Pela
ênfase que põem na matéria presume-se que a consideram não só como condição sina
qua non para o sucesso futuro do país como também uma das primeiras
prioridades senão mesmo a principal prioridade. As iniciativas legislativas do
governo e da principal força de oposição que já deram entrada no parlamento dão
sinal da vontade em avançar ainda que com diferenças quanto ao modelo,
distribuição de competências pelos vários poderes e necessidade ou não de se
operar uma grande reforma do Estado concomitantemente com a implementação da
regionalização preconizada. O debate parlamentar desta sessão de Maio sobre a
descentralização também é manifestação dessa vontade em manter o assunto bem
vivo na mente dos eleitores. Pelos resultados e animosidade manifestada entre
as partes ao longo do debate não é porém muito auspicioso quanto à
possibilidade de se chegar aos acordos e compromissos necessários para a sua
concretização.
Autonomia
do poder local e descentralização da administração pública são princípios
constitucionais que devem presidir a organização do Estado democrático e que
importa operacionalizar da melhor forma para que os interesses específicos das
populações organizadas em autarquias sejam reconhecidos e respeitados e que a
máquina do Estado na sua tarefa de servir os cidadãos o faça com eficiência e
eficácia, sem discriminação e garantindo igualdade de oportunidades. A
dificuldade em aplicar esses princípios vem de longe. No pós-independência, o
regime de partido único, por natureza centralizador, e o modelo de
desenvolvimento adoptado baseado na estatização da economia e na reciclagem da
ajuda externa exacerbaram a herança da centralização recebida do regime
colonial. Quando finalmente nos anos noventa da democracia se verificou a
restauração das câmaras municipais e a institucionalização do poder local
eleito já se mostrou difícil reverter a onda do centralismo. Nem o esperado
impacto da liberalização económica na dinamização das ilhas e na ascensão de
uma sociedade civil autónoma conseguiu sobrepor-se aos efeitos socioeconómicos
causados pela dependência externa que depois internamente se traduzia nas
múltiplas dependências do poder centralizado a partir da capital do país.
As
dificuldades de vária ordem, ideológicas ou outras, encontradas em operar uma
verdadeira reorientação económica do país acabaram por acumular-se e criar
frustração e ressentimentos que no ambiente político do eleitoralismo fácil
foram canalizados para conseguir apoio político sob o argumento que uns tiram a
outros o seu quinhão e que é imperativo para o desenvolvimento fazer a
redistribuição dos recursos sem a correspondente preocupação com a produção.
Com isso, infelizmente a matéria da descentralização e da regionalização passa
a dominar a vida política e partidária não porque se reconhece que é essencial
para a integridade do Estado de Direito democrático ou para se conseguir melhor
ambiente de negócios ou ainda dar às comunidades de todo o país oportunidade
para realizarem o seu futuro com autonomia, mas sim por ganância política.
Ouvindo as muitas propostas que neste âmbito são avançadas, percebe-se que os
objectivos de todo esse exercício político, apesar de todo o discurso feito,
prendem-se com a necessidade em manter e conservar bases eleitorais. Ainda não
se moveu para o centro da atenção de todos a necessidade de liberar as pessoas
para construírem o seu próprio futuro e não deixá-las presas nas malhas que
sistemas de dependência tendem a alimentar e a perpetuar.
Não
estranha pois que dificilmente se chegue a acordo ou que se firmem compromissos
quanto ao melhor caminho para realizar a descentralização ou a regionalização.
Todos querem ganhar à cabeça e ao longo do processo. Com esse objectivo em
mente todos os argumentos são válidos para se manter acesas as paixões dos
grupos de apoio. Na generalidade das democracias, ataques a políticos tornaram-se
corriqueiros, críticas devastadoras são feitas às instituições e o cinismo é
abertamente cultivado em relação às políticas dos governos. Ninguém parece
escapar à tentação de agitar sentimentos anti-partido, atacar o parlamento como
órgão de mediação política e apontar a actuação dos governantes como distantes
do real sentir do país e portanto de legitimidade duvidosa. Tanto assim é que,
seguindo essa corrente e em nome da regionalização já se propõe diminuir o
número de deputados, mudar o sistema eleitoral para se ter círculos
uninominais, combater o partidarismo com primárias, com enfraquecimento de
disciplina partidária e o fim do monopólio dos partidos na apresentação de
candidaturas nas legislativas. Em simultâneo faz-se apologia de práticas na
actuação política como “estar junto das pessoas”, ouvir as pessoas e estar
atenta às vozes expressas nas redes sociais sem mediação de qualquer tipo.
A realidade
demonstrada pelo Afrobarómetro é que, não obstante as alterações já em curso, a
democracia não está bem. A apreciação maioritária traduzida nas sondagens que
vieram a público é que as pessoas estão insatisfeitas com a democracia e não se
sentem ouvidas ou tidas em devida consideração pelos representantes do Estado.
Tal apreciação deixa entender que afinal toda essa tendência para os políticos
se comportarem como celebridades com voz própria, fraca ligação partidária e
grande proximidade das pessoas não contribui muito para melhorar a confiança na
democracia. Pelo contrário, poderá estar a piorar a situação com o ambiente quase
caótico que se vai criando em que pessoas com um cargo já parecem ter uma
agenda própria para se posicionarem para outro cargo público, e em que tiques
narcísicos normalmente encontrados em celebridades aparecem com facilidade e em
que não é muita a disponibilidade para mostrar coerência na actuação política,
prejudicando no processo a procura da verdade e a capacidade para fazer os
compromissos necessários para se atingir os grandes objectivos do país.
Cabo Verde
no ponto em que se encontra não deve confundir as suas prioridades e não deve
assumir que tem o tempo todo para soltar-se das amarras que dificultam
crescimento rápido e criação de emprego. Deve sim poder construir consensos,
acordos ou pactos de regime que favoreçam a consolidação das instituições
democráticas e a reforma no sentido de maior eficácia em sectores-chave como a
segurança e justiça.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição
impressa do Expresso das Ilhas nº 860de 23 de Maio de 2018.