é que se deve entender os resultados das eleições de 18 de Abril.

De facto, a opção do eleitorado em assegurar uma maioria estável no governo e em garantir continuidade governativa nestes tempos de emergência nacional deve ser tomada como um mandato especial. Terá sido um comando para se diminuir a crispação política, mobilizar os esforços vindos de todos os quadrantes e encontrar vias para maior convergência na prossecução dos grandes objectivos do país a curto e médio prazo e que têm a ver com o combate à covid-19 e aos seus efeitos na economia e na sociedade. Perante isso deve-se entender que mais do que nunca não dá para manter a costumeira guerrilha pós-eleitoral durante a qual quem perdeu procura razões para justificar a derrota e quem ganhou ainda se sente tentado a aprofundar a derrota do outro.

Em democracia não se pode estar em campanha permanente. Escolhida e legitimada uma opção de governação deve ela poder implementar a sua visão e as suas políticas a bem do país com contraditório no parlamento e em ambiente de liberdade e de pluralismo, mas sem lutas estéreis que bloqueiam tudo. A responsabilidade maior em garantir que a democracia funcione sem tais bloqueios cabe naturalmente ao governo que tem todos os meios para dirigir a política interna e externa e manter o país funcional e focado nos seus grandes objectivos de desenvolvimento. Do vencedor das eleições deve-se ainda esperar alguma magnanimidade que pode manifestar-se por exemplo em não ser um factor de impedimento a que uma oposição renovada se afirme como alternativa viável dentro do sistema democrático.

Tudo isso contribuíra para uma maior confiança e credibilidade nas instituições democráticas neste momento excepcional que se vive hoje em que é fundamental manter a nação focada na luta contra a covid-19. Realizadas as eleições com sucesso reconhecido, um bom começo será poder iniciar a nova legislatura e nomear o novo governo sem pressas e sem os sobressaltos que só ensombram um dos momentos altos das democracias que é o da transferência de poder de um governo para outro. Também, com maior tranquilidade e serenidade talvez se reconheça que o novo mandato não é de simples continuidade do outro, mas o de elevar o país para um outro patamar para poder vencer os enormes desafios que se lhe colocam e que as crises dos últimos anos deixaram a nu.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1014 de 5 de Maio de 2021.

segunda-feira, maio 03, 2021

Agir e comunicar com maior eficácia

 Há um ano atrás depois do aparecimento do primeiro caso de Covid-19 na ilha da Boa Vista a 19 de Março e de se ter detectado situações de transmissão local do coronavírus na Cidade da Praia a partir da segunda metade de Abril iniciava-se a curva ascendente da pandemia que em Cabo Verde já atingiu quase 23 mil pessoas e causou a morte de 208 infectados.

Os sucessivos estados de emergência que logo no início e entre 29 de Março e 29 de Maio foram decretados ajudaram a mitigar a progressão da doença e dar tempo ao sistema nacional de saúde de se preparar para responder ao aumento das solicitações do público. Com medidas enérgicas conseguiu-se suprimir surtos localizados como o da Boa Vista, mas infelizmente não se teve o mesmo nível de sucesso noutras situações e não foi possível travar o avanço do coronavírus. Os custos, porém, a todos os níveis foram enormes tendo a economia sofrido o seu maior baque de sempre com a queda de 14,8% do PIB.

À medida que passavam os meses, todas as ilhas acabaram por ser atingidas em maior ou menor grau e picos de transmissão verificaram-se em Julho e Outubro. Em finais de Dezembro apareceram sinais de que uma segunda vaga poderia estar a germinar. Hoje está-se a sentir o seu impacto e todos os sinais deixam transparecer que o seu ímpeto não tem diminuído. Os casos activos são os maiores de sempre e o número de mortes de Janeiro a Abril (98) aproxima-se do verificado durante o ano 2020 (113). O Director Nacional de Saúde disse esta segunda-feira que Cabo Verde “ainda está na fase ascendente da curva e que até meados deste mês vamos ter que ver como é que as coisas se vão portar”. Comparado com outros países, Cabo Verde está no nono lugar no mundo, segundo o jornal New York Times desta terça-feira, 27 de Abril, com 51 novos casos diários de infecção em 100 mil habitantes.

A situação da pandemia em Cabo Verde é claramente preocupante, mas não parece que pela seriedade das questões que coloca tenha realmente focalizado a atenção das pessoas. Perante o agravamento da situação, as autoridades têm-se limitado a repetir os apelos de sempre para as pessoas colaborarem e a aconselhar o uso de máscaras, distanciamento social e higienização das mãos e de espaços circundantes. Há quem esperava a imposição de um estado de emergência logo depois do período eleitoral, mas tudo leva a crer que a dimensão dos estragos que causou na economia e a forma como afectou negativamente o rendimento das pessoas mais vulneráveis dissuadiram os decisores políticos de seguir por esse caminho. Aparentemente deixaram-se ficar por medidas de fiscalização mais enérgicas e chamadas de atenção à população e daí esperar até ver.

De facto, pelas intervenções públicas dos responsáveis não fica claro que se esteja a adoptar medidas mais compreensivas de testar, rastrear e isolar para controlar surtos da covid-19. Não se vêem sinais disso nem mesmo em ilhas como Sal e Boa Vista com pequenas populações, povoados dispersos e a necessidade premente de uma boa imagem sanitária para poder retomar o turismo em tempo de salvar o ano 2021. Mantém-se, porém, a tentação de responsabilizar a população pelo não cumprimento das normas, o que, vendo pela falta de resultados em persuadir as pessoas a comportarem-se adequadamente, também não traz qualquer ganho. Já visível é o efeito que tem em evitar que internamente se faça uma reavaliação da forma como a comunicação sanitária oficial se tem processado no sentido de a tornar mais eficaz.

Fundamental por exemplo é não deixar as pessoas perder a confiança nas autoridades passando a impressão de se está a proibir certas acções à generalidade das pessoas, enquanto são permitidas a outras. A comunicação perde eficácia e legitimam-se comportamentos que tendem a piorar a situação sanitária. Também é importante garantir que a informação passada tem suporte científico, acompanha os avanços feitos diariamente no conhecimento do vírus e é relevante na justificação dos constrangimentos impostos às pessoas. No caso presente de o país estar a passar por uma segunda vaga com sinais preocupantes de transmissibilidade e de letalidade do vírus é de todo interesse saber se se trata do efeito de uma variante e se tem um maior impacto sobre as crianças como é o caso da variante britânica.

