A Assembleia Nacional vai na próxima semana discutir
um projecto de lei apresentado pela maior força da oposição, o PAICV,
cujo objecto é a regularização da situação de cidadãos oriundos da
CEDEAO que se encontram em Cabo Verde sem autorização legal de
permanência. No preâmbulo da lei o PAICV diz que avança com a iniciativa
movido por “um imperativo moral e político, tributário de uma amizade
especial” para com os imigrantes vindos da costa ocidental africana, uma
amizade que remonta “à luta de libertação nacional”.
Ao procurar no texto fundamentação para a proposta constata-se logo
nos primeiros parágrafos que não há um conhecimento real da situação da
imigração no país. Assim no que respeita à dimensão do fenómeno simplesmente
“estima-se em número elevado de cidadãos estrangeiros”; quanto à proveniência
dos mesmos não há certezas mas “é percepção generalizada que muitos são
originários da CEDEAO”; e quanto aos pedidos de legalização contenta-se com o
facto de que “é de conhecimento público que existem muitos pedidos pendentes”.
Sem dados concretos o proponente fica por estimativas, percepções generalizadas
e suposições. Não parece que esse seja a melhor base para legislar. A
complexidade da matéria deveria sugerir uma abordagem mais cuidada, mais
suportada nos factos e mais ponderada nas medidas a serem tomadas considerando
as consequências de eventuais maus passos numa pequena sociedade como
Cabo Verde.
Assuntos tão importantes e delicados do
Estado como é questão da imigração deviam merecer um outro tratamento das
forças políticas, em particular das situadas no arco da governação, estejam
elas no governo ou na oposição. Se o dia-a-dia do país não os desperta para a
enormidade do problema e das dificuldades que pode causar, a observação do que
se passa um pouco por todo o mundo, mas em particular na Europa e nos Estados
Unidos da América, devia ser motivo para alguma cautela. Como se sabe, nesses
países, a problemática dos migrantes e também dos refugiados já contribuíram
para mudanças na política nacional e na configuração das forças políticas. O
mesmo tem acontecido no processo de emergência do populismo e de derivas
iliberais acompanhadas de manifestações de xenofobia, de racismo e de
intolerância. Também os países de passagem dos migrantes não ficaram incólumes.
A corrupção e o crime alimentados pelo tráfico humano tendem a perpetuar a
instabilidade, a insegurança e guerras
sectárias que dilaceram essas sociedades. Questões como migrações internas ou
fluxos exteriores não deviam ser tratadas de ânimo leve ou servir de pretexto
para exibições de populismo e confrontos demagógicos. As consequências desses
exercícios nem sempre são controláveis e quase sempre deixam marcas profundas
na memória colectiva.
Cabo Verde, neste momento, depara-se com
fluxos internos de pessoas sob pressão
do exterior. Para além das costumeiras movimentações em direcção às cidades de
Praia e Mindelo a procura turística vinda do estrangeiro introduziu uma nova
dinâmica no fluxo inter-ilhas focando-se essencialmente sobre as ilhas que
menos população tinham. O caso paradigmático é o da ilha da Boa Vista que antes
de ser o destino procurado pelos grandes operadores turísticos tinha cerca de 4
mil habitantes. Em menor grau, o mesmo aconteceu com a ilha do Sal. Mas, como
não se pode desenvolver actividade económica sem mão-de-obra, era óbvio que
milhares de pessoas das diferentes ilhas iriam deslocar-se para onde poderiam
conseguir trabalho. Só foi aparentemente surpresa para o governo de então que
tardou em identificar os múltiplos e complexos problemas de fazer crescer a
população na ilha sem fazer os investimentos públicos indispensáveis, sem um
ambiente de negócios e um mercado de trabalho devidamente regulados e sem a
sensibilidade necessária para preservar o legado histórico-cultural que cada
ilha soube construir ao longo dos séculos. E como foram sistematicamente
empurrados para debaixo do tapete os problemas persistiram, amplificaram-se
ainda mais e afectam o destino dessas pessoas na forma como se vêem a si
próprios e como interagem com os outros. Resolvê-los de uma forma compreensiva
e abrangente dificilmente iria compadecer com iniciativas avulsas como o que
parece ser esta regularização de imigrantes ilegais. Aliás, este é um problema
em grande parte criado por omissão e pela
incapacidade de desenvolver e implementar uma estratégia de mobilização
e formação de mão-de-obra qualificada que o país, e em particular algumas
ilhas, tanto precisavam.
