Os dados do Doing Business 2019 que colocam Cabo
Verde na posição 131 entre 190 países não são encorajadores. Há anos que
primeiros-ministros e ministros dos sucessivos governos vêm declarando o
seu comprometimento na melhoria da competitividade do país e do
ambiente de negócios.
Os resultados não têm sido expressivos. A exemplo do que outros países fizeram criaram-se task forces e
unidades de competitividade para melhorar os rankings de Cabo Verde.
Infelizmente os esforços desenvolvidos não resultaram como esperado,
contrariamente ao que aconteceu em países como o Ruanda, a Estónia, a
Finlândia e a Índia. Em alguns desses países conseguiu-se que
melhorassem mais de 50 pontos nos rankings. Os mesmos cinquenta pontos
que o primeiro-ministro Dr. Ulisses Correia e Silva vem insistindo que
é o objectivo a ser alcançado nos próximos dez anos mas até agora não
se viu movimento significativo dos rankings nessa direcção. Pelo
contrário.
As dificuldades com que o actual governo se depara no processo de melhoria do ambiente de negócios não são muito diferentes das enfrentadas pelo governo anterior. São dificuldades para as quais contribuem extraordinariamente a atitude, os procedimentos e o modo de agir da administração do Estado. Em 2015, depois de quase quinze anos no topo da direcção da administração pública enquanto primeiro-ministro, o Dr. José Maria Neves queixou-se várias vezes de problemas no funcionamento do Estado com impacto nos custos de contexto, no ambiente de negócios e na competitividade do país. Era evidente na época a sua frustração e quase impotência perante a postura da administração que ele próprio dizia que precisava ser mais imparcial, mais universal e menos partidarizada. Ainda hoje é claro que os problemas persistem e pelos resultados do Doing Business vê-se que o actual governo mostra a mesma incapacidade em alterar as coisas, mudar os comportamentos e introduzir procedimentos mais expeditos.
Razão talvez para se concluir que vontade política dos governos não consegue sobrepor-se à cultura administrativa que impregna toda a máquina do Estado e impor-lhe uma outra orientação e uma outra atitude. De facto, tudo leva a crer que a cultura administrativa que não serve os cidadãos, não serve os negócios e não é efectiva na implementação das políticas governamentais sufragadas na urna, sobrevive a mudanças de governo e até se reproduz quando se lhe dá oportunidade como aconteceu a nível dos municípios. A administração municipal, supostamente mais próxima das pessoas, não é menos burocrática, centralizadora e insensível para com os utentes. E é de esperar que a persistir a actual cultura administrativa no país, dificilmente, no caso da criação das regiões, a nova administração regional vai criar um novo paradigma de relação com cidadãos, utentes e operadores económicos.
Na origem e posterior evolução da postura da administração do Estado certamente que se poderá descortinar os contributos da administração salazarista e do regime de partido único e os efeitos das tentativas de reforma verificadas nos 27 anos de democracia. As marcas dessa longa história ainda hoje são visíveis, mas o factor que deverá ter contribuído para que, no essencial, se mantenha igual a si própria, é a persistência de uma economia de reciclagem de fluxos externos que põe o Estado no seu centro. A máquina estatal enquanto recipiente e distribuidora desses fluxos que dinamizam a economia do país naturalmente que ajuda a criar e a reproduzir na sociedade dependências múltiplas. Por essa via acaba por servir certos interesses políticos e alimentar uma classe média ligada ao Estado e um sector privado atento aos acessos, facilidades e oportunidades que lhe são oferecidas ou disponibilizadas. Em tal ambiente em que eufemisticamente o Estado posiciona-se no “topo da cadeia alimentar” é mais que evidente que qualquer reforma dirigida para lhe retirar essa posição dificilmente terá bom resultado. Não é pois de estranhar que apesar de todos os esforços para encaminhar o Estado para o papel de facilitador e regulador, enquanto o protagonismo na sociedade se deslocaria para os indivíduos, para os empreendedores e para o sector privado, nenhum governo conseguiu tal desiderato. O paradigma mantém-se, e todos sabem disso. Agora há quem espere que a regionalização num passe de mágica faça as transformações que até aqui reformas passadas não conseguiram.
Trabalhar para a competitividade, ceder protagonismo às pessoas e empresas e ter a administração pública a renovar-se como facilitador e estrutura sensível às necessidades das pessoa e da economia significaria uma viragem profunda na mentalidade geral do país. Representaria um comprometimento sério e consequente com os objectivos de crescimento e emprego para além dos discursos oficiais que são feitos em boa medida com o intuito de manter as transferências externas para o país. Provavelmente em 2018, 43 anos após a independência não se estaria a organizar uma conferência em Paris com os parceiros para se efectivar “finalmente” uma nova fase, nas palavras do Ministro das Finanças Olavo Correia, na qual “queremos delegar ao sector privado um papel mais preponderante” , “por forma a que ao invés de continuarmos a aumentar o endividamento público, termos investimentos privados a financiar projectos estruturantes em Cabo Verde”. Também não se estaria a alimentar em nome do “desenvolvimento harmonioso” das ilhas modelos de crescimento com base em factores endógenas relegando para o segundo plano o esforço nacional para se integrar na economia mundial com atracção de capital, acompanhado de tecnologia e mercado, e com o aumento e qualificação do fluxo turístico. Historicamente, prova-se que Cabo Verde apenas conseguiu prosperar quando de alguma forma a sua economia se articulou com vantagens na economia mundial.
