segunda-feira, novembro 12, 2018

Não há reformas sem sólida vontade política

Os dados do Doing Business 2019 que colocam Cabo Verde na posição 131 entre 190 países não são encorajadores. Há anos que primeiros-ministros e ministros dos sucessivos governos vêm declarando o seu comprometimento na melhoria da competitividade do país e do ambiente de negócios.
Os resultados não têm sido expressivos. A exemplo do que outros países fizeram cria­ram-se task forces e unidades de competitividade para melho­rar os rankings de Cabo Verde. Infelizmente os esforços desen­volvidos não resultaram como esperado, contrariamente ao que aconteceu em países como o Ruanda, a Estónia, a Finlândia e a Índia. Em alguns desses países conseguiu-se que melhorassem mais de 50 pontos nos rankin­gs. Os mesmos cinquenta pon­tos que o primeiro-ministro Dr. Ulisses Correia e Silva vem insis­tindo que é o objectivo a ser al­cançado nos próximos dez anos mas até agora não se viu movi­mento significativo dos rankings nessa direcção. Pelo contrário.
As dificuldades com que o ac­tual governo se depara no pro­cesso de melhoria do ambiente de negócios não são muito di­ferentes das enfrentadas pelo governo anterior. São dificul­dades para as quais contribuem extraordinariamente a atitude, os procedimentos e o modo de agir da administração do Estado. Em 2015, depois de quase quin­ze anos no topo da direcção da administração pública enquan­to primeiro-ministro, o Dr. José Maria Neves queixou-se várias vezes de problemas no funciona­mento do Estado com impacto nos custos de contexto, no am­biente de negócios e na competi­tividade do país. Era evidente na época a sua frustração e quase impotência perante a postura da administração que ele próprio dizia que precisava ser mais im­parcial, mais universal e menos partidarizada. Ainda hoje é cla­ro que os problemas persistem e pelos resultados do Doing Busi­ness vê-se que o actual governo mostra a mesma incapacidade em alterar as coisas, mudar os comportamentos e introduzir procedimentos mais expeditos.
Razão talvez para se concluir que vontade política dos gover­nos não consegue sobrepor-se à cultura administrativa que impregna toda a máquina do Estado e impor-lhe uma outra orientação e uma outra atitude. De facto, tudo leva a crer que a cultura administrativa que não serve os cidadãos, não serve os negócios e não é efectiva na implementação das políticas governamentais sufragadas na urna, sobrevive a mudanças de governo e até se reproduz quan­do se lhe dá oportunidade como aconteceu a nível dos municí­pios. A administração munici­pal, supostamente mais próxima das pessoas, não é menos buro­crática, centralizadora e insensí­vel para com os utentes. E é de esperar que a persistir a actual cultura administrativa no país, dificilmente, no caso da criação das regiões, a nova administra­ção regional vai criar um novo paradigma de relação com cida­dãos, utentes e operadores eco­nómicos.
Na origem e posterior evolu­ção da postura da administração do Estado certamente que se po­derá descortinar os contributos da administração salazarista e do regime de partido único e os efeitos das tentativas de reforma verificadas nos 27 anos de de­mocracia. As marcas dessa longa história ainda hoje são visíveis, mas o factor que deverá ter con­tribuído para que, no essencial, se mantenha igual a si própria, é a persistência de uma economia de reciclagem de fluxos externos que põe o Estado no seu centro. A máquina estatal enquanto re­cipiente e distribuidora desses fluxos que dinamizam a econo­mia do país naturalmente que ajuda a criar e a reproduzir na sociedade dependências múlti­plas. Por essa via acaba por ser­vir certos interesses políticos e alimentar uma classe média liga­da ao Estado e um sector privado atento aos acessos, facilidades e oportunidades que lhe são ofe­recidas ou disponibilizadas. Em tal ambiente em que eufemisti­camente o Estado posiciona-se no “topo da cadeia alimentar” é mais que evidente que qualquer reforma dirigida para lhe retirar essa posição dificilmente terá bom resultado. Não é pois de es­tranhar que apesar de todos os esforços para encaminhar o Es­tado para o papel de facilitador e regulador, enquanto o prota­gonismo na sociedade se deslo­caria para os indivíduos, para os empreendedores e para o sector privado, nenhum governo con­seguiu tal desiderato. O paradig­ma mantém-se, e todos sabem disso. Agora há quem espere que a regionalização num passe de mágica faça as transformações que até aqui reformas passadas não conseguiram.
Trabalhar para a competiti­vidade, ceder protagonismo às pessoas e empresas e ter a admi­nistração pública a renovar-se como facilitador e estrutura sen­sível às necessidades das pessoa e da economia significaria uma viragem profunda na mentalida­de geral do país. Representaria um comprometimento sério e consequente com os objectivos de crescimento e emprego para além dos discursos oficiais que são feitos em boa medida com o intuito de manter as transferên­cias externas para o país. Prova­velmente em 2018, 43 anos após a independência não se estaria a organizar uma conferência em Paris com os parceiros para se efectivar “finalmente” uma nova fase, nas palavras do Mi­nistro das Finanças Olavo Cor­reia, na qual “queremos delegar ao sector privado um papel mais preponderante” , “por forma a que ao invés de continuarmos a aumentar o endividamento público, termos investimentos privados a financiar projectos estruturantes em Cabo Verde”. Também não se estaria a ali­mentar em nome do “desenvol­vimento harmonioso” das ilhas modelos de crescimento com base em factores endógenas re­legando para o segundo plano o esforço nacional para se inte­grar na economia mundial com atracção de capital, acompanha­do de tecnologia e mercado, e com o aumento e qualificação do fluxo turístico. Historicamente, prova-se que Cabo Verde apenas conseguiu prosperar quando de alguma forma a sua economia se articulou com vantagens na eco­nomia mundial.
Manter o olhar virado para dentro do país convenientemen­te serve a cultura administrati­va que ajuda a manter o Estado no topo da cadeia alimentar. Só pondo de lado o modelo que até agora deixou o país dependente das transferências externas é que se pode almejar criar estruturas produtivas de base na iniciativa privada capazes de propiciar o crescimento e os empregos que tanto precisamos. Para romper o círculo vicioso é fundamental que a vontade política do go­verno se faça sentir com deter­minação, foco e sabedoria para ultrapassar as barreiras que até agora deitaram por terra todas as reformas da administração e poder contribuir para que final­mente o país se torne competiti­vo e produtivo.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 884 de 07  de Novembro de 2018.

segunda-feira, novembro 05, 2018

Sensibilidade democrática + competência tecnocrática

Uma das grandes contradições dos tempos actuais é ver em várias democracias os diferentes actores políticos, mas também grupos sociais e indivíduos a agirem de uma forma que fragiliza as instituições, mina confiança na classe política e abre caminho para derivas arriscadas de natureza autoritária e populista. Já aconteceu, está acontecer e tudo indica que vai continuar a acontecer num país ou outro. As consequências saltam à vista nos resultados recentes das eleições brasileiras como se mostrara, por exemplo, no Brexit, nas eleições americanas, húngaras e italianas.
 Mesmo sabendo qual tem sido o desfecho dessas derivas, continua-se a fustigar as instituições da democracia representativa, ora alimentando utopias construídas na base da democracia directa ou à procura do Santo Graal da representatividade política em círculos uninominais e em deputados desligados dos partidos, ou ainda, mais frequentemente, apostando em figuras providenciais armados de soluções simplistas para todos os problemas das pessoas e da sociedade.
Cabo Verde não está isento destas manifestações. A crispação que caracteriza a relação entre as principais forças políticas, como ficou mais uma vez evidente nas sessões parlamentares de Outubro, contribui para desqualificar o parlamento e desencorajar os cidadãos face à polarização das posições dos intervenientes. Também como já foi bem notado, em geral, leva à “simplificação até o absurdo dos argumentos e ao esvaziamento do sentido das palavras à procura de excitação das emoções que não são só prejudicam a qualidade do debate público como têm sentido tóxico sobre a cidadania”. Viu-se, por exemplo, no debate sobre a situação da justiça como não se conseguiu dar o salto para a avaliação das razões por que a justiça ainda não tem a eficácia desejada, não obstante os significativos meios que lhe são destinados. Preferiu-se ficar pelo confronto à procura de ganhos partidários efémeros quando se podia procurar trabalhar no âmbito de um pacto entre várias forças que poderia compreender: 1- a reavaliação do modelo de justiça que resultou da revisão constitucional de 2010 com poderes de gestão e meios financeiros, inéditos em figurinos constitucionais próximos, atribuídos aos conselhos de magistratura. 2- a operacionalização urgente da inspecção judicial para garantir aos conselhos instrumentos indispensáveis para a gestão eficaz dos juízes e procuradores e das secretarias judiciais; alterações no próprio formato do debate sobre a situação da justiça de modo a que o papel dos conselhos não fique só pela apresentação de relatórios sem a possibilidade de se explicarem e de se defenderem. As pessoas querem mais justiça, querem ter a quem claramente exigir responsabilidades e dispensam espectáculos de acusações mútuas politicamente motivadas cujo único efeito é de efectivamente deixar o sistema de justiça e os seus agentes à salvo de críticas. Não estranha que os avanços na eficácia da justiça não acompanhem no ritmo desejado os muitos milhões que têm sido investidos no sistema.
Algo similar verificou-se na discussão e aprovação da lei sobre a regionalização. Do debate ficou-se com a impressão que a preocupação maior foi mais no sentido de tentar provar que o “outro” não queria a regionalização do que em expor para a nação as razões por que seria vantajoso para o país criar uma região em cada das oito ilhas, com excepção de Santiago onde se pretende que haja duas regiões. Normalmente tais tácticas em iniciativas que exigem dois terços dos deputados para serem aprovadas resultam em chumbo da proposta de lei seguido de recriminações mútuas. A surpresa foram os votos inesperado de dois deputados do Paicv e a ausência de vários outros que viabilizaram a iniciativa, mas que não diminuíram a crispação. Pelo contrário, face à fragilidade da actual liderança da oposição que já tinha sido evidenciada na eleição à justa do líder parlamentar e que com o novo incidente ficou mais clara, a reacção das bancadas foi mais crispação e mais um contributo para diminuir a imagem dos políticos. Assim, de um lado, a reacção foi de regozijo pelo facto de alguns deputados da nação supostamente se terem libertado das amarras do partido e alinharem com o sentimento do eleitorado do seu círculo. Do outro lado, sucederam-se vozes a acusar de deslealdade e indisciplina partidária e até a aventar possível expulsão do grupo parlamentar. Em qualquer das reacções, faz-se por não compreender a natureza do mandato do deputado e aprofunda-se nas pessoas o mau entendimento de como realmente funciona o parlamento. Mais uma vez questões de fundo como são no caso a regionalização cedem lugar a questões mais imediatas de luta partidária ficando por esclarecer o que realmente se quer com a criação de regiões, como por exemplo: se é pela via da regionalização que se pretende chegar a uma administração pública mais isenta e imparcial, mais efectiva e sensível às necessidades dos utentes; também se é por essa via que se pretende diminuir os custos de contexto e ser mais eficaz na atracção de investimentos, em particular, de investimento externo; ainda se é pela potenciação de factores locais que se estará em melhor posição de formar capital humano e ganhar competitividade no quadro global do país.
Recentemente numa entrevista ao jornal Público o filósofo espanhol Daniel Innerarity lembrou que não podemos prescindir dos sistemas inteligentes, ou seja, de sistemas com cultura, normas, regras inteligentes porque quando se tem isso a sociedade até pode funcionar com gente relativamente medíocre. Já o contrário, ou seja, se há vazios normativos, com culturas políticas torpes e sem regras razoáveis mesmo de gente inteligente só se consegue que actuem de maneira muita estúpida. Actualmente o mundo encontra-se numa encruzilhada e é grande a tentação para se pôr em causa as instituições democráticas existentes, vilipendiar a política que privilegia a verdade, os factos e a honestidade na busca do interesse público e quebrar regras indispensáveis à manutenção de um ambiente de civilidade, de respeito pela opinião contrária e de cooperação necessário para que todos possam contribuir e beneficiar da “inteligência colectiva” de que fala Innerarity. Há que resistir a essa tentação e isso exige duas importantes qualidades cada vez mais escassas neste ambiente renitente às regras e manifestamente anti-político e anti-partidos que são a sensibilidade democrática para se manter intacto o sistema de liberdade e pluralismo essencial à democracia e a competência tecnocrática necessária para responder aos extraordinários desafios que o país enfrenta e que exigem que potencie os seus parcos recursos e estrategicamente se posicione para construir um futuro de prosperidade para todos.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 883 de 31 de Outubro de 2018.

