segunda-feira, abril 09, 2018

Derivas

Assistiu-se no início desta semana a uma reunião inédita do Conselho de República. Foi a primeira deste segundo mandato do presidente Jorge Carlos Fonseca e trouxe novidades.
O conselho da república foi convidado a debruçar-se sobre a segurança no país e sobre a situação de seca. Para o efeito o PR endereçou convites ao ministro da Administração Interna e ao ministro da Agricultura, e também a especialistas em segurança e ao conselheiro de segurança do primeiro-ministro, como se pode ver no seu “post” no Facebook. Com a iniciativa, o PR rompeu com a tradição das reuniões do conselho da república viradas quase que exclusivamente para a marcação de eleições e alargou o escopo de actuação desse órgão auxiliar do presidente da república para matérias de política interna normalmente sob a alçada e direcção do governo. Também nos procedimentos inovou ao convidar directamente ministros para expor sobre temas da governação, tarefa que constitucionalmente cabe ao PM no cumprimento do seu dever de informar regular e completamente o presidente da república sobre os assuntos da política interna e externa do Governo e como membro do Conselho da República.
Na sua página do Facebook o PR disse que a reunião serviu para reforçar convicções, reavaliar políticas e medidas, mobilizar energias e vontades, acelerar procedimentos, alterar práticas e atitudes. O problema é que as recomendações para terem utilidade prática deveriam ser dirigidas ao governo, mas o conselho é órgão de consulta do PR no exercício das suas funções e não de consulta do governo. Os constitucionalistas portugueses referem-se à possibilidade em Portugal do PR, pela via de submissão de matérias diversas ao conselho do estado, de transformar esse órgão numa instituição de apreciação da vida política e da direcção política do governo e enquanto tal num “meio indirecto” de efectivar a responsabilidade do governo. Há aí essa possibilidade porque o governo é politicamente responsável perante o presidente da república e perante o parlamento. Não é o caso de Cabo Verde em que o PM só é politicamente responsável perante a Assembleia Nacional e os ministros são responsáveis perante o primeiro-ministro e no âmbito do governo perante a AN e por conseguinte os contactos directos dos ministros com o PR devem ser feitos com assentimento do PM.
O presidente português Marcelo Rebelo de Sousa inaugurou as audições no Conselho de Estado de figuras exteriores ao órgão com os convites dirigidos ao governador do Banco Central Europeu Mario Draghi na primeira reunião e recentemente ao presidente da Comissão Europeia Jean-Claude Juncker e ao director da Organização Mundial do Comércio. Para politólogos citados pela imprensa portuguesa os convites do presidente constituem actos de marketing institucional dirigidos para dar mais centralidade no debate político à Presidência da República. Mas certamente que convites dirigidos á figuras de instituições supra nacionais da União Europeia e internacionais não é mesma coisa que convidar membros do governo para discutir matéria de governação do país. Desde 2005 que no artigo 5 do regimento do conselho da república está prevista essa possibilidade que por sinal não resulta da Constituição mas não há notícia que alguma vez tenha sido aplicada nem pelos presidentes anteriores nem pelo actual presidente da república no seu primeiro mandato. E não é por acaso.
Nas democracias parlamentares a relação entre o presidente da república e o governo é muitas vezes de geometria variável. Se o governo é minoritário ou se num momento é politicamente enfraquecido a influência do PR tende a aumentar, mas se os governos gozam de uma maioria absoluta no parlamento não há grandes alterações no que se espera do PR nas suas múltiplas funções. Quando há governos maioritários, como é o caso de Cabo Verde nestes 27 anos de democracia, a norma é a estabilidade política sem grandes sobressaltos nas relações entre órgãos de soberania. Os equilíbrios existentes, porém, podem mudar se factores diversos já conhecidos de populismo e demagogia convergirem no enfraquecimento das instituições democráticas, como está a acontecer. Um sinal disso é a descredibilização do parlamento que vem de há vários anos e já alterou visivelmente a relação entre o governo e o parlamento. Nota-se na submissão deste àquele assim como nas ausências do primeiro-ministro do parlamento em momentos de fiscalização política, acto sempre criticado pelo actual partido maioritário quando era oposição parlamentar. A outra face da moeda é um relacionamento nunca visto entre o governo e a presidência da república no qual é palpável a crescente influência do PR.
Derivas na relação entre os órgãos de soberania acabam por mexer com o sistema político e afectar em particular a confiança das pessoas nas instituições. A falta de coerência e de consistência na actuação da classe política pode tornar-se norma como se viu no folhetim das alterações das taxas aduaneiras para proteger produtos locais em que a fuga à responsabilidade por eventuais prejuízos aos consumidores e à economia nacional foi generalizada. Poderá vir a verificar-se outra vez designadamente na questão da regionalização. Na proposta de lei apresentada ao parlamento já se viu que o apego à ideia de ilha/região caiu para o caso de Santiago que ficou com duas regiões ao mesmo tempo que se manteve no caso de ilhas com fraca base populacional e económica como Brava e Maio e que se obrigam ilhas efectivamente integradas como S. Vicente e S. Antão a serem regiões separadas. Em 2014 na discussão da composição do Conselho dos Assuntos Regionais o actual partido maioritário, então oposição, forçou o então governo a abandonar a proposta de fazer Santiago ser representado nesse órgão por dois elementos de Santiago Norte e dois de Santiago Sul. O MpD argumentou na altura que o total de quatro representantes de Santiago iria contrastar com o número de dois por cada ilha e estaria em contramão com o princípio que sempre vigorou na Constituição de 1992 de igualdade de representação das ilhas.
Hoje vê-se em vários sinais que o comprometimento em manter o sistema político no seu traço básico original não está garantido. Surgem forças a propor alterações no sistema do governo com reforço dos poderes presidenciais e outras a querer minimizar o parlamento e a democracia representativa. Com uma revisão da Constituição no horizonte é de evitar derivas que tragam desequilíbrios e aumentem a desconfiança das pessoas nas instituições. Há, por outro lado, que conter o impulso para o protagonismo exacerbado e, pelo contrário, preparar-se com integridade para servir, ciente de que a manutenção de um ambiente de paz e tranquilidade, funcionamento normal das instituições e o exercício competente das funções de cada um é fundamental para se ter liberdade e prosperidade.
Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 833 de 04 de Abril de 2018.

segunda-feira, abril 02, 2018

Tornar os debates produtivos

Depois de mais um debate parlamentar a sensação é que não é fácil mudar certos hábitos já arreigados de acção política. Olhando para além da poeira levantada nos confrontos nota-se que não há uma preocupação primeira com a criação de riqueza nacional, que o foco é posto na redistribuição e que a via escolhida para influenciação política ou o exercício do poder passa pelo controlo do acesso a recursos.
A dificuldade em mudar demonstra que décadas seguidas de aplicação de um modelo de desenvolvimento baseado na reciclagem da ajuda externa decididamente teve consequências graves e duradoiras na vida da nação. E isso é visível na forma como os problemas do país são equacionados e colocados no parlamento ou na comunicação social, assim como é claro nas atitudes e expectativas em relação ao presente e ao futuro que são sistematicamente alimentadas e reproduzidas.
O país debate-se com níveis altos de desemprego, mas mostra-se incapaz de pôr suficiente atenção na procura de vias para debelar esse flagelo. Devia ser óbvio que o desemprego só pode ser combatido com crescimento da economia a taxas mais altas do que as verificadas nos últimos anos. Devia, mas afinal não é. Assinou-se um pacto de concertação estratégica, mas parece que ficou submerso nos anúncios de manifestações e ameaças de greve e nos posicionamentos políticos que logo vêm atrás. O que devia traduzir preocupação de todos - não só com quem está empregado mas também com os desempregados e os com os novos que chegam ao mercado de trabalho e que precisam de uma economia dinâmica e competitiva para os absorver - não dá sinais de se concretizar. Prefere-se ficar com a ilusão que de alguma forma o Estado vai continuar a manter os postos de trabalho actuais.
As discussões intermináveis à volta das medidas de mitigação dos efeitos da seca fazem esquecer o problema de fundo que é a vulnerabilidade no mundo rural. Discutir ajuda externa e como distribuí-la no país parece ser o desporto favorito de muitos. É campo para populismo e demagogia, rivalidades e disputas de influência junto das pessoas. Sempre foi assim e é uma das razões por que a situação no meio rural não se alterou e a vulnerabilidade das populações se aprofundou. Num ano de seca extrema e em que o falhanço das políticas para o mundo rural ficou claro para todos o que mais se ouve para além dos arremessos políticos é a velha receita de fixar a população e desencravar as povoações. Por debater ficam as vias de como mover as pessoas para actividades mais produtivas, geradores de rendimento e com potencial de sustentabilidade que realmente diminua a sua vulnerabilidade.
Assim como o desemprego e as dificuldades das pessoas no campo não prendem a atenção por causa da sua utilidade na luta política, também faz-se por esquecer que o país tem a dívida pública acima dos 130% do PIB e que várias empresas estatais têm dificuldades financeiras que podem pesar ainda na dívida existente. Como é próprio de quem se habituou à ajuda externa, fica-se sempre à espera ou que a dívida seja perdoada ou que se resolva por si. Ninguém pensa nas enormes dificuldades que países como Portugal, Irlanda, Espanha e Grécia passaram por terem acumulado dívida a tal nível. Entretanto, também a questão é campo para picardias políticas e vontade para criar as condições para a conter e sanar financeiramente o sector empresarial do estado perde-se no jogo de culpar o outro e nas fugas à responsabilidade.
A verdade é que já devia ser evidente que o país tem de se mover num caminho que torne a economia competitiva e se criem condições para aumento da produtividade. A adequação da administração pública é essencial para isso, mas se noutras matérias dificilmente se encontra espaço para se chegar aos compromissos necessários, em matéria de administração não se vê como os atingir. É um facto constatado por todos e realçado pelos operadores económicos. Só que a administração pública é a arena principal de disputa e quando a política centra-se muito na capacidade do Estado em alocar recursos, facilitar acessos e criar oportunidades dificilmente as partes vão convergir nas reformas. E, se não há consenso para o crescimento e emprego com foco na iniciativa privada e acompanhada de medidas de atracção de investimento externo e de uma política de promoção de exportações de bens e serviços, ninguém vai achar necessário tomar as medidas que se impõem para se conseguir os níveis de eficiência e eficácia que o país tanto precisa.
Um outro empecilho a debates construtivos que podiam levar a encontrar as vias para fazer o o país crescer nas taxas desejadas e para resolver o problema de emprego e garantir rendimentos às pessoas tem a ver com a orientação a ser imprimida à economia nacional. Uma das consequências de demasiados anos a viver na dependência da ajuda externa foi que se deixou de olhar para fora e se fixou em olhar para dentro. Caiu-se numa espécie de paroquialismo que para o país arquipélago, de pequena dimensão e população pode revelar-se fatal, principalmente quando lógicas identitárias ganham impulso e rivalidades entre as ilhas são alimentadas. Da história de Cabo Verde se aprende que, nos casos em que o país conheceu algum momento de prosperidade, o crescimento resultou de uma ligação mais dinâmica à economia mundial. Para aprofundar essa ligação devem ir todas as políticas de promoção do sector privado e de atracção do investimento externo e o esforço de transformar Cabo Verde num destino turístico com valências múltiplas que aumentem a sustentabilidade do sector.
Melhorar o nível da política e elevar o debate é o grande desafio que hoje se coloca às democracias. Há que evitar por um lado a polarização que práticas populistas tendem a criar e, por outro, não se deixar tentar por vias simplistas para questões complexas que globalmente só vão contribuir para descredibilização da democracia. A resolução dos problemas de desenvolvimento dependem da capacidade em conseguir estabelecer os compromissos necessários para fazer as reformas e reorientar o país. Não se consegue isso, porém continuando a fazer a mesma política de sempre e a persistir nos mesmos debates estéreis que não deixa que caía o ilusionismo que por demasiado tempo tem mantido as pessoas alheias à realidade do país.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 852 de 28 de Março de 2018.