Manter o olhar virado para dentro do país convenientemente serve a cultura administrativa que ajuda a manter o Estado no topo da cadeia alimentar. Só pondo de lado o modelo que até agora deixou o país dependente das transferências externas é que se pode almejar criar estruturas produtivas de base na iniciativa privada capazes de propiciar o crescimento e os empregos que tanto precisamos. Para romper o círculo vicioso é fundamental que a vontade política do governo se faça sentir com determinação, foco e sabedoria para ultrapassar as barreiras que até agora deitaram por terra todas as reformas da administração e poder contribuir para que finalmente o país se torne competitivo e produtivo.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 884 de 07 de Novembro de 2018.
As dificuldades com que o actual governo se depara no processo de melhoria do ambiente de negócios não são muito diferentes das enfrentadas pelo governo anterior. São dificuldades para as quais contribuem extraordinariamente a atitude, os procedimentos e o modo de agir da administração do Estado. Em 2015, depois de quase quinze anos no topo da direcção da administração pública enquanto primeiro-ministro, o Dr. José Maria Neves queixou-se várias vezes de problemas no funcionamento do Estado com impacto nos custos de contexto, no ambiente de negócios e na competitividade do país. Era evidente na época a sua frustração e quase impotência perante a postura da administração que ele próprio dizia que precisava ser mais imparcial, mais universal e menos partidarizada. Ainda hoje é claro que os problemas persistem e pelos resultados do Doing Business vê-se que o actual governo mostra a mesma incapacidade em alterar as coisas, mudar os comportamentos e introduzir procedimentos mais expeditos.
Razão talvez para se concluir que vontade política dos governos não consegue sobrepor-se à cultura administrativa que impregna toda a máquina do Estado e impor-lhe uma outra orientação e uma outra atitude. De facto, tudo leva a crer que a cultura administrativa que não serve os cidadãos, não serve os negócios e não é efectiva na implementação das políticas governamentais sufragadas na urna, sobrevive a mudanças de governo e até se reproduz quando se lhe dá oportunidade como aconteceu a nível dos municípios. A administração municipal, supostamente mais próxima das pessoas, não é menos burocrática, centralizadora e insensível para com os utentes. E é de esperar que a persistir a actual cultura administrativa no país, dificilmente, no caso da criação das regiões, a nova administração regional vai criar um novo paradigma de relação com cidadãos, utentes e operadores económicos.
Na origem e posterior evolução da postura da administração do Estado certamente que se poderá descortinar os contributos da administração salazarista e do regime de partido único e os efeitos das tentativas de reforma verificadas nos 27 anos de democracia. As marcas dessa longa história ainda hoje são visíveis, mas o factor que deverá ter contribuído para que, no essencial, se mantenha igual a si própria, é a persistência de uma economia de reciclagem de fluxos externos que põe o Estado no seu centro. A máquina estatal enquanto recipiente e distribuidora desses fluxos que dinamizam a economia do país naturalmente que ajuda a criar e a reproduzir na sociedade dependências múltiplas. Por essa via acaba por servir certos interesses políticos e alimentar uma classe média ligada ao Estado e um sector privado atento aos acessos, facilidades e oportunidades que lhe são oferecidas ou disponibilizadas. Em tal ambiente em que eufemisticamente o Estado posiciona-se no “topo da cadeia alimentar” é mais que evidente que qualquer reforma dirigida para lhe retirar essa posição dificilmente terá bom resultado. Não é pois de estranhar que apesar de todos os esforços para encaminhar o Estado para o papel de facilitador e regulador, enquanto o protagonismo na sociedade se deslocaria para os indivíduos, para os empreendedores e para o sector privado, nenhum governo conseguiu tal desiderato. O paradigma mantém-se, e todos sabem disso. Agora há quem espere que a regionalização num passe de mágica faça as transformações que até aqui reformas passadas não conseguiram.
Trabalhar para a competitividade, ceder protagonismo às pessoas e empresas e ter a administração pública a renovar-se como facilitador e estrutura sensível às necessidades das pessoa e da economia significaria uma viragem profunda na mentalidade geral do país. Representaria um comprometimento sério e consequente com os objectivos de crescimento e emprego para além dos discursos oficiais que são feitos em boa medida com o intuito de manter as transferências externas para o país. Provavelmente em 2018, 43 anos após a independência não se estaria a organizar uma conferência em Paris com os parceiros para se efectivar “finalmente” uma nova fase, nas palavras do Ministro das Finanças Olavo Correia, na qual “queremos delegar ao sector privado um papel mais preponderante” , “por forma a que ao invés de continuarmos a aumentar o endividamento público, termos investimentos privados a financiar projectos estruturantes em Cabo Verde”. Também não se estaria a alimentar em nome do “desenvolvimento harmonioso” das ilhas modelos de crescimento com base em factores endógenas relegando para o segundo plano o esforço nacional para se integrar na economia mundial com atracção de capital, acompanhado de tecnologia e mercado, e com o aumento e qualificação do fluxo turístico. Historicamente, prova-se que Cabo Verde apenas conseguiu prosperar quando de alguma forma a sua economia se articulou com vantagens na economia mundial.
Manter o olhar virado para dentro do país convenientemente serve a cultura administrativa que ajuda a manter o Estado no topo da cadeia alimentar. Só pondo de lado o modelo que até agora deixou o país dependente das transferências externas é que se pode almejar criar estruturas produtivas de base na iniciativa privada capazes de propiciar o crescimento e os empregos que tanto precisamos. Para romper o círculo vicioso é fundamental que a vontade política do governo se faça sentir com determinação, foco e sabedoria para ultrapassar as barreiras que até agora deitaram por terra todas as reformas da administração e poder contribuir para que finalmente o país se torne competitivo e produtivo.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 884 de 07 de Novembro de 2018.