segunda-feira, outubro 29, 2018

Patriotismo Virtuoso

O anúncio do novo acordo de pesca com a União Europeia foi a mais recente oportunidade para as acusações se multiplicarem na comunicação social e nas redes sociais de que o interesse nacional não está a ser salvaguardado nas negociações com países estrangeiros. Voltou à baila a questão da compensação financeira dada pela UE que muitos consideram irrisória para a quantidade de peixe (média de 6,5 toneladas) capturado por barcos europeus nas águas de Cabo Verde, mesmo tendo passada de 550 mil dólares para 750 mil euros no novo acordo.
Aparentemente o raciocínio geral reflecte o equívoco de se considerar que Cabo Verde, no âmbito do acordo, estaria a vender peixe aos europeus por cerca de 2 escudos o quilo e não a cobrar uma simples licença pela pesca de uma espécie que, ainda para mais, só se torna disponível porque nas suas migrações atravessa a zona económica exclusiva do país. A indignação de muitos ventilada nos órgãos de comunicação social e nas redes sociais contra os termos do acordo talvez fosse mais produtiva se virada para o questionamento das razões por que o país até agora não conseguiu explorar adequadamente os seus recursos marinhos. Infelizmente o momento político parece mais propício a manifestações que tendem a cair para posições quási xenófobas dirigidas contra europeus e fazem lembrar ritos identitários que nos últimos tempos vêm-se tornando frequentes um pouco por todo o mundo com consequências imprevisíveis e gravosas para as democracias.
Recorrentemente em situações similares em que se procura aprofundar as relações económicas do país com a economia mundial levanta-se um sentimento de rejeição ao que vem de fora, em particular se o objectivo é potenciar a relação histórica de Cabo Verde com os países da União Europeia. É o que aconteceu quando nos anos noventa se fez a transição da economia estatizada para uma economia de mercado com a liberalização da economia, reformas do sistema financeiro, programas de privatizações, medidas de atracção do investimento estrangeiro e abertura para o turismo. Ouviram-se então vozes a acusar de “vendedores da terra, de anti-patriotas e de agentes do estrangeiro” aos que apoiavam as reformas que abriam o país para a modernidade. Vozes no mesmo timbre continuam a fazer-se ouvir sempre que se anunciam medidas que configuram maior aproximação com a Europa e a América. Ilustram esse facto os casos recentes da proposta do governo de isenção de vistos para cidadãos da União Europeia e do acordo SOFA com os Estados Unidos e agora toda a polémica sobre o acordo de pesca.
A questão em todos estes momentos não é de se ter opiniões diferentes sobre as reformas, sobre iniciativas tomadas ou compromissos assumidos. Isso é salutar e fundamental para a democracia porque ninguém tem a fórmula certa para desenvolver o país. Só com o debate democrático é que se pode almejar ficar mais próximo do caminho certo evitando a crispação política paralisante que resulta da polarização de opiniões e do extremar de posições sempre que actores políticos e sectores da sociedade vêem as opiniões e as acções dos outros como ilegítimos, como anti-patrióticos e como nocivos para o país. Aí tudo emperra, a confiança nas instituições cai e abre-se o caminho para a demagogia e o populismo. O exemplo do Brasil é bastante ilustrativo. Mostra o que acontece quando as convicções substituem os factos, as verdades são aquelas ditadas pela conveniência e o ressentimento alimenta lutas identitárias e tribais.
No caso de Cabo Verde – em que se está perante uma sociedade sem fracturas de natureza etnolinguística e religiosa e sem traumas geradoras de ressentimentos – é estranho que a política seja tão polarizada a ponto de impedir efectivamente que reformas profundas sejam implementadas em sectores-chaves como administração pública, segurança, justiça e educação e também na estruturação da economia nacional. O que alguns países africanos de sucesso como Botswana, as Maurícias e as Seicheles conseguiram na criação de consensos nacionais apesar da complexidade étnicas e linguista, Cabo Verde, com uma sociedade mais homogénea, não conseguiu. O facto de se ter forçado e se continuar a forçar Cabo Verde a ver a sua identidade nacional como produto de lutas e resistências contra o colonialismo e como mais uma “nação forjada na luta de libertação” tem consequências. Cria uma tensão e uma dinâmica de divisão no tecido social cujos efeitos na política já se notam no confronto que opõe os que se proclamam patriotas e “amantes da terra” e os que estes, do alto da sua pretensa superioridade, consideram-se “vendedores da terra ou antipatriotas ”. Pode ser uma questão de tempo até que divisões tendo como base o lugar de origem e eventualmente outros factores comecem a afectar decisões políticas, a mudar a relação com o legado cultural diverso do país e a condicionar até o que as pessoas poderão ambicionar ser e fazer. Paradoxalmente é numa sociedade que há séculos emergiu consciência nacional é que precisamente se veio criar uma crise identitária que, para além de fragilizar toda a nação, dificulta o progresso e a preservação da unidade renovada na liberdade e no pluralismo. Uma vítima já bem identificada deste estado de coisas é a língua portuguesa como bem reconhecem as autoridades brasileiras ao exigir aos estudantes cabo-verdianos a proficiência na língua escrita e falada como requisito de entrada nas suas universidades.
Ultrapassar os obstáculos para o debate democrático, de modo a que não se caia na tentação de retirar legitimidade a ninguém e também de colocar entraves à participação a todos os níveis, é fundamental. A forma não conflituosa com que a ideia da nação se desenvolveu em Cabo Verde devia ser o ponto de partida na construção de uma nação segura nas suas relações com o estrangeiro, porque ciente que não é afectada pelas mazelas da discriminação racial, ou por lealdades tribais e religiosas que não lhe deixam ver o todo e distinguir qual é o seu interesse. Pelo contrário, deve alimentar a certeza que pode triunfar não obstante todos os obstáculos e, como no caso da cooperação com a União Europeia no âmbito das pescas, focalizar-se nos instrumentos que lhe vão permitir para criar emprego, diversificar a economia, e desenvolver uma base produtiva voltada para a exportação. É disso que o país urgentemente precisa e não ficar a pasmar e dilacerar-se dividido nas suas dúvidas quando à questão de onde veio e para onde vai.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 882 de 24 de Outubro de 2018.

segunda-feira, outubro 22, 2018

Demagogos vs. Pedagogos

Iniciou-se o novo ano parlamentar e logo se fez notar a falta de eficácia nos trabalhos da Assembleia Nacional. Estavam agendadas perguntas a ministros, em particular ao ministro da economia por solicitação do Paicv que queria respostas do governo sobre o que classificou de crise nos transportes aéreos e o tipo de contracto assinado com a transportadora aérea Binter.
 Considerando a actualidade da questão que veio na sequência das tensões entre a a Binter e Agência de Aviação Civil foi surpresa geral que os sujeitos parlamentares não conseguiram gerir adequadamente o tempo disponível para que esclarecimentos sobre a matéria fosse prestada pelo governo. Persistiram na forma costumeira como utilizam o tempo parlamentar com desperdício notório em interpelações à mesa que fogem claramente do figurino previsto para esse instituto no regimento. É de se perguntar se alguém de facto na AN estava interessado em que o assunto fosse a debate.
Claro que logo a seguir todos se acusaram mutuamente de não quererem o questionamento do membro do governo. Uma coisa é certa: a Nação é que ficou por ser esclarecida em sede do contraditório como devia. O mais estranho é que o governo e a sua maioria não se tenham esforçado mais para aproveitar a oportunidade e clarificar as questões sobre o transporte aéreo doméstico eliminando as incertezas que terão sido criadas com a reacção da Binter sobre os novos preços máximos fixados pela AAC. Os interesses do governo e da oposição não são simétricos. A responsabilidade do país cabe a quem governa assim como também lhe cabe garantir às pessoas, à sociedade e aos operadores económicos um ambiente de tranquilidade, de previsibilidade e de certeza onde todos os eventuais conflitos são dirimidos sem sobressaltos desnecessários. Se o ministro tivesse tido oportunidade de expor as posições do governo perante os representantes da nação na quarta-feira passada hoje ter-se-iam dados mais concretos sobre a situação dos transportes aéreos e provavelmente não se estaria perante mais um desencontro de posições sobre o futuro dos transportes marítimos, designadamente sobre a questão do serviço público e da exclusividade trazida no comunicado da associação dos armadores.
As democracias, enquanto sistemas de governo com base no voto popular periódico, legitimam-se no dia-a-dia pela sua disponibilidade em prestar contas e serem fiscalizadas através de checks and balance dos órgãos de soberania e pela sua abertura em serem permanentemente escrutinadas pelos órgãos de comunicação social e pela sociedade no seu todo. É evidente que se as decisões políticas forem vistas como tomadas fora do processo democrático, ou se não são debatidas e contestadas no parlamento ou ainda se procura evitar que os médias façam luz sobre como o poder é exercido, inevitavelmente um muro de desconfiança acabará por separar os cidadãos dos poderes públicos. Parte do que hoje se chama crise da democracia resulta dessa erosão das instituições, da falta da acountability geral e da subordinação da classe política aos ditames de um eleitoralismo que se centra no impacto político partidário de curto prazo e confronta problemas complexos da sociedade procurando varrê-los para debaixo do tapete ou chutando-os para frente, esperando que se resolvam por si.
Curiosamente nota-se em muitos casos que quem devia primar pela defesa das instituições é o primeiro a juntar a sua voz à dos eternos descontentes da democracia e a pôr em causa os direitos fundamentais e a democracia representativa. Minam as instituições democráticas e, acto contínuo, à procura de ganhos políticos, assumem a dianteira na crítica às insuficiências daí resultantes. Nem se dão conta que abrem portas a demagogos e candidatos a autocratas.
Há pouco tempo numa entrevista a um jornalista do New York Times o novo presidente da Colômbia Iván Duque dizia que um populista é sempre um demagogo e do que hoje as sociedades não precisam são de demagogos. Precisam, acrescenta ele, de pedagogos que podem dizer a um país “ onde queremos ir, como fazer para que o queremos aconteça e o que é todos têm que dar para realizar esses objectivos”. Infelizmente essa não parece ser a opinião de muita gente. A atracção por demagogos está a se mostrar forte tanto nas democracias mais consolidadas designadamente nos Estados Unidos e na Europa como nas democracias mais recentes como bem testemunha a ascensão meteórica de Bolsonaro, no Brasil. Para muitos desses políticos emergentes fica mais fácil juntar-se a forças dirigidas contra as instituições democráticas e pretender oferecer soluções fáceis para problemas complexos do país e da sociedade. Paradoxalmente usam a condenação geral da corrupção para fazer as pessoas deixarem de confiar nas instituições e se entregarem cegamente sob protecção de um chefe, ditador ou autocrata que se lhes apresenta como moralmente superior, ou como autêntico ou ainda com um outsider, um político diferente de todos os outros.
Em resposta a esta tendência que é actualmente um perigo imediato para as democracias há que, como diz o ex-primeiro ministro espanhol Felipe Gonzalez num entrevista ao jornal El País, negar respostas simples a situações complexas e ser politicamente responsável fazendo a sociedade encarar-se a si própria com os problemas que a afligem. A urgência em agir de forma a conter a erosão de confiança dos cidadãos nas instituições é cada vez maior. Incertezas em relação ao futuro têm aumentado com o enfraquecimento da aliança entre as democracias e com os ataques ao comércio livre e recentemente às organizações multilaterais designadamente as Nações Unidas e as instituições de Bretton Woods. O FMI, no World Economic Outlook de Outubro, previu em baixa o crescimento mundial no próximo ano por conta desses desenvolvimentos.
Mais uma razão para a classe política nacional deixar de se fixar em ganhos imediatos com prejuízo para as instituições e perda na confiança dos cidadãos na democracia. É o momento para se apresentarem como actores que sabem que a dinâmica da democracia depende do pluralismo na sociedade e do contraditório exercido no parlamento. Devem dar provas que actuam com conhecimento profundo que “o que nos une é maior e mais fundamental do que aquilo que nos separa”. E é com essa consciência que se pode, de facto, pretender servir o país no governo ou na oposição e trabalhar na defesa e consolidação da democracia, o único regime que a história já mostrou que pode garantir a liberdade e levar à prosperidade.

