quinta-feira, janeiro 05, 2012

2012: o ano do ajuste

2012 não vai se revelar o ano cataclísmico previsto no calendário dos Maias, mas certamente que será uma ano difícil. A crise mundial ainda não percorreu o seu curso completo e sobressaltos, surpresas e desenvolvimentos inesperados devem ser esperados. Em Cabo Verde o ano inicia-se com as restrições ao crédito impostas pelo Banco Central no intuito de preservar três meses de reservas externas e salvaguardar o Acordo Cambial.

Pelo mundo fora, nestes primeiros dias do ano, a mensagem que mais se ouve é que sacrifícios devem ser feitos para que as dívidas se tornem sustentáveis e os caminhos de crescimento sejam retomados. O previsto abrandamento da economia mundial poderá mais ser mais profundo em consequência de programas nacionais de austeridade, de convulsões sociais e de perturbações geopolíticas com efeitos no preço do petróleo e no comércio internacional. Adoptar a atitude adequada face às muitas incertezas é o grande desafio que se coloca a todos os povos e seus governantes.

Parece claro que o mundo entrou num “tempo de vacas magras” e sem ter feito as necessárias reservas nos momentos bons. Sobreviver e vencer no ciclo actual irá exigir contenção séria nos hábitos e nos gastos, procura fincada de eficiência e ganhos significativos de produtividade. Fundamental para que o esforço de todos resulte, é ter-se instituições de alta qualidade, um Estado comprometido com a economia, o crescimento e o emprego e, também, governantes com profundo sentido do serviço público que não se esgota no desejo de manter o poder a todo o custo.

A qualidade das instituições vê-se designadamente na sua capacidade de se manterem focalizados na sua missão, livres de conflitos de interesses e fiéis ao ambiente regulatório envolvente. Os acontecimentos recentes que já levaram à prisão do Presidente da Bolsa de Valores e prometem respingar em outras entidades públicas, interpelam a todos quanto ao real nível das nossas instituições. Deve preocupar a todos as persistentes notícias sobre a droga e tráfico envolvendo pessoas ligadas a vários serviços estatais. A aparente corrupção que é aí referida pode não ser tão pequena e até confirmar uma certa infiltração do aparelho do Estado a todos títulos indesejável.

O comprometimento do governo e do estado com a economia deve fazer sentir-se, em particular, no nivelar do terreno com oportunidades para todos, na fixação das prioridades e na preocupação de ter tributação justa de pessoas e empresas conjugada com esforço visível de melhoria da qualidade das despesas. Se, pelo contrário, as empresas nacionais sentem-se preteridas e também sobrecarregadas por uma administração fiscal com propósitos unidimensionais de cobrar e a lidar com serviços pouco sensíveis aos custos induzidos, quebra-se a solidariedade que o momento exige. Da parte dos trabalhadores tem que existir a percepção de que os sacrifícios consentidos irão resultar em crescimento do emprego tanto em número como em qualidade.

Vulgariza-se, em certas paragens, a ideia de que as tarefas de governação deviam ser entregues a tecnocratas. A Itália pós-Berlusconi seria o exemplo disso. A realidade é que não se pode sacrificar a democracia com a panaceia da tecnocracia. Os governantes têm mandatos fixos de quatro ou cinco anos para cumprir as promessas eleitorais e devem escalonar a sua actuação de forma a serem efectivos e eventualmente serem reeleitos. Não podem optar por estar em campanha eleitoral permanente e desculparem-se por não tomar medidas certas e atempadas por receio de alienação do eleitorado. O sentido do bem servir o interesse público deve poder sobrepor-se aos interesses partidários do momento.

As crises têm o condão de levar as pessoas, a sociedade e os governos a fazerem um ajuste com a realidade tanto nas expectativas como nas promessas. O ajuste que vem aí é inevitável e incontornável. Só se espera que não seja traumático e realmente eleve a contribuição de todos para um outro patamar. Do esforço que se vier a fazer dependerá a capacidade do país em enfrentar as dificuldades do momento e em singrar com sucesso no futuro próximo.

Editorial do jornal “Expresso das ilhas” de 4 de Janeiro de 2012

quarta-feira, janeiro 04, 2012

Mensagens díspares

As mensagens do fim do ano do Presidente da República e do Primeiro Ministro denotam duas atitudes distintas em relação aos problemas do país. O PM muito no seu timbre exacerba a percepção que, via vários indicadores, certos sectores da comunidade internacional convenientemente querem alimentar sobre Cabo Verde. Também quer que os caboverdianos aceitem a visão que os outros pretendem ter do país pondo de lado a sua vivência e a experiência colhidas no dia-a-dia. Assim, o Primeiro-ministro pretende que se engula a ideia de que Cabo Verde é uma democracia acima de Portugal, e outros países com instituições democráticas mais antigas e consolidadas e com um ambiente sócio-económico de longe mais propício para a dinâmica democrática. Quer que se acredite que há aqui maior liberdade de imprensa do que em países com uma sociedade civil possante e autónoma e com meios de comunicação privados que ao contrário do que se passa em Cabo Verde têm mais audiência do que os públicos. Quer ainda que se acredite que Cabo Verde passou ao lado da crise por sua capacidade endógena de crescimento, quando é ele próprio que extrapola as vantagens do MCA mesmo reduzido à metade do primeiro. E quando todos notam que, atingidos os limites do endividamento, o BCV impõe restrições ao crédito para conter a erosão das reservas externas. Já o Presidente da República afirma que a nação precisa saber onde está para poder saber como agir para o futuro. E aconselha ao Governo “comunicações francas para cabal informação da real situação do País”. Continua, dizendo que “numa altura como esta é preciso explanar toda a verdade dos factos, por mais duras que sejam”. O Presidente da República considera que só assim “se torna mais célere o engajamento de todos (…) no esforço de resistência e ultrapassagem da crise”. No passado recente, todos puderam ver repetidamente o filme de governos a pintar de cores róseas situações que depois vieram revelar-se problemáticas, se não mesmo catastróficas. O Portugal de Sócrates foi isso e agora o povo português como, aliás, o grego, o espanhol, o italiano e o irlandês pagam na pele euforias deslocadas. É preciso que se deixe de ver a política como uma espécie de jogo onde o que vale é fazer-se eleito não olhando a meios. E, quando a realidade cai em cima, afastar a responsabilidade com a desculpa de que “do lado do Governo fez-se tudo”mas que a sociedade, as empresas ou os trabalhadores falharam, como se, a par do governo da república, existisse um “lado dos outros”.

terça-feira, janeiro 03, 2012

Símbolos e regimes

Na reportagem da tomada de posse do Chefe de Estado Maior das Forças Armadas a câmara da RTC não deixou de parar por um breve instante sobre o quadro de Amílcar Cabral no salão nobre da presidência da República. O retrato mostra Amílcar Cabral vestido de camuflado militar com pistola à cintura. O poder simbólico do quadro mostrou-se mais uma vez, talvez mais por se destoar completamente dos princípios actuais da república. Foi colocado na presidência da república quando vigorava o regime de partido único. A legitimidade do regime derivava da luta armada do PAIGC na Guiné cujo líder tinha sido Amílcar Cabral. Natural que, de entre os muitos retratos dele com outras indumentárias, se escolhesse a da imagem do militar. Condiz com a ideologia revolucionária que, segundo Mao Tse Tung, proclama que o “poder político está na ponta da espingarda”. Na II República porém o poder político emana da vontade soberana do povo expressa de forma livre e plural. A presença do símbolo no coração da presidência não faz sentido particularmente no acto de nomeação do Chefe das Forças Armadas pelo presidente eleito pelo povo. A nomeação do CEMFA é um acto de extrema importância porque afirma, perante toda a nação, a subordinação dos militares à autoridade civil legitimamente constituída. Mais, transmite aos militares a mensagem que não constituem uma milícia ou braço armado de quem quer que seja e que devem lealdade absoluta à Constituição. Os símbolos da República e da soberania nacional são a Bandeira, o Hino e a Armas nacionais, assim como está estabelecido no artigo 8º da Constituição. De acordo com a tradição republicana, a única imagem permitida nas estruturas do Estado é a do Presidente, porque só ele representa interna e externamente a República. Há que repor a legalidade e a coerência de princípios.

