Começou já o ano político de 2023/24 que irá desembocar nas eleições autárquicas de Outubro ou Novembro do próximo ano. Claramente que será um ano pré-eleitoral com consequências não só nas eleições locais, mas com eventuais efeitos de arrastamento nas legislativas e presidenciais que vão marcar todo o novo ciclo eleitoral. Não se pode realmente dizer que com o novo ano político a crispação política vai aumentar, considerando que nunca diminuiu no quadro político já institucionalizado de campanha permanente. Períodos de tréguas pós-eleitorais, de abertura para compromissos em questões fundamentais, vêm-se tornando cada vez mais raros. Espera-se por isso o recrudescer dos ataques, a intransigência habitual e o adiar na procura de soluções para o país.
Hoje, dia 4 de Outubro, arranca efectivamente o ano parlamentar com as primeiras reuniões plenárias da nova sessão legislativa. Ainda não é desta que se agendaram as eleições para órgãos exteriores como a autoridade reguladora para a comunicação social, a comissão nacional de protecção de dados e a comissão nacional de eleições que há quase dois anos terminaram os respectivos mandatos. Muito menos prevê-se que haja condições para se avançar com as eleições para o Conselho Económico, Social e Ambiental (CESA) que desde 2014 se aprovou legislação própria. Constituído pelo conselho para o desenvolvimento regional, pelo conselho das comunidades e pelo já existente conselho de concertação social, o CESA poderia emprestar um outro valor e perspectivas mais abrangentes da problemática do país nesta fase crucial em que crises se multiplicam e o futuro não é claro. Aparentemente outras prioridades politiqueiras e ideológicas se sobrepõem.
Entretanto, enquanto tudo neste começo do ano político parece estar a postos para continuar na via do “mais do mesmo” o mundo lá fora move-se de forma imprevisível por caminhos marcados por incertezas várias. A guerra na Ucrânia não parece ter fim à vista e eventuais negociações de paz poderão ser prejudicadas por sinais de fractura no apoio do Ocidente contra a ameaça russa. O impacto que tudo isso vai tendo nos preços dos combustíveis e dos produtos alimentares e globalmente na inflação continuará a agravar a situação particularmente para os países mais pobres. Acrescenta-se a isso a polarização crescente no mundo que cria tensões geopolíticas com efeitos negativos no comércio internacional e na movimentação de capitais e aumenta os custos de transacção num ambiente de maior risco e de taxas de juro mais elevadas.
Há poucos dias o Banco Mundial fez a revisão em baixa das projecções de crescimento na China e nos países do sudeste asiático para níveis que não tinham sido vistos há várias décadas. Considerando que a região constitui um dos principais motores de crescimento da economia mundial, imagine-se o impacto que terá actual conjuntura em que a Europa também lida com falta de dinâmica na sua economia. Não melhora a situação as dificuldades de avançar com a transição energética já visíveis na relação com os produtores de combustíveis fósseis que querem aproveitar no máximo o período de transição. O mesmo acontece com os países do chamado Sul Global que não se sentem obrigados ao mesmo nível que os países do Ocidente em fazer os sacrifícios com o argumento que não foram os maiores poluidores e que não tiveram a possibilidade como os outros de crescer com energia barata. Por aí se vê o caminho cheio de solavancos e muito incerto que se vai ter de percorrer nos próximos tempos.
Cabo Verde, segundo a proposta de Orçamento do Estado apresentado pelo governo, projecta crescer 4,7 % em 2024. Depois dos três anos a recuperar da grande recessão provocada pela Covid e que permitiu crescimento de 6% em 2021, 17% em 2022 e, espera-se, de 5,7% em 2023, fala-se agora de abrandamento, em linha com o potencial de crescimento que o ministro das Finanças coloca à volta dos 5%. O problema, segundo o governante num post na sua página do Facebook , é que esse “nível de crescimento económico não é suficiente para ultrapassar os desafios que o país enfrenta ao nível da eliminação da pobreza, da redução do desemprego jovem e do crescimento que é preciso para colocar Cabo Verde no patamar do desenvolvimento” desejado.
A solução que ele avança é de se “manter o foco na estabilidade macroeconómica e social e acelerar as reformas para aumentar o potencial de crescimento da economia”, reformas essas que terão de abranger sectores como energia, conectividades, recursos humanos e instituições. Não se vê é como isso será feito tendo em conta o ambiente político pouco dado a compromissos e que vai ficar ainda mais polarizado num ano que será uma antecâmara para um novo ciclo eleitoral. Também o ambiente externo marcado pela policrise poderá não ser o mais propício para impulsionar investimentos e aumentar de forma expressiva o fluxo turístico. E sem taxas de crescimento económico mais elevadas não se vislumbra como se vai eliminar a pobreza extrema de forma sustentável no horizonte 2026 como preconiza o governo.
A verdade é que pelos discursos feitos e pela forma como cada vez mais se faz política no país percebe-se que o foco da atenção geral não está fundamentalmente no que deve ser feito em termos de reformas, de mudança de atitude e de acção governativa para que o país possa aumentar o seu potencial de crescimento e, como o ministro das Finanças preconiza, “passar de 5 e 7 % para crescimento a dois dígitos”. Conquista e manutenção do poder é o que parece interessar mais. Mesmo quando se é desafiado por instituições internacionais vitais para o financiamento do país para discutir o modelo de desenvolvimento que mostra sinais de esgotamento, prefere-se desvalorizar a questão e mudar de assunto, de preferência para qualquer matéria que sirva de arma de arremesso político, atice paixões, incite inveja e provoque ressentimentos.
As crises sucessivas que o país e o mundo vêm enfrentando nos últimos anos deviam ter servido para construir mais solidariedade, tornar as instituições mais merecedoras de confiança e promover mais autonomia e sentido de responsabilidade das pessoas. Infelizmente não foram aproveitadas nesse sentido e, pelo contrário, deixou-se aumentar a dependência do Estado e cultivar a descrença nas instituições e na política. Os períodos pré-eleitorais tornam tudo muito pior porque o que passa a prevalecer é o que a curto prazo serve para a conquista do poder.
Há que chegar um momento em que se terá que quebrar o círculo vicioso que não deixa o país ir além do “mais do mesmo” e, de seguida, aprofundar as reformas de modo a subir para um outro patamar. De outra forma, milhões serão gastos em transições energéticas e digitais e a criar economias azuis e verdes correndo o risco de mais uma vez os resultados ficarem muito aquém dos pretendidos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1140 de 4 de Outubro de 2023.