As razões e fundamentações para a
apresentação do projecto-lei mostram como sectores da classe política
ainda
continuam “distraídos” quanto às questões fundamentais que se colocam ao
país.
O foco em ganhos de curto prazo junto ao eleitorado ou à custa de quem
governa
mantém-se como objectivo pessoal e partidário dos líderes. Nem o facto
de o
mundo à volta estar a dar sinais de se
desmoronar sob o impacto dos sucessivos desafios que as políticas do
presidente Trump tem colocado à ordem mundial consegue alterar isso.
Ninguém
aparentemente se incomoda que o mundo, marcado pelo apego ao primado da
lei, pela defesa da democracia e dos direitos humanos e
pela promoção do comércio livre entre as
nações e que propiciou prosperidade a uma parcela importante da
humanidade em
todos os continentes, poderá estar em perigo com os assaltos sucessivos
protagonizados por
Donald Trump e por muitos outros
políticos populistas que aparecem por aí.
Na estreiteza de visão
que faz escola em Cabo Verde, as guerras comerciais e as zangas entre as
grandes potências do G7 não afectam a ninguém. O país parece “blindado” a isso. Esquecem porventura que as instituições
internacionais que canalizam a ajuda ao desenvolvimento também são produtos
dessa mesma época da PAX Americana. Com
ataques a partes fundamentais não há que espantar se todo o edifício se
desmorona. Há que se preparar para todos esses cenários num ambiente em que a
política não pode só ficar por ganhos de curto prazo, por iniciativas como a da
regionalização e, agora, a da regularização de ilegais que muito dificilmente
vão resolver os problemas do país. Há
que dar o salto e ver que problemas seculares como a seca persistem e que só
com uma outra atitude de todos, na democracia e respeitando o pluralismo mas
procurando o bem geral, se poderá
equacionar e respondê-los a contente de todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição
impressa do Expresso das
Ilhas nº 864 de 20 de Junho de 2018.
segunda-feira, junho 25, 2018
terça-feira, junho 19, 2018
Banhos de realismo precisam-se
O Primeiro-ministro Ulisses Correia Silva esteve nas
duas últimas semanas ausente do país, primeiro nos Açores no quadro de
um encontro dos arquipélagos da Macaronésia e logo de seguida em visita
oficial a São Tomé e Príncipe.
Curiosamente de entre as
conclusões dos encontros realizados nos dois momentos sempre se destaca a
necessidade da criação de condições para a livre circulação de pessoas e bens e
o estabelecimento de tráfico aéreo e marítimo ligando os diferentes
arquipélagos. São passos considerados vitais para se atingir os objectivos de
uma aproximação maior entre os diferentes espaços e de diversificação das
relações económicas. Propõe-se o mesmo quando se fala em reforçar a integração
de Cabo Verde no espaço da CEDEAO. O problema é que se passou anos a repetir
esse discurso e nada de significativo acontece. E a razão é simples – não há movimento
de pessoas nem de mercadoria que justifique a manutenção de tráfico aéreo e
marítimo regular entre os diferentes espaços. Nem também o futuro a médio prazo
augura um incremento nas transacções que viabilize as rotas criadas.
A realidade do que é o comércio entre os arquipélagos e do que potencialmente poderá atingir não parece afectar o discurso oficial que sistematicamente é proferido nessas circunstâncias. Repetem-se as propostas mesmo que no fundo se saiba que dificilmente se vão traduzir em algo real e sustentável. Não é por acaso que a questão da subsidiação das rotas que devia acompanhar qualquer discurso realista nesta matéria é recorrentemente omitida. Ouvindo os políticos, fica-se com a impressão que a simples manifestação de vontade em fazer é suficiente e que a partir daí o mercado se encarregaria de dinamizar a vida económica, aumentar as transacções e acelerar a circulação e o intercâmbio das pessoas nesses diferentes espaços geográficos. Age-se diferente quando a política não é oca e não se pretende criar narrativas ilusionistas, mas pelo contrário se procura com infraestruturas, investimentos e mercados potenciar o que está latente e pode florir no ambiente certo.