sexta-feira, dezembro 30, 2011

2011 em perspectiva

2011 ficou marcado por três fenómenos de grande impacto: a primavera árabe, o agravamento da crise da dívida soberana e o protagonismo dos países emergentes. Os movimentos para a dignidade e contra a corrupção nos países árabes derrubaram tiranos e agora ensaiam passos de democracia, lidam com islamistas e reorientam-se para confrontar problemas existenciais colocados pelos dois estados teocráticos da região: o Irão e a Arábia Saudita, e também por Israel. A dívida soberana na Europa conheceu outros desenvolvimentos que ameaçam a economia mundial e o euro como moeda da União Europeia. A dinâmica dos BRIC´s aliviou os efeitos globais do abrandamento económico na Europa, América e Japão mantendo um volume expressivo do comércio internacional e estimulando exportações e investimentos em muitos países, designadamente, africanos.

De permeio, os Estados Unidos abriram espaço para um outro reposicionamento do país no mundo com a restauração da credibilidade perdida nos anos Bush, a retirada dos soldados do Iraque e do Afeganistão e o uso de novos métodos e alianças na luta contra o terror e o narcotráfico demonstrados no caso de Bin Laden. O Médio Oriente ficou refém das pretensões nucleares do Irão e da arrogância do novo governo de Israel que o impossibilita a qualquer tipo de negociações com os palestinianos. E a Europa tida como o exemplo de diminuição da desigualdade social e de promoção do Estado Social depara-se com um dilema: ou faz regredir o projecto europeu com uma Europa a duas velocidades; ou, em sentido inverso, aprofunda-o avançando para uma união fiscal com emissão de títulos de dívida europeus (eurobonds) e o estabelecimento pleno de um banco central europeu.

Em Cabo Verde, 2011 poderá vir a revelar-se um ano charneira em como o país vê-se a si próprio ou é visto pelos outros. As duas eleições nacionais, legislativas e presidenciais, desfasadas em seis meses, abriram portas que fazem antever novas dinâmicas no futuro.

O PAICV conseguiu um inédito terceiro mandato que rapidamente se tornou venenoso quando ficou evidente que não trazia soluções frescas em particular para os problemas de energia e água. A perda de capital político acelerou-se com o envolvimento do governo nas eleições do presidente da república e com a gestão desastrosa das ambições de colegas do partido a esse cargo suprapartidário. O descrédito maior surgiu quando promessas eleitorais reiteradas, o 13º mês e ajustes salariais, feitas em plena crise internacional não foram cumpridas. Por pura conveniência, invocam-se razões da crise anteriormente negada.

O MpD procura ainda encontrar-se na sequência de umas eleições legislativas que podia ter ganha. Os sinais de cansaço da governação do PAICV neste terceiro mandato, em retrospectiva, deixam transparecer que o país já pedia um governo mais fresco. Os resultados das presidenciais demonstram que era possível mobilizar o descontentamento popular para renovar a liderança e a orientação do país.

O aprofundamento da crise internacional faz notar que os remédios do antigamente, presentes nos donativos, empréstimos concessionais e ajudas em geral não são suficientes para garantir o crescimento com emprego de qualidade. A redução para quase metade dos fundos do MCC constitui um aviso sério. Também sério é a dificuldade em atrair investimentos privados nacionais e estrangeiros. A falta de competitividade externa aí revelada obriga a que sejam revistas orientações e medidas de política e definidas outras prioridades nos investimentos públicos para se garantir eficiência e eficácia na consecução de objectivos nacionais traçados.

Espera-se que em 2012 se inaugure uma nova atitude face aos extraordinários desafios que se colocam ao país nesta crise sem fim à vista. Tapar o sol com a peneira e deixar-se enganar pela imagem sedutora do país que se projecta lá fora não são opções a continuar. As pessoas, a sociedade e o país só irão unir-se para responder aos desafios se sentirem que a clareza de objectivos, a verdade e a honestidade irão prevalecer sobre o imperativo de manter o Poder a todo o custo.

Editorial do jornal “Expresso das ilhas” de 28 de Dezembro de 2011

quarta-feira, dezembro 28, 2011

Conflito de interesses e fraqueza institucional

O Primeiro Ministro declarou à RTC, referindo-se à prisão de Veríssimo Pinto, o Presidente da Bolsa de Valores, que esse “facto engrandece Cabo Verde porque apresentamo-nos ao mundo como um país onde as instituições funcionam, onde ninguém está acima da Lei”. Não é esse o pronunciamento que se esperava do sr. PM. Há vinte anos que Cabo Verde é um Estado de Direito e ninguém está acima da lei. Por aí não há nenhuma novidade. O problema que o país confronta hoje e que do exterior também se coloca é como o dirigente máximo da instituição Bolsa de Valores alegadamente envolveu-se em situações que a olhos do público estarão relacionadas com o narcotráfico e a lavagem de capitais. A fuga em frente do Sr. Primeiro-ministro não colhe. Há que dizer o que correu mal e assumir as responsabilidades. As instituições no sector, seja pela imaturidade, inadequação das salvaguardas quanto a conflitos de interesses ou ainda pela fragilidade de supervisão e de regulação, deixaram-se envolver em situações pouco claras. O escândalo do BPN e do Banco Insular parece não ter sido suficiente para fazer as autoridades exigir mais rigor, evitar conflitos de interesses e apertar a supervisão sobre o sistema financeiro. O Governo simplesmente preferiu seguir os conselhos do FMI para pôr “em banho-maria” os offshore e a praça financeira porque havia o risco de o país perder mais em imagem do que ganhava com esse projecto. Mas ficou por aí. Com a crescente dinâmica da Bolsa de Valores deixou-se levar pela euforia e não acautelou situações potencialmente complicadas. Um exemplo é a presença de membros do governo e do próprio PM em momentos de lançamento de obrigações de empresas privadas. Um outro aspecto curioso é que aparentemente não obrigou que se cumprisse o disposto nos artigos 10 e 11 do decreto-lei 49/98 quanto à conduta do pessoal da bolsa. “Devem exercer a actividade profissional com observância dos mais rigorosos princípios de integridade, isenção…” e estão impedidos de prestar a terceiros “consultadoria no âmbito de valores mobiliários”. O presidente da Bolsa de Valores também não pode “exercer qualquer actividade pública ou privada, ainda que meramente consultiva, à excepção de actividade docente...”. É facto público e notório o protagonismo do presidente da bolsa na promoção das emissões de obrigações. Como também é público a sua participação na administração de uma empresa privada. Comprometidas as salvaguardas legais no domínio do conflito de interesses, fica pouca margem para se prevenir situações mais graves. Falta perguntar o que tem sido a intervenção do Banco de Cabo Verde enquanto autoridade de supervisão e regulação do sector financeiro. Será que a sua actuação também esteve comprometida? Como explicar o facto de os mandatos dos administradores do BCV e do próprio governador só terem sido renovados em Maio de 2010, depois de terminados os respectivos mandatos 3, 2 anos antes para alguns administradores e nove meses depois para o Governador. Que razões justificam a inacção do governo nestes casos e também no caso do pedido de demissão de Veríssimo Pinto? Não se pode ignorar que assim fragilizam-se instituições das quais todos – cidadãos, operadores económicos e investidores esperam que ajam com independência e no respeito pelo interesse público. Tais acções e omissões não podem ser consideradas inocentes e responsabilidades devem ser assacadas.