terça-feira, março 27, 2018

Dois anos depois: Balanço preocupante

Há dois anos atrás, no dia 20 de Março, anunciava-se uma nova alternância na governação de Cabo Verde. Com a vitória do MpD terminavam os quinze anos ininterruptos de governo do PAICV. A sensação no país era de alívio, à mistura com alguma euforia. Para muitos, o terceiro mandato do PAICV tinha sido um exagero e vendo-o findar e ceder lugar ao que se esperava ser uma lufada de ar fresco era, de facto, razão para entusiasmo, renovação de esperança e confiança no futuro. Os últimos cinco anos tinham sido de estagnação económica em que ano após ano se ficou à espera da prosperidade e do emprego que resultariam da dinâmica dos clusters, hubs, interpostos comerciais e praças financeiras prometidos repetidamente.
Teria sido bom que a euforia da mudança não ofuscasse as tremendas dificuldades que o país iria encontrar no novo ciclo de governação. Não devia escapar a ninguém que Cabo Verde já fora do grupo dos países menos desenvolvidos certamente iria encontrar maiores dificuldades em mobilizar ajuda externa e em conseguir empréstimos concessionais. Piorava a situação o facto de iniciar uma nova fase como país de rendimento médio atolado numa dívida pública superior a 120% do PIB e dívidas contingenciais do sector empresarial do Estado em particular da TACV que, por elevar ainda mais esse valor, tornava a dívida quase insustentável. A acrescentar a isso, e ao crescimento raso de muitos anos, ficaram reformas por fazer, em particular, na administração pública que poderiam ter tornado o país mais competitivo e alterado para melhor o seu ambiente de negócios.
Por outro lado, é verdade que o turismo, devido em parte a uma conjuntura favorável provocada pela retracção dos mercados tradicionais do Norte de África, ganhou forte dinâmica nas ilhas do Sal e da Boa Vista e serviu para impedir que o crescimento fosse ainda mais diminuto e também para criar milhares de postos de trabalho. O efeito, porém, era insuficiente como constatavam as pessoas nas outras ilhas e, em particular, nas zonas rurais que viam a sua vulnerabilidade perante as chuvas e outras contingências manter-se ou sem alteração perceptível. O mesmo acontecia com os muitos jovens dos centros urbanos espalhados pelo país com formação secundária e até superior que se apercebiam que a economia não tinha emprego para eles e os apetecidos lugares no Estado eram cada vez mais escassos. A consciência de que mesmo na falta de sinais claros de conturbação social a situação era crítica viu-se na forma determinada como foram decididas as três eleições: legislativas, autárquicas e presidenciais, nesse ano de 2016 a favor de uma mudança na visão, no estilo e nas pessoas que deviam orientar o país.
É facto que nesses dois anos a economia tem crescido três ou mais vezes do que nos anos anteriores e que as projecções para o ano de 2018 e seguintes apontam para valores superiores a 4% do PIB. Os dados do INE levam a crer que a retoma teria iniciado no último trimestre de 2015 em conjugação com a nova dinâmica da economia mundial e em particular da economia da União Europeia que finalmente parece deixar para trás os efeitos da crise financeira e do euro. Um outro impulso para o crescimento resultou da entrada de um novo governo disposto a promover o sector privado e que, por esse facto, de imediato se constituiu num factor de maior confiança na economia. Está-se porém ainda longe dos 7% do PIB prometidos e o número de postos de trabalhos criados mantém-se aquém do desejável especialmente para os que cada vez em maior número terminam os seus estudos universitários.
Esperavam-se reformas mais rápidas e mais profundas designadamente na administração pública, nas empresas públicas, no ambiente regulatório, no sistema de segurança, na comunicação social pública e na educação. A situação herdada era crítica e o mandato recebido de forma bem clara e vigorosa foi para pôr em prática as soluções propostas ao eleitorado. É percepção geral que até agora ainda não se conseguiu um nível de coordenação da acção estatal que, por um lado, diminua as ineficiências e aumente a eficácia e a produtividade dos serviços prestados e, por outro lado, promova a paz social e faça convergir as vontades no esforço nacional para potenciar recursos, fazer reformas e assumir novas atitudes necessários ao desenvolvimento. Pelo contrário, nota-se com apreensão alguma agitação social, greves inusitadas e sinais de contestação da autoridade do Estado. E não se pode simplesmente dizer que resultam de cabalas ou conspirações orquestradas pela oposição. Não lhes é alheio o funcionamento notoriamente deficiente do parlamento e de sectores da justiça e o relacionamento entre os órgãos de soberania marcado por posturas às vezes pouco curiais dos seus titulares que pela sua novidade no que respeita à prática constitucional deixam um rasto de perplexidade.
Estes dois anos do novo ciclo de governo têm coincidido com fenómenos preocupantes a nível global, não só porque convergem na sua vertente antidemocrática, como também ameaçam a globalização e as oportunidades que proporciona especialmente aos países mais pequenos e insulares. Tomam a forma do populismo, do iliberalismo, da ditadura da maioria e revelam-se em tendências autocráticas. Tem-se manifestado de várias formas em todas as democracias recentes ou maduras e Cabo Verde não é excepção. Assim como outros países, o país não está imune aos efeitos de críticas destrutivas às instituições democráticas, ao aumento da desigualdade social, aos efeitos das migrações e à forte tentação dos actores políticos para se engajarem em políticas identitárias. Os sinais vêem-se na dinâmica no interior dos partidos designadamente na submissão ao líder e na forte e agravada crispação que tem sido a relação entre os partidos políticos.
Consegue-se dar a maior machadada na democracia e favorecer todos esses populismos fazendo as pessoas acreditar que os partidos são todos iguais e que alternância não significa uma lufada de ar fresco mas sim mais do mesmo. Pior ainda, se no processo de diabolização mútua se se conseguir que a democracia fique sem partidos políticos credíveis e sem alternativa. Como se pode ver da experiência de outros países é esse o momento que se abre o caminho para a ascensão do “homem forte” e da ditadura. Não é o destino que se quer e por isso é que no aniversário da alternância é de maior importância defender os princípios e valores que a tornam sempre possível e pressionar para que os partidos políticos, essenciais como são para a criação da vontade popular, funcionem dentro dos princípios da ética e no respeito pelo primado da lei por forma a se se manterem sempre credíveis junto do eleitorado.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 851 de 21 de Março de 2018.