Recentemente foi notícia um arranjo das autoridades portuguesas para assegurar a ligação Funchal/Porto Santo no arquipélago da Madeira. No processo foi instituído o serviço público, concessionado a rota à Binter Canárias na sequência de concurso público e o governo português alocou o valor de 5,6 milhões de euros para compensar a operadora por operar entre as duas ilhas com a frequência estabelecida em contracto e praticando tarifas diferenciadas para nacionais e estrangeiros. Não se deixou a companhia à mercê do mercado ou que inventasse formas de se compensar pelas perdas que as rotas praticadas eventualmente produzissem ao mesmo tempo que se lhe exigia na prática um serviço público. Tal aconteceu com a TACV que só viu reconhecer a existência de rotas no serviço doméstico com baixa densidade de tráfico num resolução do governo anterior, publicada dez dias antes das eleições de 20 de Março de 2016 (Resolução nº 24/16).
Em Cabo Verde, talvez porque os governantes sempre se sentiram tentados pelo ilusionismo na política, é demasiado frequente as manifestações de falta de realismo na enunciação de políticas públicas. Não se dá muita atenção à relação custo/benefício e isso faz com que o país em muitos aspectos se transforme num “cemitério” de projectos que custaram milhões, mas pouco retorno geraram para além do efeito dos gastos em salários e compra de bens. Quando a governação persiste na sua falta de realismo, as consequências são muitas vezes catastróficas como foi o caso da TACV. Globalmente os efeitos são sentidos na pesada dívida pública, no crescimento muito aquém do desejável, nos níveis altos de desemprego em particular entre os jovens e os mais escolarizados, na baixa produtividade e também na falta de competitividade externa. Pela insistência nos discursos tendo como palco a Macaronésia, a CEDEAO e por último São Tomé e Príncipe vê-se que a política no país ainda não prima pelo realismo e continua a singrar pelos caminhos que já mostraram não serem os melhores.
Sentimentos, eleitoralismo e pensamento mágico continuam a marcar o discurso político. Se mais nenhuma outra razão houvesse para se deixar para trás políticas de ilusionismo, a realidade do mundo de hoje deveria ser razão suficiente. Vive-se uma nova era em que a confiança nos políticos e nas instituições é cada vez mais precária, em que se espera o rápido cumprimento das promessas eleitorais e em que a nível individual quer-se a gratificação quase instantânea das expectativas. Deixar-se apanhar pela sua própria retórica é o pior que pode acontecer a um governo. As dificuldades com o programa de mitigação dos efeitos da seca é um exemplo de como expectativas criadas nas pessoas chocam com o possível e o racional desejáveis em anos de escassez extrema de água e pasto. Falhas na comunicação ou comunicação enviesada pelo ilusionismo endémico na política cabo-verdiana alimentada pela excessiva publicidade dada aos donativos internacionais criou a missão impossível da salvar “todo o gado”. Perante esse objectivo inatingível as acções do governo vão sempre ficar aquém das expectativas dos criadores e o espaço político para se tomar medidas para prevenir situações similares de seca no futuro será sempre limitado pela tentação da oposição de aproveitar a vulnerabilidade do governo na matéria para o expor e o fragilizar.
