quarta-feira, junho 26, 2013

Sacudir o conformismo


O espectáculo de centenas de milhares de pessoas a protestar nas ruas das cidades brasileiras tem sido seguido com muita atenção e curiosidade em todo o mundo. Chovem análises quanto ao que estará por trás da insatisfação demonstrada e o que deverá vir a seguir. Fazem-se comparações com as manifestações da Primavera Árabe e com os tumultos verificados recentemente na Turquia. Muitos apontam o carácter espontâneo dessas movimentações, designadamente o facto de não apresentarem liderança explícita, de se materializarem graças às redes sociais (Twitter, Facebook, etc.) e de terem sido desencadeadas por actos quase fortuitos ou inesperados como imolação do vendedor de frutas em Túnis, um projecto de um shopping num parque público em Istambul e aumentos de dez centavos no bilhete de autocarro em São Paulo. Todos parecem estar de acordo que elas traduzem o sentimento de muitos milhões por todo o mundo que vêem nas suas expectativas de prosperidade futura colapsaram sob o impacto de mudanças profundas no panorama económico mundial.

Na Europa, a crise do euro já produzira os seus indignados que da Grécia à Espanha e a Portugal e também por todo o continente protestaram contra os governos nacionais que se subordinam às exigências dos mercados de capitais, enquanto sacrificam o crescimento e o emprego no processo. Nos Estados Unidos também o movimento Occupy Wall Street se bateu contra o maior aumento em desigualdade social em quase cem anos derivado da concentração excessiva de riqueza, de menor mobilidade social e de mudanças na estrutura económica do país que favorecem trabalho precário e mal pago no sector de serviços em detrimentos dos outrora empregos bem pagos na manufactura.

Um pouco por todo o mundo fazem-se sentir alterações na dinâmica da globalização motivadas por inovações tecnológicas e mudanças na cadeia de valor internacional. Para economistas como Dani Rodrik, Tyler Cowen e Paul Krugman isso pode significar maior desemprego permanente nos países desenvolvidos e impossibilidade dos países emergentes de repetir as taxas elevadas de crescimento do passado recente. A percepção do facto que a sonhada prosperidade e mobilidade social não virá tão depressa, poderá estar por detrás da revolta da classe média emergente e dos jovens nesses países.

Em Cabo Verde, não há contestação digna desse nome, muito menos revolta. A empresa de ratings Standard&Poors na sexta-feira, dia 21, pôde baixar o “Outlook” de Cabo Verde de estável para negativo e justificar dizendo que défices elevados e o peso da dívida pública enfraqueceram o país e deixou-lhe mais exposto a choques externos. Não há reacção. O facto de, perante uma provável recessão de 2013 como prevê o Banco de Cabo Verde, o governo não se desviar um milímetro dos seus métodos passados, não espanta a ninguém. Nem o facto de, numa época em que universalmente se condena construções de infraestruturas caras, sem ligação óbvia com a exploração das vantagens comparativas e marcadas por razões partidárias, o governo insistir em brandir como sucesso obras feitas com recurso à dívida externa que já atinge os 73% do PIB. No Parlamento a postura beligerante não deixa que a Nação seja esclarecida quanto a eventuais mudanças de rumo na governação a que normalmente quebras graves no crescimento e forte aumento de desemprego obrigam. Só é brindada com anúncios de sucessos futuros no âmbito de clusters ainda por se constituírem.

O conformismo que parece dominar a sociedade cabo-verdiana talvez explique por que aumentos na energia, água e transportes; quebras na dinâmica em todos os sectores (até as receitas do turismo estão a desacelerar segundo o BCV) e desemprego de milhares de jovens com secundário completo e licenciatura não levam as pessoas a exigir veementemente do governo soluções. Herdada ou criada nos circunstancialismos em que se exerceu o poder em Cabo Verde, a verdade é que o conformismo pode ser um sério entrave à consolidação democrática. Não é à toa que são considerados benéficos para a democracia acontecimentos como os do Brasil ou da Turquia. Ganha-se quando há engajamento da sociedade no seu todo, exigindo do governo responsabilização, reformas e respostas de curto prazo. Cortam-se assim vícios de governação como o autismo e a arrogância que tendem a se acumular com o passar de anos de poder. Também o activismo cívico ajuda a fortalecer as instituições ao obrigar a prestação de contas e ao forçar um combate permanente contra a corrupção.

O partido comunista chinês sabe que para se legitimar no poder na China tem que fazer o país crescer pelo menos 8% ao ano. É o mínimo que lhe exige a população que quer sair da pobreza e ascender à classe média a exemplo do que já fizeram centenas de milhões de pessoas nas últimas décadas. Trabalhar para a prosperidade crescente do país e das pessoas é tarefa fundamental de qualquer governo, mormente o governo democrático. Estranham-se pois os ares de satisfação de um governo que depois de prometer crescimento a dois dígitos pode possivelmente estar a presidir anos de crescimento abaixo de um dígito. A legitimidade dos governos não é só formal, não deriva somente das eleições periódicas. Realiza-se também na capacidade de respeitar e ouvir os outros e ir ao encontro aos interesses nacionais. Como escreve a revista Economist na sua última edição, há que evitar o aparecimento da democracia zumbi: Aquela que tem aparência de coisa real, mas falta-lhe o espírito.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 26 de Junho de 2013

quarta-feira, junho 19, 2013

Na mira de 2016


Com a eleição de Ulisses Correia e Silva para presidente do MpD o maior partido da oposição renova a sua liderança com os olhos já postos no confronto eleitoral de 2016. Depois de três derrotas consecutivas, o MpD certamente que vê como vital ganhar as legislativas de 2016 para se confirmar como partido do arco do poder e como alternativa credível para a governação do país. Na realização desse desiderato vai ter que enfrentar o Paicv que, com as suas projecções para 2030, não esconde o desejo e a ambição de se posicionar como partido hegemónico. No confronto que se avizinha, poderá estar em jogo o próprio futuro da democracia cabo-verdiana: se irá consolidar-se sob o impulso de governos suportados por partidos que se alternam no poder ou se deixará condicionar por um partido dominante, sofrendo eventual erosão dos direitos dos indivíduos e das minorias.

Os problemas com que se depara a democracia cabo-verdiana têm sido vistos por alguns observadores como derivados da bipolarizaçãopolítica. Dá-se como certo que a crispação política existente é directa consequência do actual sistema com dois grandes partidos. A UCID erigiu como bandeira acabar isso, como recentemente veio reiterar o seu actual presidente,mas até agora sem sucesso. O facto de não conseguir apoio social e eleitoral para se tornar numa terceira força a par com os outros poderá indiciar que o problema é outro.

Outras democracias com bipolarização política não padecem da crispação visível em Cabo Verde nas questões políticas e públicas. Nota-se que nelas há uma valorização do pluralismo, o reconhecimento da importância do contraditório e uma preocupação em ter sempre alternativas viáveis para a governação do país. O respeito institucional e pelas regras do jogo democrático não deixa cair na tentação de apresentar o outro como inútil, indiferente ao interesse público e um peso para os recursos do Estado. Há um sentido sempre bem presente que quem hoje é governo, amanhã será oposição e vice-versa.

Da história das democracias vê-se que para o sucesso do processo faz diferença se existe, ou não,uma classe média e uma sociedade civil autónoma em relação ao Estado. Quando tal se verifica, constata-seque as regras que permitem às pessoas prosperar e conduzir a sua vida de forma livre e independente são as mesmas que têm como base a liberdade, a justiça e o primado da lei, e são garantidas por governos eleitos. Naturalmente que nesses casos o processo democrático tem apoiantes e um controlo crítico permanente. Se, pelo contrário, o Estado consegue subtrair-se ao controle do eleitorado ou deliberadamente utiliza recursos públicos para influenciar eleições, ganha-se, em vez de sociedade civil, atomização social e uma classe média falsa porque manietada por laços “comestíveis” com o Estado.