segunda-feira, março 19, 2018

Excessos contraproducentes

Desde primórdios da democracia que a crispação política sempre caracterizou a cena política cabo-verdiana. É uma crispação às vezes mais feroz e outras vezes com mais ou menos picardias pelo meio aumentando e diminuindo de intensidade um pouco ao sabor dos ciclos eleitorais. De tempos em tempo sobe anormalmente de tom devido a algum facto político mais fracturante para, logo de seguida, descer para os níveis de guerrilha habitual entre as forças políticas.
O estado de crispação que se vive de há quase dois meses para cá destoa em vários aspectos do já conhecido. Além de durar mais e de ser de intensidade anormal aponta directamente para alvos a abater. Perante o insólito da situação fica-se com a impressão de que o tom mais agressivo no embate político poderá dever-se à quebra de algum acordo tácito entre os partidos quanto aos limites a não ultrapassar na luta política.
O ponto de partida nesta última reedição da crispação política terá sido a autorização para um deputado do PAICV ser ouvido como testemunha e a promessa da maioria parlamentar em rever os termos de levantamento de imunidade a deputados para responderem a processos judiciais. Independentemente das razões, o facto é que a partir da sessão do parlamento de Janeiro último tudo passou a ser pretexto para demonstrar que a outra parte na luta política está imersa profundamente na corrupção. Foram trazidos à baila as inspecções feitas a câmaras municipais e a outras instituições, consensos à volta da alteração de taxas aduaneiras foram rompidos e a TACV, em sede da comissão de inquérito parlamentar, foi alvo de escrutínio mais apertado à procura dos milhões supostamente omissos provenientes da vendas de aeronaves. Ao mesmo tempo procurou-se focalizar a atenção sobre a relação de Olavo Correia com a Tecnicil e possíveis conflitos de interesse que poderão surgir da relação entre o actual titular do cargo de ministro das Finanças e a empresa que no passado administrou e é accionista quando se sabe que uma das vertentes da política económica do governo é promover o sector privado nacional e que não é fácil a todo momento estabelecer uma fronteira acima de qualquer suspeita entre favoritismo e promoção empresarial legítima.
Para um país a braços com as condições difíceis que tem que enfrentar - a começar pela dívida pública acima dos 125% do PIB e com problemas sérios em vários sectores – não ter diálogo construtivo entre, por um lado, o Estado, os parceiros sociais e a sociedade e, por outro, entre as duas principais forças políticas, pode significar deixar-se adiar para um ponto de difícil retorno. A balbúrdia política que se tem ouvido nestas semanas não serve a ninguém. Pelo contrário, cria um ambiente em que todos vão se sentir tentados a tirar o máximo que for possível de onde puderem ou estiverem. E está a acontecer. Não há uma predisposição das pessoas para com o seu esforço “somar” e “multiplicar”, mas existe para subtrair e dividir.
Nunca se falou tanto em greves e manifestações. As forças políticas tratam-se como inimigos. Os sindicatos nas suas reivindicações fazem por ignorar a situação real das empresas. Os operadores económicos continuam expectantes quanto aos resultados das políticas do governo para facilitar o financiamento, diminuir os custos de contexto, baixar os preços de energia e água e resolver os problemas de transportes inter-ilhas. Por outro lado, nota-se que a actuação na esfera pública é cada vez mais marcada por um excesso de protagonismo que não deixa margem para grandes entendimentos, nem para se insistir no cumprimento das regras e dos procedimentos e nem para compreender que raramente há soluções simples para situações complexas. No parlamento esse excesso de protagonismo é mais visível mas também se nota com preocupação nos outros órgãos de soberania e nas câmaras municipais. Perde-se com isso globalmente em autoridade do Estado e espírito de disciplina na sociedade ao mesmo tempo que aumenta a submissão a caprichos arbitrários de quem no momento detém o poder.
A controvérsia à volta da alteração das taxas aduaneiras é paradigmático do desnorte e do impasse político e social que o ambiente de crispação exacerbada provoca. Ao invés de um debate sobre os efeitos dessas medidas de política na economia e o seu impacto nos consumidores dedica-se praticamente o tempo todo a discutir quem é responsável pela lei, se é do governo, da oposição, da câmara de comércio ou do parlamento. Ficando por aí ninguém é, de facto, responsabilizado, ilações não são tiradas das políticas adoptadas, não são conhecidas as alternativas de política possíveis e não se desenvolve um processo firmado no contraditório para se fazer eventuais correcções.
A democracia, porém, não funciona assim. Nas democracias sabe-se sempre a quem assacar as responsabilidades e no regime com forte feição parlamentar que se tem em Cabo Verde é evidente que quem responde pela condução da política interna e externa do país é o governo, suportado pela sua maioria parlamentar. Para o bem do país, da democracia, e do pluralismo, essa responsabilidade deve ser assumida frontalmente e não ser diluída ou partilhada com os outros poderes ou com a sociedade. Desempenhando cada um o seu papel em pleno menos razões haverá para crispação e mais profícua dinâmica política irá ajudar o país a encontrar os melhores caminhos do desenvolvimento.
Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 850 de 14 de Março de 2018.

segunda-feira, março 12, 2018

“Virar-se para dentro” não é solução

As alterações nas taxas aduaneiras de produtos como água engarrafada, sumos, leite e lacticínios aprovadas na lei do Orçamento do Estado para o ano 2018 têm sido desde de 1º de Janeiro matéria de intensa discussão no parlamento, na comunicação social e na sociedade. Por um lado, discute-se a sua pertinência e eficácia no quadro das políticas de apoio às indústrias nacionais.
 Por outro, questiona-se se o timing escolhido para a sua apresentação e aprovação foi intencional para privilegiar interesses perfeitamente iden-tificáveis e se é legítimo fazer isso mesmo na ausência de potenciais conflitos de interesses. O assunto é particularmente delicado porque, à partida, sabe-se que os consumidores vão perder com os preços elevados dos produtos habituais e não há certezas que serão compensados pelos novos produtos tanto no custo como na qualidade.
Apoio tarifário de governos à indústria nacional sempre foi rodeado de controvérsia em todos os países. Tende a privilegiar uns e a prejudicar outros e a afectar negativamente o comércio internacional. Com as quebras no volume de trocas todos os países acabam por arcar com as consequências, seja na diminuição da capacidade de criação de riqueza, no número de empregos e nos preços pagos pelos consumidores. Um exemplo recente é o anúncio feito pelo presidente Trump de aumentar as tarifas para o aço e o alumínio importados e que foi logo seguido de uma avalanche de reacções. A medida, pelas suas eventuais consequências, designadamente no valor do dólar, na taxa de juro e no custo de produtos estrangeiros incorporados impacto nas exportações, não reúne consenso e é altamente contestada em certos círculos. Não espanta que iniciativas do género sejam vistas com desconfiança e se procure activamente investigar se resultam de lobbies, se são actos de favorecimento de grupos económicos ou de indivíduos ou se são produto de políticas bem-intencionadas dos governos. A percepção que se tem é que os efeitos são globalmente negativos, mesmo quando a curto prazo apresentem sinais positivos em matéria de emprego, de diminuição do défice da balança comercial e de aumento das receitas alfandegárias.
Décadas atrás a protecção das indústrias nacionais pela via de barreiras tarifárias em países como o Brasil, Argentina e vários outros da América Latina foi uma peça fundamental do chamado modelo de desenvolvimento com base na substituição de importações. Em retrospectiva constata-se que perderam anos de desenvolvimento a procurar industrializarem-se seguindo esse modelo. Já os países do Sudeste asiático, os chamados Tigres da Ásia, as Maurícias e posteriormente a China, com uma opção oposta, rapidamente atingiram patamares de desenvolvimento elevados ao mesmo tempo que desenvolviam um sector privado nacional forte, orientando a sua economia para exportação. Assim, enquanto uns se fechavam no mercado interno, sacrificando a criação de emprego, o poder de compra dos consumidores e a produtividade do país, outros esforçaram-se por atrair investimento externo, por incentivar as empresas a se tornarem competitivas e por dar boa qualificação à mão-de-obra nacional com o objectivo de conquistar mercados externos e de assegurar níveis elevados de emprego e aumento sustentado de rendimento das pessoas. Até recentemente pensava-se que as medidas proteccionistas preconizadas por esse modelo estariam completamente desacreditadas mas algo mudou após a crise financeira de 2008. Com a globalização a ser posta novamente em causa e com a progressiva ansiedade nos países desenvolvidos quanto à capacidade futura de criar empregos, assiste-se hoje a tentativas de recuperação de políticas proteccionistas que conjuntamente com as dirigidas contra a imigração supostamente estancariam a hemorragia de empregos em direcção aos países emergentes.
Em Cabo Verde foi seguida durante vários anos a via de desenvolvimento com base na substituição de importações. Era parte do pacote económico do regime de partido único. Teve consequências desastrosas. Muito do comércio informal que ainda existe nas confecções e calçado deve-se à protecção em forma de tarifas que se criaram na época para proteger as fábricas Morabeza e Socal. Também é evidente que da experiência não resultou qualquer sector privado com capacidade e motivação para se lançar na conquista de mercados externos nem dinâmica económica para ultrapassar a estagnação económica dos últimos anos do regime. Em meados de 1988 já era evidente para o governo do PAICV que o modelo tinha falhado completamente e que se impunha fazer uma “extroversão da economia cabo-verdiana”e ligar o desenvolvimento industrial à possibilidade de exportar. Em 1990, quando o MpD emergiu como força política foi peremptório em afirmar a sua ruptura completa com a tradicional política de industrialização pela via de substituição de importações.
Face à experiência vivida, estranha que mais de 25 anos depois reapareça uma espécie de unanimismo das forças políticas em matéria de protecção da indústria nacional pela via de tarifas e que se volte a pôr na ordem do dia as velhas políticas de substituição de importações. A votação quase unânime do artigo 27º da lei do Orçamento de Estado para 2018 que alterou a pauta aduaneira nos sumos, lacticínios e água engarrafada, não obstante as objecções essencialmente éticas que surgiram posteriormente, poderá estar a indiciar a presença de um sentimento de “virar-se para dentro” que estaria a manifestar-se tanto no seio da classe política como na sociedade cabo-verdiana. Um sentimento marcado por elemento identitário que, a exemplo do que se passa em outras paragens estaria a afectar a actuação política e outras interacções na esfera pública, e nem sempre de forma positiva. A política crispada, o foco na capacidade redistributiva do Estado e certa forma de ver a regionalização a par com sentimentos de hostilidade em relação ao turismo e à aproximação económica com a Europa seriam algumas das suas manifestações.
A verdade, porém, é que Cabo Verde não pode dar-se ao luxo de se virar mais uma vez para dentro. Como bem se sabe da experiência anterior, tal opção não beneficia a indústria nacional, não põe de pé um sector privado dinâmico e não assegura o desenvolvimento que todos almejam.
                                                                                                                              