Uma outra área onde a falta de realismo na condução de políticas poderá ser prenhe de consequências é no domínio do transporte marítimo. Diferentemente do que aconteceu com o tráfico aéreo em que a TACV deixou o mercado para um operador com capital estrangeiro sem que fosse estabelecido os termos do serviço público, para o transporte marítimo esse serviço é estabelecido imediatamente e a concessão do mesmo é para um único operador. O Estado faz exigências importantes ao futuro concessionário designadamente quanto ao número e idade dos navios mas não há sinal que irá compensar o mesmo pelas rotas não rentáveis. O realismo deveria forçar a que se tivesse sempre em consideração os problemas de escala quanto ao volume de carga e o número de passageiros que se colocam a um pequeno país de pouco mais de quinhentos mil habitantes e dividido em 9 ilhas habitadas. Os privados no transporte marítimo nacional já convivem com o problema actualmente e imagine-se como vai ser com um concessionário único. A coabitação entre eles irá manter-se? O Estado vai subvencionar certas rotas? Ninguém parece saber. Em tal ambiente vir ainda propor a criação de outras rotas (CEDEAO, S. Tomé) que necessariamente terão de ser subsidiadas não parece ser realista nem razoável. Não se pode ficar eternamente à espera que outros paguem a nossa falta de realismo.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 863 de 13 de Junho de 2018.
A realidade do que é o comércio entre os arquipélagos e do que potencialmente poderá atingir não parece afectar o discurso oficial que sistematicamente é proferido nessas circunstâncias. Repetem-se as propostas mesmo que no fundo se saiba que dificilmente se vão traduzir em algo real e sustentável. Não é por acaso que a questão da subsidiação das rotas que devia acompanhar qualquer discurso realista nesta matéria é recorrentemente omitida. Ouvindo os políticos, fica-se com a impressão que a simples manifestação de vontade em fazer é suficiente e que a partir daí o mercado se encarregaria de dinamizar a vida económica, aumentar as transacções e acelerar a circulação e o intercâmbio das pessoas nesses diferentes espaços geográficos. Age-se diferente quando a política não é oca e não se pretende criar narrativas ilusionistas, mas pelo contrário se procura com infraestruturas, investimentos e mercados potenciar o que está latente e pode florir no ambiente certo.
Recentemente foi notícia um arranjo das autoridades portuguesas para assegurar a ligação Funchal/Porto Santo no arquipélago da Madeira. No processo foi instituído o serviço público, concessionado a rota à Binter Canárias na sequência de concurso público e o governo português alocou o valor de 5,6 milhões de euros para compensar a operadora por operar entre as duas ilhas com a frequência estabelecida em contracto e praticando tarifas diferenciadas para nacionais e estrangeiros. Não se deixou a companhia à mercê do mercado ou que inventasse formas de se compensar pelas perdas que as rotas praticadas eventualmente produzissem ao mesmo tempo que se lhe exigia na prática um serviço público. Tal aconteceu com a TACV que só viu reconhecer a existência de rotas no serviço doméstico com baixa densidade de tráfico num resolução do governo anterior, publicada dez dias antes das eleições de 20 de Março de 2016 (Resolução nº 24/16).
Em Cabo Verde, talvez porque os governantes sempre se sentiram tentados pelo ilusionismo na política, é demasiado frequente as manifestações de falta de realismo na enunciação de políticas públicas. Não se dá muita atenção à relação custo/benefício e isso faz com que o país em muitos aspectos se transforme num “cemitério” de projectos que custaram milhões, mas pouco retorno geraram para além do efeito dos gastos em salários e compra de bens. Quando a governação persiste na sua falta de realismo, as consequências são muitas vezes catastróficas como foi o caso da TACV. Globalmente os efeitos são sentidos na pesada dívida pública, no crescimento muito aquém do desejável, nos níveis altos de desemprego em particular entre os jovens e os mais escolarizados, na baixa produtividade e também na falta de competitividade externa. Pela insistência nos discursos tendo como palco a Macaronésia, a CEDEAO e por último São Tomé e Príncipe vê-se que a política no país ainda não prima pelo realismo e continua a singrar pelos caminhos que já mostraram não serem os melhores.
