São iniciativas todas louváveis com
foco nas crianças e nos jovens e procurando mobilizar escolas e professores num
esforço para inverter o desinteresse crescente pela leitura e pelo conhecimento
que se vem notando na sociedade cabo-verdiana. Se vão ou não ter sucesso
depende muito de se ter identificado as reais causas do desinteresse e se há
vontade de as reconhecer e de as combater de forma eficaz.
Presentemente em todo o mundo a questão dos
livros, da leitura e do saber, de uma forma ou outra, está-se a colocar. Há
quem diga que o problema é da tecnologia moderna, mas não é líquido que assim
seja. É verdade que se vive um momento especial em que a tecnologia massificada
através dos smartphones alterou radicalmente os hábitos de procura e de acesso
à informação. Se antes tinha-se que recorrer a objectos físicos como livros,
revistas e jornais para conseguir informação sistematizada e no momento
desejado, agora recorre-se ao Google, às edições digitais de jornais e livros e
às redes sociais. Mesmo a rádio e televisão que requeriam presença e um tempo
certo para passarem informação e entretenimento hoje perdem terreno para os
podcasts, vídeos e streaming à disposição a todo o instante de qualquer pessoa
com um smartphone e uma ligação à internet. Também é verdade a queda notória na
circulação da imprensa escrita, a mudança no negócio livreiro com o
desaparecimento das pequenas lojas, que ofereciam livros em várias áreas de conhecimento
a favor das grandes superfícies que privilegiam livros de alta rotação, e a
diminuição da frequência nas bibliotecas públicas. A aparente coincidência
poderia levar a pensar que uma conduziu à outra. O facto, porém, é que a
tecnologia só é instrumental. Por si própria não aumenta nem diminui o gosto
pela leitura e a vontade de saber.
Outros
factores terão que ser considerados para se compreender, por exemplo, o
fenómeno em ascendência o qual alguns chamam de “nova ignorância”. Fenómeno
particularmente visível em grupos criados muitas vezes nas redes sociais e que
de forma tribal afirmam a sua verdade e os seus preconceitos acima de todas as
evidências, chamam de fake news a factos incontornáveis e rejeitam a
mediação das instituições, da academia e da comunicação social na compreensão
do mundo à sua volta. Também estes ou outros factores poderão ajudar a entender
por que menos livros são lidos nas escolas, liceus e universidades e menos
procurados nas bibliotecas. Pergunta-se se a razão para essa calamidade não
estará na atitude geral em relação ao conhecimento, nas metodologias utilizadas
e nas formas de avaliação que não favorecem uma via mais lenta, mais profunda,
mais exigente e mais conectada com os factos na procura da verdade como os
livros oferecem. A existir esses factores inibidores do desenvolvimento da
vontade de ler e saber não se vê como simples entrega de livros, sessões de
leitura e oferta de computadores, tablets ou até smartphones por si sós vão
alterar a situação existente.
A situação calamitosa que nesta matéria se
vive em Cabo Verde devia ser de profunda reflexão e urgente acção. A começar,
nem se deveria considerar a hipótese de que são as novas tecnologias e os seus
écrans que têm levado as crianças e jovens a se afastarem dos livros e a não
desenvolverem o hábito de leitura. Notou-se o fenómeno muito tempo atrás. Nos
anos após a independência, o sistema educativo em expansão rápida e a proporcionar
o ensino massificado descurou a qualidade, favoreceu outros critérios acima dos
meritocráticos e assumiu-se como aparelho ideológico na criação do “homem
novo” e na “reafricanização dos espíritos”. Para exercer bem o papel
dele esperado teve de criar currículos e material de suporte. Em consequência
há várias gerações de alunos e professores que só usaram fotocópias de fichas
como material de estudo e nunca foram incentivados a fazer o uso de livros e
manuais. Pelo contrário.
Se passados mais de quarenta anos após a
independência ainda se está a ouvir um clamor cada vez mais alto pela melhoria
da qualidade do ensino é que, de facto, o sistema, não obstante as sucessivas
reformas, no essencial não perdeu as suas características e motivações iniciais.
Daí que o conhecimento continua a ser sacrificado como se pode ver
dramaticamente no nível baixo do português dos alunos, nível esse para o qual
terá certamente contribuído o facto de a questão do crioulo vs. português se
ter transformado numa questão identitária fracturante. Mas as falhas não se
ficam só no ensino da língua como também se verificam em outras áreas do
conhecimento, algo que já ninguém deveria pretender esconder quando se sabe dos
milhares de jovens saídos do ensino secundário e das universidades sem as
competências necessárias para lhes garantir empregabilidade nos diferentes
sectores de actividade. Devia ser motivo de reflexão o facto de antes da
independência, com menos escolas e menos livros disponíveis, o nível dos alunos
saídos das escolas primárias e dos dois liceus ser mais elevado do que
actualmente. Na época, tudo leva a crer que havia mais amor pelos livros, pela
leitura e pelo saber e esse amor era transversal a toda a sociedade
cabo-verdiana e abrangia a todos, independentemente das suas posses tanto no
campo como nas cidades. Depois a motivação passou a ser conseguir o “canudo” e
depois seguir carreira apoiado em outros critérios de influência que não os da
competência técnica e profissional. Não estranha que se tenha chegado ao ponto
actual.
A sustentabilidade da actual situação é
claramente impossível de se manter. O retorno do investimento massivo que o
Estado, as famílias e as pessoas individualmente já fizeram em busca de uma
educação é claramente baixo como se pode constatar nos níveis de desemprego
entre os jovens. Não é porém essa a percepção que se fica do debate sobre o
ensino superior no parlamento, esta terça-feira, 24 de Abril. E assim é porque
em Cabo Verde dificilmente se consegue fazer política sem cair no populismo e
na demagogia. O resultado é que os problemas de fundo do país ficam por
resolver, as pessoas ficam frustradas por não verem o retorno dos seus investimentos
e a situação de impasse retira confiança num futuro promissor. Mudar as coisas
significa fazer as pessoas acreditar que conseguir o conhecimento e as
competências para melhorar o rumo ´do país estão perfeitamente ao nosso
alcance. Para isso, livros, hábitos de leitura e gosto pelo saber são
indispensáveis.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição
impressa do Expresso das Ilhas nº 856 de 25 de
Abril de 2018.