Humberto Cardoso



Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 881 de 17 de Outubro de 2018.

segunda-feira, outubro 15, 2018

Não há inclusão sem qualidade

Para este ano lectivo o lema adoptado foi “Mais Educação, Mais Inclusão”. No ano de 2017 tinha sido “Educação: um compromisso para o presente e para o futuro” e em 2016 fora “Todas e Todos Sem Distinção de Nenhuma Ordem, Têm Direito a Uma Educação de Qualidade”. Todos belos lemas em que os objectivos de inclusão, qualidade e compromisso com o futuro são reafirmados como, aliás, desde há décadas o foram pelos sucessivos governos. O problema porém é que todos constatam no dia-a-dia: a inclusão tem sido em boa parte uma miragem; a qualidade é o objectivo mais sacrificado; e há que reconhecer que o compromisso com o futuro não tem sido cumprido quando se vê os muitos jovens desempregados saídos de todos os níveis de ensino. Por outro lado, já é notória a procura activa por franjas cada vez mais amplas da classe média do país de outras soluções que não a escola pública para colocar os filhos.
Cabo Verde tem algumas características que em outros países foram factores que os impeliram para ter uma educação de qualidade a nível mundial. Como Singapura, Estónia, Irlanda e Finlândia, Cabo Verde é um país pequeno, jovem e pobre, se não mesmo desprovido de recursos naturais. Também tem uma consciência nacional de há muito consolidada que devia traduzir-se em propósitos colectivos de sacudir a dependência, engajar o mundo com inteligência e desenvoltura e potenciar a capacidade de todos na construção do caminho para a prosperidade. Ou seja, tem vários dos ingredientes que nos países referidos e outros similares serviram de motivação para a construção de sistemas de educação capazes de resultados que competem com os mais altos atingidos a nível mundial. Saber por que apesar dos propósitos declarados aqui não se conseguiu pôr de pé uma educação de qualidade é crucial e devia anteceder estratégias e planos de reorientação do sistema educativo no sentido de maior eficácia e impacto na vida das pessoas e no desenvolvimento do país.
A Ministra da Educação recentemente lembrou numa intervenção no fórum sobre educação que no final do século XX Cabo Verde já tinha atingido as metas mundiais quanto à universalidade da educação básica e a paridade do género mas que se registavam ainda baixos níveis de aprendizagem e a persistência de práticas educativas desajustadas que afectavam a permanência no ensino secundário e estariam na origem da falta de sintonia entre a formação e o mercado de trabalho. A constatação da ministra traduz uma realidade muito conhecida que é a disparidade entre, por um lado, os investimentos feitos e os números publicitados que projectam uma imagem de sucesso do sistema de ensino e, por outro, os resultados concretos que ficam invariavelmente aquém do que na prática são precisos para ter impacto no desenvolvimento.
Os países que apostaram na educação como base fundamental para o crescimento económico não se limitaram a ficar pela mediania e por comparações com os piores na sua vizinhança. Ambicionaram sempre competir com os melhores no mundo. Por isso, certificaram-se que a democratização do ensino não podia acontecer sacrificando a qualidade. Em Singapura, por exemplo, os melhores professores são encaminhados para as escolas com maiores dificuldades porque fazem questão que todos os alunos tenham o melhor nível de ensino possível. É claro para os seus dirigentes que não há qualidade de ensino sem uma aposta séria na qualidade dos professores. Andreas Schleicher, director de Educação da OCDE e administrador dos testes PISA é peremptório em dizer que “nenhum sistema educativo pode ser melhor que a qualidade dos seus professores”.
De facto, não se pode pretender melhorar a qualidade do ensino sem colocar o foco na formação do professor, nos critérios meritocráticos que devem presidir à sua ascensão na carreira e no reconhecimento social que o seu trabalho deve merecer. Por isso, nos países de maior sucesso educativo os melhores graduados das escolas são atraídos para a profissão de professores e grandes investimentos são postos na sua formação específica e em instituições especialmente preparadas. Também os políticos querendo dar maior ênfase ao papel dos professores não podem propor-se simplesmente a satisfazer “reivindicações de natureza sindical” em termos de promoções, progressões e reclassificações ainda para mais, na perspectiva político-eleitoralista que muitas vezes é apresentada. A melhoria das condições dos professores, uma prioridade numa sociedade que quer desenvolver-se, tem que ser acompanhada de exigências de formação e de melhoria objectiva e quantificável do trabalho docente prestado.
A Educação deve ser vista como um ecossistema em que vários elementos concorrem para a sua estabilidade, foco e progresso. Para além da qualidade dos professores é fundamental o comprometimento de toda a sociedade com a procura do conhecimento, com o cultivo da excelência e com adopção de critérios meritocráticos na progressão nas carreiras e na ascensão profissional. Não se pode ficar por uma perspectiva que terá vingado no passado em que mandar os filhos para a escola e, a partir do diploma adquirido, dar um salto para um trabalho seguro no Estado era uma forma de contornar as incertezas derivadas da fragilidade económica do país. O engajamento das pessoas e do próprio Estado na educação deve ser outro: menos instrumental e paternalístico como outrora foi e mais potenciador do desenvolvimento do indivíduo e da sua capacidade de contribuir para a sua prosperidade pessoal e do seu próprio país. Por isso mesmo, mais inclusivo, mais enriquecedor e mais comprometido com o futuro.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 880 de 10 de Outubro de 2018.

segunda-feira, outubro 08, 2018

Ameaças de Lock-out?

O país foi surpreendido no passado dia 24 de Setembro pela posição da companhia aérea Binter de considerar que deliberações da Autoridade Aeronáutica (AAC),com que não concorda, a “libertam de compromissos” tomados com o governo actual e o anterior. Imediatamente parou vendas a partir de 28 de Outubro, data em que os novos preços máximos dos bilhetes de avião inter-ilhas iriam, segundo directiva da AAC, entrar em vigor.
Sendo a única operadora nos vôos domésticos, era evidente a confusão que se gerou quando de repente se tornaram incertas as ligações entre as ilhas. No dia 26 a Binter, referindo-se a “reuniões frutíferas”, em relação às quais e não se sabe se foram internas ou com alguma entidade externa à empresa, retomou a venda de bilhetes depois de endereçar à AAC um pedido para reavaliar o quadro tarifário publicado com as baixas nas tarifas máximas. Os dois dias de incertezas vieram lembrar a fragilidade que caracteriza o transporte aéreo nas linhas domésticas em Cabo Verde, as enormes dificuldades com que a TACV se confrontou e que a levaram à situação da falência e a importância estratégica para o país que é assegurar a todo o tempo que meios existam e a preço adequado e justo para ligar por via aérea regular todas as ilhas.
Os problemas nos transportes aéreos já vêm de longe e as soluções não têm deixado de ser polémicas. Na sequência de problemas financeiros graves da TACV, a Binter, a partir de 1 de Agosto de 2017, ficou sozinha no mercado doméstico. Três meses antes, a 25 de Maio, tinha assinado com o governo um acordo em que cedia 49% do seu capital social de 647 mil contos à entidades públicas e privadas cabo-verdianas. Desses 49%, trinta por centro seriam em troca da “posição comercial” da TACV e os restantes 19% seriam preenchidos até 1 de Junho de 2018. O acordo incluía a integração de administradores representantes dos accionistas caboverdianos. Acontece porém que até à data referida de início de Junho deste ano nada do que tinha acordado foi cumprido. De acordo com o BO de 7 de Maio de 2018, a Binter um ano depois ainda é uma sociedade unipessoal e tem todos os administradores nomeados pelos accionistas canários. Interpelado pelos jornalistas a 29 de Maio sobre qual foi o destino dos 30% que resultaram da cedência da posição comercial da TACV e porque não estão administradores cabo-verdianos, a resposta do Vice-Primeiro Ministro e Ministro de Finanças quando deste ano foi é peremptória: “Nós acordámos a entrada do Estado de Cabo Verde com 30% do capital pela saída na operação doméstica. Nós não queremos ser accionistas de empresa para termos administradores públicos juntamente com privados. Nós queremos que a empresa preste um bom serviço para os cabo-verdianos”. Quanto aos restantes 19%, o Ministro de Finanças já em várias ocasiões manifestara que o governo não tinha interesse em comprar.
Com esta declaração do Vice-Primeiro Ministro fica-se a conhecer a intenção futura do governo em relação à participação do Estado na Binter e o facto de não corresponder ao que inicialmente foi acordado. Não se fica a saber é o que vai acontecer entrementes e a falta de transparência ou défice na comunicação governamental não ajuda ninguém. Viram-se os problemas que foram criados antes porque várias questões não teriam ficado claras no referido acordo, designadamente, a das evacuações médicas e o transporte aéreo de mercadorias. Hoje assiste-se ao contencioso com a AAC quanto aos procedimentos para fixação das tarifas máximas. Amanhã poder-se-á estar a discutir sobre eventuais subsídios para as rotas de “baixa densidade de tráfego” como determina a resolução nº 24 de 10 de Março de 2016.
Este incidente porém trouxe à baila algo que já tinha acontecido antes, mas que agora, tratando-se dos transportes aéreos, tomou uma outra dimensão. Uma empresa suspendou a sua actividade, neste caso de venda de bilhetes de avião, como forma clara de pressão política. Aliás, se alguma dúvida houvesse quanto ao que pretendia, dissipou-a imediatamente ao considerar-se liberta de todos os compromissos tomados com o governo. O problema é se é legítimo ou mesmo legal e constitucional fazer isso. Para os constitucionalistas, a proibição de lock out no nº 3 do artigo 67 da Constituição visa também “vedar às entidades patronais o recurso ao encerramento da empresa como meio de pressão política”. E vão mais longe e dizem que a proibição abrange profissionais autónomos e os produtores independentes pelo que não podem fazer da paralisação da actividade uma arma para atingir certos interesses .
Nestes dois últimos anos já se tinha assistido também a movimentações de empresas envolvendo paralisia de actividade que podem configurar lock-out e todas com objectivo de pressão política. É só lembrar do encerramento das cerca de 30 lojas chinesas na Boavista em Agosto de 2016 em resposta à fiscalização dos serviços das finanças que consideraram discriminatória. Ou então o encerramento da empresas Frescomar em dois momentos: a 10 de Junho de 2016, para levar os trabalhadores em manifestação contra críticas dos moradores de Lazareto, e a 18 de Outubro, também numa manifestação contra a Câmara Municipal de S. Vicente. Curioso que nestas duas situações não haja registo de reacção das autoridades para pôr cobro ao que aparentemente é ilegal fazer-se em resposta a diferendos com comunidades, serviços públicos ou autoridades reguladoras. No caso da “greve” das lojas chinesas segundo a imprensa da época, o problema foi ultrapassado mas com a intervenção da embaixada chinesa. Pergunta-se se o Ministério Público abriu algum inquérito a uma prática com evidentes prejuízos para o público e dirigidas a pressionar politicamente as autoridades.
A fazer escola este tipo de atitudes, que no caso do transporte aéreo que une as ilhas são facilmente perceptíveis as consequências, pode-se estar a abrir uma caixa de Pandora que depois será difícil fechar. Pergunta-se é se, ficando as autoridades em geral e o governo em particular em silêncio quando confrontadas com essas tácticas fora do quadro legal, não se estará a impedir que o melhor ambiente para que os conflitos sejam dirimidos correctamente e com transparência seja criado. Para evitar que isso aconteça, tais tácticas têm que ser combatidas e criadas as condições para que as instituições nacionais, designadamente as autoridades reguladoras, se afirmem e se constituam no activo essencial que é fundamental em actividades chaves para o futuro do país como é o caso da aviação civil.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 879 de 03 de Outubro de 2018.