segunda-feira, dezembro 26, 2011

Limites da estratégia de “fazer para inglês ver”

O MCC decidiu, no dia 15 de Dezembro, por um segundo donativo a Cabo Verde no valor de 66,2 milhões dólares, quase metade dos 110 milhões de há sete anos. O montante ficou muito abaixo ainda das expectativas do Sr. Primeiro Ministro que peremptoriamente, há um ano atrás, afirmava que o II compacto do MCA não seria nunca inferior ao valor do primeiro. Pela imprensa na época, em plena campanha eleitoral, circulou que o valor iria situar-se à volta dos 200 milhões de dólares, havendo quem aventurasse em possíveis 300 milhões. A quebra nas expectativas levou o PM a procurar razões na crise como habitualmente faz quando as coisas não correm de feição ou certas promessas eleitorais ficam por cumprir. A baixa no donativo não impediu porém o PM de persistir na ideia de que boa “governação” é o petróleo de Cabo Verde. Toma-se o que é instrumental (governance) como fim a atingir (desenvolvimento). Na realidade crescimento implica funcionamento adequado das instituições que transmita confiança, obriga à prestação de contas, assegura justiça em tempo útil e garante que o processo de tomada de decisões respeite o processo democrático. Desconfia-se que não há muita boa governança quando, o país mesmo, em tempo de boom mundial (2006-2007) aproveita tão pouco e o governo já tem mais de 11 anos a tentar pôr o sector de água e energia a funcionar. Também algo vai mal se o espírito assistencialista aumenta no país e se o Governo deliberadamente põe à frente das instituições que servem vulneráveis ou grupos sociais relevantes (FICASE, ICIEG, FCS, Juventude, Luta Contra a Pobreza, programa de Coesão Social, etc.) futuros candidatos a deputado ou a presidente da câmara, ex- membros do governo, ex-deputados e notórios activistas partidários. A Sra. Petra Lantz certamente dirá que não foram com essas práticas que a Suécia se tornou um país desenvolvido. Governar “para inglês ver” e comparando-se com os piores para melhor aproveitar do relativismo paternalista dos doadores que faz comparação com os piores nunca foi o caminho certo para se chegar ao porto da desejada sustentabilidade e dinâmica económica. Mais cedo ou mais tarde virão os cortes na ajuda. Até lá perde-se tempo e oportunidade crucial para se construir uma base sólida para o futuro, enquanto se utilizam doações para ganhar eleições, consolidar o poder e reproduzir o espírito de dependência nas populações.

domingo, dezembro 25, 2011

Cesária: A revelação de Cabo Verde ao mundo

Morreu a Cesária. Cabo Verde está em choque. De todos os continentes e culturas das mais diversas vêm gestos de pesar e de tristeza pelo passamento da cantora.

Compreende-se que assim seja. É um facto que pessoas das mais diferentes vivências, culturas e níveis de exposição ao Mundo sentem-se tocadas profundamente pela voz sublime da Cesária e gratas pela experiência única de a escutar. Em muita gente cons¬tate-se que, ao deslumbre nas actuações da Cesária, segue-se uma curiosidade, quase fascínio, por conhecer a cultura e alma do povo Caboverdiano. Querem saber de que húmus emanam as suas can¬ções e de onde retirou a vivência profunda e marcada que a sua voz tão bem transmite.

Com Cesária as pessoas comuns em todo o mundo passaram a saber da existência de Cabo Verde e dos caboverdianos. Através dela e da morna, o seu género musical de eleição, intuíram a experiência humana verificada durante séculos nas ilhas de Cabo Verde. Umas Ilhas periodicamente fustigadas pela fome e não poucas vezes dei¬xadas isoladas no meio do Atlântico a caldear os ingredientes de uma nova Nação. Europeus, asiáticos, americanos japoneses, latinos e africanos no final dos concertos ou após ouvir um CD sentiam-se tocados pela Cesária e pela morna. Com isso os caboverdianos pas¬saram a saber que tinham sido capazes de produzir no seu cadinho de civilização algo universalmente válido.

Em 1987 com o festival da World Music (música do mundo) foi desencadeado um processo que caminhando, a par e passo com a aceleração da globalização, abriu sensibilidades das mais díspares a géneros musicais vindos de todo o planeta.

Instrumental para isso foram os novos produtores. Surgiram para ajudar muitos artistas na realização do sonho de atingir audiências variadas e universais. A Cesária teve a sorte extraordinária de ter o caboverdiano Djô da Silva como seu produtor. No album "Miss Perfumado" a convergência de talentos na Cesária e no Djô já produzia resultados surpreendentes cujo retorno para o país, para os artistas e para a nação caboverdiana se revelariam incalculáveis.

Nos 20 anos de carreira artística internacional, Cesária Évora encheu de orgulho os corações dos caboverdianos. A sua voz fez o mundo inteiro apreender as nuances da vivência caboverdiana, como era testemunhada por homens simples nas décadas 40, 50, 60 e 70 que nas horas de lazer cantavam as alegrias, as tristezas, os amores, a vontade partir e a sodade da terra, da mãe e da cretcheu. No meio cosmopolita de São Vicente germinaram as mornas de B.Leza, Amândio Cabral e Lela de Maninha e as coladeras de Ti Goi, Frank Cavaquinho e Manuel d'Novas que Cesária levaria a todos os grandes palcos e revelaria Cabo Verde ao mundo.

No momento de tristeza de despedida da Cesária é fundamental lembrar a sua alegria de viver apesar das terríveis provações que teve de passar ao longo da vida. Lembrar que apesar do muito que lhe foi retirado, conservou sempre a capacidade de dar. A sua oferta maior ao mundo é o Cabo Verde de todos nós e de todas as gerações antes de nós.

Com Cesária e Djô da Silva devemos retirar a convicção de que temos algo de novo e valioso a dar desde que potenciemos o talento e a criatividade das nossas gentes. E que o sucesso estará ao nosso al-cance se aproveitarmos devidamente as oportunidades que surgem e criarmos o nível de organização com sentido de eficácia para extrair o maior retorno de todas as iniciativas e empreendimentos.

O momento é de celebração da vida da Cesária que hoje sobe ao panteão dos intelectuais, de homens e mulheres simples que con¬tribuíram para a nação caboverdiana se sinta digna, una, dinâmica e com confiança no devir.

O jornal Expresso das Ilhas apresenta as suas sentidas condolências à família, aos amigos e colaboradores da Cesária.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 21 de Dezembro de 2011

quinta-feira, dezembro 15, 2011

Direitos humanos: avanços e resistências

O Presidente da República, no dia da comemoração do 63º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, fez um apelo ao abandono da arquitectura de indiferença que ainda impede o pleno respeito pela dignidade humana independentemente de quem é o seu portador. Um apelo que relembra a todos que a luta pelos direitos fundamentais do indivíduo não terminou, não obstante os avanços extraordinários já conseguidos pela humanidade desde a declaração francesa dos direitos humanos e do cidadão de 1789, da Bill of Rights americana de 1791 e da proclamação dos direitos humanos pela ONU em 1948. Para o PR, a defesa dos direitos humanos, nos dias de hoje, significa manter a capacidade humana de projectar uma sociedade universalmente inclusiva face aos perigos de erosão que, sob múltiplos disfarces, espreitam para atacar.