Crises da democracia representativa verificam-se quando, por alguma razão, os eleitores e a sociedade se apercebem que os líderes não se mostram constrangidos pelos mandatos recebidos e pelas promessas feitas nem se sentem obrigados a prestar contas. Hoje, na Europa, toma-se como uma das causas da crise do sistema democrático a percepção de que os governos deixaram de responder cabalmente aos interesses nacionais para se conformarem a interesses dos mercados de capitais, da troika e das elites locais ligadas ao sector financeiro. Em democracias como Cabo Verde as razões da crise são outras. Falta o suporte social activo que podia vir de uma classe média com suficiente autonomia para não se deixar enredar em interesses cúmplices com o Estado.

Pela via da reciclagem da ajuda externa nunca se poderia produzir essa tal classe média que tanta falta faz à democracia. O Estado em tal modelo acentua as suas tendências centralizadoras e, enquanto principal provedor de recursos, de acessos especiais e de favores, procura activamente enredar todos nas suas malhas. Os valores criados são outros. Opta-se pelo chico-espertismo, pela aposta em redes de influências e por favores partidários. Quando vem a crise, não há força anímica para se impulsionar a revisão de políticas. O próprio governo, aparentemente ainda inconformado pelos limites da política de reciclagem de ajudas, procura ganhar tempo. Faz viagens mediáticas de “diplomacia económica” e lança iniciativas múltiplas de formação profissional e de apoio ao empreendedorismo. Debaixo da nova retórica pressente-se, porém, que os pressupostos anteriores continuam e que muito simplesmente se procura manter o país na ilusão da ajuda externa.

Sem o governo realmente disposto a rever as suas políticas, nem pela via de uma remodelação ministerial, cabe aos partidos políticos uma discussão urgente do futuro de Cabo Verde pós-crise. A preocupação com a conquista do poder não deverá inibir discussões no interior dos partidos e na interacção com a sociedade que tenham como foco principal encontrar as melhores vias para recuperar o tempo perdido em estratégias que deixaram o país com uma base económica estreita, com um sector privado fraco e com capital social e humano a níveis muito baixos. No confronto de 2016, soluções avançadas e credíveis terão que ser apresentadas ao país. Seria bom que os partidos e as respectivas lideranças se preparassem para que o embate eleitoral fosse altamente benéfico para o país abrindo vias novas para a prosperidade e a felicidade de todos.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 19 de Junho de 2013

quarta-feira, junho 12, 2013

Guerrilha institucional



As autoridades, o Governo e a Câmara Municipal da Praia, conhecem dificuldades nos domínios dos transportes públicos, do trânsito em geral e do estacionamento de viaturas com que a cidade e os seus residentes lidam no dia-a-dia. Deficiências nos transportes públicos não favorecem a circulação de pessoas e a vida intensa da cidade que poderia existir com a comunicação fácil, previsível e segura entre os diferentes bairros. Porque não se pode contar com transportes, confortáveis, seguros e funcionando em horários certos, muitos optam por conduzir viatura própria nos seus afazeres. O próprio Estado mantém uma frota de carros muito maior do que eventualmente necessitaria. Táxis e hiaces circulam incessantemente pelas ruas à cata dos passageiros deixados para trás pelas falhas do sistema. Com todos esses carros nas ruas, o trânsito torna-se atroz nas horas de ponta e estacionar em certos sítios como o Platô passa a ser extremamente difícil. Causa alguma perplexidade constatar que tais problemas persistem ano após ano sem que no âmbito das competências respectivas das diferentes entidades se aja de forma compreensiva e eficaz para os ultrapassar, mesmo quando fica evidente que constituem entraves ao desenvolvimento da cidade e à melhoria da qualidade de vida dos residentes. A crispação política reinante parece condicionar a actuação das entidades públicas. Não poucas vezes acções, omissões e declarações públicas azedas do Governo, de estruturas da administração central e dos órgãos municipais colocam-se no caminho de uma intervenção coordenada na cidade. E como no caso da Guarda Municipal, quando se avança para uma solução, ela não fica completamente despida de controvérsia e não consegue ter a eficácia de uma verdadeira Polícia Municipal. Pelo mesmo caminho está-se a ir no que respeita à gestão do estacionamento no Platô e a colocação de parquímetros. O governo tem a tutela dos municípios e deve assegurar que o funcionamento das autarquias respeite sempre o quadro legal existente. Com a tutela vem a responsabilidade de ser proactivo no suprimento de legislação necessária para a realização plena das atribuições e competências s dos órgãos municipais. Não é aceitável que até agora o governo e a Assembleia Nacional se tenham omitido, não legislando sobre polícias municipais apesar das reivindicações de vários municípios e dos óbvios benefícios que daí podiam advir como se constata da experiência da Guarda Municipal na Praia. Também não é aceitável que perante o descontentamento de muitos munícipes quanto ao novo cálculo do IUP, que agrava consideravelmente o imposto, o governo não produza um despacho interpretativo da lei que uniformizasse a sua aplicação em todo o território nacional. E ainda na questão dos transportes públicos nos centros urbanos não ajuste os anos de concessão das linhas às exigências de amortização dos investimentos necessários para se garantir aos utentes conforto, segurança, frequência e tarifas acessíveis a todos. Omissões de “quem de direito” muitas vezes são acompanhadas de acções com motivação política partidária que só aumentam o ruído no sistema, confundem funções de uns e outros e perpetuam conflitos. É o caso de intervenção dos deputados do PAICV na questão dos parquí- metros. Em se posicionando directamente contra as decisões da Câmara Municipal, substituíram-se aos eleitos do seu próprio partido na assembleia municipal e não deram a devida atenção ao facto de que é o governo quem tem a tutela da legalidade sobre os municípios. Uma confusão de papéis que retira eficácia ao sistema quanto confrontado com situações complexas que requerem a actuação de diferentes actores. Evita-se guerrilha institucional compreendendo que a funcionalidade do sistema político pressupõe a existência de vários poderes actuando lado a lado e num ambiente de liberdade, pluralismo e de respeito pelo primado da lei. Não se evitam conflitos inibindo os órgãos de soberania e os órgãos autárquicos de exercerem as suas competências. Pelo contrário criam-se disfuncionalidades quando se pressiona o Parlamento e os deputados para não fiscalizarem o governo, ou se destrata o presidente da república por vetar leis ou requerer a fiscalização da constitucionalidade dos diplomas legislativos e ainda se deixa as câmaras municipais sem acção, porque não se lhes propicia nem os recursos nem o quadro legal. E “boa governação” não é isso. Agindo assim acaba-se por constatar que se deixou o país despreparado para confrontar choques externos, iludido com expectativas de crescimento que não se concretizam e frustrado com níveis elevados de desemprego.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 12 de Junho de 2013