Mesmo nas recomendações é preciso adequar a mensagem aos últimos dados científicos que, em matéria de transmissão do coronavírus e de acordo com CDC americana, minimizam o risco de contágio via superfícies e estabelecem outros procedimentos na higienização dos espaços. Tudo leva a crer que o Sars-cov-2 é um vírus de transmissão fundamentalmente aérea. É o que investigadores concluem num artigo da renomada revista científica The Lancet na edição de 19 de Abril. Acrescentam que, como o coronavírus espalha-se através de aerossóis, é preciso tomar medidas para evitar inalação de aerossóis infectados incluindo ventilação, filtração de ar, redução de ajuntamentos de pessoas e tempo no interior de edifícios, bares e restaurantes e também o promover uso de máscara em sítios fechados. Ou seja, é preciso rever as recomendações anteriores que assumindo contágio através de gotículas punham mais enfase na redução de contacto directo, limpeza de superfícies e uso de máscaras a pequena distância e não viam necessidade de distinguir entre estar dentro ou fora de edifícios.

Os dados da covid-19 das últimas semanas vieram demonstrar que Cabo Verde passa por um momento crítico na luta contra a pandemia. As infecções continuam a sua curva ascendente como confirma o director nacional da saúde e pode-se vir a estar em situação de o número de solicitações de cuidados hospitalares vir a sobrecarregar as estruturas de saúde particularmente nos principais centros urbanos. A vacinação ainda está longe de ter um efeito na contenção da transmissão do vírus na comunidade e há que a acelerar de alguma forma para abarcar mais segmentos da população. Para isso é evidente que o número de 108.000 doses disponibilizadas no quadro da COVAX, das quais só 24 mil chegaram ao país juntamente com 5.850 doses da vacina Pfizer, não é suficiente.

Cabo Verde precisa ser mais pró-activo e mais criativo na procura de vias para conseguir as mais de 700 mil doses que, segundo o ex-director nacional da saúde António Pedro Delgado, em entrevista à TCV, o país vai precisar. Canais bilaterais devem ser explorados para conseguir vacinas, designadamente as da AstraZeneca que vários países por várias razões que só se compreendem porque têm alternativa em outras vacinas, mantêm em stock enquanto são clarificados alguns efeitos colaterais raros encontrados depois de milhões de doses terem sido dadas. Não há tempo a perder. Há que, entretanto, renovar com maior vigor a comunicação com a população, mostrar a urgência do que \se tem a fazer para diminuir situações que favorecem a transmissão do vírus e ser efectivo em garantir que as exigências em termos comportamentais sejam cumpridas por todos.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1013 de 28 de Abril de 2021.

segunda-feira, abril 26, 2021

Estabilidade para combater a pandemia

 

As eleições legislativas de 18 de Abril saldaram-se pela vitória do MpD que obteve maioria absoluta dos deputados na Assembleia Nacional de Cabo Verde.

A configuração das forças políticas no parlamento não se alterou muito em relação ao que tinha saído das eleições de Março de 2016. O MpD perdeu dois deputados, um que foi aumentar o número de deputados do PAICV para 30 e outro que foi juntar-se aos três anteriores da UCID perfazendo quatro deputado. As outras três forças políticas que concorreram não conseguiram lugares no parlamento e em alguns casos mostraram não ter suficiente representatividade, número de apoiantes e uma organização democraticamente funcional que rigorosamente os qualificasse como partidos políticos. Com estas eleições, inicia-se um novo ciclo governativo sob o signo da estabilidade suportada por uma maioria parlamentar que mesmo mais estreita é suficiente para garantir governo nos próximos cinco anos. Goradas ficaram as expectativas dos pequenos partidos e de alguns segmentos de opinião de conseguir maiorias relativas que obrigassem a mais diálogo entre as diferentes forças.

A opção clara do eleitorado cabo-verdiano foi de garantir estabilidade e continuidade governativa. Vê-se isso nos resultados eleitorais que mostram o partido no governo a ganhar em todos círculos eleitorais com excepção da ilha do Fogo e dos círculos das Américas, da Europa e da África. Nota-se na inversão surpreendentemente cedo no sentido de voto em círculos eleitorais que incluem municípios como a Cidade da Praia onde em Outubro último o PAICV tinha ganho as autárquicas. Também é impressão que se tem quando a população faz orelhas moucas aos múltiplos apelos para acabar com a bipartidarização e continua a dar os votos aos dois grandes partidos e a confinar a UCID a S.Vicente.

Na origem dessa posição do eleitorado estará provavelmente a situação de pandemia que se vive no país e que se tornou pior com o aproximar da data das eleições. Quando aumentam as incertezas e a precariedade da vida se torna mais evidente, a atitude das pessoas não é de aventurar com alternativas de governação e com lideranças não testadas. O slogan da campanha do MpD “Cabo Verde no caminho seguro” procurou traduzir e reforçar esse sentimento das pessoas. No mesmo sentido foi a estratégia de personalização da campanha no primeiro-ministro e de contrapor a sua figura enquanto homem de Estado à da líder de oposição, convidando o eleitorado a escolher quem lhe oferecia mais segurança. O facto da presidente do PAICV ter aceite o repto e ter centrado muito na sua pessoa não terá ajudado a posição do seu partido enquanto alternativa ao governo.

Para o país esse foco nas personalidades não constituiu ganho algum e, pelo contrário, foi oportunidade perdida ter a campanha eleitoral das legislativas focada nos líderes dos dois grandes partidos. Não se deu tempo suficiente para se debater a situação real do país e as políticas que poderiam diminuir as vulnerabilidades, enfrentar a precariedade progressiva de vários sectores e preparar o país para o futuro incerto criado pela pandemia da covid-19 e pelos seus efeitos nos diferentes sectores da vida política, económica, social e cultural. Privilegiou-se no discurso o desfilar de promessas na linha do que se vinha fazendo antes da pandemia e assumindo sem talvez o dizer que o “pós” será uma simples continuidade do “antes”. As críticas atiradas nos dois sentidos mais parecem ajuste de contas com os legados de governações passadas do que uma procura de vias para resolver os problemas do país.