A conquista dos direitos humanos e civis ao longo dos dois últimos séculos não tem sido fácil. Caminhos tortuosos foram percorridos, guerras travadas, vidas sacrificadas e actos de heroísmo inacreditáveis cometidos. A saga pela realização plena dos direitos civis nos Estados Unidos, desde a adopção da Carta de Direitos, onde se inclui uma guerra civil brutal, o fim da escravatura e processos muitas vezes dolorosos e violentos de conquista de direitos de cidadania pelas mulheres e por grupos minoritários, ilustra, de forma dramática, o esforço da humanidade em todos os continentes para colocar, no centro de tudo, o respeito pela dignidade do indivíduo.

Por outro lado, a ascensão de regimes totalitários de inspiração comunista ou fascista no século vinte chama a atenção para o perigo extraordinário de se colocar a "razão" do Estado acima da dignidade e dos direitos inerentes à condição humana. Os muitos milhões de vítimas do comunismo e do fascismo que sofreram privação da condição de cidadão, prisões arbitrárias, torturas, mortes na prisão e genocídios são testemunhas eloquentes do que acontece quando o indivíduo fica completamente à mercê do Estado.

A adopção da Constituição de 1992, na sequência das eleições multipartidárias de 13 de Janeiro, consagrou, pela primeira vez na Lei Fundamental caboverdiana, os ganhos de civilização no domínio dos direitos humanos acumulados pela humanidade em mais de duzentos anos de experiência democrática. Iniciou-se aí um processo de alteração na relação entre o Estado, o indivíduo e o cidadão que, embora já tenha percorrido muito caminho, falta muito para atingir o ideal estabelecido na Carta Magna. Resistências múltiplas de natureza institucional, comportamental e de cultura política ainda inquinam a relação do Estado com o indivíduo, o cidadão e a sociedade.

Cabo Verde, nos setenta anos que antecederam o advento da democracia, sofreu o impacto de dois regimes ditatoriais: o salazarismo e o partido único pós-independência. O aparelho do Estado ainda apresenta as marcas da cultura política do passado. O paternalismo, a promoção activa do assistencialismo, a violência policial e a insensibilidade na prestação de serviço público a utentes são reminiscentes desse passado autoritários e de reduzido espaço individual. O combate hoje pelos direitos humanos passa por vencer a inércia instalada, por mostrar indignação perante abusos de Poder, por alargar a participação cidadã e por desenvolver uma estrutura produtiva que elimine a pobreza, viabilize uma classe média e sustente uma sociedade civil realmente activa e autónoma.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 14 de Dezembro de 2011

terça-feira, dezembro 13, 2011

O dilema; “receber” ou "ser"

Na sexta-feira passada a União Europeia (UE) garantiu a produtos caboverdianos acesso preferencial ao seu mercado no quadro do Sistema Geral de Preferências GSP+. Cabo Verde teve acesso sem quota e a tarifas zero ao mercado europeu até o ano 2008 em foi que foi graduado a País de Rendimento Médio. Seguiram-se três anos de transição que terminam no fim deste mês de Dezembro. Com o GSP+ as prerrogativas vão continuar. A questão que se coloca é o que se fez durante todos esses anos de acesso privilegiado ao vastíssimo e rico mercado europeu. O Governo não fez o balanço no sentido de como se têm comportado as exportações caboverdianas no quadro das facilidades anteriores nem muito menos revelou uma estratégia de aproveitamento das vantagens ora proporcionadas. Bem no seu estilo tomou a oferta como um ganho na competitividade externa do país mesmo sabendo que não resulta do aumento da produtividade nacional mas sim da generosidade de quem se abstém de cobrar tarifas de produtos caboverdianos importados. Os países mais desenvolvidos encaram os acessos preferenciais aos seus mercados como uma forma dinâmica de ajuda ao desenvolvimento. A Europa e o Japão depois da segunda guerra mundial e os países do sudeste asiático posteriormente nas décadas de setenta e oitenta beneficiaram extraordinariamente do acesso privilegiado ao enorme mercado americano. Hoje são todos países desenvolvidos. A própria China que há três décadas vegetava na pobreza extrema agora é a segunda economia do mundo graças à reorientação do sector produtivo para exportação. È a constatação do sucesso desses países e a esperança de que pode acontecer a outros que anima a União Europeia em garantir estatutos GSP e GSP+ e os Estados Unidos em criar programas como o AGOA. A dificuldade porém surge quando os governos estão realmente interessados em donativos e não em comércio, exportações e acesso a mercados. Viu-se a alegria como o Governo do Dr. José Maria Neves tomou o donativo do MCA e a frieza com que sempre tratou o AGOA. A inércia do Governo no caso da FRESCOMAR é ilustrativo. Os operadores na empresa fizeram o investimento porque a UE garante acesso preferencial que torna os produtos competitivos. Mas põe a condição do peixe a ser enlatado ser pescado por caboverdianos explorando os recursos marinhos do países. Até se conseguir fornecer a fábrica com pescado caboverdiana permite por um período certo que importem peixe da China, Marrocos e outros países. Satisfeito com o que lhe é dado o Governo não desenvolve a actividade pesqueira no país não estimula empresas locais nem capacita pescadores. Resultado 15 toneladas de peixe por dia que a FRESCOMAR processa por dia e que podia ser comprado a operadores nacionais são em grande parte importado do exterior porque não há oferta local de peixe. Um dia o prazo dado pela EU chega ao fim e soam todos os alarmes e outra vez vai-se pedinchar para provavelmente continuar a fazer o mesmo. De forma muito diferente comportaram-se alguns países africanos beneficiados no quando de AGOA. Aproveitaram o acesso privilegiado para lançarem um programa de atracção de capitais externos interessados na colocação dos seus produtos nos mercados certos. Potencia-se o investimento externo se em simultâneo densifica-se o tecido empresarial nacional fornecendo bens e serviços às empresas instaladas. Entretanto criam-se as condições para privados nacionais tomarem conta do negocio a exemplo do aconteceu noutras paragens designadamente as Maurícias. O que não se pode ad aeternum esperar que benefícios de hoje sejam substituídos por benefícios de amanhã porque “exportamos credibilidade”.