segunda-feira, outubro 01, 2018

Ser consequente na defesa dos direitos humanos

Este ano de 2018 celebra-se em todo o mundo o septuagésimo aniversário da Declaração Universal dos direitos humanos. As comemorações em vários países convergem para 10 de Dezembro, o dia em que em 1948 a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou por esmagadora maioria a carta dos direitos humanos. Em Cabo Verde a passagem de mais um aniversário da Constituição – aconteceu ontem, dia 25 de Setembro – é um bom momento para relembrar a importância dos direitos humanos. Foi em 1992 que tais direitos se viram efectivamente integrados na Lei Magna de Cabo Verde. Na Lei de Organização do Estado (LOPE) aprovada em 1975, logo a seguir à independência, foram simplesmente ignorados. A Constituição de 1980 já os registou, mas restringiu-os de seguida sujeitando-os aos ditames da lei ordinária (art. 47) e proibindo o seu exercício contra as instituições do regime de partido único (art. 34º).
O Mundo sentiu a necessidade da uma decla­ra­ção solene dos direitos humanos na sequência dos horrores da segunda guerra mundial e em particular do profundo choque que foi conhecer a forma sistemática como o Estado nazi agiu para esmagar indivíduos e proceder ao aniquilamento de grupos étnicos, com destaque para os mais de 6 milhões os judeus liquidados nos campos de concentração de Auschwitz, Dachau e Treblinka. Às víti­mas da ferocidade nazi jun­taram-se depois os muitos milhões enviados pelo comunismo para os gulags e os campos de reeducação para relembrar da importância de se salvaguardar os indivíduos da prepotência e violência do Estado. A Magna Carta forçada ao rei inglês João, há mais oitocentos anos, já era sinal dos tempos que o exercício do poder deveria verificar-se dentro da lei e que os indivíduos em caso algum devem ser atropelados nos seus direitos. Séculos depois a declaração dos direitos humanos da revolução francesa e a Bill of Rights americana serviram para consolidar o princípio de que democracia é um governo de poder limitado em o que governo além de se sujeitar à lei na prossecução dos seus objectivos deve respeitar os direitos do indivíduo, não os comprimindo em caso algum.
Em Cabo Verde a inexistência de direitos fundamentais estabelecidos, ou de sensibilidade para os defender, abriu caminho para todas as espécies de abusos. Vítimas do regime ao longo dos anos podiam ser encontradas em todas as ilhas, acusadas por crime de lançar boatos, ou presos por mais de três meses sem culpa formada, ou acusados de desobediência por reagirem a autorizações de saída e outros esquemas de controlo das autoridades. Em S.Vicente e S.Antão em particular várias pessoas foram torturadas e houve mortes. Nas outras ilhas aconteceu o mesmo, mas em menor escala. O regime sempre esteve preparado para responder a qualquer desafio ao poder da sua clique dirigente. Por isso é que considerá-lo como quase benigno, tomar os factos e o que aconteceu às vítimas como acidentes ou como excessos de militantes, só serviu para camuflar a sua natureza de sistema repressivo e iliberal instalado no país desde de 1975.
Em simultâneo, deixando de fora as instituições que constituíam esse sistema, não se motivou ninguém para pôr a fim a práticas e desalojar uma cultura institucional desrespeitadora dos direitos fundamentais nesses anos todos. Não é a toa que recorrentemente vêm à tona casos de violência policial, ou que se notam tensões entres os operadores de justiça devido a acusações múltiplas sobre quem é responsável pela falta de eficácia da Justiça. Assim é, em parte, porque o Estado nunca assumiu que torturou e matou. Mudam os governos e nenhuma entidade quer assumir a responsabilidade do Estado perante quem foram as suas vítimas. Mas na falta dessa assunção plena pelo Estado ao mais alto nível como se pode reorientar as instituições para abandonar as práticas anteriores e evoluir no sentido do que se espera no regime democrático.
Este ano de comemoração da declaração universal dos direitos humanos devia ser aproveitado pelos órgãos de soberania para, em nome do Estado, pedir desculpas pelo atropelos graves cometidos contra pessoas nos primeiros 15 anos após a independência, acompanhadas de eventual compensação para os que mais sofreram com a sua família a violência do Estado. Seria um acto de justiça e um acto consequente com a adopção da Constituição de 1992 que com todo o seu catálogo de direitos dos cidadãos foi uma clara reacção a ausência desses mesmos direitos no regime anterior. Também marcaria a disposição firme de lutar contra derivas iliberais que se vêm manifestando nas democracias, comprimindo os direitos dos cidadãos, atacando a independência dos tribunais e procurando condicionar os órgãos de comunicação social e a actividade jornalística na sua tarefa de escrutínio de todos os poderes.
Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 878 de 26 de Setembro de 2018.

sexta-feira, setembro 28, 2018

Ser consequente na defesa dos direitos humanos

Este ano de 2018 celebra-se em todo o mundo o septuagésimo aniversário da Declaração Universal dos direitos humanos. As comemorações em vários países convergem para 10 de Dezembro, o dia em que em 1948 a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou por esmagadora maioria a carta dos direitos humanos. Em Cabo Verde a passagem de mais um aniversário da Constituição – aconteceu ontem, dia 25 de Setembro – é um bom momento para relembrar a importância dos direitos humanos. Foi em 1992 que tais direitos se viram efectivamente integrados na Lei Magna de Cabo Verde. Na Lei de Organização do Estado (LOPE) aprovada em 1975, logo a seguir à independência, foram simplesmente ignorados. A Constituição de 1980 já os registou, mas restringiu-os de seguida sujeitando-os aos ditames da lei ordinária (art. 47) e proibindo o seu exercício contra as instituições do regime de partido único (art. 34º).
O Mundo sentiu a necessidade da uma decla­ra­ção solene dos direitos humanos na sequência dos horrores da segunda guerra mundial e em particular do profundo choque que foi conhecer a forma sistemática como o Estado nazi agiu para esmagar indivíduos e proceder ao aniquilamento de grupos étnicos, com destaque para os mais de 6 milhões os judeus liquidados nos campos de concentração de Auschwitz, Dachau e Treblinka. Às víti­mas da ferocidade nazi jun­taram-se depois os muitos milhões enviados pelo comunismo para os gulags e os campos de reeducação para relembrar da importância de se salvaguardar os indivíduos da prepotência e violência do Estado. A Magna Carta forçada ao rei inglês João, há mais oitocentos anos, já era sinal dos tempos que o exercício do poder deveria verificar-se dentro da lei e que os indivíduos em caso algum devem ser atropelados nos seus direitos. Séculos depois a declaração dos direitos humanos da revolução francesa e a Bill of Rights americana serviram para consolidar o princípio de que democracia é um governo de poder limitado em o que governo além de se sujeitar à lei na prossecução dos seus objectivos deve respeitar os direitos do indivíduo, não os comprimindo em caso algum.
Em Cabo Verde a inexistência de direitos fundamentais estabelecidos, ou de sensibilidade para os defender, abriu caminho para todas as espécies de abusos. Vítimas do regime ao longo dos anos podiam ser encontradas em todas as ilhas, acusadas por crime de lançar boatos, ou presos por mais de três meses sem culpa formada, ou acusados de desobediência por reagirem a autorizações de saída e outros esquemas de controlo das autoridades. Em S.Vicente e S.Antão em particular várias pessoas foram torturadas e houve mortes. Nas outras ilhas aconteceu o mesmo, mas em menor escala. O regime sempre esteve preparado para responder a qualquer desafio ao poder da sua clique dirigente. Por isso é que considerá-lo como quase benigno, tomar os factos e o que aconteceu às vítimas como acidentes ou como excessos de militantes, só serviu para camuflar a sua natureza de sistema repressivo e iliberal instalado no país desde de 1975.
Em simultâneo, deixando de fora as instituições que constituíam esse sistema, não se motivou ninguém para pôr a fim a práticas e desalojar uma cultura institucional desrespeitadora dos direitos fundamentais nesses anos todos. Não é a toa que recorrentemente vêm à tona casos de violência policial, ou que se notam tensões entres os operadores de justiça devido a acusações múltiplas sobre quem é responsável pela falta de eficácia da Justiça. Assim é, em parte, porque o Estado nunca assumiu que torturou e matou. Mudam os governos e nenhuma entidade quer assumir a responsabilidade do Estado perante quem foram as suas vítimas. Mas na falta dessa assunção plena pelo Estado ao mais alto nível como se pode reorientar as instituições para abandonar as práticas anteriores e evoluir no sentido do que se espera no regime democrático.
Este ano de comemoração da declaração universal dos direitos humanos devia ser aproveitado pelos órgãos de soberania para, em nome do Estado, pedir desculpas pelo atropelos graves cometidos contra pessoas nos primeiros 15 anos após a independência, acompanhadas de eventual compensação para os que mais sofreram com a sua família a violência do Estado. Seria um acto de justiça e um acto consequente com a adopção da Constituição de 1992 que com todo o seu catálogo de direitos dos cidadãos foi uma clara reacção a ausência desses mesmos direitos no regime anterior. Também marcaria a disposição firme de lutar contra derivas iliberais que se vêm manifestando nas democracias, comprimindo os direitos dos cidadãos, atacando a independência dos tribunais e procurando condicionar os órgãos de comunicação social e a actividade jornalística na sua tarefa de escrutínio de todos os poderes.
Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 878 de 26 de Setembro de 2018.