Face à experiência vivida, estranha que mais de 25 anos depois reapareça uma espécie de unanimismo das forças políticas em matéria de protecção da indústria nacional pela via de tarifas e que se volte a pôr na ordem do dia as velhas políticas de substituição de importações. A votação quase unânime do artigo 27º da lei do Orçamento de Estado para 2018 que alterou a pauta aduaneira nos sumos, lacticínios e água engarrafada, não obstante as objecções essencialmente éticas que surgiram posteriormente, poderá estar a indiciar a presença de um sentimento de “virar-se para dentro” que estaria a manifestar-se tanto no seio da classe política como na sociedade cabo-verdiana. Um sentimento marcado por elemento identitário que, a exemplo do que se passa em outras paragens estaria a afectar a actuação política e outras interacções na esfera pública, e nem sempre de forma positiva. A política crispada, o foco na capacidade redistributiva do Estado e certa forma de ver a regionalização a par com sentimentos de hostilidade em relação ao turismo e à aproximação económica com a Europa seriam algumas das suas manifestações.
A verdade, porém, é que Cabo Verde não pode dar-se ao luxo de se virar mais uma vez para dentro. Como bem se sabe da experiência anterior, tal opção não beneficia a indústria nacional, não põe de pé um sector privado dinâmico e não assegura o desenvolvimento que todos almejam.
                                                                                                                                 Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 849 de 07 de Março de 2018.

segunda-feira, março 05, 2018

Regionalização: um non starter?

O governo, na semana passada, apresentou com pompa e circunstância a proposta de lei da regionalização. No encontro presidido pelo primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva e que reuniu ministros, deputados, presidentes das câmaras municipais e personalidades vindas expressamente de todas as ilhas foram expostas as razões que justificam a regionalização do país. Também discutiu-se o modelo proposto de ilha/região a aplicar a todo o país com excepção da ilha de Santiago, que tem duas regiões, e foram levantadas questões sobre competências a serem distribuídas pelo poder local, pelo poder regional e sobre a forma de como deverão interagir com o poder central e com as estruturas desconcentradas do Estado na ilha.
Para o PM, avançar com a regionalização significa “aumentar a eficiência administrativa e política relativamente aos resultados” e, por essa via, combater as  assimetrias e “reduzir as falhas de desenvolvimento”. Já a percepção de presentes que participaram no debate é que ainda há várias questões a clarificar no modelo apresentado e obstáculos legais e constitucionais a ultrapassar. Por outro lado, advinham-se dificuldades na criação de vontade política necessária para passar o pacote legislativo. A lei exige dois terços dos deputados e não é uma maioria fácil de conseguir no actual ambiente político crispado entre os dois principais partidos.
No fim da reunião ficou a promessa feita pelo PM de levar a proposta de lei ao parlamento no próximo mês de Março. Mostrou-se aberto a contribuições e alterações para melhor afinar o modelo mas é provável que a lei da regionalização venha a revelar-se um “non starter” ou seja, uma proposta que não consegue arrancar e andar com os seus pés, pelo menos a curto prazo. Alterações na Constituição terão que ser primeiramente feitas e o processo não é fácil nem expedito.       
Para alguns a criação de autarquias de grau superior nas ilhas com um só município parece um contra-senso, porque, ou é um simples município com poderes acrescidos, ou é uma região no mesmo território de um município e praticamente com os mesmos recursos. Em qualquer dos casos não cumpre com o que normalmente se quer das autarquias supramunicipais que é o de agregar vários municípios numa região administrativa para se conseguir dimensão territorial e reunir capacidade económica e financeira e também técnica para fazer diferente do que só um município faria.  
Algo significativamente diferente seria adoptar o modelo das Canárias em que os cabildos não são somente órgãos de governo e de representação das ilhas, mas também instituições da própria Comunidade Autonómica aptas a assumir em cada ilha a representação do governo e da administração autonómica. Aí faria sentido que os órgãos regionais superintendessem sobre estruturas desconcentradas do Estado nas ilhas como está-se a prever na lei da regionalização. De qualquer modo, mudanças importantes teriam provavelmente que ser introduzidas na Constituição para que o figurino ficasse mais em linha com o que se passa nas Canárias. E não é líquido que isso fosse possível.
Uma outra alteração prevista na lei da regionalização que também deverá exigir revisão constitucional, ou pelo menos clarificação constitucional, diz respeito ao modo de constituição dos órgãos regionais. Substitui-se o sistema actual previsto para os municípios de eleição directa dos membros da câmara e da assembleia pela eleição de um único órgão deliberativo ficando como presidente da comissão executiva da região o primeiro da Lista mais votada, mas sujeito à destituição por força de moção de censura apresentada pelos eleitos locais ou por não aprovação de moção de confiança. A instabilidade do governo local que poderá advir deste modelo convida a que se reflicta sobre a solução proposta.
Aliás, o governo na legislatura anterior chegou a levar ao parlamento alterações no mesmo sentido nos estatutos dos municípios, mas a proposta não passou. O espectro da instabilidade nas autarquias com a possibilidade de quedas sucessivas das câmaras municipais dissuadiu muitos de apoiar mudança tão radical no sistema actual de eleição autárquica que se manteve sem crise nos últimos 25 anos, à excepção da que aconteceu em S. Vicente em 1994/95 onde se realizou a única eleição intercalar já verificada nos municípios do país.
Um outro empecilho a um eventual compromisso para viabilizar a lei da regionalização são as normas que retomaram as incompatibilidades entre certos cargos políticos na comissão executiva regional e cargos partidários. Incompatibilidades similares já tinham sido apresentadas ao parlamento em 2017 por iniciativa do governo e não tinham merecido dos deputados apoio suficiente para aprovação. Não parece ser muito curial voltar à carga com os mesmos propósitos e depois esperar que haja boa vontade na formação de maiorias qualificadas para passar leis importantes.
Nesta corrida para descentralizar o poder de decisão e fazer uma repartição mais justa e equitativa dos recurso poder-se-á estar a seguir por um caminho prenhe em trazer problemas novos, complexos e imprevisíveis. Os múltiplos problemas do desenvolvimento de Cabo Verde têm, em parte, origem no modelo que durantes décadas reciclou a ajuda externa e por essa via alimentou o centralismo, cultivou a dependência e alimentou o espírito burocrático e as resistências à iniciativa individual e ao investimento nacional e estrangeiro. Resquícios desse condicionamento ainda se manifestam na aversão mais ou menos disfarçada pelo turismo, no olhar muito voltado para dentro, quase paroquial que faz apologia de políticas de substituição de importações e abre espaço para a rivalidade entre as ilhas e que também não prepara o país adequadamente para enfrentaros desafios do nosso tempo. A verdade é que sem incorrer nos riscos e imprevistos de uma regionalização apressada muitos dos agravos vivenciados pelas ilhas que se sentem marginalizadas poderiam já ter sido acolhidos e eventualmente resolvidos via instituições previstas na Constituição desde 1992.
Por alguma razão finge-se que não existe, por exemplo, o Conselho Regional, um órgão onde as ilhas estão igualmente representadas por dois membros eleitos e que tem competências várias precisamente para evitar assimetrias regionais, promover um desenvolvimento mais harmonioso e assegurar uma melhor alocação de fundos por forma a que o crescimento do país beneficie a todos. Para alguns convém que seja assim porque rivalidades entre as ilhas constituem um bom ingrediente para uma certa forma de fazer política. O problema é que “no fim do dia” ninguém ganha com isso: nem o país no seu todo, nem as ilhas vitimizadas, nem eles próprios porque como políticos não conseguem erguer-se acima do mundo mesquinho que constroem à sua volta.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 848 de 28 de Fevereiro de 2018.