segunda-feira, dezembro 12, 2011

Memórias convenientes

Na controvérsia à volta da decisão da Universidade do Mindelo em homenagear o professor doutor Adriano Moreira com o título de doutor “honoris causa” esgrimiram-se memórias. Os ex-presos políticos lembraram-se de quem assinou a reabertura da prisão do Tarrafal como campo de trabalho. O Primeiro Ministro desviou o assunto com lembranças de quem ajudou na aproximação à Europa no quadro da parceria especial. O Presidente da República absteve-se de pronunciar só recordando que estudou num liceu na Praia com o nome do agraciado. Ficou claro para quem ainda tinha dúvidas que memória em Cabo é matéria de conveniência dos que pretendem ser donos da narrativa histórica do país. O país parece comportar-se como um paciente de Alzheimer esquecendo eventos próximos e deleitando-se com coisas do antigamente. Assim, a memória é curta se se trata de acontecimentos recentes do regime de partido únicos. As biografias de dirigentes homenageados do PAIGC/PAICV, Aristides Pereira e o Pedro Pires são apresentadas com “buracos de 15 anos de profundidade”. A memória já é longa se a conversa é sobre o regime colonial, Salazar e seus ministros. E há uma confusão de memórias se a discussão incide sobre a década de noventa. Fica-se sem saber se os anos noventa, também qualificados de negros e tenebrosos pelos dirigentes do PAICV, seguiram-se à noite colonial de 500 anos ou se vieram depois dos 15 anos de partido único e duraram até que o país fosse uma outra vez resgatada das trevas pela “força, luz e guia”. As aparentes memórias cheias de buracos e desarticuladas servem um propósito: deixam os adversários fora da história e só os recupera se posteriormente se mostrar conveniente para reforço da narrativa histórica. Fez-se isso com personalidades portuguesas anteriormente acusadas de “agentes do colonialismo” mas que hoje são amigas e professam admiração pelos “libertadores” . Continua-se a fazer com muitos que no passado foram consideradas ovelhas tresmalhadas do PAIGC/PAICV e agora são reencontrados na associação dos combatentes da liberdade da pátria. Em tudo isto porém sabe-se onde mora a coerência. Pedro Pires, questionado no dia 12 de Dezembro, sobre a existência de regimes ditatoriais actualmente em Africa, disse: “Esta é uma ideia "perigosa" importada do exterior e que pode minar a estabilidade de um país”. "É preciso cuidado, é preciso evitar taxar este ou aquele como ditador, ou como ditador perigoso, ou como ditador que não aceita mudanças. Acho que é preciso cuidado porque, além da ditadura, há um elemento importante que é a estabilidade e mais o Estado. Precisamos de estabilidade para, na estabilidade, construirmos então as instituições do Estado de Direito".

sexta-feira, dezembro 02, 2011

Europa na encruzilhada. Fim do euro?

A crise da dívida soberana iniciada em Maio de 2010 caminha rapidamente para um desenlace final. Perspectiva-se ou uma maior integração dos países europeus numa união fiscal ou o desaparecimento da zona euro e o eventual reaparecimento das moedas nacionais. O que recentemente considerava-se impensável, hoje é tida como possível se não provável que aconteça nos próximos dias. As consequências para Europa e para o mundo num cenário ou noutro serão profundas. Receia-se uma monumental recessão capaz de constranger por muitos anos o crescimento da economia mundial.

Nos últimos dias acontecimentos vários vieram demonstrar que o problema aparentemente só dos gregos e de outros países periféricos era afinal algo sistémico que, por contágio, acabaria por atingir o coração da União Europeia. De repente não era só a Grécia e Portugal a pagar taxas de juro elevadas nos títulos da dívida. A Espanha e a Itália também já pagavam acima dos 7% considerados pelos especialistas como limite para a sustentabilidade da dívida. Entrementes o rating AAA da França começou a tremelicar, a Bélgica viu o seu ser rebaixado e os mercados recusaram-se a absorver todos os títulos de dívida colocados pela poderosa Alemanha. O sentimento actual é que o tempo para acção enérgica e efectiva está a esgotar-se.

Há algum tempo que o mundo vem assistindo com estupefacção à incapacidade dos europeus em pôr cobro a uma situação potencialmente destrutiva dos ganhos acumulados na construção da União Europeia. Planos de austeridade radicais em vários países foram adoptados. Partidos no Governo na Irlanda, em Portugal e em Espanha perderam eleições e na Grécia e na Itália dirigentes políticos foram substituídos por tecnocratas. Mesmo assim os mercados não se mostraram convencidos. Acham que restrições e rigor na gestão das finanças pública, por si sós, não garantem crescimento suficiente para pagar a dívida se paralelamente não houver ganhos significativos na competitividade externa.

Cabo Verde tem um peg unilateral ao euro no quadro do Acordo Cambial de Março de 1998. O peg confirma a estreita ligação da economia caboverdiana com a Europa. De facto, o grosso do comércio de importação e exportação faz-se com países europeus e é deles que vêm o essencial dos investimentos, dos donativos e dos empréstimos concessionais. A Europa é o principal emissor de turistas para Cabo Verde e boa parte das remessas dos emigrantes tem aí a origem. Um resfriado na Europa pode traduzir-se em algo muito mais grave em Cabo Verde.

Num cenário de desaparecimento do euro, os desafios seriam ainda maiores. Uma ligação subsequente a qualquer das moedas nacionais submeteria o escudo caboverdiano às vicissitudes que sofreria no mercado no momento em ficasse solta para flutuar. O nível de vida dos caboverdianos não deixaria de ser afectado com isso. A recessão económica que se seguiria na Europa tornaria mais difícil o retorno aos níveis desejáveis de crescimento com impacto no emprego e na diminuição da pobreza.

Espera-se que este momento crucial na história da União Europeia seja ultrapassada com sucesso para que os povos em dificuldades vejam luz no fim do túnel, os mercados sejam acalmados e renove-se a confiança no crescimento futuro. Países pequenos como Cabo Verde precisam de um mundo estável e em expansão para poderem alijar os hábitos de dependência de ajuda externa e construir uma economia dinâmica. A própria democracia depende disso.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 30 de Novembro de 2011

quinta-feira, dezembro 01, 2011

Opacidade de regime e morte de Renato Cardoso

Renato Cardoso foi assassinado no dia 29 de Setembro de 1989. Amanhã, dia 1 de Dezembro, seria o seu 60º aniversário. O crime nunca foi resolvido e o autor ou autores descobertos e punidos. As circunstâncias em que foi cometido perderam-se ou foram engolidas pela opacidade que caracterizava o regime político então vigente em Cabo Verde. O partido único PAIGC/PAICV desde de cedo criou um regime de excepção para se defender de eventuais manifestações de revolta e indignação individuais ou colectivas dos caboverdianos contra o seu domínio. Logo em 1975 fez a lei de boatos (decreto-lei 36/75) que punia autores de rumores contra o Estado e seus dirigentes. Em 1976 com o decreto-lei 95/76 as forças de segurança e a polícia podiam prender qualquer pessoa durante um total de cinco meses sem culpa formada. Em 1977 avançou com o tribunal militar (decreto-lei 121/77) constituído por juízes nomeados sob proposta do ministro da Defesa que podia julgar civis classificados pela polícia como subversivos. Essas leis só foram revogadas pela Assembleia Nacional Popular em Maio de 1990. Sob o chapéu legal assim criado durante quinze anos o exército e a polícia constituíram-se como força de protecção do regime e dos seus dirigentes e todos os métodos, incluindo tortura, foram utilizados para reprimir dissidências e crimes. A vontade do regime em usar de todo este aparato nunca foi posta em causa. Sempre que se sentiu ameaçado agiu forte e duro. Por isso toda a gente estranha que o assassínio de um membro do governo tenha ficado por resolver. É crença geral, e a História confirma, que não são encontrados culpados nos assassinatos de graúda em regimes autoritários ou totalitários (Humberto Delgado, Sergey Kirov,) quando os crimes têm ramificações políticas. No caso de Renato Cardoso, o porta-voz do regime apressou-se logo no dia seguinte a garantir que não havia motivação política. O programa de viagens dos dirigentes não se alterou. O Primeiro Ministro Pedro Pires manteve a viagem para os Estados Unidos e o Presidente da República Aristides Pereira acompanhado do Ministro das Forças Armadas e Segurança partiu para Angola dois dias depois. Segundo relatos vindos a público, a polícia judiciária portuguesa chamada para investigar concluiu que a cena do crime não foi convenientemente salvaguarda e possíveis indícios do crime perderam-se. A sociedade caboverdiana, como bem ilustra a folha de jornal até hoje presente na montra do Djibla em S.Vicente, ainda pergunta “quem matou Renato Cardoso"? A angústia perante o hediondo crime contudo não impede que se celebre a vida desta figura marcante da vida politica, cultural e intelectual de Cabo Verde.

segunda-feira, novembro 28, 2011

Quem deve licenciar rádios e televisão?