quarta-feira, setembro 26, 2018

Com clareza ganha-se eficiência

Da Conferência Internacional comemorativa dos 20 anos da assinatura do Acordo de Cooperação Cambial entre Portugal e Cabo Verde saiu pelo menos uma novidade: O doutor João Serra, Governador do BCV, foi claro a defender que a adesão de Cabo Verde à moeda única da CEDEAO não vale a pena.
Justificou a sua declaração afirmando que “nós quase não temos relações económicas com a África: quer com a CEDEAO, quer com a África no seu todo. E continuou: “90% das nossas importações vêm da Europa, 90 das nossas exportações vão para a Europa, 90% das nossas remessas dos emigrantes vêm da Europa, 90% dos investimentos externos vêm da Europa” pelo que Cabo Verde não tem vantagens em alterar a sua ligação. O facto curioso é que insistiu em dizer que fazia a defesa dessa posição do “ponto de vista técnico”.
Os dois políticos presentes na abertura e no fecho da conferência, respectivamente o Vice-primeiro ministro e o primeiro-ministro, não aproveitaram a ocasião para clarificar qual é realmente a opção política definitiva quanto ao futuro da moeda nacional. Limitaram-se a apoiar o acordo cambial existente, mas relembrando o VPM o “enquadramento africano e a perspectiva de criação de moeda única africana” e o PM a necessidade da “âncora na Europa, mas sem prejuízo da integração regional”. Mesmo com os dados sobre as relações económicas com a África apresentados pelo governador do banco central a preferência foi manter uma posição ambígua sobre a matéria. Para revelar a sua posição o governador teve que se socorrer da sua condição enquanto técnico.
É evidente que o país nada ganha com a falta de clareza em questões fundamentais. Dissipam-se recursos, não se age estrategicamente e dificilmente se consegue manter a motivação e o foco da nação no que realmente precisa fazer para vencer os desafios do desenvolvimento. Várias serão as razões por que colectivamente se persiste nesta atitude tão perniciosa de não confrontar a realidade como ela se apresenta. Entre elas estará a sempre presente tentação de atirar os problemas para debaixo do tapete, como se aí desaparecessem ou se resolvessem por si próprios. Não deixarão de contribuir também os vestígios de amarras ideológicas e de sentimentalismos bacocos, que outrora serviram para legitimar regimes anti-democráticos e para sustentar engenharias sociais duvidosas, como projectos de construção de nações e do homem novo. Só assim se explica que, mesmo com a economia a funcionar em 90% com a Europa, quer-se é integração africana, e pouco interessa para o caso que o professor doutor João Estêvão, nessa conferência do BCV, tivesse demonstrado que desde do século dezoito a relação económica de Cabo Verde com África sempre foi marginal. Ou que recentemente, na sequência da rejeição da presidência cabo-verdiana da CEDEAO, o governo tenha achado por bem criar uma pasta ministerial de integração africana. Ninguém percebeu a estratégia por detrás dessa iniciativa. Talvez mais um caso de sentimentos a sobrepor-se a interesses.
Mais complicado ainda é que, sem se definir ao mais alto nível e sem ambiguidades o futuro da política monetária do país, se procure aprofundar o acordo cambial na perspectiva de aumentar a linha de crédito que suporta a convertibilidade do escudo caboverdiano. Inicialmente estimada em 50 milhões de euros, parece que hoje é considerada insuficiente não só porque a economia de Cabo Verde tem uma outra dimensão como, particularmente depois da liberalização de capitais, o BCV, segundo o governador na sua intervenção, perdeu a sua “função de prestamista de última instância”. O levantamento do controlo do movimento de capitais tem um preço: pode potenciar ataques especulativos à moeda cabo-verdiana. E como acrescenta o governador isso pode acontecer mesmo “num contexto de disciplina de disciplina macroeconómica”.
O aumento na linha de crédito de apoio cambial serviria também para apoiar em caso de acção de especuladores. O problema é se quem faculta a linha de crédito o faz contando com essa possibilidade e considerando os riscos inerentes. O economista americano Jeffrey Sachs, quando liderou a equipa técnica que dirigiu todo o processo de convertibilidade do zloty polaco nos fins dos anos oitenta e início de noventa, foi peremptório em dizer que a marca de maior sucesso do processo foi o facto de nunca ter sido necessário recorrer a linha de crédito criada para o suportar. Com isso reforçaram grandemente a confiança na sustentabilidade da convertibilidade do zloty. Nesta perspectiva, parece pior sugerir que alguma vez linhas de crédito similares sirvam para responder a ataques especulativos contra a moeda nacional. Ainda por mais, como é caso, quando não há clareza total do que se pretende no futuro com a “integração africana”.
Apesar das críticas vindas de vários quadrantes, optou-se por liberalizar completamente o movimento de capitais. Supõe-se que no processo de decisão tiveram em devida conta a história económica de vários países, em particular dos apanhados pela crise de 1997 e os problemas posteriores do Brasil, Argentina e Rússia, que aconselharam a manutenção de controlos na saída de capitais. No mesmo sentido aponta o caso recente da Turquia, que assistiu em poucos dias à queda do valor da sua moeda em 40%. No caso de Cabo Verde está-se para ver os influxos de capitais que a liberalização poderá facilitar e como os benefícios irão contrapor-se aos eventuais riscos. A vontade geral é que tudo corra bem. Para assegurar isso é importante clareza nas políticas, agir com pragmatismo e não deixar-se apanhar nem pela ideologia, nem por sentimentalismos.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 877 de 19 de Setembro de 2018.

quinta-feira, setembro 20, 2018

Para quando a real descolagem?

Ultrapassado o meio do mandato (965 dias de um total de 1825) do governo de Ulisses Correia e Silva impõe-se que se faça uma avaliação dos resultados das políticas no país, em particular, no que toca à questão crucial trazida à liça no momento eleitoral de 2016.
Na eleições legislativas de então o que estava em disputa era quem conseguia transmitir confiança que com a sua maioria e as suas políticas conseguiria operar uma mudança estrutural na economia que permitisse ao país alcançar taxas de crescimento elevadas, mais de 7% ao ano, e também debelar o desemprego a curto e médio prazo, em particular para os jovens. O paradoxo da quase estagnação económica dos cinco anos anteriores enquanto se verificavam investimentos vultuosos de centenas de milhões de dólares designadamente em portos, aeroportos, asfaltagem de estradas e construção de habitação social deixou nas pessoas uma vaga sensação que algo de profundo teria que mudar no modelo de desenvolvimento e na forma de governar o país. Uma outra via teria que ser encontrada para vencer os grandes desafios do desemprego e da pobreza e manter a esperança que é possível construir uma base económica e institucional sustentável para se ganhar a batalha da prosperidade para todos.
A realidade económica dos últimos dois anos com taxas de crescimento de 4,7% em 2016 e 3,9% em 2017 pode não ser a mesma dos anos anteriores, mas ainda está longe da dinâmica prometida dos 7% ao ano. Não é por acaso que os efeitos nos rendimentos das pessoas ainda não se mostrem expressivos. As previsões de organizações internacionais como o FMI apontam para crescimento até 2020 de cerca de 4,1 %. Para alguns observadores o potencial de crescimento não foi alterado. Faltam realizar as reformas estruturais que, ao fazer o país mais competitivo e mais produtivo, poderiam elevar esse potencial. Nos anos 90 as políticas de liberalização da economia e de construção da economia de mercado elevaram extraordinariamente o potencial da economia abrindo caminho para taxas de crescimento que chegaram a atingir dois dígitos e que até 2007-2008 permitiram níveis de crescimentos dos mais altos registados na história recente do país.
Repetir a proeza de elevar o potencial não tem sido fácil. Resistência às mudanças abunda e os sucessivos governos têm falhado em transmitir às pessoas e à sociedade a enormidade da tarefa que é ultrapassar os constrangimentos que à partida se colocam numa economia pequena, fragmentada, com reduzida base produtiva e pouco diversificada. A invulgar rotação de ministros pelas pastas da economia e o facto de quase ninguém sair incólume dos múltiplos embates com os interesses instalados e que beneficiam do status quo devia indiciar o grau de dificuldade que é construir em Cabo Verde uma economia moderna, competitiva e com níveis elevados de produtividade. Neste particular é de relembrar que o governo de José Maria Neves em quinze anos teve sete ministros de economia e que o ministério da Economia criado pelo novo governo já se dividiu em dois em menos de dois anos, perdendo pelo caminho a favor do ministério das Finanças departamentos importantes como o de gestão de projectos e a tutela efectiva de empresas públicas em sectores-chave da economia nacional. Infelizmente, ou porque não se dá a devida importância à necessidade de reformas económicas, ou porque fica mais fácil manter-se no quadro do modelo de reciclagem da ajuda externa, mais ou menos disfarçado por retóricas desenvolvimentistas em voga nos fóruns internacionais, o que se constata geralmente é que o ministro da economia não tem o peso político que seria de esperar para fazer as reformas e enfrentar o sistema vigente.
A verdade é que se continua a não arregimentar vontade política favorável às reformas, a não combater os interesses instalados e a não tornar mais eficiente todo o processo produtivo mesmo sabendo que o futuro do país depende da economia que se souber construir. Não estranha pois que a reforma da administração pública, essencial para a diminuição dos custos de contexto, se tenha encalhado nas intermináveis discussões sobre a partidarização condimentadas com a bizarra questão das incompatibilidades. Não se pôs suficiente foco na procura de eficiência nos sectores de energia e água e no sistema de transportes com vista a baixar os custos. A atenção oficial, seguindo talvez modismos, centrou-se na inovação como se o país já tivesse instalada a infraestrutura física, institucional e humana para fazer dos avanços tecnológicos e de processos produtivos mais criativos o motor da economia nacional. A grande aposta no privado nacional deparou-se com as dificuldades quase congénitas de um sector que além de constrangido por um mercado exíguo e custos elevados de contexto viu-se a gravitar à volta de um Estado que insistia no papel de facultar acessos, de criar oportunidades e de influenciar decisões de negócios. Quando se pensou e se agiu junto do sector bancário como se o problema do sector privado fosse o financiamento, rapidamente se chegou à conclusão que a questão era mais complexa e que segundo o PCE da Caixa Económica, António Moreira, citado pela Inforpress, “os projectos e os promotores devem reunir as condições de financiamentos, de forma que os projectos sejam elegíveis o promotores credíveis”. Isso porque, segundo ele, o crédito vencido em Cabo Verde “é três vezes aquilo que é o nível da Europa” como resultado dos bancos terem aprovado “créditos cujo nível de risco não deveria ser aceite”.
Ainda com as mudanças na Administração Pública por fazer e o sector privado sem grande protagonismo, a economia continua apoiada no turismo e estimulada pela procura interna onde as transferências para os municípios jogam um papel importante. O problema é que os fluxos turísticos continuam controlados pelos grandes operadores em mais de 90% e direccionados para o mercado de Sol&Mar e aparentemente não se tem feito muito para diversificar a procura numa perspectiva de se impactar mais a economia nacional e de se contornar eventuais quebras no fluxo actual devido, por exemplo, à renovada concorrência da Turquia e dos países do Norte de África e também do Brexit que afecta o maior contingente de turistas que são os ingleses. Quanto à procura interna os efeitos das transferências para os municípios tendem a diminuir se não houver estratégias que criem uma procura efectiva para as ilhas.
Devia ser evidente que uma grande estratégia para atrair investimentos externo e integrar Cabo Verde na economia mundial através do aumento do fluxo turístico e da exportação de bens e serviços é fundamental para o país atingir os níveis de crescimento económico que precisa para se desenvolver. Não parece porém que suficiente importância se esteja a colocar nessa direcção. A impressão com que se fica é que maior esforço tem sido em incursões em direcção Europa, na perspectiva de ajuda, mas isso tem os seus limites. O mesmo se pode dizer da ofensiva junto à China que facilita o crédito mas traz mão-de-obra própria e material para as obras, o que limita imenso o impacto local da construção das infraestruturas, ficando o país mais endividado. Há que voltar a pôr o foco no que de facto se decidiu a 20 de Março de 2016: o país precisa crescer a mais de 7% para garantir o futuro e o governo tem a obrigação de dar a conhecer às pessoas as dificuldades reais e mobilizar vontade nacional para atingir esse objectivo. Mais de dois anos já se passaram. Não há mais tempo a perder.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 876 de 12 de Setembro de 2018.
C