Em retrospectiva, pode-se constatar que a meio de todo esse “ruído” acabou-se por sobrepor o sentimento generalizado das pessoas de que era preciso manter a governação actual e não deixar-se levar por apelos patéticos para se fazer experimentação com “gerigonças” e maiorias relativas. Vencida a tentação de ir por outros caminhos, é fundamental que se tire todas as ilações da opção feita: primeiro deve-se ter em conta que a garantia dada de uma maioria estável nos próximos cinco anos não é para ser tomada simplesmente como selo de aprovação de políticas passadas. Na prática, trata-se de um ambiente criado para com tranquilidade e serenidade se encontrar novas vias para os problemas que o país enfrenta tanto internamente como na relação com o mundo.

Também há que procurar ver na pequena diferença entre a maioria e as forças da oposição que saiu das eleições um convite para mais diálogo e mais convergência entre as forças políticas na procura de soluções duradoiras para o país nestes tempos de incertezas. Por outro lado, o facto de os pequenos partidos terem conseguido expressão mesmo que pouco significativa em quase todos os círculos eleitorais não deixa de ser um aviso. Se as principais forças políticas não encontrarem forma de conjuntamente trabalhar e encontrar solução para os problemas do país outras propostas mais complicadas poderão ganhar terreno alimentadas pela vitimização, ressentimento e sentimento de marginalização.

A grande dificuldade em se tomar as eleições como uma oportunidade para um novo começo normalmente tem a ver com a tentação de se manter o espírito de campanha mesmo quando ela cessa e é preciso governar. A maioria eufórica com a vitória sente-se confiante e legitimado com tudo o que disse e fez e não tem muita disposição para relembrar o que o velho político dizia: campanha faz-se com poesia, mas governa-se com prosa. Resultado, continua-se muitas vezes a bater na oposição como se as eleições já não tivessem sido ganhas e perde-se a oportunidade de avançar com reformas profundas, quando ainda o espírito de mudança está no ar e as resistências abaladas com o choque do novo ainda não se entrincheiraram. Já a minoria muitas vezes ressentida tende a confundir o papel de oposição como o de uma força de bloqueio. Estando a maioria saída das eleições com a responsabilidade pela governação do país cabe-lhe fazer um esforço maior de ultrapassar a crispação pós-eleitoral e fazer convergir as vontades com vista à consecução do interesse geral.

Essa responsabilidade em momentos únicos como os que se está a viver com a pandemia da covid-19 ganha uma dimensão extraordinária. Há que assumi-la em peso e com urgência. Da parte da oposição normalmente a demissão do líder após a derrota abre as portas para uma nova abordagem das políticas e pode levar à revitalização do partido, preparando-o para os desafios do futuro. O pior que pode acontecer é fazer o partido refém do líder derrotado e não deixar campo nem para revitalizar o partido, nem para conseguir dialogar e negociar com o partido no governo medidas de política de grande alcance e impactantes para o futuro do país.

A história da alternância política em Cabo Verde não tem sido pródiga em gerar amplos consensos que permitam ao país dar saltos no seu desenvolvimento e na sua competitividade. As eleições de 18 de Abril foram especiais nesse sentido e convidam a uma outra atitude e um outro foco na resolução dos problemas do país. Que o convite dirigido seja aceite é expectativa geral de todas as partes. Que assim seja!!

Humberto Cardoso

 Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1012 de 21 de Abril de 2021.

segunda-feira, abril 19, 2021

“O que podes fazer por teu país”

 

​Já nos últimos dias antes do voto de 18 de Abril que vai determinar o rumo do novo ciclo governativo no país a grande questão a pôr aos cabo-verdianos devia ser similar à colocada por John Kennedy na sua tomada de posse como presidente dos Estados Unidos da América, em Janeiro de 1961: “Pergunta não o que o teu país pode fazer por ti, mas o que tu podes fazer por ele”.

De facto, os tempos actuais marcados pela pandemia do coronavírus e pela recessão económica global e pelo contínuo descrédito das instituições nas democracias clamam por outra atitude das pessoas. Querer-se-ia uma atitude que fosse mais altruística e tivesse como base a crença num destino comum e não aquela que prevalece hoje e é egoísta, do tipo “cada um por si”, e orienta-se para extrair do Estado o máximo, sem olhar a meios.

Nos pequenos países frágeis e sem recursos como Cabo Verde a mudança no sentido apontado por Kennedy é claramente mais urgente. Sem mais cooperação entre as pessoas, mais engajamento cívico e mais esforço individual e colectivo para elevar a qualidade e os níveis das competências produzidas no sistema de ensino e formação dificilmente se conseguirá estar à altura dos extraordinários desafios que o futuro comporta. Infelizmente, os sinais vindos de todos os lados, especialmente nos momentos eleitorais em forma de promessas de campanha e propostas de políticas, vão no sentido contrário. Tendem a consolidar e a revalidar a condição de dependência do Estado e a postura de feroz concorrência entre indivíduos e grupos para acesso aos recursos.

Cabo Verde está numa encruzilhada com um futuro desafiante e incerto como diz o FMI e o mais normal é que houvesse um apelo ao engajamento de todos para que com um outro espírito o país possa enfrentar as dificuldades do mundo pós-covid e preparar-se para aproveitar oportunidades que eventualmente surjam. Nesse sentido o discurso que menos se deveria ouvir é o que faz crer que a salvação está no Estado a funcionar paternalisticamente como antes a “realizar sonhos” de uns e a contemplar outros com ganhos. Já se vai na segunda eleição deste ciclo eleitoral que se iniciou em Outubro último com as autárquicas e não há sinal que o discurso vá mudar. A pandemia pode até estar a dar sinais que poderá agravar-se numa nova onda provavelmente induzida por uma variante mais contagiosa do vírus como vem acontecendo na Europa e na América nestes primeiros meses de 2021. Mas ninguém parece dar atenção especial a isso para além de se repetir as já habituais recomendações de uso da máscara, distanciamento social e higienização pessoal e do espaço físico.

A verdade é que pelo que se tem visto neste ano sem paralelo de pandemia do coronavírus e de recessão global nada parece suficientemente forte para alterar as formas de estar, de pensar e de fazer política neste país. A crispação política não baixou de intensidade para criar espaço para compromissos fundamentais num momento único de grandes constrangimentos tanto no país como no mundo. Não se deu pausa às reivindicações laborais e às greves e ameaças de greve particularmente no sector público como se não tivesse qualquer relevância a paralisação de sectores importantes da economia como o turismo com reflexo no desemprego de milhares de pessoas, perda de mais de 40% das receitas do Estado e diminuição drástica das exportações.