Finalmente aprovou-se a lei que abre o caminho para a instalação da Autoridade Reguladora da Comunicação Social. Esta entidade reguladora foi criada na revisão de Fevereiro de 2010. O governo em antecipação da perda de muitos dos poderes em matéria de comunicação a favor da nova entidade apressou-se a fazer aprovar novas leis de comunicação social. Recusou-se a conformar as leis apresentadas com o figurino constitucional saído da revisão que atribui a um órgão eleito por maioria de dois terços dos deputados a competência para regular o sector chave para o exercício da liberdade de expressão e informação e da liberdade de imprensa. Na discussão na especialidade da semana passada o Governo insistiu em manter o poder de licenciar rádios e televisão. Argumentou que já está na lei, a lei da rádio e televisão que aprovou à revelia no ano anterior. Esquece que o princípio constitucional geral (art. 48º da CR) é que “todos têm a liberdade de exprimir e de divulgar as suas ideias pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio”. Para os jornais (artigo 60º n. 6 da CR ) aplica-se o princípio sem restrições. Para a rádio e televisão (artigo 60º n. 7 da CR) há necessidade de uma licença. As razões para isso prendem-se essencialmente com o facto de as emissões desses órgãos utilizarem o espectro electromagnético disponível. Como bem público e escasso, o espectro tem que ser gerido, alocadas as frequências e evitadas as interferências. Licenças para a rádio e televisão sendo restrições à liberdade de informação não devem estar dependentes do poder político. É à Autoridade de Regulação que a cabe assegurar “a independência dos meios de comunicação social perante o poder político e o poder económico” (artigo 60º n. 12 b) da CR). Em 2007 viu-se o que acontece quando é o governo a atribuir licenças de televisão. Licenças são atribuídas a figuras próximas do Poder. Outras são dadas por conveniência e em violação da lei que proíbe grupos religiosos de operarem televisão. Em todos os casos não há exigência de capital nem outras necessárias para o cumprimento completo do caderno de encargos, incluindo cobertura nacional. O mercado publicitário continua dominado pelos órgãos do sector público subtraindo receitas aos operadores privados e o resultado é que não se aumentou significativamente o pluralismo no país pelo facto de ser atribuído mais 4 licenças de televisão. A estação pública domina. Mas parece que é o estado de coisas que o Governo pretende manter com a sua teimosia de duvidosa constitucionalidade em licenciar rádio e televisão. Com a lei aprovada com as reticências dos deputados do MpD, a bola agora está com o Sr. Presidente da República para confirmar a constitucionalidade das soluções apresentadas.

sábado, novembro 26, 2011

Malhar nos anos 90 e enaltecer partido único

Espanta qualquer pessoa ouvir o governo debater no parlamento o Orçamento do Estado para o ano 2012. Parece um diálogo de surdos-mudos. Questionado pela oposição sobre os níveis perigosos do défice orçamental e de contas correntes, responde com incursões sobre o que ter-se-ia verificado nos anos 90. Inquirido sobre eventuais alterações na proposta de lei em coerência com as declarações do PM da semana anterior, contrapõe que não se justificam porque no país não há crise como acontecera em 90. Confrontado com os alertas do Banco de Cabo Verde sobre possíveis implicações da crise internacional no país, clama ter resgatada uma credibilidade perdida em 90. Credibilidade essa que, presumivelmente, blindam o país perante a crise, não obstante os sinais de abrandamento do crescimento económico, a baixa nas reservas externas e a diminuição significativa dos donativos e do fluxo de capitais estrangeiros. Tece elogios à sua governação, apontando as obras existentes mesmo sabendo que a base da economia real estreitou-se e cada vez mais depende do turismo. Os outros motores da economia previstos na chamada “Agenda de Transformação” (clusters do mar, ar, financeiro e transbordo) continuam a ser ficções por realizar. Do discurso do Governo, fica claro que não se sente responsável pelos fracos resultados das suas políticas de crescimento e emprego e pela falha no domínio da competitividade externa. Sem pudor algum, acusa e ataca o carácter de Carlos Veiga, que há mais de dez anos não governa Cabo Verde. Curioso é o facto do mesmo governo que em pleno debate da lei do Orçamento para 2012 fustiga os anos iniciais da democracia constitucional em Cabo Verde estar tão obcecadamente disposto em promover símbolos, personalidades e agentes do regime totalitário dos quinze anos após a independência. Simples coincidência não é certamente. E não augura nada de bom para o regime democrático.

quinta-feira, novembro 24, 2011

Parlamento de "arena"

O Parlamento caboverdiano funciona mal. Quem já assistiu na televisão o funcionamento de outros parlamentos, designadamente o parlamento português nota como os trabalhos normalmente decorrem. O Primeiro-ministro e outros membros do governo respondem às perguntas dos deputados de todas as bancadas e dão réplica nos debates. Há momentos de mais paixão e outros de algum azedume. Mas incidentes mais graves são raros.

Na Assembleia Nacional constata-se que situações difíceis surgem sempre que, aos olhos das forças da oposição, o Governo procura furtar-se a responder ao questionamento dos deputados. O tempo para intervenção da bancada da maioria e do Governo somam quase o dobro do tempo deixado para as outras forças políticas. A Oposição queixa-se de que, por causa disso, é alvo de manobras, acções dilatórias e mesmo provocações que acabam sempre por diminuir o seu tempo, desviar o debate e deixar matéria por esclarecer.

A percepção de que tais tácticas estão a ser postas em práticas, não raras vezes leva à exaltação dos ânimos e mesmo a situações desagradáveis. A imagem que os caboverdianos têm do parlamento é profundamente afectada por esses incidentes. Espera-se que não seja de interesse de nenhum dos sujeitos parlamentares que a casa da democracia seja mal vista pelo público. Mas às vezes parece que é precisamente isso que é procurado. Quando o Governo vai ao parlamento e esquiva-se a responder perante o plenário e a nação as questões colocadas pelos deputados, algo não está bem e se não for corrigido é a própria instituição que é posta em causa.

A suspensão da sessão da Assembleia Nacional na sequência de insultos trocados entre deputados e o Primeiro-ministro foi mais um destes episódios tristes. A oposição insistia com o Governo para prestar esclarecimentos ao parlamento e o discurso dos governantes derivava para os anos noventa da governação do MpD e eram dirigidos ataques ao líder do MpD, o deputado Carlos Veiga. A expectativa da oposição era que, na sequência da comunicação do Sr. Primeiro-ministro ao país, no dia 14, alterações à proposta de Orçamento do Estado espelhassem as novas medidas do governo. Como tal não aconteceu, normal era que os deputados procurassem esclarecimentos sobre o porquê se mantinha a proposta inicial.

Juízos diversos podem ser feitos à volta do que se passou, mas uma coisa é certa: o governo deve prestar contas e não pode deixar a impressão que procura subtrair-se à fiscalização dos deputados e do parlamento. A solução para um melhor parlamento passa por ter todos os sujeitos parlamentares e, em particular, o governo a seguirem à risca o regimento.