segunda-feira, setembro 10, 2018

Enfraquecimento das instituições

Depois de meses a assistir ao desgaste do parlamento devido, entre outros factores, à excessiva crispação das forças políticas, à duvidosa organização e gestão dos trabalhos parlamentares e às ausências prolongadas e injustificadas do primeiro-ministro em sessões sucessivas da Assembleia Nacional, o país depara-se agora com despiques públicos entre o Presidente da República e o governo.
É uma situação que não beneficia ninguém e muito pelo contrário tende a enfraquecer a imagem das instituições e a minar a confiança na democracia. Nos tempos actuais – em que a tentação populista na abordagem e resolução dos problemas associada ao acesso rápido e quase universal das pessoas às redes sociais põe especial desafio às democracias – todo o cuidado é pouco na gestão do processo político essencial para que o desenvolvimento do país se faça na liberdade e no pluralismo. O que menos se precisa é que se aumente e se aprofunde a descrença nos princípios e valores democráticos por razões ligadas à actuação de titulares de órgãos de soberania e de dirigentes políticos ávidos de protagonismo e pouco dispostos a seguir procedimentos já sedimentados, mesmo na nossa jovem democracia, nas relações entre o presidente, o governo e o parlamento.
A tensão entre o presidente da república e o governo, aparentemente à volta do SOFA, veio depois provar que afinal ela tem uma origem mais profunda que é de saber quem tem competência para dirigir a política externa do país. Pelas declarações feitas à TCV, no dia 20 de Setembro de 2017, apercebe-se claramente que o PR pensa que, por exemplo, no caso do acordo SOFA com os Estados Unidos da América o seu papel não deve ser apenas de ratificar o acordo depois de negociado e assinado pelo governo e levado ao parlamento para discussão e aprovação como parece estipular a alínea a) do artigo 136º da Constituição. O PR mostra-se convicto de que em matéria de acordos internacionais não deve apenas ser informado nos encontros regulares com o primeiro-ministro mas que deve “haver acompanhamento das negociações e até em certos casos o assentimento prévio do Chefe do Estado para que na altura da ratificação não haja situações..”. Prossegue suas declarações dizendo que a intervenção é “pedagógica” mas na realidade pela alusão ao “assentimento prévio” do PR em certos pontos negociais a impressão com que se fica é que pretende ter participação efectiva no processo.
É um facto que o PR tem um papel a desempenhar na política externa no âmbito da sua função de representação externa da República. Também é um dado assente que quem constitucionalmente dirige a política interna e externa do país é o governo. Desde os primórdios da Constituição de 1992 o regime democrático cabo-verdiano foi caracterizado como “parlamentarismo mitigado”. Diferentemente do semi-presidencialismo português, o governo em Cabo Verde não é responsável politicamente perante o presidente da república. Por isso estranha que haja quem pense que o PR em Cabo Verde possa ter competências ou protagonismo na direcção da política externa do país que nem no sistema português actual nem no sistema francês no quadro da coabitação Miterrand/Chirac e Chirac/Jospin, todos de pendor presidencial mais pronunciado, os presidentes da república pareciam ostentar. É só ver como na fotografia oficial da recente Cimeira da CPLP a dupla Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa protocolarmente se apresentava enquanto o PR cabo-verdiano se encontrava no centro com o PM Ulisses Correia e Silva distante junto à secretária executiva da CPLP. Não é essa a imagem que se tem, por exemplo, do presidente Miterrand e do primeiro-ministro Chirac nas cimeiras internacionais em que a França participava.

Exemplos que vêm de países recentemente democráticos, mas que já mostram sinais de crise e tendências populistas e autoritárias pronunciadas dão-nos conta de que tudo aparentemente começa quando partes do sistema político começam a bordejar as fronteiras das suas competências e acabam em incursões nas competências das outras. Ao reagir - seja no formato de aceitação de diminuição a que é sujeita, seja da luta que terá que fazer para se reafirmar – a parte agravada incorre no risco de ver a sua imagem diminuída, abrindo espaço para o desprestígio das instituições aos olhos dos cidadãos. Dos ataques que de há muito têm sido dirigidos à justiça e ao parlamento já se vêem as consequências. Com o governo e a presidência da república num terreno movediço que só pode levar ao desprestígio dos envolvidos, a situação só pode piorar. O ambiente de crispação política extrema em que a luta política tende a ficar pelas conveniências do momento e pela postura quase tribal dos militantes e activistas pode deixar o sistema sem defensor consequente perante as múltiplas ameaças que hoje se apresentam contra a democracia representativa e contra o Estado de direito.
Há que arrepiar caminho. Vários exemplos vindos todos os dias de fora dizem-nos que ataque aos media, à eficácia da justiça e ao parlamento não traz nada de bom para a democracia. Que também não é boa opção demonizar a oposição mesmo quando ela lá no íntimo se considera uma espécie de “Dono Disto Tudo” e mais preocupada em preservar o seu legado histórico do que em defender o sistema democrático. Há finalmente que defender as instituições e garantir que se tornem perenes e que sejam colocadas ao serviço de todos. Experiências democráticas confrontadas com derivas populistas ou autoritárias confirmam que só com instituições construídas sobre princípios e valores democráticos é que se pode ter esperança de combater os excessos de protagonismo e conter com eficácia a ameaça que parece pairar sobre todos e que servindo-se de fake news e do ilusionismo põem em causa os factos e a verdade, erigem a desonestidade, o tacticismo conveniente e o eleitoralismo como forma de fazer política e de conquistar e de se manter no poder.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 875 de 5 de Setembro de 2018.

segunda-feira, julho 30, 2018

Estado da Nação: em “gestão corrente”