segunda-feira, fevereiro 26, 2018

Sem margem de erro

Sucedem-se as novidades sobre as perspectivas de financiamento da economia cabo-verdiana. Na semana do carnaval foi a assinatura do memorando com o Afreximbank a disponibilizar 500 milhões de dólares e a concretização de um acordo do mesmo banco em financiar a construção de um hotel em S. Vicente e possível envolvimento num outro empreendimento turístico na mesma ilha.
Do Banco Mundial veio a notícia do projecto de 15 milhões de dólares dirigido para as médias, pequenas e micro empresas envolvendo a criação de um fundo de garantia e outros mecanismos para ajudá-las a ultrapassar as dificuldades no acesso ao crédito junto das instituições financeiras. O primeiro-ministro em visita oficial à Hungria anunciou uma outra linha de crédito de 30 milhões de dólares que podia ser disponibilizada para empresas ligadas à agricultura. Estas e outras notícias do mesmo teor indiciam um ambiente renovado de oportunidades a que certamente não estará ausente a postura do governo abertamente favorável ao maior protagonismo do sector privado e mais disposto a alterações significativas no tecido económico do país como deixa entrever a pretensão oficial de privatizar mais de uma dezena de empresas públicas.
Cabo Verde cresceu 3,8% do PIB, em 2016, a partir de uma retoma que teria iniciado no último trimestre de 2015 e tudo aponta que o crescimento de 2017 ficará acima dos 4% do PIB. O FMI, no World Outlook, publicado em Outubro último, punha o crescimento de 2017 em 4% e prevê 4,3% para 2018. Para esses resultados terá contribuído fundamentalmente o sector externo da economia e, em particular, o turismo. Com a conjuntura internacional caracterizada por um renovado dinamismo em todas as grandes economias, em especial nos Estados Unidos, na União Europeia, na China e no Japão e também nos países emergentes como o Brasil e a Índia, as condições tendem a manter-se favoráveis a um incremento ainda maior do turismo e de fluxos externos em forma de investimentos estrangeiro e de remessas de emigrantes. O desafio maior será encontrar formas criativas e inovadoras de fazer articular a dinâmica induzida do exterior com capacidade nacional de produção de bens e serviços.
Conseguir financiamento para as empresas e para dar asas ao espírito empreendedor nacional tem sido apresentado como o principal constrangimento a ultrapassar. É essencial, mas não é suficiente. Primeiro, não deve ser confundido com a disponibilização de linhas de crédito. Vários momentos no passado recente mostram como é relativamente fácil para os governos conseguir dos bancos a promessa de criação de linhas de crédito. Mais difícil é ir da promessa à realidade do acesso ao crédito quando se tem em conta os requisitos exigidos. O projecto do Banco Mundial referido atrás visa contornar esses obstáculos, em particular, no que respeita à apresentação de garantias. Mas há outros impedimentos talvez mais importantes e que têm a ver com o ambiente de negócios. Ou seja, a dimensão do mercado, a rigidez laboral, os custos de factores como energia e água, os transportes inter-ilhas e a burocracia da administração pública.
As vulnerabilidades do país tornadas mais evidentes com a seca de 2017 mas que já se vinham revelando nos anos de crescimento raso e de aumento desabrido da dívida pública obrigam a que com urgência se trace um caminho que conduza a uma dinâmica económica muito superior ao que se tem agora. O governo prometeu 7% por cento e é o mínimo que o país precisa. Para isso, porém, mudanças muito profundas já teriam de estar a acontecer. A fundamental deveria ser na atitude. Em vez de as pessoas agirem da forma já esperada em ambiente de escassez de recursos, em que a tentação é cada um lutar pelo seu quinhão, num jogo de soma zero, tomando os outros como rivais ou mesmo inimigos, devia-se promover o espírito de cooperação e mostrar as vantagens de ordem e previsibilidade nas esferas económica, social e política. Teria que haver confiança na possibilidade de todos ganharem com a formalização da economia, com a criação de um ambiente salutar de concorrência e com a paz social que adviria da aceitação que níveis salariais devem acompanhar a produtividade da economia.
Infelizmente, não é o que acontece. Pelo contrário, greves ameaçam proliferar particularmente no sector público, tentativas de introduzir ordem e formalidade na economia e na sociedade são contrariadas pelo populismo e interesses corporativos em pontos-chave do país impedem eficiência e eficácia na prestação de serviços. No topo disto confundem-se as prioridades do país e esquece-se, na apresentação das propostas de regionalização, que a realidade da cultura centralista e administrativa burocrática existe tanto ao nível central como ao nível local. Não se pondera devidamente que pior do que ter um país voltado para o seu umbigo seria ter dez entidades a disputar recursos com a postura de quem pratica um jogo de soma zero.
Há uma conjuntura externa favorável que pode ajudar a potenciar os diferentes fluxos tanto de pessoas como de capitais, em forma de investimento directo e de financiamento da economia, que se dirigem para Cabo Verde. É uma janela que não permanecerá aberta sempre. Há pois que definir, articular e implementar políticas que permitam fazer o melhor uso das boas condições externas para organizar a economia nacional noutros moldes que reforcem a concorrência, contribuam para a competitividade externa do país e aumentem a produtividade. E isso deve ser feito com carácter de urgência e com um rigor pragmático de quem já devia saber que o país já perdeu muito tempo e que o caminho do desenvolvimento é estreito e que com os parcos recursos disponíveis não há muita margem de erros.



Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 847 de 21 de Fevereiro de 2018.

terça-feira, fevereiro 20, 2018

Segurança e confiança precisam-se

O desaparecimento de duas crianças nos primeiros dias de Fevereiro provocou uma comoção nacional com reacções preocupantes da sociedade e de entidades públicas que não deixaram ninguém tranquilo.
As autoridades mostraram-se sem qualquer pista do que terá acontecido com as crianças desaparecidas e não revelaram se para os três casos mais recentes de alegados sequestros fizeram qualquer avanço nas investigações. Perante as incertezas e a ausência de direcção clara da situação o pânico ameaçou generalizar-se abrindo caminho para teorias de conspiração e até para ataques de xenofobias. No ambiente de desconfiança criado de tudo se tem falado sobre as razões para o sequestro de pessoas designadamente tráfico de pessoas, tráfico de órgãos e cultos satânicos. O ataque a cidadãos chineses num bairro da capital ilustrou bem os extremos a que as pessoas podem chegar quando na falta de acção convincente saem à procura de bodes expiatórios e rapidamente os “descobrem” nos estrangeiros residentes no país. Dominados pela sensação de impotência alternam-se entre a ânsia de encontrar rapidamente um culpado e o desespero expresso nos pedidos de ajuda internacional sem primeiro se ter presente que tipo de colaboração é necessária nos casos em mãos.
O desaparecimento sem rastro de crianças parece mais um dos episódios trágicos que de tempos em tempos acontecem em Cabo Verde e que deixa o país e a sociedade em estado de choque sem capacidade de resposta e, pior ainda, sem a compreensão do que realmente se passou. Nos últimos tempos houve a tragédia com perdas de vida no naufrágio do navio Vicente, a evacuação de Chã das Caldeiras na sequência da erupção do Vulcão do Fogo e o massacre de militares e civis no Monte Tchota. Em todos eles foram evidentes falhas de organização e de liderança, falta de meios e a quase ausência de articulação e comunicação entre os serviços, as forças e os meios logísticos para se garantir um efectivo comando e controlo das situações criadas. Também viu-se que passado o choque inicial e as proclamações oficiais a prometer mudanças, a tendência é tudo ficar igual ao que estava e os problemas serem praticamente “varridos para debaixo do tapete”. Quando ressurgem é normalmente no âmbito das lutas políticas e eleitorais em que servem de arma de arremesso para, na prática, depois de ultrapassado o embate, serem relegados para o segundo ou terceiro plano.
Não espanta, pois, que mudando os tempos não se notam transformações significativas em certos sectores-chave como os de segurança. Pelo contrário, mantém-se a forte impressão que se continua com o mesmo sistema de forças, a mesma falta de coordenação, as mesmas deficiências em responder a situações de busca e salvamento e outras emergências próprias de um país arquipelágico. Por outro lado, a falta de alteração significativa na eficácia do sistema de segurança não obstante os muitos e valiosos meios que são injectados contrasta com o “vigor” reivindicativo que seus elementos recentemente demostraram na greve inédita da polícia. Tudo isso conjuga para passar à sociedade que não se estão a verificar os avanços esperados de liderança, de sofisticação dos métodos e de colaboração entre as forças, factos que não contribuem para a diminuição efectiva do sentimento de insegurança. Surgindo um problema como o de sequestro das crianças, não estranha que o pânico rapidamente se espalhe.
Sequestros indiciam um outro nível de criminalidade a despontar no país, especialmente em Santiago, Sal e Boa Vista e em casos que não poucas vezes ficam largos anos por resolver ou nunca chegam ao fim. Não havendo uma resposta firme que reponha a confiança nas instituições e na liderança, as pessoas acabam por se sentir impotentes e desemparadas perante crimes que as limitam nos seus movimentos, que as obriga a fortificar as suas casas e as constrange nas suas relações sociais. E nesse estado podem ficar propensas a actos de justiça privada, a sentimentos de xenofobia e a paranóias colectivas dirigidas contra indivíduos e grupos.
Já se vêem sinais do que pode vir mais à frente. Por isso é que urge que as autoridades ajam de forma a recuperar a confiança nas instituições e a restaurar o sentimento de comunidade para que o pior não aconteça. Nesse sentido também é fundamental que haja uma liderança forte, sustentada por uma visão e objectivos honestos, coerentes e realistas, que encaminhe a todos na consecução de um destino comum que todos querem seja próspero mas com liberdade e justiça.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 846 de 13 de Fevereiro de 2018.