Já é tempo de a Assembleia Nacional deixar de ser um parlamento de arena, funcionando essencialmente em reuniões plenárias. As comissões especializadas precisam assumir o grosso do trabalho do parlamento. Só assim poder-se-á entrar num processo evolutivo do parlamento com melhoria da imagem e cumprindo integralmente o seu papel no sistema político caboverdiano.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 23 d Novembro

segunda-feira, novembro 21, 2011

Petróleo e pedras preciosas: sonho enganador

Segundo a Agência Lusa, Petra Lanz coordenadora residente das Nações Unidas em Cabo Verde, ao apresentar o país num seminário em Lisboa como “um bom exemplo” de desenvolvimento citou o primeiro-ministro cabo-verdiano dizendo que “o petróleo de Cabo Verde é a "boa governação" e as pedras preciosas são os jovens e as jovens”. Generosidade da senhora e perpetuação de equívocos. Não se vive da venda de boa governação. Pratica-se boa governação para estar à altura de poder vender bens e serviços. Mas quando se pretende viver dela, conseguindo donativos para financiar as necessidades do país, a tentação é governar “para inglês ver”. Problemas e insuficiências acumulam-se debaixo do tapete. Em caso de crise, as fragilidades do país reaparecem e ficam patentes a todos. Só que não há muito tempo para tomar medidas suaves de contenção. Hoje sabe-se que Cabo Verde não está nas melhores condições de a enfrentar. Do Banco Central de Cabo Verde vêm os alertas: 1 - Riscos Orçamentais: o controlo das despesas com o pessoal e da evolução das pensões exigirá reformas estruturais. 2- Custos escondidos: nas empresas públicas, municípios e provavelmente nos institutos públicos existirão responsabilidades contingenciais cuja materialização é susceptível de agravar significativamente as contas públicas. 3- Perda no rating internacional: Cabo Verde está a aproximar do limiar do risco moderado. 4- Prioridades tracadas: por fazer ficarão algumas reformas estruturais importantes. 5- Ilusões: a sustentabilidade das finanças públicas não é suficiente para impulsionar o crescimento económico e do emprego. 6- Falta de visão: a competitividade externa é igualmente crucial, mas as exigências não estão colocadas na agenda e nem foram ainda comunicadas aos caboverdeanos. 7- Atrasos: é ainda visível o atraso em termos de serviços de infra-estruturas, nomeadamente energia, água, comunicações, transportes e saneamento. 8- Por completar: na Administração Pública, a utilização das modernas plataformas tecnológicas deve ser complementada com reformas organizacionais, de estruturas e do sistema de incentivos. 9- Falta de flexibilidade: a legislação laboral carece de adaptação à realidade de uma economia em busca de competitividade. 10- Força do Informal: a informalidade (da economia) constitui um dos mais sérios obstáculos no acesso ao financiamento, limitando o investimento privado e o crescimento da economia. Quanto aos jovens, de há muito suportando níveis altíssimos de desemprego, sabem que o sistema de ensino e formação sem qualidade retirou-lhes as possibilidades de terem o brilho e o polimento das "pedras preciosas". O Governo deixou-se ficar pela retórica enquanto o futuro prenhe de possibilidades lhes passava ao lado porque não lhes foi dado a competência linguística, os conhecimentos matemáticos e científicos e domínio das TIC exigidos.

sexta-feira, novembro 18, 2011

Mistificações

"Temos liberdade de imprensa do primeiro mundo", sentenciou o Sr. Primeiro-ministro num discurso proferido nas comemorações da Inforpress. É mais uma das mistificações que o Governo é pródigo em criar e que levadas pela máquina dos media estatal ecoam pelos órgãos da comunicação social do país. O PM justifica a sua afirmação com a inexistência de processos judiciais contra jornalistas. A realidade é que todas as democracias liberais têm como pressuposto básico os direitos fundamentais como liberdade de expressão e liberdade de imprensa, mas também o direito ao bom nome, à imagem e à intimidade. O normal numa sociedade aberta é que, em certos momentos, haja tensões e mesmo conflitos no exercício dos direitos e liberdades. Para os dirimir existem tribunais independentes. Bastante jurisprudência foi já produzida nas democracias desde que foi criada a República americana há mais de duzentos anos. Acórdãos célebres debruçaram-se sobre casos em que jornalistas e jornais se opunham ao Estado (New York Times vs. USA, Pentagon Papers) ou publicações contra personalidades (Larry Flint vs. Jerry Falwell). Nos dias de hoje, o Tribunal europeu em vários momentos teve de se debruçar sobre casos que em que a disputa era, se uma notícia, fotografia ou vídeo fere ou invade a esfera privada ou íntima das pessoas e o que isso representa quando se trata de personalidades públicas. A existência de casos judiciais opondo jornais e jornalistas a personalidades públicas ou privadas não é evidência suficiente para, como pretende o Sr. Primeiro-ministro, avaliar do estado da democracia, sobretudo se rotineiramente casos nos tribunais são ganhos por órgãos e profissionais da comunicação social. Já a ausência de casos de tensão, particularmente com o Poder instalado, chama a atenção. Durante todo o regime de partido único, tirando o caso do julgamento do Frei Fidalgo, não houve situações de choque aberto com os jornalistas. A relação do regime com a comunicação social ficou bem expressa nas palavras do então Presidente da República Aristides Pereira: “não há especialistas em Informação. Há, sim, militantes que coordenam, em diversos escalões, o trabalho essencial de levar a cada cidadão, por todos os meios possíveis, o conhecimento de como se desenrola o processo complexo, em que é chamado a participar, de construção dos alicerces do progresso do país”. (Jornal Voz di Povo de 29/9/84)”. Com os primeiros passos na democracia surgiram tensões inevitáveis entre órgãos e jornalistas, agora armados das liberdades de expressão, e de imprensa e o poder democrático obrigado a funcionar num ambiente transparente e sujeito ao escrutínio público permanente. A segunda década da democracia, dominada pelo PAICV, destacou-se pelo aparecimento da auto-censura como deixam bem claro relatórios sucessivos da Freedom House e dos Jornalistas sem Fronteiras. A realidade de todos conhecida é que o Estado domina a comunicação social em Cabo Verde na rádio e na televisão e não há muitos sinais de emergência de uma opinião pública contrariamente ao que diz o Sr. PM. Os privados sofrem com a competição dos órgãos estatais no mercado publicitário e toda a actividade da comunicação social é condicionada pela presença fortíssima da propaganda governamental. As intenções do Governo para com os media de Cabo Verde mostram-se sem disfarce na lei da comunicação social: O Estado considerava a comunicação social parceira e daí convidá-la, entre outras coisas, a incentivar e apoiar políticas económicas e a censurar más práticas. O Estado daria subsídios, benefícios fiscais e outros incentivos a quem melhor fizesse isso. No discurso referido o PM dá a questão da responsabilização dos jornalistas uma tonalidade quase apocalíptica citando frases bíblicas do Juízo Final: "por tuas palavras serás justificado, e por tuas palavras serás condenado". Essa invocação traduz a forma como aparentemente o PM vê a liberdade de imprensa: Uma liberdade com limites democráticos, ou seja, uma liberdade social e democraticamente prospectada em pacto colectivo. Complicado.

quarta-feira, novembro 16, 2011

Construir vontades

Os desafios colocados pela actual crise são extraordinários. Confrontá-los tem sido difícil particularmente se reina a crispação no meio político nacional. Em vários países europeus, recentemente a Grécia e a Itália foi-se pela via de construção de consensos políticos alargados. Nos dois casos, o Primeiro-ministro em funções cedeu lugar a personalidades aceites pelos principais partidos e bem referenciados nos mercados internacionais pela competência, ponderação e capacidade de transformação. Noutros casos, como em Portugal e provavelmente em Espanha, o novo governo trabalha com uma oposição que de algum modo se sente responsável pela implementação das reformas.