O debate na Assembleia Nacional sobre o estado da Nação acontece nesta sexta-feira dia 27 de Julho. Mais uma vez os parlamentares e o governo vão debruçar-se sobre a realidade vivida no país com as suas vulnerabilidades de sempre, com os seus problemas do momento e com a constante tensão entre as expectativas criadas e a capacidade de as materializar. Em geral, nesse tipo de debates a complexidade da situação do país é passada de lado. No calor do embate a preocupação em tirar dividendos políticos imediatos leva muitas vezes a posições extremadas que dificultam a devida perspectivação dos problemas, não deixam espaço para consensos em matérias estruturantes e bloqueiam o diálogo plural que o país tanto precisa para poder enfrentar com sucesso os desafios do desenvolvimento.
Não estranha, pois, que ano após ano e com mais ou menos diferença, o estado da Nação seja realmente o de quem está sob “gestão corrente”. Vai-se vivendo com os fluxos que mais ou menos vêm de fora em forma de ajuda, também com os efeitos de uma conjuntura internacional favorável na procura externa e com o impacto do aproveitamento por outros de oportunidades pontuais, mas sem garantia de continuidade futura. Razão por que as vulnerabilidades não diminuem significativa e permanentemente, não há aumento rápido de postos de trabalho com qualidade e o país não sobe para patamares em termos de capital humano, de conectividade e de prestação de serviços que o tornariam atractivo para o investimento estrangeiro e fariam crescer as exportações. Se, pelo contrário, em vez da costumeira gestão corrente, passiva e sem ousadia a opção fosse para uma gestão estratégica, pro-activa e visionária o foco seria na criação de riqueza e no esforço colectivo para ganhar competitividade externa e elevar o nível de produtividade do país. Aí sim não seria evidente o desapontamento já palpável das pessoas que ainda estão por sentir concretamente as vantagens da alternância na governação.
Não se vai por esse caminho porque ainda há demasiadas forças em Cabo Verde que resistem a mudanças no status quo. A tentação dos poderes instalados em controlar tudo e todos põe-se demasiadamente no caminho do desenvolvimento. Não é por acaso que o Estado burocrático dividido nas suas “capelinhas” e cioso das suas prerrogativas continua a pesar proeminentemente sobre tudo o que se faz e, em particular, sobre o que de novo se quer fazer. Em vários países mesmo alguns não democráticos, governos ganham confiança da população e legitimam-se presidindo a uma economia que cresce significativamente e mantém níveis baixos de desemprego. Em Cabo Verde não é clara que essa ligação tenha sido estabelecida.
Governos no passado já foram reeleitos mesmo com crescimento baixo e altos níveis de desemprego porque se mostraram aptos em fazer a “gestão corrente” seguindo o modelo de reciclagem da ajuda externa. Aconteceu em parte porque não é fácil mudar comportamentos criados por políticas populistas e assistencialistas que depois se transformam eles próprios em obstáculos ao próprio desenvolvimento. O ilusionismo que acompanha essas práticas mascara a realidade, esconde os problemas e alimenta as expectativas com promessas de dádivas do Estado. A verdade, porém, é que os problemas simplesmente não desaparecem, pelo contrário, acumulam-se e progressivamente tornam-se quase intratáveis ou só resolvidos a elevado custo.
É só ver o que se passa com a TACV, com as barragens, com o programa Casa para Todos, os problemas das populações na Ilha do Sal e da Boa Vista, a quebra na dinâmica económica de S. Vicente, a vulnerabilidade completa da população rural, os problemas de emprego dos que saem dos liceus e das universidades para se aperceber que ficar pela “gestão corrente” do país focalizada em conseguir financiamentos para infraestruturas e em “diplomacias económicas” que mobilizam milhões para a ajuda orçamental e programas de emergência não tira o país da mediania e só agrava os problemas para o futuro. Se essa opção já não resultava no passado, muito menos efeito no crescimento e no emprego terá nos dias de hoje em que as exigências de transacções com o resto do mundo são maiores em termos de qualificação de mão-de-obra, de serviço prestado e de produtividade. Também não é boa ideia deixar-se apanhar pela tentação de disfarçar as práticas de uma gestão corrente com “fugas em frente” do tipo clusters dos anos atrás que nunca se materializaram. Ainda nesta perspectiva, o excessivo foco na inovação talvez esteja deslocado e eficiência devesse ser a preocupação primeira do Estado. Como bem sugere o Fórum Económico Mundial, Cabo Verde está entre os países nos quais o que mais conta para o crescimento económico é a eficiência na utilização dos recursos do capital e do trabalho e o desenvolvimento dos mercados.
Sair do paradigma debilitante, que exceptuando provavelmente alguns anos na década de noventa, tem dominado a prática governativa do país, é essencial para se poder projectar alguma esperança em que todos os cabo-verdianos poderão finalmente ultrapassar as fragilidades de outrora. A experiência de sucesso de países como Maurícias, Seychelles, Botswana e Singapura revela que para que medidas estruturantes e estratégicas fossem tomadas em momentos-chave da vida económica desses países houve necessidade de construir consensos entre as principais forças políticas e firmar pactos entre autoridades, sindicatos e empregadores que realmente pusessem o crescimento e o emprego acima de qualquer agenda. Em Cabo Verde, o ambiente político e o laboral confundem-se de algum modo e estando todos a defender os interesses próprios não parece que se deixe espaço para a sociedade realmente convergir em questões que se mostrarem fundamentais para o futuro.
Por outro lado, para se produzir riqueza, há que criar valor mas nem todos os operadores agem a todo o tempo seguindo esse registo. Como diz a economista britânica Marina Mazzucato no seu último livro “O Valor de Tudo” na sociedade há quem produza valor, há quem destrua valor e há quem extraia valor. Saber distinguir uns dos outros e apostar em quem realmente produz valor, neutralizar quem o destrói e não deixar-se enganar por quem simplesmente o procura extrair, não é tarefa fácil. Mais difícil fica se não se se conseguir primeiramente um entendimento de base entre os partidos e na sociedade para se efectivamente deixar a gestão corrente para uma governação estratégica. O debate sobre o estado da Nação podia ser um bom começo para esse entendimento indispensável para o presente e futuro do país. É preciso ter presente que as nuvens da incerteza ameaçam o abrandamento da economia mundial com impacto negativo certo para toda a gente. Não há tempo a perder.
Humberto Cardoso

segunda-feira, julho 23, 2018

Paga-se caro a inacção

Nos últimos dias de Dezembro de 2017 a Polícia Nacional entrou em greve por três dias. A população assistiu numa mistura de espanto e ansiedade à greve inédita na história do país. O governo também aparentemente apanhado de surpresa acabou por fazer uma requisição civil que não foi aceite por boa parte dos grevistas e que pelo contrário foi repudiada pelos sindicatos. Felizmente não houve perturbações maiores da ordem pública. Terá perdurado a má impressão deixada pelo comportamento de alguns agentes durante as manifestações pelas ruas da capital. Na época houve muita discussão se a polícia tem ou não direito à greve. O assunto acabou esquecido depois das convenientes salvas de artilharia trocadas entre os partidos, todos à procura de ganhos de curto prazo, preferindo varrer os problemas para debaixo do tapete.
O anúncio pelo sindicato da polícia SINAPOL de uma greve de seis dias para a próxima semana a partir de 26 de Julho trouxe outra vez à ribalta a insatisfação, mal-estar e falta de motivação que parece persistir na polícia não obstante os muitos investimentos já feitos nestes dois anos do actual governo em meios de comunicação e de transporte e também em aumentos salariais e promoções. E a injecção de meios não parou aí; continua tanto em efectivos, como em novas instalações e armamento. Na semana passada foi anunciado que cerca de 90 mil contos provenientes do Fundo do Turismo foram gastos em coletes à prova de bala, armas de fogo e outros meios para a polícia. Tudo isso porém parece que nem melhora o ambiente no seio da polícia, nem contribui significativamente para aumentar a sua eficácia a ponto de diminuir significativamente a percepção de insegurança na população. Talvez os dois problemas, mal-estar e falta de eficácia, tenham a mesma raiz como sugerem os altos oficiais da polícia Manuel Alves e Alcides da Luz em críticas publicadas respectivamente no Facebook e no jornal online Mindelsite que apontam para a inexistência de reformas ou de uma direcção capaz de elevar a actuação da polícia ao nível de eficácia desejável para enfrentar os desafios de hoje. Para esses dois oficiais, um no activo e outro recentemente passado à reforma, se mudanças profundas não acontecerem o prognóstico em matéria de segurança para os próximos tempos poderá não ser positivo.
Garantir a segurança é dever do Estado. É a razão primeira porque se criou a instituição Estado. Por isso não pode haver dúvidas quem tem a responsabilidade de a assegurar para tranquilidade de todos os cidadãos. E não é uma responsabilidade compartilhada no sentido em que o Estado e os seus agentes fazem a sua parte e os indivíduos, as famílias, a igreja e outras organizações da sociedade contribuem com a outra parte ficando a responsabilidade última pela eventual insegurança perdida algures sem que ninguém a assuma frontalmente. A desejável colaboração de indivíduos e organizações na manutenção da ordem e tranquilidade também compete ao Estado promove-la através de acções como cultivar o civismo e o sentimento de pertença à comunidade, facilitar a participação cívica e política e incentivar o associativismo. Se há falhas aí, a colaboração dos indivíduos é fraca e o baixo capital social da comunidade manifesta-se na falta de confiança na relação entre as pessoas, na tentação de fazer justiça privada e na desconfiança em relação às instituições. Quando é assim não se pode ficar pela simples constatação dos factos. Há que assumir as responsabilidades e há que agir em conformidade.
Do investimento feito na segurança, esperam-se legitimamente resultados num quadro que se quer marcado por critérios de eficiência e eficácia. Interesses de indivíduos, de grupos ou mesmo de corporações não podem prevalecer sacrificando o serviço público que se quer e que justifique a utilização dos recursos que afinal são de todos os contribuintes. Compete ao governo garantir que assim seja. Há que pôr fim ao mal-estar na polícia e há que aumentar a motivação dos agentes. E certamente que a questão não pode reduzir-se simplesmente a reivindicações salariais. O Estado tem recursos limitados e razoavelmente não se pode esperar que, de imediato ou quase, se resolva todos problemas que se acumularam durante mais de uma década. Por outro lado, não se pode deixar as coisas como essencialmente estavam e esperar automaticamente que haja motivação se o mérito continua a não contar e interesses difusos a serem obstáculos à elevação do nível de eficácia da organização e à realização das ambições de carreira de muitos.
Uma questão que porém já devia ter sido resolvida é da do direito à greve. A hipótese de greve da polícia foi aventada já se passaram alguns anos e houve por isso tempo para as forças políticas se debruçarem sobre o assunto e agir de modo a que nunca viesse a acontecer. Nada se fez e a greve aconteceu no final de 2017. Passados sete meses, está-se na iminência de outra greve da polícia e as opiniões divergem se é legal ou não, que limites poderá ter a requisição civil dos agentes e quem, em última instância, garantirá a ordem no país se a única força de segurança se encontra em greve. O entendimento na generalidade das democracias consolidadas é que polícias não têm direito à greve. Essa é opinião do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e de tribunais constitucionais de vários países incluindo o Supremo Tribunal Federal do Brasil. Para o supremo brasileiro a polícia sendo “o braço armado do Estado para a segurança interna não pode exercer o direito de greve sem pôr em risco a função primeira do Estado em garantir a segurança, a ordem pública e a paz social”.
Em Cabo Verde, apesar de há já algum tempo o problema se ter manifestado não se sabe se algum parecer sobre o assunto foi solicitado ao Ministério Público ou se procurou saber das instâncias judiciais algum posicionamento sobre a matéria. Também não é do conhecimento público que tenha havido alguma iniciativa legislativa para suprir eventuais omissões na lei. A postura, parece, é de nada fazer, mas esperar que o pior não aconteça. Não é razoável e facto é que a inacção muitas vezes se paga caro.
Humberto Cardoso