Nem tão pouco se fez um compasso de espera para perceber o que poderá ser o mundo pós covid-19 antes de continuar a promover os mesmos projectos de infraestruturas, de criação de plataformas, hubs ou clusters, de expansão de portos e aeroportos e de terminais de cruzeiros. Com promessas novas como levar o ensino superior a todas ilhas deu-se mais um impulso à deriva de se ver Cabo Verde como nove países multiplicando as dificuldades já existentes e diminuindo a possibilidade de potenciar devidamente a diversidade das noves ilhas. É evidente que na insistência em fazer o mesmo apesar de mudanças profundas a verificarem-se a nível local e global o mais provável é que se esteja a perder a oportunidade de avançar com reformas que noutras circunstâncias seriam mais difíceis. Um exemplo são os transportes, seja o aéreo, o marítimo e o interurbano que em todo o lado vão ser alvo de reformas por forma a poder se adaptar às exigências de viajar no “novo normal”. Aqui tudo ficou praticamente como estava. As crises têm sempre custos, mas ficam mais caras quando as oportunidades que eventualmente ofereçam não são aproveitadas.

A campanha eleitoral devia incluir momentos únicos para a apresentação e discussão de propostas para se adaptar o país aos rigores dos novos tempos. Seriam ocasiões certas para mobilizar vontades para se fortalecer os alicerces da nação e com novas perspectivas adequar o país de instrumentos necessários para construir prosperidade sustentável. Não é, porém, fácil fugir do que sempre se fez. Numa certa perspectiva podia-se até considerar normal que os partidos do chamado arco do poder não conseguissem afastar muito do tipo de discurso e de promessas que reconfirmam no essencial o modo de funcionamento do país enquanto economia pequena e frágil e dependente da ajuda externa. Esse é o paradigma na base do qual o Estado vem funcionando há décadas e que já se provou no essencial resistente a intenções reformistas vindas de todos os quadrantes.

Estranho é o facto de pequenos partidos aparentemente sem qualquer possibilidade de ganhar as eleições, se juntarem ao coro dos que fazem promessas nessa mesma linha. Acabam por exagerar nas medidas propostas só para se diferenciarem e supostamente ficarem em posição de criticar, mas sem acrescentar praticamente nada de novo. Pontualmente dão guarida a sentimentos anti-sistémicos que de uma forma ou de outra procuram descredibilizar as instituições da democracia representativa e do Estado de Direito constitucional. A verdade é que não se revelando portadores de políticas alternativas, nem conseguindo afirmar-se como partidos de protesto, acabam por ser ignorados pelo eleitorado. Aconteceu nas autárquicas e poderá verificar-se outra vez nas legislativas.

As pessoas no meio dessas lucubrações partidárias, que em geral se mostram aquém dos enormes desafios que se colocam ao país, não vêem como outra saída se não a de se desenrascarem e com sorte ou com os contactos certos serem bem-sucedidos num sistema que por si próprio tende a reproduzir a dependência de todos em relação ao Estado e a manter a posição sobranceira e paternal do Estado em todos os domínios da vida do país. Quando as dificuldades aumentam, como acontece actualmente com a pandemia, tudo fica muito pior. Inflectir a situação significaria cortar com uma espécie de “cinismo cívico” que alguns anos depois da independência se instalou no país após o desencanto com o regime de partido único.

Dizia-se amiúde que “militância dja kaba” para justificar ausência de sentido de serviço público e “N ka mata Cabral” para fugir a qualquer tipo de responsabilidade. Ou seja, legitimava-se atitude de tudo ir buscar ao Estado que detinha os recursos, fazia os favores e propiciava os acessos. Deixar para trás esse cinismo que até hoje perdura é fundamental para se ter de facto um Estado de Direito com servidores a todos os níveis cumpridores de uma ética republicana. Passa por responder ao apelo de John Kennedy de uma outra relação com o país e o Estado que reforce a confiança nas instituições, valorize a auto-responsabilidade e a autonomia individual e promova a cooperação entre as pessoas. São os ingredientes que se precisa para construir uma comunidade mais forte e resiliente e que mesmo nas maiores dificuldades sempre encontrará vias para prosperar e ser livre.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1011 de 14 de Abril de 2021.

segunda-feira, abril 12, 2021

Evitar erros que levam gerações a corrigir

 Recorrentemente em Cabo Verde a questão da autonomia das universidades, da qualidade do ensino e da capacidade de investigação e produção científica é trazida à discussão pública.

O país diz-se detentor de cerca de dez universidades, mas é impressão generalizada que o impacto do ensino superior é ainda bastante fraco. Em particular não parece contribuir para elevação do nível do debate na esfera pública, nem se mostra capaz de propiciar às instituições do país expertise em várias áreas de forma sistemática e perceptível como seria de esperar. O que as pessoas notam em relação ao papel das universidades vai de encontro em grande medida com o que ficou exposto na resolução do congresso dos doutorados realizado a 11 de Março em Mindelo quando diz que “a falta de um projecto universitário que valorizasse desde a sua génese a função criativa da Universidade impediu a emergência de uma comunidade científica em Cabo Verde”.

Para os participantes no congresso a falha vem de longe, em particular na universidade pública, a Uni-CV, segundo os quais “foi marcada na sua génese pelo facto de o corpo docente ter sido recrutado de entre professores formatados nos anos 1975-1980 nas escolas do Partido Único”. Acrescentam ainda que a “corrupção sistémica” que daí resultou “conseguiu asfixiar a crítica aos poderes públicos pela Academia” e que a “centralização da autoridade académica na administração universitária converteu a instituição em mera extensão da administração pública, retirando-lhe a função de Casa do Saber”. Não é nada que se desconhecia considerando o que se sabe do processo de instalação do ensino universitário nos últimos anos.