Este país não tem emenda

Pelas notícias em circulação percebe-se que nas últimas semanas a atenção voltou a centrar-se na problemática da seca, na necessidade de salvamento do gado e de garantir rendimento de subsistência à população rural atingida pela calamidade. Em causa fundamentalmente está como fazer chegar às pessoas a ajuda internacional de cerca de 10 milhões de euros que foi mobilizada nos poucos meses que se seguiram à declaração da seca. E já é claro que a perspectiva de distribuição de recursos de tal monta provenientes da ajuda externa produziu um frenesim notório nas múltiplas intervenções públicas de actores políticos, de organizações sociais e de membros das diferentes comunidades.
Todos parecem posicionar-se nessa corrida aos recursos para tirar o maior proveito da situação e ter ganhos que podem ser políticos, de influência e ganhos materiais como intermediário ou recipiente. Mas como já se conhece de situações anteriores, nesses exercícios de distribuição da ajuda externa o mais normal é que quem menos beneficia sejam justamente os elementos da população alvo da solidariedade externa. A vulnerabilidade das populações rurais que persiste até hoje é prova disso assim como também é a notória prosperidade de uma elite à volta do Estado que durante décadas privilegiou o modelo de desenvolvimento baseado na reciclagem da ajuda externa. Calculam-se entre 30 a 45% os custos administrativos dos projectos destinados às populações vulneráveis e que em boa parte ficam nas estruturas centrais e suportam os estudos, as viagens e os custos com os quadros necessários à implementação dos mesmos projectos. Reconhece-se aí perfeitamente a figura do Estado no topo da cadeia alimentar.
De um certo ponto de vista até se pode arriscar a ideia de que “infortúnios” são bem-vindos. Justificam e facilitam enormemente a mobilização de fluxos de ajuda externa do qual ainda muito da economia nacional depende. É só ver como se acirram os apetites de uns e se levantam as expectativas de outros. Além de não encarados e resolvidos, os problemas de fundo e as vulnerabilidades vão-se mantendo ao longo dos anos para, em situações como, por exemplo, de uma de seca, se revelarem completamente para aparente espanto e alarme de toda a gente, a começar pelas autoridades. Infelizmente, a forma como se lida com a situação, com todos a quererem tirar vantagem imediata, faz crer que dificilmente soluções com vista a pôr fim às vulnerabilidades serão consideradas e implementadas. Com visões estáticas de desenvolvimento incluindo as de fixar a população no sítio onde estão, perpetua-se a vulnerabilidade das pessoas porque realmente não há economia que aí as sustente e permita que se tornem mais produtivas e contribuam para criação da riqueza nacional. No dia-a-dia vão-se beneficiando da ajuda estatal e da solidariedade familiar, em particular das remessas dos emigrantes, até que qualquer desvio climático ou desastre natural venha expor a fragilidade da sua existência no limite da subsistência.
As dificuldades evidentes do país em definitivamente “mudar de paradigma” e, para além de todo o discurso oficial, acreditar, de facto, que pode desenvolver-se e deixar de depender da ajuda externa, não se mostram fáceis de ultrapassar. Historicamente pode-se facilmente demonstrar que os momentos de prosperidade que as ilhas tiveram ao longo dos tempos sempre aconteceram com o impulso de uma ligação com o exterior. Começou com apoio à expansão europeia no Atlântico e o comércio na costa africana nos tempos áureos da Cidade Velha, passou por outros momentos entre os quais os anos de movimento de barcos na Baía do Porto Grande de S. Vicente e nos dias de hoje é cada vez mais o turismo. Várias centenas de milhares de turistas europeus visitam as ilhas e pela sua presença e gastos feitos imprimem dinâmica à economia nacional. Paradoxalmente, há uma corrente forte com audiência particularmente nas elites do país que, para além da hostilidade mais ou menos velada em relação ao investimento externo, não deixa passar a oportunidade para se mostrar hostil a incentivos à presença de estrangeiros de origem europeia que são precisamente os que com os seus gastos ajudam a mover os negócios em Cabo Verde.
O último pretexto foi há dias o chamado Green Card, uma iniciativa do governo que incentiva a instalação de estrangeiros com isenção de impostos na compra de propriedade. Na pressa de acusar o governo de favoritismo em relação às empresas imobiliárias, perde-se de vista os múltiplos ganhos que o país pode ter a partir do momento em que, por exemplo, pensionistas recebem a sua pensão, fazem compras localmente, contratam pessoas para lhes prestar serviços e eventualmente investem nalguma área de negócio. Muitos países que não têm as vantagens do clima e outros requisitos culturais encontrados em Cabo Verde de há muito compreenderam a importância de ser bem-sucedida nestas e noutras iniciativas que facilitam a instalação de um número significativo de pensionistas e outras pessoas no seu território. A acrescentar às vantagens referidas, a iniciativa permite, por outro lado, ancorar o turismo em bases mais diversificadas diminuindo a dependência do actual modelo sol e praia, que assim como ganhou impulso numa conjuntura que foi desfavorável aos países do Norte de África, poderá perdê-lo numa outra circunstância se não se mostrar competitiva.
Faz alguma confusão ver que mesmo perante o falhanço de décadas de políticas que deixaram vulneráveis milhares de pessoas no mundo rural a tentação neste ano excepcional de seca é continuar a fazer praticamente o mesmo. Continua-se a rejubilar com a capacidade de mobilizar ajuda externa, a hostilizar as ligações externas que podem impulsionar a economia e a alimentar a ilusão de capacidade endógena do desenvolvimento. É caso para dizer que este país não tem emenda.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 845 de 07 de Fevereiro de 2018.

segunda-feira, fevereiro 05, 2018

Assim não vamos lá

Na última sessão plenária da Assembleia Nacional o país pôde observar mais uma vez as consequências da extrema polarização na política nacional. Na berlinda estava o pedido do Ministério Público para o Parlamento autorizar que um deputado fosse ouvido como testemunha numa investigação criminal.
 A comissão permanente da AN já se tinha pronunciado a favor do levantamento da imunidade, mas o PAICV recorreu da decisão para a Plenária da AN. O choque partidário que se seguiu diminuiu o Parlamento, desinformou sobre a natureza real do instituto da imunidade e passou a ideia que via Parlamento se foge à justiça.
Ouvindo o debate, podia-se ter ficado com a ideia que as imunidades parlamentares são uma invenção cabo-verdiana, mais uma “caboverdura”. Não se teve o cuidado de explicar de como desde dos primórdios da democracia, e em respeito pelo princípio de separação de poderes, se garantiu que o Parlamento sendo o órgão plural que faz as leis e fiscaliza o governo não pode ficar sujeito a acções discricionárias de outros poderes, em particular do governo que controla a polícia. Com a imunidade parlamentar consegue-se, por um lado, defender os deputados de qualquer perseguição ou intimidação das autoridades e, por outro, conservar a configuração saída das eleições impedindo que os deputados sejam presos sem o consentimento da A.N. Por isso, nas suas duas vertentes, a irresponsabilidade (artigo 170 nº 1), ou seja, a impossibilidade de acção judicial contra os deputados por causa das suas opiniões e votos expressos no exercício das suas funções, e a inviolabilidade(artigo 170 nº 2 e 3), que condiciona a prisão ou o procedimento judicial do deputado a uma autorização prévia do Parlamento, excepto nos casos previstos na Lei Magna, a imunidade parlamentar está consagrado com pequenas nuances de diferença em todas as constituições democráticas. Ignorar este aspecto central e passar a imagem que a imunidade é algo que o deputado pode dispor ao seu bel-prazer, seja para o levantar porque “quem não deve, não teme”, seja para nele se refugiar numa tentativa de fuga à justiça, não é responsável. Como dizem os constitucionalistas “as imunidades dos deputados são instrumento objectivo de defesa do próprio Parlamento. Os deputados não podem renunciar a elas e o Parlamento não pode dispensá-las”.
Pelos posicionamentos ao longo da discussão percebe-se que o confronto não terminou com a votação que reconfirmou a decisão da Comissão Permanente. Prometem-se outros episódios no futuro próximo. Também de todos os lados se manifestaram vozes a propor mudanças na Constituição e na lei em matéria das imunidades no sentido de uma “colaboração pronta com a justiça” e de uma “igualdade de tratamento de todos os cidadãos”. A justificação é que durante o debate teria ficado no ar a ideia de que o actual regime de imunidades quase que se traduz numa forma de impunidade. Até se tinha deixado passar a ideia que o Parlamento ao não levantar a imunidade dos deputados abria o caminho para a prescrição dos casos em que alegadamente estariam envolvidos. Conclusão para alguns é que se tem que alterar o regime existente.
Nota-se nessa linha de discurso o populismo muito em voga no mundo de hoje em que imperfeições e ineficiências nas democracias e também alguns casos de abuso e corrupção são transformados em munições para mobilizar paixões na sociedade e desgastar as instituições democráticas. O alvo primeiro, como sempre, é o Parlamento e no caso das imunidades não foi excepção. É bom, porém, que se tenha em devida conta que não são só os deputados os contemplados pelas imunidades. Outros titulares dos órgãos do poder político também gozam de prerrogativas similares, designadamente o presidente da república que em caso algum pode ser preso preventivamente e que a crimes por ele cometidos fora do exercício das suas funções só responde perante o tribunal depois de terminar o mandato. Também os ministros só podem ser presos ou levados a julgamento com a autorização da Assembleia Nacional, o mesmo acontecendo com os juízes, mas com a autorização prévia do Conselho Superior da Magistratura.
As imunidades têm razão de ser e não estão isentas de críticas. Ao longo da história da democracia foram sujeitas a ataques diversos, mas, se no essencial persistem até hoje, é porque são indispensáveis para um funcionamento adequado do sistema democrático baseado no princípio de separação dos poderes. Só com um sistema funcional de checks and balance, de pesos e contrapesos, é que se pode evitar que surjam fenómenos perigosos na democracia como a deriva autocrática, a intolerância pela diferença, a tirania da maioria, o esmagamento das minorias e a limitação das liberdades. Abundam na história recente e passada exemplos que mostram o que acontece quando acaba o pluralismo e o poder concentra-se nas mãos de um chefe e os direitos fundamentais são espezinhados pelas autoridades.
Nesta fase em que se encontra a democracia cabo-verdiana é sempre bom ter em conta as duas recomendações que o cientista político da Universidade de Harvard, Steven Levitsky, faz para se manter um sistema democrático funcional. Primeiro, é fundamental que haja mútua tolerância e as partes vejam a actuação do outro como legítima. Uma segunda recomendação é que haja paciência e autocontrolo no exercício do poder e explica: em política, autocontrolo significa não fazer uso das prerrogativas institucionais até o limite, mesmo se for legal fazê-lo. Para isso é essencial que a polarização de posições que sempre acontece no jogo democrático não se desenvolva em posições extremadas a partir das quais as forças políticas se vejam quase como inimigas. O país necessita que haja sempre espaço para se encontrar os compromissos necessários para que a democracia e as instituições sejam salvaguardadas e a nação possa focar devidamente na realização dos seus objectivos de desenvolvimento. De outro modo lá não chegaremos.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 844 de 31 de Janeiro de 2018.