quarta-feira, junho 05, 2013

Corrigir o rumo



A declaração de Yokohama de 3 de Junho adoptada na sequência da 5º Conferência Internacional de Tóquio para o Desenvolvimento da África (TICAD V) constituiu uma promessa do Japão para promover o sector privado como via a seguir para se atingir crescimento sustentado. Para o Primeiro-ministro Shinzo Abe o caminho a seguir deve ser o do winwin. Aquele em que todos ganham. Japão luta para sair de mais de uma década de estagnação económica numa conjuntura em que as grandes locomotivas da economia mundial como a União Europeia e os Estados Unidos se debatem com crescimento rasteiro. Parte da sua estratégia é contribuir para a dinamização de outros potenciais centros de crescimento de forma a aumentar o volume global do comércio entre as nações. Considerando o ponto em que se encontra actualmente e o potencial que oferece, a África perfila-se como o alvo óbvio para isso. A ideia de substituir “Ajuda por Comércio” atravessa toda a referida declaração. Por isso é que põe enfase no sector privado, no crescimento inclusivo, na criação de infraestruturas e na capacitação dos recursos humanos nos domínios da ciência e tecnologia. Pretende-se que se consolidem as instituições e o Estado de Direito para que os indivíduos se sintam confiantes para investirem a sua energia, criatividade e também poupanças na expectativa de um retorno justo. Quer-se incutir a ideia de que é fundamental que todos prosperem e contribuam para o enriquecimento da nação. Os 34 bilhões de dólares prometidos para o quinquénio (2013-2017) são para cumprir tal desiderato como se pode ver pela consignação de 20 bilhões para promoção do sector privado, melhoramento do clima de negócios e de investimento e os restantes 14 bilhões para infraestruturas e desenvolvimento do capital humano. Não deverão juntar-se a outros pacotes que no passado deram obras de prestígio, elefantes brancos e bem-estar às elites controladoras do aparelho do Estado, deixando uma boa parte da população na pobreza, outra marginalizada ou em estado de desemprego “estrutural”. Joseph Stiglitz, Prémio Nobel da Economia, presente nos seminários sobre o desenvolvimento industrial da África organizado no quadro da conferência TICAD 5 insistiu com participantes dos 51 países africanos presentes para que retirassem as devidas lições das políticas de crescimento dos países do sudeste asiático. A opção de fazer das exportações de bens e serviços o motor da economia empurrou-os para os caminhos da industrialização e da diversificação da base económica sempre atentos às suas vantagens comparativas. Não desdenharam a ajuda internacional, mas focalizaram-se no comércio com o exterior. No processo, serviram-se dos donativos não para perpetuar economias de reciclagem de ajudas mas para, em conjugação com impulsos próprios de vária ordem, melhor implementar a estratégia central do país de ganhar competitividade externa, alargar mercado e atrair capital estrangeiro. Cabo Verde é classificado pela revisa Economist como o maior recipiente de ajuda per capita no mundo, muito à frente do Haiti ou de Timor Leste. Vê-se o que fez com tal privilégio. Quase quarenta anos após a independência ainda não abandonou o modelo de reciclagem. O motor da economia ainda é o consumo interno induzido por transferências externas como donativos, empréstimos públicos concessionais e remessas de emigrantes. Se hoje a crise afecta o país não é essencialmente por quebra da procura externa, mas porque os doadores tradicionais vivem “tempos de vacas magras”. O problema é que a grande tentação em prosseguir o mesmo caminho. Perante resultados que põem o país à beira de uma recessão económica e com maior taxa de desemprego dos últimos anos, a atitude do governo é “não assumir nada, culpar os outros e anunciar sucessos futuros”. Promessas de apoio internacional são celebradas e apresentadas à sociedade como prova de que o governo continua a ser capaz de manter a ajuda externa e a economia que dela depende. Reproduz-se a mensagem mesmo quando a linguagem governamental aparentemente não a passa porque está adaptada às exigências dos tempos e à preocupação dos doadores em substituir “ajuda por comércio”. Vê-se na prática no baixo nível de competitividade e no ambiente de negócios pouco propício ao investimento e à atracção de capital externo. Mais de 60 milhões de dólares disponibilizados pelo Japão é o que já se apregoa ser o resultado da participação do Primeiro-ministro na conferência de Tóquio. Pelo tom, pelas já anunciadas aplicações e pela insistência na retórica dos clusters, que dos quatro iniciais já vão em sete, apercebe-se que nada de fundamental vai mudar no curso de governação do país. O facto das previsões de crescimento de Cabo Verde para 2013 situarem-se entre -1,5 e 1 % muito abaixo da média da África situada em 5% não parece ser razão suficientemente para corrigir o rumo da governação. Muito menos para mudar a atitude da sociedade no sentido de um maior engajamento com o mundo e para longe do conformismo que rouba as pessoas a iniciativa, aumenta a frustração colectiva e reforça a dependência do Estado. Que enorme desperdício!

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 5 de Junho de 2013

quarta-feira, maio 29, 2013

África um continente à procura do take off



No passado dia 25 de Maio comemorou-se o quinquagésimo aniversário da União Africana. Um momento para o balanço do que foram os 50 anos dos novos países africanos saídos do colonialismo. Anos marcados na maior parte dos casos por derivas políticas em direcção a regimes autoritá- rios de partido único e também por guerras intra e interEstados, limpezas étnicas e genocídios. Recentemente surgiu o fenómeno dos estados falhados, primeiro na Somália e depois noutros pontos do continente, variando os casos de acordo com maior ou menor grau de falha das instituições e de perda da autoridade do Estado. A opção pela democracia nas ilhas Maurícias e no Botsuana desde dos primórdios das respectivas independências certamente contribuiu para colocar estes dois países no topo da Africa Negra quanto ao rendimento per capita, desenvolvimento humano e competitividade externa. Exemplos que só tardiamente seriam seguidos por outros. Cinquenta anos depois das primeiras independências ainda se está à espera de um verdadeiro take off em África. Ainda não aconteceu no continente o milagre de crescimento económico verificado primeiro nos países do sudeste asiático designadamente Coreia do Sul, Hong Kong, Taiwan e Singapura e mais tarde a China, que em pouco mais de três décadas retirou centenas de milhões de pessoas da pobreza e projectou outras centenas de milhões para o nível da classe média. Em África, muitos milhões de pessoas continuam excluídos de participação efectiva na vida dos países enquanto mecanismos vários permitem a cliques de natureza política, étnica, religiosa ou linguística subtraírem, para proveito próprio, rendas avultadas do que devia ser património público. O presidente americano Barak Obama quando esteve no Gana, em 2009,chamou a atenção para o facto de que o que falta em África são instituições democráticas fortes. Ainda disse que os tempos clamam não pelos ditadores do passado mas sim por níveis elevados de governança e por uma sociedade civil actuante. Uma economista zambiana DambisaMoyo ficou famosa recentemente com a publicação de um livro,DeadAid(Ajuda Morta,) em que sustenta que o resultado de mais de um trilhão de dólares de ajuda à África nos últimos 50 foi mais pobreza e corrupção. Para ela “a ajuda não faz bem África”. Pode-se não corroborar o conjunto de argumentos que ela apresenta mas facto é que muitos países preferem ajuda em vez do comércio, mesmo sabendo que com estratégias de desenvolvimento voltadas para a exportação criam-se mais postos de trabalho e cresce-se a taxas mais elevadas. Cabo Verde é um caso desses. Vê-se no carinho com que as autoridades tratam o MCA, que é ajuda americana, e na quase indiferença com que lidaram com o AGOA, o programa de acesso preferencial ao mercado americano. Quando como hoje se contempla mais um ano de crescimento negativo lê-se no relatório do Banco de Cabo Verde que a causa está na quebra da procura interna que não é compensada pela expansão de procura externa. Não há procura externa porque o país não soube diversificar a economia como forma de se resguardar contra choques externos. A procura interna sofre as consequênciasda diminuição de donativos e das remessas e das restrições impostas pelo BCV ao crédito como forma de salvaguardar o acordo cambial numa conjuntura caracterizada por “aumento considerável do nível de endividamento da economia e redução de espaçoorçamental”. As Maurícias diversificaram a sua economia em tempo para resistir a choques externos. No passado mais remoto, indústrias em zonas económicas especiais fizeram cair o desemprego de 20% para 5%. Na última crise recorreram às tecnologias de informação e comunicação para criar mais de 100.000 postos de trabalho, albergaram mais de vinte mil empresas na praça financeira e deram um empurrão ao turismo de qualidade que já atingiu um milhão de visitantes. Não é à toa que essas ilhas remotas no oceano índico com uma população etnicamente diversa e outras fragilidades que no passado até levaram James Meade, prémio nobel da economia, a considerar o país inviável são universalmente considerados um caso de sucesso. Souberam consolidar as suas instituições democráticas. Os debates na Assembleia Nacional sobre a situação económica do país,por todos reconhecida como de crise, mostrou claro as fragilidades existentes nas instituições democráticas. O Governo recusa-se a assumir responsabilidades pelos resultados da governação e engaja-se num nãodebate com a oposição comparando períodos de governação do país separados por mais de dez anos. A crispação de que aí resulta muito dificilmente permitirá que se crie vontade política mais abrangente, capaz de assumir posições à altura dos tempos extraordinários que o país vive actualmente. As dificuldade s que a África tem tido em fazer o seu take off provavelmente terão muito a ver com o que em pequena escala se constata em Cabo Verde. Custa a quem está no poder trabalhar com a oposição e com a sociedade de forma a garantir que o esforço nacional para o desenvolvimento seja o mais eficaz possível. Mesmo em tempo de crise o desejo de conservar em exclusivo o poder não deixa ver os ganhos que instituições inclusivas representam.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 29 de Maio de 2013