Em alguns momentos, por altura de eleição para o cargo de reitor, ou em artigos de jornal, questões semelhantes foram levantadas, mas como de há muito se tornou habitual em Cabo Verde são logo desvalorizadas ou esquecidas, ou varridas para “debaixo do tapete”. Entretanto recursos públicos consideráveis são gastos em manter tal sistema sem que se vislumbre retorno adequado que os justifique. Também milhares de estudantes e seus familiares investem parte importante dos seus rendimentos e muito das suas esperanças de uma vida melhor sem de facto qualquer garantia de atingir os seus objectivos particularmente quando escasseiam empregos do Estado a exigir licenciatura, o mercado de trabalho não é suficientemente dinâmico e as qualificações existentes não são as mais procuradas por potenciais empregadores. Com o país a viver uma pandemia sem precedentes podia ser uma oportunidade para a Uni-CV desempenhar um papel de relevo como acontece em outros países. Aqui, pelo contrário, está-se por saber o papel da universidade em apoiar o esforço de combate ao coronavírus e as contribuições no estudo da epidemia, sua evolução e seu impacto nas populações.

Este jornal em vários editoriais e reportagens ao longo dos últimos dez anos procurou chamar a atenção para a problemática que rodeou todo o processo de instalação do ensino universitário. Já em 2010 este semanário alertava que as universidades enquanto bastiões do conhecimento, do ensino superior e da investigação precisam para realizar a sua missão da mais ampla liberdade intelectual e liberdade de expressão e de ser funcional num quadro de autonomia administrativa e financeira e independência do poder político. E que a forma como foi criada a universidade pública de Cabo Verde determinou que muito do que se esperava de uma instituição de ensino superior fosse sacrificado. Compreende-se a motivação e a urgência expressas nos alertas que se sucederam vindos de diferentes quadrantes. Tratava-se de uma instituição nova chamada a desempenhar um papel crucial para vida de gerações de jovens e a ser central para o desenvolvimento do país enquanto produtor e disseminador do conhecimento e criador do ambiente propício para a inovação. Se falhasse em realizar a sua missão como tudo parece indicar os estragos seriam consideráveis e os custos para reverter a situação teriam que ser suportados por gerações.

Infelizmente o que aparentemente acabou por acontecer com a universidade pública é análogo ao que vem acontecendo com outras instituições no país e com a generalidade da administração pública. A dependência do país da ajuda externa, o historial de partidarização da administração pública a partir das suas origens no partido/Estado e a presença forte do Estado na economia entre outros factores garantiram que se reproduzisse ao longo de décadas, não obstante as tentativas de reforma, a figura do Estado centralizador, burocrático e pouco sensível às necessidades dos utentes. Com a crescente incapacidade do sector privado nos vários domínios, seja industrial, seja o do turismo e dos serviços em ganhar proeminência e em inflectir a posição do Estado no topo da proverbial “cadeia alimentar” a tendência de muitos tem sido de encontrar a melhor forma de se colocarem sob a sombra protectora do sector público.

Naturalmente que isso tem consequências tanto pelo impacto sobre as instituições e a administração pública no que concerne à composição dos órgãos, nível de funcionamento e comprometimento com o serviço público como sobre o tipo de discurso e de campanha eleitoral que é produzido no processo de acesso ao poder político. A situação de crise que se vive actualmente devido à Covid-19 só agrava a tendência e torna mais saliente essa evolução negativa no seio das instituições. A cada dia que passa fica mais difícil tentar inflectir o caminho de uma certa desinstitucionalização, quase sempre acompanhada de centralização do poder no chefe e a transformação de outros titulares de cargos ou dirigentes em variantes de facilitadores, bajuladores e vendidos. E isso acontece quando precisamente a pandemia em todo o mundo veio relembrar a importância de se ter um Estado competente, comprometido com a verdade dos factos e congregador de vontades para mitigar os efeitos das crescentes desigualdades sociais, combater os efeitos das alterações climáticas e garantir a sustentabilidade do processo de desenvolvimento.

Para um pequeno país como Cabo Verde deixar-se levar num processo em que as suas instituições enfraquecem ou não estão à altura do que é delas esperado como parece acontecer com a universidade pública é de uma gravidade enorme. De facto, não há muito espaço para cometer erros que levam gerações a corrigir particularmente quanto desafios como pandemias, alterações climáticas e dívida pública em crescendo podem constituir uma mistura potencialmente perigosa nos próximos anos. Neste sentido é de maior importância identificar as razões profundas por que reformas não são feitas, instituições enfraquecem e descredibilizam-se e elementos da sociedade civil não conseguem sair de uma espécie de modorra para forçarem mudanças.

No processo talvez se descubra – parafraseando o economista Paul Samuelson que não se importava com quem escrevia as leis de uma nação conquanto ele pudesse escrever os manuais escolares – que a raiz do problema esteja no que em termos de princípios e valores e de perspectiva histórica da nação cabo-verdiana é passado às novas gerações através designadamente do sistema de ensino. Tudo indica que há uma tensão entre o substracto cultural inculcado e os valores vertidos na Constituição e nas leis e o resultado não tem sido positivo para as instituições, para a cidadania e para a própria democracia. Para se ter mudança, há que encarar isso frontalmente como fizeram os participantes do segundo congresso dos doutorados na resolução que trouxeram a público. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1010 de 7 de Abril de 2021.

segunda-feira, abril 05, 2021

Futuro desafiante e incerto

 

O FMI na sua última comunicação sobre as perspectivas económicas de Cabo Verde para o futuro próximo foi peremptório a dizer que se mantêm desafiantes e incertas. Para começar, a Covid-19, em 2020, provocou uma contracção de 14% da economia. Parou praticamente tudo, seja o turismo, a aviação e a exportação de vários bens e serviços.

O resto da economia nacional limitou-se a concentrar no fornecimento do essencial para o país funcionar mesmo quando a braços com estados de emergência e outros graus de confinamento. Nunca se tinha visto algo semelhante. Em 2009 na sequência da crise financeira de 2007/2009 a contracção da economia tinha sido de 1,3% do PIB e, aquando da retoma, depois de um primeiro ano de 2010 com 4% de crescimento, seguiram-se quase cinco anos de estagnação com a taxa do crescimento do PIB à volta de 1%. A expectativa de todos é que esse padrão não se repita e que o crescimento retome a dinâmica iniciada a partir do último trimestre de 2015 e que perdurou até Março de 2020.