A evolução do diálogo político, para além da habitual confrontação partidária, teve suporte em dois factores essenciais: 1- reconhecimento pelas partes da realidade da crise no país; 2- aceitação das reformas e do pesado preço político que há que pagar para as pôr em prática. O caminho para se chegar a consensos não foi fácil. Nos diferentes casos foi necessário fazer um grande esforço para extrair, do manto de ofuscação construído pela propaganda governamental, a verdade dos factos sobre o país. E não foi pacífico porque dificultada a cada passo por manobras de encobrimento de responsabilidades. Compreende-se que terminem com o sacrifício do líder.

Em Cabo Verde o Primeiro-ministro liderou uma primeira tentativa de diálogo. Mas começou mal. Primeiro não reconhece que o país desde o fim da bolha imobiliária, em 2008, é afectado pela crise. Segundo, secundariza o papel dos partidos com assento parlamentar ao recebê-los no mesmo formato que ouve personalidades e entidades públicas e privadas e organizações sindicais e religiosas. Terceiro, termina o ciclo de consultas opondo-se frontal e publicamente a posições e opiniões que considerou terem sido de algumas das entidades ouvidas. É evidente que não é essa a forma de se construir uma vontade nacional em questões fundamentais.

Na segunda-feira, o Primeiro-ministro, sem ainda reconhecer os efeitos da crise, dirige uma mensagem ao país, delineando as medidas que o governo pretende tomar nos próximos tempos. Na terça-feira, reuniu-se com os parceiros em sede de Concertação Social e sem surpresas, a reunião não deu em nada. O próximo encontro ficou adiado para Dezembro.

Dificilmente poderia ter sido de outra forma. Em cima da mesa estavam matérias como o 13º mês, o salário mínimo, aumentos salariais e flexibilidade do código laboral. Sem um trabalho prévio, sincero e honesto quanto à situação real do país não é razoável pedir que promessas sejam simplesmente esquecidas. Nem propor às pessoas que abdiquem dos seus direitos para abraçarem um pacto social propiciador de crescimento e de futuros empregos. Confiança é algo que tem que ser construída e confirmada a cada momento.

A bola está do lado do governo. Tem que ter coragem para ir além dos seus instintos de controlo para associar outros na tarefa exigente de fazer face à crise que assombra todo o mundo. Os principais parceiros de Cabo Verde já estão a sentir os efeitos recessivos das reformas encetadas. A dependência actual de Cabo Verde das transferências externas garante que o país que não ficará incólume. É tempo de agir e não de polarizar.

Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 16 de Novembro de 2011

segunda-feira, novembro 14, 2011

Artes de simulação

A Política está a se institucionalizar com uma actividade que exige fundamentalmente um rápido jogo de pernas, que nem o Muhammad Ali: está-se em todo o lado e não se é encontrado em sítio nenhum. O Governo move-se como se estivesse a combater a crise, mas sempre que é surpreendido apressa-se logo a proclamar que a crise ainda não afecta o país. Esvazia quaisquer sugestões de acção, dizendo ou que os conselhos vêm com atraso de dois anos, ou proferindo declarações teatrais “não me peçam para parar os investimentos”. Antes de ser questionado sobre o porquê das sete folhas de medidas contra a crise que apresentou na segunda-feira, o PM apressou-se a dizer que o combate contra a crise não é de hoje. Vem desde 2007. Neste ponto é de realçar a omnisciência do Governo que na época já combatia a crise que iria desencadear-se em Setembro de 2008. Seguiu-se a blindagem do país e a substituição do capital directo estrangeiro por empréstimos para a construção de infraestruturas. As obras entregues maioritariamente a empresas estrangeiras não impediram o aumento do desemprego nem ajudaram as empresas nacionais a se consolidarem. Paradoxalmente, diminuíram os índices de pobreza, mesmo em S.Vicente com a maior taxa de desemprego do país, chamando a atenção para os canais abertos entre o Governo central, ONGs e associações comunitárias que permitiram a distribuição de donativos e de fundos públicos. Revelações em tempo de campanha, não desmentidas pelas autoridades confirmaram que esses canais também servem interesses político-eleitorais. É em tempo desta “boa governação” que a dívida externa atinge mais de um bilhão de dólares, perdem-se oportunidades de investimento nos enredos da administração pública, despesas não discricionárias aumentam em sintonia com o aumento das receitas e o governo falha em transmitir à população a urgência em ganhar competitividade externa, como bem salientou o governador do BCV. Atingido o ponto em que segundo um funcionário do Banco Mundial já não restam munições ao Governo, o país é agraciado com as sete páginas de medidas. É de se perguntar o que esteve antes a fazer. Sabe-se que algo se fez, afinal são dez anos, mas é evidente que não resultou como desejado. Mudar vai custar, e vai levar tempo para ultrapassar os muitos obstáculos que se colocam no caminho do desenvolvimento. O Jogo de pernas, as artes de aparição e desaparição e a não assunção de responsabilidades não vão desaparecer. O encontro com a realidade já está marcado. A dúvida está no modo de aterragem: suave ou brusco.

sexta-feira, novembro 11, 2011

Receitas sem olhar como

O Governo que diz não querer aumentar impostos, arranja uma saída airosa para obter mais receitas. Penaliza o tabaco e o álcool em nome da luta contra o tabagismo e alcoolismo. A realidade é que se sabe perfeitamente que a procura desses produtos não é elástica. Como alimentam hábitos arreigados, dificilmente se alteram os padrões de consumo pela via da tributação. Mas outros males sociais podem surgir de uma manipulação desproporcional dos preços. O contrabando pode tornar-se interessante e atrair pessoas para esta actividade criminosa se a discrepância de preços justificar o risco da operação. Nesse caso perdem todos. Há quebra nas receitas, o crime aumenta e aprofunda-se a informalização da economia. As pessoas mantêm os hábitos ou saem simplesmente à procura de produtos alternativos, invariavelmente mais perigosos. Ou seja, aos custos referidos deve-se ainda ajuntar a pressão sobre os serviços de saúde, os dias de trabalho perdidos e quebra de produtividade. No caso actual de Cabo Verde, o objectivo de diminuir o alcoolismo particularmente entre os jovens dificilmente será atingido com maiores impostos no álcool importado. A impressão generalizada é de que a juventude, seja no mundo rural, na cintura urbana das cidades ou à volta das discotecas e de outros centros de diversão bebem o grogue e outras mistelas à base do grogue. Esse álcool, produzido e distribuído sem controlo, raramente cai sob alçada do fisco. O Estado tem-se mantido basicamente impassível a ver o alcoolismo a crescer a ponto de se tornar um sério problema de saúde pública. Nada de significativo tem feito para pôr cobro à produção ilegal, permitindo com isso que situações difíceis com implicações nas famílias, na economia e na segurança e tranquilidade das pessoas e das comunidades persistam sem um fim à vista. O Estado prefere ignorar o problema do alcoolismo. Não é coerente e justo que agora queira lucrar simulando lutar contra ele. Aliás a voracidade por receitas sem olhar a meios é bem ilustrado com a taxa ecológica. O Estado arrecadou receitas Mais de (500 mil contos) bem acima das previstas (300 mil contos) prejudicando severamente a competitividade das empresas nacionais. Ainda sente-se a relutância em abdicar do que há de excessivo nessa taxa.