quarta-feira, maio 22, 2013

Política de divisão

Num país, levar grupos de cidadãos a criar identidades antagónicas e lançá-los uns contra os outros é das formas mais nefastas de fazer política. Para a democracia é letal. O sentido de justiça perde-se, deixa-se de reconhecer a igualdade de todos perante a lei, compromete-se a liberdade em nome de interesses de grupo e mina-se a confiança indispensável à criação da prosperidade colectiva. Em momentos socio-económicos difíceis é grande a tentação de recorrer a estratagemas divisivos. Para quem está no poder pode ser uma forma de se desresponsabilizar e culpar outros. Para quem procura projecção política rápida constitui um atalho. Evita-se a canseira da influenciação política em ambiente livre e plural.
Na semana passada, o presidente da Câmara de S.Vicente falou da República de Santiago para justificar as dificuldades por que passa S. Vicente, neste momento com a maior taxa de desemprego do país. Podia ter-se referido às políticas do governo do PAICV que em mais de uma década não resultaram em crescimento económico e criação de postos de trabalho em número suficiente para debelar o desemprego. Podia criticar a excessiva centralização das decisões na capital e as consequências de anos de hostilidade para com as câmaras municipais. Podia ainda relembrar todo o programa de infra-estruturação do país que não trouxe o crescimento anunciado, os empregos prometidos e o investimento privado desejado. E que o país já atingiu o limiar do endividamento e, com os donativos em baixa e sem competitividade externa, não tem como mobilizar fundos para evitar que o crescimento caía para o negativo.
A opção por projectar num grupo definido territorialmente (Santiago) uma vontade política tida como prejudicial a um outro grupo (S. Vicente) é uma via simplista que na prática desresponsabiliza quem de facto tem um mandato para governar e exerce poder. As consequências das políticas do governo tocam a todos, independentemente da ilha onde vivem. Mobilizar pessoas na base de identidades artificiais e adversárias interfere com o processo democrático dos cidadãos avaliarem as acções dos governantes e agirem no tempo e nas formas próprias para encontrar alternativas de governação. Tal postura política não ajuda na procura de soluções para a actual situação, pelo contrário, desvia energias para causas ilusórias que depois de correrem completamente o seu curso deixam para trás frustrações e profunda resignação. Ninguém ganha com isso, nem mesmo os políticos por aí tentados. O sucesso traduzido em popularidade ou mesmo em votos, em geral não dura muito e tem o efeito de os confinar à “paróquia”. Exemplos abundam por aí.
Cabo Verde emergiu como nação homogénea em termos culturais, linguísticos e religiosos de dentro do império português.Tornou-se independente num contexto histórico específico e os seus homens e mulheres não tiveram que recorrer a um conflito de natureza existencial com outrem para apossarem da sua caboverdianidade. Políticas divisivas surgiram para justificar o monopólio político do partido único e as múltiplas acções no âmbito da “reafricanização dos espíritos”. Daí a celebre diferenciação entre o povo, todo aquele que está com o partido africano, e o resto, a população onde supostamente estariam os anti-patriotas, os inimigos de classe e os europeizados.
Mesmo quando a democracia e o Estado de direito vêm devolver total direito de cidadania aos caboverdianos, não acabam as tentativas de fazer política divisiva no país. É o que acontece nas campanhas municipais em que se procura desqualificar candidatos a presidente de câmara por não serem originários do concelho, embora munícipes. Populações, designadamente do Sal e do Paul, reprovaram tais actos mas a tentação persiste. Ao nível nacional, o discurso político não poucas vezes dirige-se para rotular uns como amantes da terra, patriotas, bem intencionados e defensores do interesse público enquanto os outros são tidos como capazes de vender a terra, como catastrofistas e com representantes de interesse próprio ou de grupos privados.
A dinâmica divisiva do país, provocada pela forma apressada como o governo e entidades próximas têm trabalhado a questão da oficialização do crioulo, devia ser alerta suficiente para todos. Muitos caboverdianos ressentem-se da adopção de uma escrita com base num alfabeto fonológico que rouba a língua da sua origem e história etimológica. E vêem nisso motivações ideológicas que não devem ser impostas a ninguém.
Não é admissível que a acção política, cujo objectivo deve ser a procura de caminhos para a nação se consolidar e prosperar, se reduza a simples instrumento de uma estratégia de poder. A nação celebrada na literatura, na música e na vivência das gentes, nas ilhas e na diáspora, deve sempre poder contar com o vigor, a criatividade e a esperança de todos nas ilhas. É função e responsabilidade do governo fazer que assim seja.
Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 22 de Maio de 2013

quarta-feira, maio 15, 2013

Pacto vago e fugidio



Volta e meia o sr. Primeiro-ministro traz à ribalta a ideia de um pacto de regime. Diligências são feitas para se assegurar o máximo de atenção dos órgãos de comunicação social. Convites são enviados aos partidos políticos, confissões religiosas, sindicatos e patronato para um encontro com o chefe do governo. A ideia de Consenso ganha uma nova vida e passa a ser o foco das conversas e o tema central das declarações públicas de dirigentes políticos. Normalmente o ciclo termina com o governo a declarar que irá prosseguir com a sua “agenda de transformação” e a distanciar-se dos outros por supostamente estarem a propor medidas de austeridade penalizadoras da população. Em Novembro de 2011, no fim de mais um exercício de busca de consenso, chegou a apontar o dedo ao governador do Banco de Cabo Verde por ter alegadamente vindo a público “ensinar a missa ao vigário”. Dado ao que alguém já chamou da “infindável energia do cinismo quando erigido em princípio da acção política”, não é de estranhar que novas expedições em prol do consenso já estejam em andamento. Desde que o INE chocou a sociedade cabo-verdiana com os números do desemprego que o Governo tem estado numa roda-viva a demonstrar que tudo (políticas activas de emprego, formação profissional etc.) está a ser feito. Ninguém sabe porque não são mais eficazes. Ou talvez são e provavelmente a falta de trabalho é uma miragem ou um estado de alma e as pessoas precisam ser positivas e optimistas. Como das outras vezes, não tardou muito em apelar ao consenso e à responsabilidade partilhada. O governo tem um mandato de cinco anos sufragado nas urnas e uma maioria absoluta sólida de deputados que assegura sem contributo dos votos dos outros partidos a estabilidade governativa e a passagem da generalidade das leis que dão corpo às suas políticas. Não está sobre nenhuma pressão externa que a exemplo da Troika na Europa exigisse mudanças estruturais profundas a troco de fundos disponibilizados a preços menores do que os praticados pelo mercado de capitais.No actual contexto só se consegue compreender o apelo ao consenso como forma de tornar os adversários complacentes com actual agenda política e co-responsáveis pela situação actual e futura do país. Nas democracias, partidos políticos, sindicalistas, patronato e Estado negociam e chegam a acordos. Não há quem imponha uma agenda e os outros submetem-se a ela. Se uma parte fica pelas suas verdades de conveniência do tipo “as contas do FMI estavam erradas, técnicos da Fitch reconheceram a bondade das políticas do governo e o desemprego devese ao aumento da população activa”,dificilmente se vai encontrar plataforma para entendimentos futuros. Do discurso do PM na semana passada depreende-se que um dos objectivos do “pacto”seria ter o país a falar a uma única voz com as instituições de BreonWoods (FMI, Banco mundial WTO). A realidade é que essas instituições não ignoram que quem dirige a política interna e externa do país é o governo e que nas democracias a oposição e sectores da sociedade civil têm em várias ocasiões posições divergentes das do governo. Por aí não há confusão. O apelo ao consenso tem por isso outro objectivo: reforçar nas pessoas e na sociedade a importância suprema da ajuda externa e insinuar que a prática do pluralismo de alguma forma fere a imagem externa necessária para o país continuar a beneficiar da generosidade da comunidade internacional. Trazem-se ao de cima vulnerabilidades ancestrais para fazer as pessoas ceder liberdades conquistadas em troca de garantia de sustento. Foi feito ontem e continua-se a fazer hoje sempre que com subterfú- gios diversos se condicionam o voto ou se pressiona as pessoas para se calarem. E continuar-se-á a fazer enquanto persistir no país a ideia de que fazer política é arrebanhar as pessoas explorando-lhes as fraquezas e fazendo-lhes entrar em redes de favores. Não é a toa que quase quarenta anos após a independência, Cabo Verde ainda esteja neste nível de dependência da ajuda externa. As dificuldades actuais são razão suficiente para se libertar de um modelo já velho de décadas que só dependência e penúria auguram para o futuro. Livrar-se da tentação de governar na base de reciclagem da ajuda não é tarefa fácil. Mas tem que ser para evitar a exposição excessiva do país a choques externos para preservar a dignidade das pessoas, e assegurar a honorabilidade dos servidores públicos.

Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 15 de Maio de 2013

quarta-feira, maio 08, 2013

Mudar


A Administração Pública cabo-verdiana não está bem. Vozes, incluindo a do próprio primeiro-ministro, passando pelos empresários, até os cidadãos comuns e utentes dos serviços apontam para anomalias potencialmente prejudiciais ao país e ao desenvolvimento. O PM refere-se à postura burocrática, virada para dentro e negativa em relação ao sector privado. Os empresários sentem-se muitas vezes como uma espécie de alvo a abater. Os utentes sofrem a quase total ausência de uma cultura de serviço em que favoritismos e discriminações são frequentes.

As revelações das últimas semanas vieram acrescentar outros problemas. Casos de corrupção e exemplos de incompetência deixaram o país estupefacto. O choque foi maior porque o epicentro se localizou precisamente no ministério das Finanças. Já causava estranheza a incapacidade reiterada das Finanças em resolver os problemas do IUR e do IVA de vários anos atrás. Brigava com a imagem de rigor que se insistia em projectar. Com o relatório do FMI sobre o estado de funcionamento da direcção geral das Contribuições e Impostos, não ficaram dúvidas quanto às razões de tanta ineficácia. As notícias dos desvios tendo como alegados protagonistas a “equipa de elite” dos controladores financeiros mostrou que afinal o barco estava cheio de buracos.

A questão que se coloca é saber se o problema é localizado ou sistémico. Os avisos reiterados do Tribunal de Contas deixam a entender que são muitas as deficiências no controlo da execução orçamental. Alterações de dotações orçamentais relativos a donativos e a empréstimos externos não constam dos mapas. Receitas de certos serviços são utilizadas antes de darem entrada no Tesouro. Frequentes adendas são incluídas em contractos de empreitadas aumentando significativamente os custos finais das obras do Estado. Num quadro assim pintado os incidentes e situações no ministério das Finanças podem vir a revelar-se como a ponta do icebergue dos males que afligem a administração pública.

Da administração do Estado, os cidadãos, as famílias e as empresas esperam um conjunto de condições a começar pela segurança, saúde, educação e a garantia de um quadro legal que lhes permita realizarem-se de acordo com sua motivação, energia e criatividade. Para isso, o acesso deve ser igual para todos e a disponibilização dos serviços tem que ser feita com eficiência na utilização dos meios e eficácia na consecução dos objectivos de modo a não pesar a economia e as pessoas com impostos desnecessários. Ninguém quer um Estado virado para dentro, olhando de lado a economia e sem controlo das despesas.

A administração pública cabo-verdiana sofre de partidarização excessiva. Nota-se nos períodos eleitorais o número de directores, presidentes de institutos públicos e de fundações que aparecem nas listas do partido no governo. Um outro sinal revelador da existência de outros critérios, que não os meritocráticos, são as nomeações de quadros com poucos anos de serviço público para posições cimeiras nos ministérios, nos institutos e nas agências reguladoras. A Constituição da República obriga a isenção e imparcialidade no tratamento dos utentes dos serviços do Estado e proíbe que se descrimine com base em opções político-partidárias. O respeito por esses princípios devia gerar um ethos e uma ética na administração pública que não é o que actualmente existe. Denúncias feitas por vários protagonistas políticos, mesmo de rivais no interior do partido que suporta o governo, apontam para o uso sistemático de fundos, bens e empregos do Estado para atingir objectivos políticos.

Em ambiente de uso generalizado dos recursos do Estado para influenciação política, as portas ficam abertas para a incompetência, a ineficácia e para o desperdício e mesmo para a pequena e a grande corrupção. Como travar a derrapagem é a questão que se coloca com cada vez maior acuidade. Duas opções se colocam. Deixar o Estado no “topo” da cadeia alimentar controlando os fluxos externos e certificando que tudo o resto – a economia e as pessoas – fica no lugar designado ou reposicioná-lo na vida do país como regulador e facilitador do desenvolvimento.

Na primeira opção vão manter-se as mazelas já referenciadas: a administração vai servir-se cada vez mais do bolo comum, não irá permitir que a cultura administrativa e burocrática seja substituída por uma outra, empresarial, empreendedora e voltada para resultados, e nem que finalmente emerja uma cultura de serviço tão essencial ao turismo e outras actividades de prestação e exportação de serviços.

Já na segunda opção há esperança de que os problemas actuais de crescimento e emprego poderão ser ultrapassados. O país ganhará competitividade se diminuírem os custos do contexto e se apostar no desenvolvimento estratégico do capital humano guiado por valores como excelência, qualidade e sobriedade na utilização de recursos e completamento aberto à inovação.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 8 de Maio de 2013

terça-feira, abril 30, 2013

Jobs ,jobs, jobs



Os dados do Instituto Nacional de Estatística que apontam para um aumento de mais de 4 por cento de desemprego entre 2011 e 2012 vieram confirmar a quebra de actividade económica e a ausência de oportunidade de emprego já sentida pela generalidade da sociedade cabo-verdiana. Conjuntamente com os dados do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) que dão conta de crescimento negativo em 2009 e taxas de crescimento abaixo do previsto nos anos subsequentes não deixam margens para dúvidas que a propalada agenda de transformação do governo não se concretizou. Mesmo com investimentos públicos vultuosos, que já levaram a endividamento no limiar da sustentabilidade, o país não cresceu como previsto e muito menos solucionou o grave problema de desemprego. A luta contra o desemprego não tem sido propriamente o foco da atenção do actual governo. Sempre que confrontado com números reveladores do pouco avanço no domínio do emprego, particularmente para os jovens, a resposta tem sido invariavelmente evasiva, desresponsabilizadora e acusadora. Relembra que o desemprego é estrutural, afirma que já fez a sua parte e acusa o sector privado e as pessoas de falta de iniciativa, de incapacidade de gerar auto-emprego e até de se negarem ao trabalho. Entretanto mantém viva a miragem do trabalho público na administração do Estado. Propicia estágios, abre novas vagas e promete o 13º mês e aumentos salariais. Age provavelmente com a forte convicção de que enquanto as dificuldades de crescimento do país não se fizerem sentir na administração pública, poderá manter a confiança de uma parte substancial do país, seja da elite nacional que gravita à volta do Estado, seja da parte da população que mesmo em dificuldades olha para o Estado como pedra salvadora. A realidade mundial actual e a história das nações demonstram que sucesso no combate ao desemprego só é possível com economias a crescer e a tornarem-se cada vez mais produtivas. Não se vê como Cabo Verde possa ser excepção a essa regra. Estranha-se pois que não se questione porque nos últimos dez anos o crescimento económico do país não foi acompanhado da criação significativa de empregos. O governo, apesar de falhar no seu objectivo programático de fazer cair o desemprego para um dígito, não presta a devida atenção ao problemamesmo quando ao longo da década perderam-se empregos em sectores como o industrial e serviços que não foram compensados por novos postos de trabalho. Prefere deflectir críticas com subterfúgios diversos e alimentar ilusões de desenvolvimento. Com investimentos públicos em infra-estruturas, em equipamentos sociais e sectores produtivos corre-se sempre o risco de contaminação política. Podem ser desviados dos seus propósitos originais. Em vez de contribuírem para o esforço global de criar riquezas através do uso efi- ciente de recursos como capital, trabalho e recursos naturais são utilizados como material de propaganda, como veículo de distribuição de favores e como expressão de uma relação paternalista com a sociedade. Constituem-se numa espécie de “atracção fatal” de que não se consegue libertar mesmo face à realidade do crescimento sem emprego, da criação de elefantes brancos e da falta do retorno desejável em áreas como a educação, a saúde e a formação profissional. O pior acontece quando a preferência pelo investimento público dissociado do suporte ao investimento privado situa-se perfeitamente na zona de conforto ideológico de quem governa. Nesse caso, nem o excessivo endividamento público para satisfazer o modelo de desenvolvimento consegue ser travão suficiente. É a economia que cria emprego e ela só pode sustentar-se sob impulso do sector privado. A existência de um ambiente de negócios caracterizado por forte concorrência, flexibilidade do mercado de trabalho e adequação do capital humano às necessidades das empresas é fundamental para se realizar o potencial da iniciativa, criatividade e energias dos indivíduos e da sociedade. Muitas dificuldades na criação de emprego ao longo dos últimos anos devem-se às insuficiências já constatadas na educação e formação profissional que resultam da rigidez das relações laborais e da crescente informalidade da economia. Os últimos dados do INE constituem um alerta sério para se mudar a política em Cabo Verde. Emprego é rendimento, auto-estima, factor de coesão social e suporte da cidadania activa e interventiva. Criar as condições para a sua criação e sustentabilidade é uma das funções fundamentais de qualquer governo. Não se deve permitir a nenhum governo eleito desresponsabilizar-se quando as suas políticas afectam de forma gravosa as expectativas de uma vida digna, autónoma e feliz dos cidadãos.

Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 30 de Abril de 2013

quarta-feira, abril 24, 2013

Ambição nova, modelo velho



“Uma nova ambição” foi o slogan do XIII congresso do PAICV, o partido no governo, realizado no último fim-de-semana. Slogan curioso, tratando-se de um congresso cuja finalidade aparente foi a de unir as fileiras, ainda com marcas da crise aberta pelas eleições presidenciais de 2011, para melhor proceder à substituição do actual líder, Dr. José Maria Neves. Mas compreende-se se a intenção é fazer os militantes confiar que vão permanecer no poder até pelo menos 2030, quando Cabo Verde será “um país desenvolvido”. Pela projecção de imagem de partido hegemó- nico no sistema político evitam lutas divisivas pela liderança e focalizam esforços dos militantes na subalternização da oposição. Nos discursos do congresso foi relembrado, em vários momentos, que o PAICV em 40 anos de independência governou 30 anos. Para se chegar a esse número não houve pudor algum em pôr no mesmo pé 15 anos de governo sem consentimento do povo (tirania, ditadura) e 15 anos de governo constitucional e com mandato do povo soberano baseado no voto. Dá para perguntar até que ponto os princípios e valores da República são assumidos pelos seus dirigentes. Com essa aritmética dúbia provavelmente pretendia-se dar por provado que é “destino” de Cabo Verde ser governado pelo PAICV. No quadro surreal assim criado, os anos noventa de governação do MpD, que por sinal são os anos da construção da democracia liberal e constitucional que Cabo Verde é hoje, são vistos como uma espécie de “desvio da história”. Também justificados ficariam os ataques, 12 anos depois, à década de noventa e o esforço em demonstrar que só quem realmente ama Cabo Verde merece governar. Os próprios. É interessante notar que a fasquia de 12 mil dólares per capita considerada ambiciosa de atingir em 2030 foi alcançada pelas Maurícias anos atrás. A diferença entre os dois, como países independentes, é de 7 anos, mas enquanto as Maurícias com a sua democracia diversificava a sua economia, industrializava-se e exportava bens e serviços, Cabo Verde caminhava sem liberdade pessoal, política e económica e com um passo rasteiro de 4,4 por cento em média. Fechado sob si próprio, hostil ao investimento directo estrangeiro e sem uma política coerente de desenvolvimento do capital humano, Cabo Verde não podia almejar atingir níveis aceitáveis de produtividade e competitividade, conseguir mercados e garantir retorno de investimento. Ficou para trás. Foi só com a implantação das liberdades e a edificação das instituições do Estado de direito, nos anos noventa, que se logrou soltar o potencial do país e crescer à média, da década, de mais 7% ao ano. A ambição pessoal de aumentar rendimentos e melhorar a qualidade de vida passou a ser o motor da nova era. A mudança de governo em 2001 constituiu de uma certa forma uma inversão de marcha. A taxa média de crescimento da década voltou a baixar para os 5,2 por cento fomentou-se a dependência de recursos externos, aumentou-se a dependência dos favores públicos e o desemprego agravou-se ainda mais. O entusiasmo do fim do milénio foi substituído pelo conformismo. Mais uma vez espera-se que o impulso do crescimento venha de donativos e da dívida concessional. Só se veio a reconhecer que a crise atingiu Cabo Verde quando os doadores se retraíram por falta de disponibilidade financeira. Entretanto a acção governamental não foi suficientemente dirigida para melhorar a competitividade, adequar o capital humano às exigências de hoje e atrair capital privado nacional e estrangeiro. Não se concretizaram as diminuições de custos de contexto nem se potencializaram oportunidades designadamente no turismo. E, como outrora, corre-se o risco de ficar agarrado a elefantes brancos fruto de investimentos de duvidosa racionalidade económica, mas perfeitos em proporcionar saltos imaginários de alavancagem do desenvolvimento. Cálculos feitos por economistas da praça apontam para 9% o crescimento do PIB para se atingir a meta dos 12 mil dólares em 2030. Os resultados muito abaixo dos previstos nos últimos três anos de investimento público, com base na dívida, deixam claro que com a economia estruturada e dirigida como tem sido até agora não será possível atingir tal taxa do PIB. Aliás, o abaixamento do rating da Fitch de estável para negativo provém também das informações definitivas sobre os anos 2008, 2009 e 2010 publicados pelo INE. A ambição pois só se concretizará com um outro modelo. Aquele que, como também noutras paragens e em vários momentos históricos, já demonstrou libertar as energias dos indivíduos e do sector privado dando as garantias institucionais que o esforço e a criatividade serão justamente compensados. Há ambição. Só que não é boa nem é nova. Parece que é mais uma das manifestações da velha ambição do poder que posto para escolher entre controlo e desenvolvimento opta invariavelmente por controlo.




Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 24 de Abril de 2013

quarta-feira, abril 17, 2013

Não repetir os erros do passado



“Fornecimento de energia e água com qualidade e a custos baixos é essencial para a melhoria do ambiente de negócios e das condições sociais”. Este é um dos vários conselhos dados pelo FMI no final da missão de Novembro de 2012 para se ultrapassar a situação actual de crescimento raso, o aumento do défice das contas correntes e o endividamento a aproximar-se dos limites da sustentabilidade. O relatório do FMI (WEO) publicado ontem baixava em 0,3% a previsão de crescimento para 2013 e alargava o défice de contas correntes de -8,9% para -13,2% do PIB.


Infelizmente o documento do FMI que trazia essa e outras recomendações ainda não foi publicado porque, segundo a ministra das Finanças, em declarações à rádio nacional, o governo não o autorizou. Supostamente continha erros nos cálculos da dívida externa. O Governo, com esta estória de erro nos dados, procura de facto minimizar o impacto da baixa do rating de Cabo Verde feita pela empresa de notação financeira Fitch. Imagine-se a felicidade dos gregos, portugueses,cipriotas e outros se pudessem dizer o mesmo e mudar a realidade vivida.