O FMI, apesar de prever que o país possa crescer 5,8% do PIB em 2021 e que o crescimento a médio prazo chegue a 6%, não deixa de constatar que os riscos de uma evolução no sentido negativo são reais considerando a pandemia do coronavírus e a suas ramificações globais. Na sua comunicação faz qualquer avanço na economia depender de vários factores de entre os quais uma retoma mundial, o aumento do turismo e de investimentos, a execução de projectos de infraestrutura já identificados, reformas estruturais decisivas no Estado e no sector empresarial do Estado, acesso de pequenas e médias empresas ao crédito e políticas de apoio à estabilidade macroeconómica em particular em sede da gestão orçamental e da dívida pública. Alguns desses factores são externos e dependem de como irá ser o novo normal nas relações entre países, em como as viagens vão ficar condicionadas e em como vão ser reorganizadas as cadeias de valor e estruturados os canais de aprovisionamento de bens essenciais e estratégicos.

Os outros factores, aqueles que dependem do país, constituem provavelmente uma complicação maior. Pô-los a funcionar exigiria “reformas estruturais decisivas” como diz o FMI, reformas que implicariam a despartidarização do aparelho do Estado, descentralização e desburocratização dos serviços e adopção generalizada de uma cultura de serviço público e de um ethos de servidor público que até agora se revelaram praticamente impossíveis de implementar. E sem elas não há redefinição do papel do Estado para além da sua função na reciclagem da ajuda externa, nem diminuição dos custos de contexto que retira competitividade à economia, nem uma aposta consequente e estratégica na potenciação dos recursos do país a começar pelos recursos humanos que devia ser o pilar fundamental do desenvolvimento.

O falhanço na realização dessas reformas estruturais terá contribuído para que depois da crise financeira de 2008 a entrada de fluxos externos em doações e empréstimos só tenha feito crescer a dívida externa para cerca de 120% do PIB sem que a economia por largos anos conseguisse descolar. E quando depois de 2015 a conjuntura internacional se tornou mais favorável com todas as grandes economias e em particular a União Europeia a crescer as taxas do PIB aumentaram consideravelmente de uma média de 1% nos anteriores 5% até que chegou a pandemia. Provavelmente não atingiu os 7% que tinham sido previstos devido a ineficiências várias, à produtividade baixa e à fraca competitividade derivadas da ausência de reformas em sectores-chave e também a prioridades trocadas em matéria de investimento público e de recursos humanos.

Compreender as dificuldades com que a economia cabo-verdiana se depara e os constrangimentos que tem que vencer para poder crescer a taxas que permitam retirar pessoas da pobreza extrema, diminuir as vulnerabilidades das populações e abrir o caminho para uma prosperidade que chegue a todos é fundamental para a paz e a concórdia na sociedade cabo-verdiana. Há quem aponte um crescimento acima de 7% como meta a atingir para que esse desiderato seja possível. Falta é identificar os obstáculos para lá chegar e mobilizar vontades para os ultrapassar. É verdade que se até agora não se conseguiu fazer as reformas estruturais que se impõem é por não ser tarefa fácil e também por se tratarem de medidas que provavelmente mexem com interesses entrincheirados ou que não são de imediato populares em alguns sectores. Não se pode deixar de notar é que, com tentativas de reforma sucessivamente fracassadas, mais longínqua se torna a possibilidade de realizar uma mudança de fundo com impacto visível na eficácia da acção do Estado. Em simultâneo e contribuindo para ineficácia estatal nota-se também o crescente poder de corporativismos diversos que já se tornaram em verdadeiros empecilhos para quem tem legitimidade democrática para governar.

A política devia ser a via para se debater como ultrapassar as dificuldades referidas. Infelizmente cada vez mais passa-se a impressão é de que se quer o poder para tentar manipular o status quo a favor de clientelas próprias sem uma grande preocupação com a realização do interesse geral. O ambiente de crispação que se instala na esteira do que parece uma autêntica corrida para abocanhar recursos do estado não deixa espaço para posições mais equilibradas. Períodos eleitorais deviam ser momentos cruciais para se dar o passo em frente. Por isso a urgência devia ser maior em procurar reconhecer onde estão os obstáculos e inventariar vias para os ultrapassar.

O FMI ao caracterizar como desafiantes e incertas as perspectivas de Cabo Verde no futuro próximo chama a atenção para não se tomar os tempos que vêm aí como algo seguro e previsível e confiar que simplesmente se pode recomeçar do ponto onde se ficou há um ano atrás. Dificilmente será assim e o facto de o coronavírus constituir uma ameaça global ninguém pode ter a pretensão de ficar aquém dos seus efeitos devastadores. Em Cabo Verde reina a crença que a solidariedade é mais forte em momentos de desgraça porque é preciso cooperação de todos para minorar os estragos e encontrar uma saída. Em tempos de pandemia as pessoas, os candidatos e os partidos deviam se mostrar mais abertos ao diálogo político que pode levar a soluções duradoiras e consistentes e mobilizar energias para fazer as reformas que todos esperam.

Nos tempos que correm não há, porém, certeza que depois da tempestade venha imediatamente a bonança. Mais uma razão para apelos à solidariedade ao longo do processo eleitoral que vai culminar nas eleições legislativas de 2021. A democracia e a liberdade vão depender dos muitos problemas colocados no dia-a-dias e de como as reformas foram encetadas e as soluções foram encontradas. Do sucesso nas reformas, de um renovado papel do Estado e de um maior foco em construir pontes entre as pessoas irá depender a prosperidade geral, o rendimento individual e familiar e maior proximidade na relação entre as pessoas. As eleições de 18 de Abril deviam ser pretexto para uma nova abordagem dos problemas de Cabo Verde. Vamos esperar que seja desta. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1009 de 31 de Março de 2021.

segunda-feira, março 29, 2021

Quer-se debate mais construtivo

 

A primeira impressão que se tem ao assistir ao primeiro debate entre os líderes partidários em período de preparação para as eleições legislativas é que Cabo Verde não parece estar no meio de uma pandemia.

Os argumentos trocados, as críticas feitas e as propostas apresentadas pouca atenção deram ao facto concreto e presente de que o país vive uma recessão sem precedentes, acumulou uma enorme dívida pública e as perspectivas de retoma são incertas e dependentes de como outros países irão dinamizar as suas economias. Ao longo do debate a abordagem escolhida pelos diferentes actores acabou por reforçar a ideia de que o discurso político – cheio de chavões como inclusão, empreendedorismo, clusters e hubs, futuro digital e de ideias fixas como mobilização de água para agricultura, terminais de cruzeiros e aeroportos internacionais sem um quadro estratégico claro – está divorciado da vida real. Passa ao lado da realidade de que as pessoas querem a possibilidade de ter um emprego de qualidade, de se qualificarem através de uma educação e formação adequada e de prosperarem num ambiente ordeiro e não discriminatório. Para isso requerem segurança pessoal, mas também jurídica e condições sanitárias que lhes permita qualidade de vida.