Sentimentos, eleitoralismo e pensamento mágico continuam a marcar o discurso político. Se mais nenhuma outra razão houvesse para se deixar para trás políticas de ilusionismo, a realidade do mundo de hoje deveria ser razão suficiente. Vive-se uma nova era em que a confiança nos políticos e nas instituições é cada vez mais precária, em que se espera o rápido cumprimento das promessas eleitorais e em que a nível individual quer-se a gratificação quase instantânea das expectativas. Deixar-se apanhar pela sua própria retórica é o pior que pode acontecer a um governo. As dificuldades com o programa de mitigação dos efeitos da seca é um exemplo de como expectativas criadas nas pessoas chocam com o possível e o racional desejáveis em anos de escassez extrema de água e pasto. Falhas na comunicação ou comunicação enviesada pelo ilusionismo endémico na política cabo-verdiana alimentada pela excessiva publicidade dada aos donativos internacionais criou a missão impossível da salvar “todo o gado”. Perante esse objectivo inatingível as acções do governo vão sempre ficar aquém das expectativas dos criadores e o espaço político para se tomar medidas para prevenir situações similares de seca no futuro será sempre limitado pela tentação da oposição de aproveitar a vulnerabilidade do governo na matéria para o expor e o fragilizar.
Uma outra área onde a falta de realismo na condução de políticas poderá ser prenhe de consequências é no domínio do transporte marítimo. Diferentemente do que aconteceu com o tráfico aéreo em que a TACV deixou o mercado para um operador com capital estrangeiro sem que fosse estabelecido os termos do serviço público, para o transporte marítimo esse serviço é estabelecido imediatamente e a concessão do mesmo é para um único operador. O Estado faz exigências importantes ao futuro concessionário designadamente quanto ao número e idade dos navios mas não há sinal que irá compensar o mesmo pelas rotas não rentáveis. O realismo deveria forçar a que se tivesse sempre em consideração os problemas de escala quanto ao volume de carga e o número de passageiros que se colocam a um pequeno país de pouco mais de quinhentos mil habitantes e dividido em 9 ilhas habitadas. Os privados no transporte marítimo nacional já convivem com o problema actualmente e imagine-se como vai ser com um concessionário único. A coabitação entre eles irá manter-se? O Estado vai subvencionar certas rotas? Ninguém parece saber. Em tal ambiente vir ainda propor a criação de outras rotas (CEDEAO, S. Tomé) que necessariamente terão de ser subsidiadas não parece ser realista nem razoável. Não se pode ficar eternamente à espera que outros paguem a nossa falta de realismo.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 863 de 13 de Junho de 2018.
sexta-feira, junho 15, 2018
Tempos conturbados
Os tempos continuam conturbados. Incerteza, falta de
confiança e desesperança de camadas expressivas da população nas
democracias vêm produzindo fenómenos complicados.
As
causas seriam, entre outras, o aumento da desigualdade social, os
efeitos da globalização do mercado de trabalho e a incapacidade das
sociedades em propiciar vias para a satisfação de expectativas
individuais criadas em paralelo com a conectividade crescente do mundo
via redes sociais. Em consequência, para além das já habituais surpresas
que a América de Donald Trump brinda o resto do mundo quase todos os
dias, assistiu-se nos últimos dias em Espanha às peripécias da queda do
governo e ao ballet dos partidos populistas de extremos opostos na
formação do governo italiano. Em todos esses casos as instituições dão
sinais de querer soçobrar sob o impacto da corrupção, a polarização do
discurso político abre caminho para o tribalismo político, e a tentação
autoritária da democracia, tal qual um tsunami, vai-se propagando sem se
deixar notar até que se torne inevitável e tudo varre numa onda
populista.
Cabo Verde vive também estes tempos e isso foi notório nos últimos dois anos nas múltiplas manifestações e passeatas realizadas nas diferentes ilhas, nas frustrações ventiladas nas redes sociais, em sondagens e em estudos de opinião e nas críticas dirigidas à classe política acompanhadas de especial sensibilidade em relação a qualquer sinal de abuso, apropriação ou má utilização de bens e recursos públicos. Há quem veja nessa nova disponibilidade das pessoas em dar a conhecer a sua posição face aos problemas do país a prova que está-se agora mais livre para opinar, participar e contestar posições do governo. A realidade, porém, é que, de facto, em termos de sentimento e emoções em relação aos políticos, aos partidos e a indícios de corrupção, muito mudou. Anos seguidos de ilusionismo político deixaram as pessoas frustradas e deram lugar a acelerado cepticismo e descrença por não cumprimento em tempo quase imediato das promessas feitas. Isso não chega para explicar a deterioração rápida da confiança das pessoas no próprio sistema eleitoral e nas instituições democráticas. Deve haver algo mais a trabalhar e que encontra correspondência em outras democracias. Os fenómenos de descrença são similares assim como também o são a tendência para ceder a propostas populistas e a um mal escondido fascínio por políticos com tiques autocráticos, mesmo para aqueles que não se apresentam como “animais ferozes”.