segunda-feira, janeiro 29, 2018

Fazer diferente

Numa entrevista recentemente publicada neste jornal, Dev Chamroo, ex-presidente da agência promotora das exportações das Ilhas Maurícias, fez três reparos com particular relevância para Cabo Verde neste preciso momento.1- Nas Maurícias, os políticos apesar dos vários grupos étnicos e linguísticos sempre se assumiram como mauricianos.
A unidade nacional é fundamental para ter políticas de desenvolvimento na perspectiva de criar oportunidades para todos. 2- A realidade arquipelágica deve ser subsumida na ideia do país como um todo. Explicitamente Dev Chamroo adverte que “se Cabo Verde acreditar que é 10 ilhas diferentes não vai a lado nenhum”. 3- Por último relembra que Cabo Verde vive um momento de definição, mas que as janelas são sempre muito “curtas”, e as oportunidades “não duram para sempre”. Infelizmente, corre-se o risco dessas chamadas de atenção caírem em saco roto.
Apesar de não existirem divisões de base étnica, linguística ou religiosa são persistentes as tentativas de forjar e manter abertas linhas fracturantes na sociedade cabo-verdiana. Fracturas que até agora se têm mostrado suficientemente profundas para dificultarem a criação de uma vontade nacional para o desenvolvimento, para impedirem a necessária mudança de atitude e para obstaculizarem o indispensável investimento focalizado na educação de qualidade, sem o qual dificilmente poderá haver ganhos de competitividade e de produtividade. Cabo Verde é, na diversidade das suas ilhas, culturalmente homogénea e um país com uma consciência nacional consolidada há mais de um século. Mas sendo, por um lado, um país tornado um estado independente na sequência de uma revolução liberal e da derrocada de um império colonial, sofre com as tensões criadas por um tipo de nacionalismo que ainda hoje, nas suas várias manifestações, se mostra divisivo e capaz de pôr em campos opostos e antagónicos gentes, narrativas e memórias. Nota-se isso facilmente nos feriados nacionais que, em vez de serem de concórdia, são de disputas sectárias. Por outro lado, sendo Cabo Verde uma jovem democracia, revela particular fragilidade perante as tensões provocadas por manifestações populistas que põem em causa as instituições democráticas, fragilizam os partidos e reforçam os reflexos autocráticos existentes que vêm de longe e são tributários dos anos de regimes autoritários e totalitários que vigoraram nas ilhas durante seis décadas. O espectáculo mensal das reuniões plenárias da Assembleia Nacional é elucidativo a este respeito. Mês após mês vê-se que não conseguem elevar o debate para um outro patamar e exercer o dissenso num outro nível. Mesmo quando demonstram conseguir acordo na aprovação de leis importantes, logo de seguida revelam-se incapazes de evoluir para um relacionamento menos beligerante.
“Nacionalismo e populismo sempre coexistiram com a democracia” diz o académico Ghia Pudia escrevendo no Journal of Democracy, de Abril de 2017. Na sua opinião a consciência nacional é fundamental para que haja uma comunidade de pessoas que querem um futuro político comum e instituições políticas comuns. Acrescenta ainda que o sentido de pertença permite as pessoas aceitar um governo eleito pelo povo mesmo que não gostem dele e a não se moverem para destruir as minorias quando o governo do seu agrado está no poder. Quanto ao populismo, afirma que em maior ou menor grau sempre está presente num sistema de governo eleito em que agradar as pessoas faz parte dos meios para angariar votos. Em vários momentos da história, a democracia foi desafiada por formas extremas, seja do nacionalismo, seja do populismo. Hoje é um desses momentos. Quando assim é, o nacionalismo deixa de ser o que alguns chamam de patriotismo cívico e torna-se destrutivo e assume características xenófobas e nativistas. Por sua vez, o populismo ganha contornos perversos e torna-se no veículo ideal para minar as instituições, limitar as liberdades, hostilizar minorias e propiciar a ascensão de líderes e regimes autocráticos.
Actualmente, nenhuma democracia, madura ou jovem, está imune a manifestações extremas do nacionalismo e do populismo. A globalização, a crise financeira, as migrações internacionais, os conflitos religiosos e as tensões geopolíticas criadoras de refugiados contribuem para a agudização desses fenómenos por todo o lado, especialmente na Europa e na América. Cabo Verde também é afectado, mas de forma peculiar. Aqui o nacionalismo, porque muito ligado à uma narrativa de luta libertação, está sempre em tensão com o patriotismo cívico ou patriotismo constitucional nas palavras de Habermas. Encontrando terreno propício, é factor de desunião e da diminuição da consciência nacional de que fala Ghia Pouda e que é essencial para se ter liberdade e pluralismo e se aceitar a alternância política sem cair na tentação de destruir a oposição e outras vozes dissidentes. Também o populismo pode ser um forte factor de desunião porque, estando a maior parte dos recursos disponíveis sob controlo do Estado, a tendência é distribui-los pelos apoiantes em detrimento dos outros. Em tal ambiente fica por alcançar o nível de confiança que possibilita o desenvolvimento do espírito cívico, que dá garantia de respeito pelo direito de propriedade e pelos direitos contratuais e motiva as pessoas para que com a sua iniciativa, criatividade e disposição para correr riscos, construir a sua prosperidade pessoal e familiar e no processo contribuir para a riqueza nacional.
Seria desejável que os conselhos de Dev Chamroo estivessem a ter mais eco do que aparentemente se percebe. Como ele próprio diz, o que fizeram nas Maurícias é essencialmente o que noutros casos de sucesso também se fez para evitar factores de desunião e para reforçar a consciência nacional. Manter o foco no país global, respeitando ao mesmo tempo as especificidades do território e a sua diversidade, é fundamental. Os recursos são sempre escassos e as oportunidades de aplicação sempre limitadas para se conseguir os melhores resultados e o maior retorno. Ir pelo caminho dos que já conseguiram o sucesso na árdua e exigente rota do desenvolvimento, significaria de facto “fazer diferente”. Ou seja, deixar para trás o círculo vicioso que perpetua a divisão e que põe a situação e a oposição a rodar em ciclos eleitorais sucessivos sem que se veja diferenças fundamentais nas relações institucionais e na comunicação e na relação com a sociedade. Há pois que mover para além das tricas do nacionalismo perverso e das tentações do populismo para que a vontade e a energia da nação se concentre em fazer o país dar o salto que urgentemente precisa para agarrar o momento e triunfar, com ganhos para todos.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 843 de 24 de Janeiro de 2017.