Tal discurso contribui para uma postura das pessoas e da sociedade perante os problemas do país que passa por minimizar ou desvalorizar os formidáveis obstáculos que teimam em manter-se no caminho para o desenvolvimento. As persistentes vulnerabilidades do país e precariedade na vida das pessoas deviam estar aí para ajudar a reconhecê-los e a criar vontade para os superar. Vê-se, porém, pela forma como a pandemia do coronavírus tem sido assumida que aparentemente nem com uma ameaça maior e de natureza existencial consegue-se sacudir a modorra.

As recentes reivindicações acompanhadas de ameaças de greve que tem aparecido nas últimas semanas deixam claro a impressão de que aparentemente não se reconhece que o país vive dificuldades extraordinárias. O corte com a realidade presente e futura é mais notória porque vêm particularmente do sector público, precisamente de onde nos meses de estado de emergência e de quatro lay-offs que reduziu o rendimento de milhares de trabalhadores a 70%, os salários dos funcionários mantiveram-se a 100%. E ninguém protesta por causa disso.

Sem assunção da gravidade do problema em mãos não há como trazer à tona sentimentos mais altruísticos e solidários, atenuando impulsos mais reivindicativos, nem se é capaz de mobilizar energia para fazer da crise uma oportunidade e encetar reformas profundas que serão necessárias para redinamizar a economia. O facto de, em algumas sondagens, a pandemia ter aparecido em lugares muito abaixo nas preocupações dos caboverdianos denota o quanto o discurso político no país tem ajudado a dar uma falsa perspectiva da realidade vivida. Estar-se a viver um ano eleitoral em tempo de pandemia, agravou a situação ainda mais.

A tendência é de reproduzir discursos e práticas políticas que, numa espiral ascendente de promessas estimulado pelas duras críticas da oposição apontando a não realização, deficiente realização ou inadequação das soluções da governação, põem enfase em obras e na distribuição de rendimentos. A dialéctica entre as forças aí estabelecida não leva nem ao melhor conhecimento da situação do país nem a mais cooperação para enfrentar os problemas. Pelo contrário, tende a excitar ainda mais o sentido reivindicativo das pessoas e da sociedade quando menos dele se precisava e mais solidariedade se mostrava necessário.

A falta da adequação do discurso político produzido aos problemas do país e à realidade do mundo é vista por uns como oportunidade para se oferecerem como alternativa na governação e por outros como prova de falência da democracia, do seu sistema de partidos, do seu pluralismo, das suas instituições e das suas leis. Pelo debate vê-se que há projectos de poder diferentes. Não é claro para muitos como é que as propostas de governação divergem substancialmente. Ninguém parece querer disponibilizar-se em ver o país numa outra perspectiva não obstante as crises recentes e a pandemia que revelaram profundas vulnerabilidades das populações. Nem tão pouco quer-se ter em devida conta a conjuntura internacional que tornou evidente que voltar a crescer irá exigir reformas inovadoras, uma outra atitude e muita solidariedade.

Neste ambiente o cepticismo de alguns em relação aos partidos parece justificar-se. Daí os ataques aos partidos que acabam por fragilizar o sistema democrático e que, a exemplo de outros países, pode abrir caminho a líderes tendencialmente autocráticos e a derivas iliberais com baterias apontadas no pluralismo, na liberdade de expressão e de imprensa e na independência dos tribunais. Essa via, porém, não tem que ser a única possível para os descontentes com o funcionamento da democracia e com a aparente falta de alternativa.

Tocqueville no seu livro A Democracia na América fala no papel das associações de todo o tipo profissional, social, civil e político, naquilo que hoje se chama de sociedade civil, em ancorar o sistema democrático. Para ele a democracia não tem que ficar só pelos cargos e órgãos eleitos. Precisa da participação activa, atenta e fiscalizadora dos cidadãos e das suas associações para que a sua integridade baseada na liberdade, no pluralismo e no primado da lei não seja posta em causa. Atirar-se contra as instituições da democracia descredibilizando-as, por que descontente com o seu funcionamento num determinado momento, é como dar um tiro no pé. E a história mostra que depois de se fazer ruir as instituições o caminho fica aberto para candidatos a “salvadores da pátria” todos eles prontos a sacrificar a liberdade em nome da sua ordem e da sua justiça.

A democracia também é ancorada nos seus fundamentos quando, como se viu recentemente na América de Trump, maiorias conjunturais são limitadas no seu poder de desestruturação institucional do sistema político vigente por órgãos independentes. O Supremo Tribunal de Justiça, a comissão eleitoral e a instituição militar efectivamente impediram que a legitimidade das eleições de 2020 fosse posta em causa e que não se verificasse a transferência de poder para o candidato vencedor. O exercício independente, competente e com sentido de serviço público das suas funções pelas magistraturas judiciais e do ministério público e pelos titulares de órgãos como o banco central, comissão eleitoral, autoridades reguladoras, comissão de dados e outras entidades afins é de maior importância para a credibilidade do sistema e para manter a confiança dos cidadãos. Devem ser protegidas de interferências desestabilizadoras das suas funções.

Ainda estão por realizar mais dois debates antes das legislativas e a campanha eleitoral só começa no dia 1 de Abril. Deve haver mais pressão das pessoas e da sociedade civil para que o discurso produzido pelos candidatos reflicta mais a situação real do país neste tempo de pandemia e de recessão mundial na perspectiva de se encontrar as melhores soluções. O momento não é só dos partidos. É também de todos os cidadãos e suas organizações. E não se trata só de votar no dia 18 de Abril, mas de se fazerem ouvir com responsabilidade e um sentido apurado de que é preciso preservar as virtualidades do sistema democrático para que o futuro do país se realize com ganhos para todos.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1008 de 24 de Março de 2021.

segunda-feira, março 22, 2021

Um ano de Covid, tempo para reflexão

 

Um ano a conviver com a Covid-19 devia ser momento de uma reflexão profunda de como se encarou a pandemia, de como as pessoas se adaptaram às exigências dos novos tempos e de como as políticas públicas e o Estado mudaram para responder aos novos desafios.

