Os primeiros 100 dias do presidente da república José Maria Neves têm sido intensos, divididos entre audiências, visitas e encontros para além dos actos oficiais.
Eleito a 17 de Outubro – já antes da investidura a 9 de Novembro, o novo PR com várias iniciativas e em particular com a visita ao Gana para convidar pessoalmente o presidente desse país e presidente em exercício da CEDEAO – começou a sinalizar a pró-actividade que aparentemente vai caracterizar a sua presidência. Originário de um sector político diferente daquele que suporta o governo, vai ser interessante observar como o anunciado activismo presidencial irá funcionar num quadro de um governo de maioria absoluta de forma a que sua magistratura de influência seja vista com efectiva. É a segunda vez que JMN participa num exercício de “coabitação”. A diferença é que desta vez os papéis estão trocados e o seu papel já não é de chefiar o governo do país, mas sim de árbitro e moderador do sistema político.
Diz-se muitas vezes que o poder de influência do presidente da república em sistemas de governo como o de Cabo Verde ou de Portugal é de geometria variável. No dia da vitória do Partido Socialista com maioria absoluta, quando questionado sobre as linhas vermelhas no exercício do poder, o primeiro ministro português António Costa traduziu essa ideia respondendo que “o primeiro garante de que não pisaremos o risco sou eu próprio”. Antes tinha dito que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa não permitiria que o PS pisasse o risco. Quando governos são minoritários ou suportam-se em coligações frágeis, o PR tem campo para um activismo mais pronunciado. Há mais contenção nos casos onde existem maiorias sólidas.
Em Cabo Verde, durante os trinta anos de democracia, só pontualmente as maiorias na governação se mostraram frágeis e, quando aconteceu, viu-se o activismo do presidente mas nem sempre de forma positiva. Curiosamente, o actual governo, apesar de ser expressão de uma maioria absoluta saída das últimas eleições legislativas, deixa por vezes passar a ideia de que não está seguro do seu suporte em momentos cruciais da vida parlamentar. Aconteceu na aprovação da moção de confiança que se seguiu à apresentação do programa do governo e voltou a verificar-se nos dias que antecederam a discussão parlamentar da proposta do Orçamento do Estado. No primeiro caso, a UCID, como que a querer reforçar a maioria necessária para viabilizar o governo, apareceu a oferecer apoio à moção de confiança. No segundo caso, foi a vez do presidente da república, depois do acto inédito do primeiro-ministro e dois ministros irem ao palácio apresentar-lhe o OE, a convocar partidos políticos no que se presumiu ser busca de consensos para garantir a aprovação da lei na sessão parlamentar imediatamente a seguir.
Situações como as verificadas na semana passada no parlamento, a começar pela aprovação da ordem do dia, continuam a dar sinais de fragilidades diversas e de falta de coesão da maioria parlamentar. Existindo já uma intenção de uma presidência mais activa na sua magistratura de influência e num contexto em que o governo na relação com a sua maioria parlamentar deixa passar uma imagem de fragilidade, a questão a saber é se, por um lado, não se está a abrir excessivamente as portas a uma intervenção mais musculada do presidente e se, por outro, não se está a aumentar para além do razoável as expectativas das pessoas quanto ao que o PR pode, de facto, fazer. A verdade é que o presidente não governa, e enverando por caminhos de maior intervencionismo, pode prejudicar no processo a sua credibilidade e a sua função essencial que é de ser árbitro e moderador do sistema político e de ser visto como figura suprapartidária sempre focado no interesse geral e não em interesses particulares.
Estes primeiros 100 dias da presidência decorreram num ambiente político e sócio-económico extremamente desafiante. Viu-se de tudo, desde um surto grave de coronavírus na variante Ómicron, estrangulamentos nas cadeias de abastecimento com impacto nos stocks e preços dos produtos, inflação crescente em todo mundo e já com impacto em Cabo Verde e ainda tensões geopolíticas graves, em particular na Europa, a tornar mais imprevisível o futuro próximo. Com o país na expectativa de retoma económica, mas com a dura realidade da dívida pública e da perda de receitas e com muitas incertezas pelo meio a tarefa que se põe ao conjunto do país não se afigura nada fácil. É da maior importância que se possa contar com a contribuição do conjunto da classe política para que, sem prejuízo da democracia e do pluralismo, se trabalhe para manter os equilíbrios, a credibilidade e sustentabilidade das instituições, cultivar a serenidade perante dificuldades incontornáveis e focar o país no que deve ser realmente prioritário.
O facto de o novo ciclo eleitoral estar ainda relativamente distante podia ser útil para no entrementes se dar passos decisivos na consolidação de uma cultura democrática em que no debate político a utilidade do dissenso não é posta em causa pela necessidade de consensos em questões essenciais. Pelo caracter singular da sua função, o PR pode desempenhar um papel fundamental nesse processo, construindo pontes, como se propôs fazer e tem feito, ouvindo pessoas, recebendo organizações e visitando instituições numa autêntica roda-viva nos últimos 100 dias. Um outro papel seria de contribuir para a contenção da chamada crise das democracias e para pôr um travão a tentações populistas, reafirmando os direitos fundamentais dos cidadãos e sendo frontal e directo na defesa da independência dos tribunais, da autonomia do ministério público e do princípio da subordinação do poder militar ao poder civil constitucionalmente legitimado.
Essencial ainda será manter o ambiente adequado para o diálogo aberto entre as partes, sejam elas correntes de opinião políticas ou filosóficas, ideológicas ou expressões estéticas e culturais. Sendo o PR o representante da república, ou seja, o presidente de todos os cabo-verdianos não faz muito sentido que se torne promotor e mentor principal de partes num debate ainda em aberto. Aliás, a Constituição (art. 50º-2/c) explicitamente proíbe dirigismo estatal do ponto de vista filosófico, ideológico ou estético no sistema educativo. É por isso contranatura o patrocínio que se solicita ao PR para causas que relembram o culto de personalidade próprio de regimes totalitários como é o caso do culto de Cabral que se instila nas crianças e jovens em todos os níveis do sistema de ensino em Cabo Verde.
Causas divisivas da Nação não deviam merecer qualquer tipo de preferência de quem é o representante da unidade nacional. A democracia cabo-verdiana ainda é nova e precisa resgatar-se dos condicionamentos impostos à nação nos anos da ideologia do partido único. Liberdade intelectual e diálogo de ideias sem interferências e preferências do Estado é fundamental para que isso aconteça na tranquilidade e com ganhos para todos. Num mundo em que a capacidade de criar e de inovar é fundamental para a criação de riqueza e para o desenvolvimento não se pode manter a reprodução de ideologias bolorentas cerceadoras do espírito de iniciativa e autonomia e também da assunção de riscos.
Na condição actual não estranha que Cabo Verde, segundo o último índex da democracia, continue a ser uma democracia imperfeita (37º lugar). Falha precisamente na participação onde só pode dar o salto com uma sociedade civil autónoma, liberdade intelectual e sem dirigismo ideológico do Estado. O país precisa sair do círculo vicioso que o limita nas suas liberdades, esvazia o debate e constitui um entrave ao seu desenvolvimento. Cabo Verde agradeceria se, passados os 100 dias, o resto do mandato do PR fosse nesse sentido.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1055 de 16 de Fevereiro de 2022.