A fraca competitividade do país em vários sectores de actividade resulta em grande medida dos custos excessivos de energia e água. Uma década de uma gestão desastrosa do sector de energia e água deixou comparativamente o país com tarifas das mais altas entre os países da África. As famílias e as empresas tiveram que lidar anos a fio com blackouts sucessivos, imprevisíveis e duradoiros. Foram obrigados a arcar com os custos da baixa qualidade e falta de garantia de fornecimento contínuo adquirindo geradores e substituindo equipamentos e electrodomésticos danificados por variações bruscas de tensão. Enquanto tudo isso acontecia, assistia-se ao espectáculo protagonizado pelas autoridades de escolher em quem deitar as culpas na sequência de mais um apagão ou período de semanas sem água.


Na próxima semana, o Governo leva à Assembleia Nacional o debate sobre o sistema energético. Provavelmente considera que o momento é ideal para mostrar que colocou o país num caminho seguro para a resolução dos problemas de energia. O discurso oficial põe enfase nas taxas de penetração das renováveis, ontem de 25%, hoje de 50% e até já se fala de 100%. Mas, como em muitos desses investimentos feitos com recurso a crédito externo, a relação custo/benefício não é a melhor como é notório no caso das centrais solares de Santiago e do Sal. O facto é que mesmo com infusão da energia eléctrica a partir dos aerogeradores ainda não houve abaixamento do preço e o custo no consumidor do KWh, à volta de meio dólar, continua dos mais altos do mundo.


Quando se vê a situação actual da Electra com a sua reputação abalada junto do público e constituindo pelo volume das suas dívidas um risco orçamental, convém lembrar do que se deve evitar na governação do país e na gestão da coisa pública. Primeiro, há que fugir à tentação de transformar sectores chaves da vida do país em campos de batalha ideológicos em que se deixam soltos sentimentos neonacionalistas e anti-privatizações. Segundo, os investimentos devem ser programados de forma a serem feitos em tempo próprio, encadeados para terem maior impacto e submetidos a uma estratégia com objectivos bem definidos. Terceiro, a responsabilização pelo andamento do processo e pelos resultados deve ser assumido por quem de direito não deixando vazios de orientação que deitam a perder o capital humano e organizacional acumulado e sentido de pertença e orgulho dos trabalhadores.


O mundo da energia ainda traz muitas surpresas: quando se pensava que o preço dos combustíveis fósseis seria só a subir, inovações tecnológicas como o fracking, a extracção do gás natural das rochas xistosas, dão-lhes nova vida. Aumenta a oferta, baixam os preços, aparecem novos produtores e mais longo e árduo se torna o caminho para a implantação das energias renováveis. Cabo Verde, pelo potencial em energia eólica e nível de irradiação solar existente, tem um futuro nas energias renováveis. Importa agora, com uma rede inteligente “smart grid” e com a promoção de atitudes e regulações viradas para a eficiência energética, criar condições para que apareçam novos operadores e soluções inovadoras. Soluções que contribuam para que a energia chegue a todos a um preço aceitável e seja um factor de competitividade do país.


Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 17 de Abril de 2013

quarta-feira, abril 03, 2013

Cansaço



Sente-se que o exercício do poder se aproxima da sua fase derradeira quando se multiplicam os sinais de falta de equilíbrio e ponderação por parte do Governo. Em decisões tomadas, na comunicação com o país e no tratamento do contraditório ou de simples descontentamento popular já se nota desrespeito pelo princípio da necessidade, da adequação e da proporcionalidade. Revelador nesse aspecto é o acórdão 26/2013 do Supremo Tribunal de Justiça que mostrou ser excessiva a coacção sob a forma de impedimento de entrada no local de trabalho e perda de vencimento imposta aos funcionários do Ministério das Finanças. Tinham-se negado a fornecer impressões digitais para um sistema de controlo de assiduidade cuja garantia de guarda efectiva de dados pessoais não era conhecida.


Excessos quase bipolares sucedem-se na comunicação. De um lado, o convite do presidente Obama, transformado em acontecimento histórico, é tratado de forma estrambólica. No sentido oposto dá-se sinais de autismo quando a ministra das Finanças responde secamente a jornalistas sobre a devolução do IUR com um “o MF está a fazer o seu trabalho”. Num momento o Primeiro Ministro chama de terroristas a deputados da oposição que no Parlamento, sede própria do contraditório democrático, questionaram políticas, exigiram responsabilização por manifesta má gestão da DGCI e chamaram atenção para por condutas alegadamente pouco éticas. No momento seguinte há festejos e regozijo porque Cabo Verde aparece colocado no 26º lugar das democracias do mundo.


Mesmo de instituições normalmente menos vulneráveis como as Forças Armadas vêm sinais preocupantes. A reacção do Chefe de Estado Maior na imprensa escrita em resposta a um alegado descontentamento de oficiais superiores não foi a mais cuidada e prudente. Respeito pela hierarquia e por critérios meritocráticos em promoções e na atribuição de comandos é fundamental para que a instituição esteja sempre à altura das suas missões constitucionais. Também já se notam tensões intra e inter-institucionais resultantes das tarefas em matéria de segurança interna que cada vez mais se confere às Forças Armadas. O quadro legal-constitucional entrega à Polícia a responsabilidade única pela segurança interna. Na falta de ajustes no tempo certo, de alterações de normas existente e de coordenação num quadro legal claro, surgem necessariamente tensões que acabam por afectar a eficácia operacional das forças.


A três anos do fim do mandato, a estabilidade governativa ressente-se de decisões importantes já pré-anunciadas quanto à liderança do partido que o sustenta. O primeiro ministro é presidente do Paicv até fins de 2014. Depois terá um ano de gestão certamente mais complexa do país porque a convergência com o novo líder do partido nem sempre se verificará. Dois membros do governo já se pronunciaram publicamente sobre a eventualidade de se candidatarem a presidente do partido. O ministro da Defesa Nacional está demissionário. Nos questionamentos dos jornalistas feitos à ministra das Finanças na sequência do relatório do FMI sobre a DGCI e também das promessas não cumpridas de devolução do IUR sente-se que há expectativa que ela não vai durar no cargo.


O terreno movediço debaixo do governo acontece precisamente quando as opções de política feitas no passado não deram os frutos pretendidos. Os investimentos públicos realizados não abriram caminho para investimentos privados indutores de crescimento significativo e criador de empregos. Mais: levaram o défice orçamental a atingir os valores mais altos de sempre e a dívida pública a aproximar-se do limiar da sustentabilidade. Culpar a crise internacional pelas dificuldades actuais não colhe, porque a perda de donativos e de acesso privilegiado a empréstimos concessionais já estava pré-determinado. Era consequência da graduação a país de rendimento médio. De facto, perdeu-se tempo, muita coisa foi para debaixo do tapete e o governo auto-iludiu-se com a sua retórica de transformação.


Tempos complicados vivem-se hoje. Muitas reformas ficarão por fazer, problemas sociais vários amontoaram-se, a administração depois de anos de forte partidarização deixa transparecer o seu desnorte e ineficácia e o espaço público revela um défice grande na sua capacidade de gerar soluções no quadro da dinâmica governo/oposição e governo/sociedade civil. É essencial que projectos de liderança emerjam e que sejam capazes de, num quadro plural, forjar vontades abrangentes, reconstituir a fibra da sociedade e imprimir uma nova motivação e confiança no futuro.


Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 3 de Abril de 2013.

quarta-feira, março 27, 2013

Imagem não é tudo



 Um estudo recente de opinião do Centro de Investigação de Gestão da Lusófona deixa transparecer a forma desconcertante como os cabo­verdianos continuam a encarar os resultados da governação actual do país. Nos inquéritos feitos dá-se maior nota à imagem de Cabo Verde projectada para o exterior enquanto classificam como negativo a Econo­mia e a Competitividade, as Finanças Públicas, a Honestidade na gestão do governo, a Electricidade, a Água e o Emprego e Formação Profissio­nal. Parece não haver qualquer ligação entre a imagem do país e o que normalmente deveriam ser os seus pressupostos. E o governo não ainda é suficientemente penalizado pela falta de perspectivas e de emprego a curto e médio prazo.
A aparente dissonância cognitiva é resultado directo da forte propa­ganda do Estado. Veja-se o grande alarido governamental e institucio­nal que se segue a quaisquer boas referências ou ajudas vindas do exte­rior. A propaganda, porém, só tem o eco desejado porque se incutiu na população a importância central da ajuda externa para a sobrevivência do país.
Durante décadas a fio promoveu-se uma economia com base na reci­clagem de donativos e empréstimos concessionais. Para a relação com o mundo importava ser .credível e útil.ficando em segundo plano a cons­trução de uma base produtiva e de prestação de serviços. Vivendo da generosidade dos outros e sem suporte próprio e autónomo abriu-se o caminho para o paternalismo do Estado e dos governos e para o confor­mismo da população. A falta de dinâmica interna não permite às pesso­as sonhar com rendimentos e qualidade de vida de acordo com a moti­vação, energia e criatividade que consigam mobilizar individualmente ou em empresas. Têm que ajustar as suas expectativas de progresso ao que o governo consegue extrair da comunidade internacional.
Em tal ambiente fica evidente que dificilmente se desenvolve uma cultura de responsabilização do governo. A tendência geral é para cada um procurar situar-se de forma a retirar o máximo do sistema. O go­verno por seu lado reforça a sua legitimidade extrapolando o seu papel em manter os fluxos externos. Na democracia com os ciclos eleitorais periódicos, a vontade de se manter no poder torna a propaganda mais intensa e permanente. No processo sorve recursos significativos do Es­tado, mina o pluralismo e reforça o espírito dependente dos cidadãos.
Passam os anos e torna-se cada vez mais difícil encontrar caminhos para a sustentabilidade futura ao país. De passagem, desperdiçam-se oportunidades, gastam-se energias e frustram-se ambições no embate com um sistema, com uma cultura e com pessoas que só se revêem no modelo de uma economia de renda. E ninguém podia ignorar que tal modelo um dia iria acabar.
Hoje o governo pretende escudar-se na crise internacional para justi­ficar a diminuição de donativos e o fim do acesso dos empréstimos con­cessionais. Mas isso há muito que fora anunciado. Como não aconteceu a transformação que há mais de uma década vem apregoando, não há investimento e exportações que substituam as transferências externas. Sente-se no dia-a-dia a perda de dinâmica de vários sectores de activi­dade. Mas as acções de propaganda continuam e o governo não parece incomodar-se mesmo quando a incompetência bate à porta da sua má­quina de arrecadar receitas.
O governo continua a classificar de profetas de desgraça e de pes­simistas quem lhe propõe outros caminhos para a sustentabilidade do país que não a vã procura de novos doadores. E insiste em manter o país preso à ilusão de que de alguma forma saberá mobilizar recursos para substituir os perdidos. A cobertura mediática das viagens recentes do Primeiro-Ministro à China e a Singapura visou precisamente isso. As múltiplas declarações do PM desde o convite feito por Obama a quatro países africanos incluindo Cabo Verde só se justificam com tendência de fazer de toda a comunicação do governo propaganda.
Há que mudar. Há que confrontar os atrasos estruturais e encontrar caminhos para uma dinâmica de sustentabilidade do país. Há que o fa­zer em diálogo honesto com a população e num contraditório útil e res­peitoso com as forças da oposição e a sociedade civil. 

Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 27 de Março de 2013  

terça-feira, março 26, 2013

Governação e propaganda: onde termina um e começa o outro



O insólito reina no discurso político cabo-verdiano. O que mais se ouve fa­lar é de que está em curso uma grande Agenda de Transformação. Baldes de água fria surgem às vezes de repente para pôr freio a certo tipo euforia. É o caso das declarações feitas recentemente pela ministra das Finanças quando confrontada com as críticas do FMI às estruturas do ministério ligadas ao fisco. Disse peremptoriamente: “Até este momento caminhamos graças à generosida­de da comunidade internacional, quer em termos dos fluxos da ajuda pública ao desenvolvimento, quer em termos dos empréstimos concessionais. Este paradigma tem de ser mudado e temos de ter a coragem de criar as condições para mudar”. A ministra não só constata que a dependência externa persiste e está bem en­raizada, mas que será necessário algum feito corajoso, quiçá heróico, porque é provavelmente muito difícil ou talvez contranatura, mudar as coisas.
A pergunta que fica no ar é: por que caminhos tem andado Cabo Verde que o mantém quase 38 anos depois da independência ainda sujeito à generosidade dos outros? Certamente qua não os mesmos das ilhas Maurícias que não obs­tante ser só sete anos mais velho como país independente tem quase o triplo do rendimento per capita de Cabo Verde. Ou então os caminhos das ilhas Seychel­les e de outras economias pequenas e insulares que não se deixaram seduzir pela ajuda externa. Pelo contrário, aproveitaram as facilidades de acesso aos mercados para exportar bens e serviços. E sem inibições, mas com sabedoria, desenvolveram o turismo pondo em bom o uso a magia, a beleza e a tranquili­dade associadas ao ambiente insular. Em Cabo Verde, optou-se por passar para a comunidade internacional a “imagem de bons meninos” e daí tirar dividen­dos sem pensar no dia de amanhã, mas sempre com discursos de transforma­ção. Até se inventou um nome pomposo para isso – “exportar credibilidade”.
As dificuldades que a ministra das Finanças já pressente no mudar de para­digma não são imaginárias. Viver uma farsa com o fito de granjear assistência contínua de outrem acaba por afectar o Estado, os indivíduos e o tecido eco­nómico-social e cultural de uma forma que certamente não se encontrará em economias viradas para o exterior. Assim é porque descentralização de deci­sões, iniciativa, espírito de cooperação, meritocracia e cultura de resultados são necessários para se triunfar no mundo global. Muito diferente é estruturar-se para gerir a generosidade dos outros.Na esteira da obsessão pelo controlo dos recursos disponibilizados vem o centralismo, a burocracia, o egoísmo e uma cultura fixada em processos e em conseguir “mais e mais meios” em detri­mento de realizações sustentáveis e potenciadoras do engenho e energia das pessoas.
Muitos dos males institucionais, sociais e políticos em Cabo Verde derivam do facto de o Estado se colocar no topo da cadeia alimentar e estender os seus tentáculos para se assegurar que todos, indivíduos, empresas e organizações sociais dependam da sua generosidade. O movimento para a regionalização em várias ilhas é, em boa parte, uma reacção ao centralismo, à macrocefalia e a assimetrias diversas que resultam da postura de controlo. Iniciativas como o da cimeira do Primeiro-ministro com os presidentes das câmaras na passada sexta-feira não dão sinais de irem além do show off. Até parecem gestos vazios face às reiteradas tentativas de diminuir as atribuições e a autonomia dos mu­nicípios. No mesmo sentido vão as acções do Estado junto dos jovens e idosos. Sente-se excesso de politização no que deviam ser actos de solidariedade co­lectiva para com os elementos mais vulneráveis da comunidade.
Para fazer marchar a economia e para a criação de empregos não se nota o mesmo empenho. A forma quase distraída descrita no relatório do Banco Mun­dial como o Governo encara o turismo, o impulsionador da economia e grande criador de empregos, dá conta disso. Nessas matérias que são fundamentais para a autonomia, rendimentos e auto-estima das pessoas, o governo retrai-se com justificações de responsabilidade partilhada ou com desconhecimento das razões por que o sector privado não investe.
Nesta fase em que o governo se vê forçado a ir além do seu modelo de recicla­gem da ajuda externa nota-se a intensificação da propaganda. Até faz lembrar momentos pré- eleitorais. Agarra-se a tudo para marcar presença intoxicante na comunicação social: Tubarões Azuis, eleição do Papa, índice de desenvolvi­mento humano, convite de Obama. Lembra certos governos da Europa pouco antes de perderam nas urnas. Mas não se pode governar com propaganda. Os cabo-verdianos têm direito de saber a verdade da situação do país para melhor poderem posicionar-se para o que o seu futuro seja escrito com a sua participa­ção, conhecimento e vontade de vencer.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 26 de Maio de 2013