segunda-feira, julho 16, 2018

SOFA gera controvérsia

É cada vez mais frequente no mundo globalizado e interconectado de hoje os países procurarem estabelecer parcerias especiais. As razões invocadas são múltiplas, mas fundamentalmente têm natureza política e económica ou são ditadas pela necessidade de segurança mútua. Na generalidade dos casos a relação entre estados, seja no quadro de uma comunidade económica, de uma aliança militar ou de uma simples parceria para paz e segurança implica cedências de soberania.
Por isso mesmo o caminho para ali chegar nunca está livre de espinhos e escolhos. Mesmo quando se chega ao fim e a parceria funciona normalmente não cessam as críticas, não desaparece a sensação que se cedeu demais ou que a contrapartida não é a melhor. Prova disso, mesmo em parcerias há muito consolidadas, são as tensões à volta do euro, à volta das migrações e das directivas da Comissão Europeia que levam muitos dos estados membros a ressentirem-se contra o que consideram cedência excessiva às instituições da Europa. Tensões similares são percebidas em blocos económicos como a NAFTA e a CEDEAO e entre os países integrantes da NATO.
Em Cabo Verde a discussão do Acordo do Estatuto das Forças Militares Americanas (SOFA, da sigla inglesa) que poderão num momento ou outro estar em Cabo Verde no quadro da parceria para segurança também está a ser motivo de grande controvérsia, envolvendo os partidos políticos e a sociedade. Para os Estados Unidos a controvérsia não é novidade considerando que se verificou e em muitos casos continua a se verificar na generalidade dos mais de 100 estados com quem já assinou um SOFA. Há um entendimento que é legítimo que se queira saber em que a medida a presença de tropas estrangeiras vai ter implicações na relação do país com o exterior, como irá afectar a sociedade e que impacto eventualmente terá na economia. Claro que se é mais sensível a essas questões se, como no caso de Cabo Verde, sempre predominou no país uma postura oficial de não alinhamento com blocos militares traduzida ainda na recusa constitucionalizada de bases militares estrangeiras. Não espanta pois que o debate sobre a matéria se tenha exacerbado e trazidas à baila questões de identidade e de patriotismo, a par de dúvidas quanto à conformidade à Constituição do SOFA aprovado na Assembleia Nacional pela maioria parlamentar do MpD com abstenção dos deputados do PAICV e da UCID.
A realidade do mundo de hoje já não é a de blocos militares ideologicamente antagónicos a se ameaçarem mutuamente com armas nucleares. Os problemas maiores de segurança advêm principalmente do terrorismo, dos diferentes tráficos, da pirataria marítima e do crime organizado. São ameaças caracterizadas por nem sempre terem rosto visível, por não serem corporizadas por um Estado e também por tomarem toda a gente como alvo potencial. Reconhecendo a nova realidade, na revisão da Constituição de 2010 introduziu-se no n.2 do artigo 11º das relações internacionais que o Estado de Cabo Verde “participa no combate internacional contra o terrorismo e a criminalidade organizada transnacional”. A partir daí, o país já não é mais neutro porque ele próprio está sob ameaça dessas entidades subestatais e não tendo meios próprios para as enfrentar sozinho deve procurar parcerias internacionais para garantir a sua própria segurança e não permitir que nenhum ponto do seu território sirva de base ou depósito para tráfico de drogas, lavagem de dinheiro ou para qualquer tipo de suporte de acções terroristas. É evidente que a colaboração com outros estados no quadro de parcerias para a defesa e segurança do país terá de implicar cedências no domínio da soberania. O quanto que se deve ceder certamente que vai ser sempre matéria de controvérsia, mas decisões devem ser tomadas e em tempo útil porque a escolha poderá ser entre, por um lado, no presente não ter controlo completo do próprio território porque não se tem nem os recursos nem a necessária cooperação de forças estrangeiras para isso, e, por outro, orgulhosamente proclamar que não se quer bases militares estrangeiras numa recusa que teria razão de ser em tempos da guerra fria mas que actualmente na era dos drones e das operações especiais não faz sentido. Hoje a tendência é abandonar as bases permanentes como deverá acontecer com a base americana das Lajes, nos Açores.
Na concretização da cooperação quase incontornável para se garantir segurança contra as ameaças transnacionais um dos problemas mais melindrosos é o da jurisdição criminal, civil e administrativa. A pergunta é se a jurisdição deve ser concorrencial entre os dois estados ou ficar só com o estado de origem do contingente militar e não com o estado hóspede. Os Estados Unidos da América compreensivelmente procuram subtrair todos os seus soldados e funcionários a qualquer tipo de jurisdição do Estado hóspede. Na prática, os SOFAs que tem negociado designadamente com os países da NATO, o Japão e a Coreia têm variantes conforme a resistência encontrada junto do estado hóspede e também o seu próprio interesse em ter uma presença no país mesmo quando o estatuto das suas tropas num quadro do SOFA não seja o ideal. De acordo com o documento do Departamento do Estado americano citado por este jornal na edição anterior, esse ideal consubstanciado num Global Sofa Template só foi aceite completamente por alguns micro-estados. Imagina-se que quem o aceitou fez uma opção para ceder em termos de soberania e de jurisdição criminal no seu território em troca de ganhar em segurança. Certamente que terá razões para isso e as deverá apresentar a eventuais críticos ou opositores..
O SOFA aprovado em Junho último no parlamento não foi o primeiro adoptado por Cabo Verde. Em 2006, aprovou um SOFA para as forças da NATO que vieram participar nos exercícios militares da Steadfast Jaguar. Nesse SOFA houve naturalmente cedências em matéria de jurisdição criminal e civil, mas no nº 4 do artigo 7 (BO de 2 de Janeiro de 2006) deixou-se a possibilidade de “em casos específicos, Cabo Verde puder solicitar que renunciem à imunidade de jurisdição do Estado de Origem relativamente aos seu pessoal militar ou civil presente”. Também em 2008 no acordo de Cabo Verde com a Espanha foi aprovado um SOFA que no artigo 9º nº 2 dizia que “Cada uma das partes considerará a possibilidade de renunciar às imunidades criminais que os membros das suas forças usufruem a pedido de outra, em situações que se justifique a realização de um processo no próprio local do crime, por motivos de especial gravidade do crime”.
No SOFA com os Estados Unidos, assinado dez anos depois, autorizou-se os Estados Unidos a exercer jurisdição penal sobre as tropas durante a sua permanência em Cabo Verde sob a justificação da necessidade de controlo disciplinar das mesmas (artigo III , nº 2). Como o documento do Departamento do Estado acima referido deixa claro essa, é uma cláusula vivamente procurada pela América para garantir que se vá além da Convenção de Viena e se institua, de facto, a exclusividade da sua jurisdição penal. Certamente que o governo cabo-verdiano ao assinar e fazer aprovar o SOFA terá as suas razões. Seria bom que as explicitasse e as contextualizasse para a tranquilidade dos caboverdianos.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 867 de 11 de Julho de 2018.

segunda-feira, julho 09, 2018

Ultrapassar a lógica das “capelinhas”

O Vice-Primeiro Ministro e Ministro das Finanças, Olavo Correia, anunciou ontem, 3 de Julho, que o Governo está a trabalhar em parceria com as entidades seguradoras e o INPS, para que o país tenha, muito em breve, um bom sistema de evacuação dos doentes.
Certamen­te todos esperam que sim por­que o país precisa. O problema é que anúncios similares feitos por governantes vêm de longe e ninguém em particular nas ilhas e fora das cidades da Praia e de Mindelo até hoje pode sentir-se seguro de um socorro rápido em caso de emergência grave apesar das promessas feitas ao longo dos anos. E não há menos caso para isso. Há duas semanas viu­-se o que aconteceu na Boa Vista. Outros casos recentes na mesma ilha, no Sal e no Fogo vieram re­lembrar a urgência em encontrar uma solução para o problema das evacuações, problema esse agora mais agravado pela per­cepção geral que a companhia aérea Binter não se considera obrigada a proceder da forma como era esperada da TACV nas mesmas circunstâncias.
Situações dramáticas foram vividas num passado recente de­signadamente com a erupção do Vulcão do Fogo, o afundamento do navio Vicente e o massacre do Monte Tchota. Em todos elas constatou-se a impotência das estruturas do Estado, seja na ausência de planos de contin­gência no âmbito da protecção civil, seja na montagem de uma capacidade nacional de busca e salvamento ou na simples garan­tia de sistemas de comunicação entre destacamentos das forças armadas e a base. Na sequência dos desastres, vieram promes­sas diversas: helicópteros para busca e salvamento, mais uma unidade naval e outra aérea para não se repetir o caso do Guardião e do Dornier inoperacionais no momento da erupção do vulcão do Fogo e helicópteros para re­solver o problema de transporte para a Brava. Recentemente, já
no actual governo, repetiram­-se promessas de aquisição de dois helicópteros e em Outubro de 2017 fez-se apresentação no Aeroporto da Praia de dois apa­relhos de origem austríaca com capacidade para evacuações mé­dicas e para patrulhamento ma­rítimo. Mistério é porque apesar de todos estes “démarches”, con­tinua-se praticamente na estaca zero, sem capacidade de resposta efectiva e tempestiva a qualquer tipo de emergência real no país.
O vice-primeiro-ministro fala de uma solução trabalhada com as seguradoras e com o INPS mas dirigida para um problema em particular que são as evacua­ções médicas. Fica-se por saber quais as soluções para os outros problemas como busca e salva­mento, protecção civil, patru­lhamento marítimo e transporte para ilhas sem aeroporto que advêm da natureza arquipelá­gica do país. E pergunta-se por que não uma solução integrada que responda às necessidades de forma compreensiva e mais em linha com o binómio custo/benefício. Evacuações médicas inter-ilhas não parecem ter a frequência que justificaria um investimento exclusivo para as garantir. Aparentemente o mais lógico seria investir de modo a garantir capacidade de respos­ta global para os problemas do país arquipélago. A dificuldade em se enveredar por esse ca­minho, não obstante os muitos anos de discursos e promessas, talvez resida no facto de todas essas competências não terem sido atribuídas a uma autorida­de marítima e pelo contrário es­tarem espalhadas por entidades díspares como guarda costeira, polícia marítima, serviço de pro­tecção civil, agência marítima e portuária, capitania dos portos, etc,. A lógica das “capelinhas” e de interesses corporativos não terá ajudado na adopção de uma abordagem mais sistémica e pas­sível até de negociar cooperação internacional favorável, capaz de suprir os fracos recursos do país
na tarefa de assegurar a ligação entre as ilhas em qualquer cir­cunstância e também a seguran­ça das costas e o controlo efecti­vo da zona económica.
No BO de 31 de Maio de 2018 o governo instituiu o ser­viço de busca e salvamento ma­rítimo e aeronáutico. Segundo o decreto–lei o prestador des­se serviço deve ser a Guarda Costeira e o financiamento do mesmo deve vir de uma taxa de segurança marítima. Sen­do a Guarda Costeira parte das forças armadas e não uma força de segurança como a polícia ma­rítima não é claro que possa as­sumir completamente as outras funções da autoridade marítima designadamente de policiamen­tos dos mares e costas. Por outro lado, ficando limitado às receitas do fundo de segurança marítima para busca e salvamento que por lei também tem outros destina­tários como, por exemplo, servir para “eventuais indemnizações compensatórias pelo serviço público de transporte marítimo inter-ilhas” não é líquido que consiga de facto pôr-se à altura do que lhe é exigido.
É, de facto, da maior impor­tância sair do status quo actual que variadíssimas vezes já de­monstrou que deixa o país pra­ticamente indefeso perante as ameaças dos vários tráficos e sem meios e capacidade para responder às necessidades da população em situações de ca­tástrofe natural, naufrágios e emergências. Para isso, porém, é cada vez mais claro que o sistema de forças tal qual tem existido há mais de uma década não pode continuar. Não é eficaz, dificulta a coordenação do esforço nacio­nal e não potencia a cooperação internacional em domínios tão essenciais como sejam a segu­rança das populações e o exercí­cio da soberania sobre todos os pontos do território nacional e da zona económica exclusiva.
Ultrapassar os obstáculos para reformulação do sistema actual de forças não é porém fá­cil. Até parece que o sistema já aprendeu a contornar todas as tentativas de reforma. A oportu­nidade de transformação que um novo governo podia representar foi gorada quando se insistiu em deixar tudo como estava. As con­sequências
não podiam ser dife­rentes. Agora, para que o estado das coisas mude e se encontre saídas para os problemas de fun­do do país terá que haver um alto nível de consenso entre as forças políticas. Mas com a crispação política no rubro e a excessiva preocupação com ganhos políti­cos de curto prazo não fica muito espaço para os entendimentos estratégicos que o futuro do país exige. As incertezas que actual­mente não deixam ver com cla­reza o futuro exigem uma outra postura das forças políticas que mais enfase pusesse no que têm de comum do que exacerbar aquilo que as faz diferentes. Com essa nova atitude mais energia, motivação e foco se conseguiria mobilizar para fazer as reformas a todos os níveis que o país ur­gentemente precisa. Vamos fa­zer do 5 de Julho um dia em que, sem deixarmos de ser diferentes e de cultivarmos o pluralismo, reforcemos a unidade da nação na prossecução dos seus grandes objectivos de liberdade, justiça e prosperidade para todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 866 de 4 de Julho de 2018.