segunda-feira, janeiro 22, 2018

Ordem da Liberdade

Celebrou-se no passado sábado, o 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia e com uma sessão solene da Assembleia Nacional e uma intervenção do Presidente da República. Dezoito anos após a criação do feriado nacional e na segunda comemoração assumida por todos os órgãos de soberania ainda a data mantém-se controversa.
 Continua a ser vista em quase oposição ao dia da independência, o 5 de Julho, e ao dia 20 de Janeiro que relembra a morte de Amilcar Cabral. Não devia ser assim porque o que é celebrado é a democracia com as suas promessas de liberdade, justiça e verdade. No dia 13 de Janeiro, o cabo-verdiano, ao dirigir-se às urnas para expressar a sua vontade através de voto livre e plural, viu reconhecida a sua dignidade humana. Não mais ele seria o objecto muitas vezes sacrificado da ânsia de poder de protagonistas de lutas reais ou fictícias pela sua libertação. A partir daí, seria ele próprio sujeito do seu destino a afirmar direitos inalienáveis do indivíduo, a escolher de vontade própria o rumo da sua vida e a determinar livremente quem são os seus governantes.
A II República que nesse dia deu os primeiros passos e depois seria consagrada na Constituição de 1992 tem precisamente no respeito pela dignidade humana a sua pedra basilar. Por isso é que o 13 de Janeiro não pode deixar de ser a data maior da democracia cabo-verdiana, assim como o 25 de Abril é a de Portugal e 6 de Dezembro, o Dia da Constituição, é a da Espanha após a ditadura de Franco. A disputa à volta do simbolismo do 13 de Janeiro ao pretender trazer à liça outros valores que supostamente estariam acima da dignidade humana de cada indivíduo e da vontade popular livremente expressa não pode deixar de enfraquecer as bases onde se assenta o regime democrático. Acaba por dificultar o consenso necessário para que o sistema beneficie do dissenso e não se divida em partes irreconciliáveis, para que a busca da verdade prossiga sem sectarismos perniciosos e para que a democracia se defenda dos seus detractores. Detractores que não são só os que preferiam um outro regime, mas principalmente os que pelo populismo e demagogia minam as instituições, degradam o espaço público com o culto do cinismo e recorrem a paixões primárias para calar e dobrar os outros, excitar tribalismos de toda a espécie e criar lealdades cegas à volta de potenciais autocratas.
Hoje vários estudiosos dizem que o mundo depois da euforia, que se seguiu à queda do Muro de Berlim e prosseguiu ainda durante mais de uma década, está a viver uma autêntica recessão da democracia. Proliferam os livros que se debruçam sobre o recuo ou as falhas do liberalismo, que vão buscar lições da tirania do século XX, que registam com preocupação a explosão populista e observam com apreensão a forma como, na actualidade, as democracias dão sinais de morrer. O que se passa nos Estados Unidos com Donald Trump, mas também o que se vê em outras democracias com destaque para a Hungria, Polónia, Turquia e o Brasil faz lembrar com alguma contundência algo que talvez se tenha esquecido algures sob o efeito do entusiamo democrático de anos atrás: a democracia não é irreversível.
Como já dizia Thomas Mann no livro “Próxima Vitória da Democracia” a democracia não é simplesmente regras. É também uma forma de viver. Chama à acção e encoraja todos a dar o máximo da sua capacidade. Também clama por uma responsabilidade moral para impedir que prevaleçam os que mostram desprezo pela razão, negam e violam a verdade a favor do Poder e dos interesses do Estado e apelam aos baixos instintos e ao sentimento para trazer à tona a estupidez, o conformismo e a mediocridade.
Ninguém deve ficar indiferente quando surgem sinais de assalto à democracia designadamente na forma de rejeição por actos ou palavras das regras do jogo democrático, na negação da legitimidade dos opositores, na tolerância ou encorajamento à violência e em indícios de alguma vontade em limitar os direitos fundamentais, em particular a liberdade de expressão e de imprensa. Tampouco se deve permitir que resquícios ideológicos de outrora continuem a minar a base consensual da democracia suportada na dignidade humana sobrepondo a libertação nacional à liberdade individual. Nem permitir que a procura da verdade seja permanentemente torpedeada com tácticas que alternadamente apelam à vitimização, a sentimentos de gratidão e a superioridade de melhores filhos ao mesmo tempo que impedem que as reais vítimas dos quinze anos de opressão sejam reconhecidos, merecedores de desculpas e compensados. Para isso, tenta-se perpetuar uma certa interpretação do heroísmo muitas vezes mítico outras vezes fabricado, reclamado por alguns privilegiados em detrimento do heroísmo simples mas impactante feito de “luta persistente, por vezes anónima em defesa de valores cívicos que a marcha da civilização trouxe ao primeiro plano da dignificação humana”.
A comemoração do Dia da Liberdade e da Democracia no dia 13 de Janeiro terá o efeito maior na reafirmação do consenso da república à volta da importância central na dignidade humana e na consolidação da democracia se também for o momento escolhido para reconhecer e exaltar homens e mulheres que se distinguiram pelo seu amor à liberdade e pela sua devoção à causa dos direitos humanos. Nesse sentido, urge criar uma nova ordem honorífica, uma Ordem da Liberdade, para galardoar serviços prestados à causa da Liberdade e da Democracia. Cabo Verde até o momento só tem as ordens honoríficas herdadas do regime de partido único. Obviamente que não estão em sintonia com os princípios e valores do regime democrático. Façamos votos para que no 13 de Janeiro de 2019 a Nação cabo-verdiana através do Presidente da República tenha possibilidade de reconhecer os que lutarem pela Liberdade e Democracia com a medalha da Liberdade criada entretanto por Lei da Assembleia Nacional.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 842 de 17 de Janeiro de 2017.

segunda-feira, janeiro 15, 2018

Interesses de ocasião

O Presidente da República a discursar na cerimónia de tomada de posse de novos membros do governo pôs enfase na importância da estabilidade política e social do país como factor fundamental para o desenvolvimento. Apontou o desenvolvimento inclusivo, a justiça social, a solidariedade com os mais vulneráveis e o reforço institucional como necessários para se garantir a estabilidade, mas considerou como elemento determinante a Segurança e a Ordem Pública.
É evidente que a memória dos três dias de greve da polícia nacional da semana anterior esteve sempre presente ao longo do discurso. Não aconteceu o pior, mas a autoridade do Estado ficou beliscada com o espectáculo dos polícias a desfilarem ruidosamente pelas ruas e a negar-se ao cumprimento da requisição civil decretada pelo governo. Não é por acaso que o PR, apesar de reconhecer os interesses em causa no processo que levou à greve, foi peremptório em dizer que a sociedade não pode ficar à mercê de interesses de ocasião.
Greve da polícia é sempre problemática por razões óbvias que têm a ver com a necessidade permanente de garantir a todo o momento a ordem, a tranquilidade e a segurança pública. Geralmente é proibida nas democracias. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em resposta a um recurso de um sindicato espanhol da polícia foi claro a dizer que a polícia, pelo facto de todos os agentes estarem armados e da necessidade deles prestarem um serviço ininterrupto, não pode fazer greve na medida em que tal acção põe em causa a segurança pública e a prevenção da desordem. O tribunal acrescenta que o facto de estarem armados os faz diferentes de outros servidores públicos e justifica a restrição dos seus direitos a se organizarem.
A Constituição cabo-verdiana, apesar de prever a possibilidade da lei restringir designadamente os direitos dos agentes à reunião, manifestação e associação, não é explícita quanto à proibição ao direito à greve como o faz, por exemplo, a Constituição portuguesa. Se para vários juristas há o entendimento que a lei pode restringir mesmo no actual quadro constitucional para o sindicato e os polícias que participaram na greve não parece não haver qualquer dúvida quanto à sua legalidade. Isso significa que poderá haver mais greves no futuro. Desta vez não aconteceu nada fora do ordinário e não houve colapso da ordem jurídico-constitucional, mas nada garante que será o mesmo num outro momento.
Aparentemente o aviso de pré-greve em Março de 2017 falhou em alertar as autoridades para a possibilidade real de uma greve da polícia e de possíveis consequências disso. A forma como o governo pareceu ter sido apanhado de surpresa tanto pela greve como pela recusa de muitos agentes em aceitar a requisição civil sugere que não levou suficientemente a sério as ameaças do sindicato em Março nem o pré-aviso de greve de 14 de Dezembro. Sinais de alguma agitação reivindicativa também se fizeram sentir noutras forças ao longo do ano e em particular nos agentes prisionais. Não se notou porém qualquer acção do governo em clarificar o estatuto das forças de segurança em matéria de direito à greve e de direito à reunião e manifestação. Também não se conhece iniciativa em sede da revisão constitucional para abrir o diálogo sobre o assunto e criar vontade política para uma solução definitiva do problema. O mais estranho é que perante essas omissões não parece que em algum momento tivessem sido desenvolvidos planos de contingência com provável assistência dos militares na sua missão de defender a ordem constitucional num caso de colapso da segurança pública provocado por uma greve generalizada da polícia nacional. O que se viu foi a tentativa de requisição civil que o sindicato e vários agentes se recursaram a cumprir.
O presidente da república na sua intervenção fez um apelo para se concretizar aquilo a que chamou de “concordância prática” entre exigências do estado de direito democrático em confronto. Em particular diz que é importante o diálogo, qualquer diálogo que se destine a afastar o espectro da inquietação social. Não é um apelo que tem grandes possibilidades de chegar às pessoas nestes tempos em que já se tornou normal noticiar as reacções perante qualquer agravo ou diferença de opinião como sendo de indignação ou de revolta. Nem mesmo parece chegar onde mais investimentos se fez, como é o caso da polícia. O governo saído das legislativas de Março de 2016 já no orçamento de 2017 tinha feito um esforço orçamental apreciável de mais 178 mil contos para ajustes salariais, progressões e promoções na polícia e milhares de contos tinham sido investidos em viaturas, equipamento de comunicações e outros meios essenciais para a corporacão. Mesmo assim, parece não ter encontrado espaço para um diálogo construtivo. Satisfeitas as reivindicações antigas, pede-se logo mais.
A não disposição para o diálogo que ficou manifesta na relação com a polícia é sentida noutros sectores da sociedade e em particular em sectores da administração pública em que é mais fácil desenvolver-se o espírito corporativo. Pergunta-se até onde ficou a paz social que estaria implícita no acordo de concertação estratégica que o governo assinou com os parceiros sociais. Por outro lado, sente-se que o défice em serviço público que todos se queixam em relação à administração pública tem a sua contraparte no esforço dirigido para manter os privilégios e obter uma maior fatia de recursos públicos. No processo, perde-se eficiência e a eficácia na mesma proporção que aumentam as resistências a reformas que realmente podiam mudar o status quo. Isso é evidente no domínio da segurança, como o é nos domínios da justiça ou da educação e em vários outros sectores da actividade no país. Aliás, as queixas das pessoas, os índices de competitividade e os dados do Doing Business apontam precisamente para aí.
Nesta encruzilhada na vida do país o grande desafio será fazer as pessoas deixarem de competir por recursos num jogo de soma zelo e cooperar mais, conter os interesses corporativos e dar mais atenção ao interesse geral e posicionar-se mais para criar riqueza, conhecimentos e competências várias em vez de simplesmente usufruir do que é dado ou retirado aos outros. O futuro vai depender de quando e como o soubermos vencer.
Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 841 de 10 de Janeiro de 2017.