Em todo o mundo reflexões dessa natureza têm sido feitas pelos mais diversos sectores da sociedade envolvendo personalidades das mais diferentes áreas, incluindo cientistas, políticos, operadores económicos, agentes culturais, entidades religiosas e activistas sociais. Em Cabo Verde, infelizmente reflexões sobre a matéria não abundam, prefere-se ficar quase sempre pelos comunicados dos números diários de casos acompanhados de análises da evolução da doença muitas vezes a contragosto, quando instados por jornalistas. Da parte das autoridades, nota-se não poucas vezes uma certa irritação se não hostilidade sempre que opiniões não oficiais são manifestadas sobre os dados da pandemia e que questionamentos são feitos quanto à condução da luta contra o vírus mesmo quando vêm de profissionais com experiência na área da saúde.

É mais que provável que a convivência com a Covid-19 vai durar de uma forma ou outra por vários anos. A grande questão é se se pode ir ultrapassando as dificuldades colocadas pela pandemia sem uma efectiva mobilização de todos para a combater. É verdade que se pode retirar erradas conclusões do que se passou até agora e concluir que se pode continuar a fazer o mesmo sem riscos futuros de problemas maiores em termos de saúde pública, do impacto sócio económico e dos efeitos a prazo na qualidade de vida das pessoas. A tentação é grande para manter a atitude, sempre que há crises sejam elas secas, furacões ou epidemias, de mobilizar ajuda externa e dar continuidade a programas que o tempo tem demonstrado que permitem sobrevivência no dia-a-dia, mas a prazo não diminuem as vulnerabilidades das populações e a precariedade na vida das pessoas.

De facto, passou um ano e não houve pressão sobre o sistema de saúde que pudesse ameaçar colapso. As mortes pela Covid-19 ficaram sempre aquém do 1% dos casos identificados e não foram traumáticas a ponto de forçar reflexão e mudanças na postura das pessoas. A população em grande medida acatou as recomendações das autoridades quanto ao distanciamento social e em particular quanto ao uso de máscaras o que eventualmente veio a revelar-se a grande medida para a contenção da velocidade de transmissão do vírus. O impacto do desemprego massivo causado pelo coronavírus foi amortecido com programas de lay-off para os trabalhadores privados, com rendimento social assegurado a muitos operadores informais e com vários programas de suporte às famílias vulneráveis. Nesse sentido também contribuíram as moratórias nos pagamentos bancários, as rendas de habitações sociais perdoadas ou diminuídas e a construção civil alimentada pelo Estado, pelos municípios e também por privados. As remessas de emigrantes mantiveram-se no seu papel fulcral de ser a grande safety net, a rede que ampara muitas famílias em momentos de necessidade.

Pode bem acontecer que alguém venha dizer que se num primeiro ano conseguiu-se isso seguindo um certo caminho e recorrendo a uma determinada orientação por que não continuar na mesma senda num segundo ou terceiro ano ou durante todo o tempo que durar a pandemia. A grande diferença é que no caso da pandemia da covid-19 todos os países sofrem e endividam-se e vão levar algum tempo para se recuperarem e conseguirem ser generosos com os outros. Caso para dizer que com a pandemia o mundo mudou e o egoísmo das nações nem sempre será equilibrado pelo espírito altruísta manifestado noutros tempos. Não é pois razoável contar com a repetição da generosidade, sem perceber que mesmo se mantendo será cada vez menor o seu impacto sobre a economia, face ao acumular da dívida pública e as dificuldades reais em avançar com uma retoma robusta e sustentável. Claro que perceber e assumir isso seria uma demostração de que algo se entendeu da pandemia e que convém mudar em muita coisa para se estar preparado na próxima vez, porque haverá sempre uma próxima vez.

A chegada das vacinas para a Covid-19 antes que do que se supunha como tempo necessário para desenvolver uma vacina eficaz pode levar muitos a pensar que é possível ou mesmo desejável continuar a fazer o mesmo e esperar que as coisas mudem. Não se faz por compreender que os sacrifícios de ontem não foram só para evitar o colapso do sistema de saúde e conter o número de mortos como também para se construir uma resposta em termos de imunidade de grupo. A proximidade das eleições com o ciclo eleitoral iniciado com as eleições autárquicas de Outubro e seguidas pelas legislativas em Abril e as presidenciais de Outubro não ajuda a fugir desta tentação perigosa.

Muito pelo contrário, a excessiva politização agora exacerbada em tempo de eleições só vai empobrecer ainda mais o discurso político, polarizar opiniões, açambarcar e diluir todo o pensamento, criatividade e iniciativa das pessoas na contenda para chegar ao poder. Até as vacinas não escapam a essa politização primária com a agravante dos protagonistas fingirem não perceber que a desconfiança lançada contra as vacinas torna as pessoas renitentes em as aceitar. Com isso é a saúde das pessoas que são colocadas em perigo ou vidas que terminam antes do que devia ser a “sua hora”. Ao insistir nesse caminho dificilmente se deixa espaço para a reflexão plural dos problemas, para a mobilização das energias e para o espírito de cooperação que, alimentando a confiança entre as pessoas, constitui a base a partir da qual se aumenta o capital social necessário para a prosperidade individual, familiar e colectiva.

Com a pandemia muitos países estão a mudar. Há dias os Estado Unidos aprovaram um plano de ajuda às pessoas e à economia no valor de 1,9 triliões de dólares. Somando esse novo estímulo aos outros concedidos durante este ano de covid, como nota o colunista do New York Times David Brooks, chega-se ao valor de 5,5 triliões de dólares gastos com a pandemia, uma quantia muito superior aos 4,8 triliões gastos durante a segunda guerra mundial. Para um país que até recentemente acreditava em governos pequenos e não muito intervencionistas em matéria de luta contra desigualdades diversas é uma inflexão de políticas e do papel do Estado de tal forma transformacional que alguns já a apontam como igual ou superior ao do New Deal de Franklin Roosevelt. A Europa vai provavelmente seguir passos similares assim como outros países emergentes para fazer face aos desafios que o coronavírus irá coloca a todos ainda por alguns anos. Cabo Verde não pode, nem deve ser excepção. Período eleitoral não é desculpa. Muito pelo contrário.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1007 de 17 de Março de 2021.