O colunista e autor David Brooks do jornal New York Times aponta entre as razões para a estranha situação de descrença do homem e cidadão moderno o facto da sociedade ter resvalado para um ponto em que se deixou de avaliar as pessoas pelo seu carácter e passou-se a concentrar no sucesso conseguido independentemente da forma e meios utilizados. Com isso, na sua opinião, a sociedade desmoralizou-se deixando de haver sistemas morais que restabeleçam a harmonia entre as pessoas, as instituições passaram a ser simplesmente um meio para se conseguir certos fins e manifestações de narcisismo tornaram-se cada vez mais frequentes alimentadas em particular pelas redes sociais, o culto de celebridades e a exploração sem pudor de emoções e sentimentos das pessoas para ganho pessoal. Nessas condições, a luta pela afirmação pessoal, que naturalmente contraria o tipo de cooperação entre as pessoas, a começar pelo dever cívico de participação na comunidade que o desenvolvimento do mundo de hoje exige, também mina as instituições existentes que são essenciais para se garantir a democracia e não permite que se crie convergência política suficiente para, na diversidade e pluralismo, se realizar o interesse público.
Em Cabo Verde, o multiplicar de intervenções públicas de personalidades políticas em quase todas actividades que se fazem no país não consegue mudar a percepção pública da fragilidade das instituições. No Afrobarómetro os cidadãos queixam-se da falta de diálogo ou da falta de acesso a políticos não obstante as visitas, as mesas redondas, os workshops, fóruns, socializações etc., que acontecem por todo o país. E certamente que não se vai corrigir a falha e melhorar a situação pela via de aumento desses eventos. O que deixa as pessoas na mesma desemparadas, sem a satisfação de sentirem que foram ouvidas e as suas preocupações devidamente consideradas, vem em boa medida da tendência crescente dos governantes e políticos em geral em realizar a sua agenda própria em detrimento da função institucional. Os perigos dessa forma de fazer política é que quase sempre tende a resvalar para o populismo e a demagogia e, não poucas vezes, tem que recorrer à corrupção para manter os fiéis à sua volta e prontos para serem lançados em combates políticos futuros.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 862 de 06 de Junho de 2018.
Humberto Cardoso
Cabo Verde vive também estes tempos e isso foi notório nos últimos dois anos nas múltiplas manifestações e passeatas realizadas nas diferentes ilhas, nas frustrações ventiladas nas redes sociais, em sondagens e em estudos de opinião e nas críticas dirigidas à classe política acompanhadas de especial sensibilidade em relação a qualquer sinal de abuso, apropriação ou má utilização de bens e recursos públicos. Há quem veja nessa nova disponibilidade das pessoas em dar a conhecer a sua posição face aos problemas do país a prova que está-se agora mais livre para opinar, participar e contestar posições do governo. A realidade, porém, é que, de facto, em termos de sentimento e emoções em relação aos políticos, aos partidos e a indícios de corrupção, muito mudou. Anos seguidos de ilusionismo político deixaram as pessoas frustradas e deram lugar a acelerado cepticismo e descrença por não cumprimento em tempo quase imediato das promessas feitas. Isso não chega para explicar a deterioração rápida da confiança das pessoas no próprio sistema eleitoral e nas instituições democráticas. Deve haver algo mais a trabalhar e que encontra correspondência em outras democracias. Os fenómenos de descrença são similares assim como também o são a tendência para ceder a propostas populistas e a um mal escondido fascínio por políticos com tiques autocráticos, mesmo para aqueles que não se apresentam como “animais ferozes”.
O colunista e autor David Brooks do jornal New York Times aponta entre as razões para a estranha situação de descrença do homem e cidadão moderno o facto da sociedade ter resvalado para um ponto em que se deixou de avaliar as pessoas pelo seu carácter e passou-se a concentrar no sucesso conseguido independentemente da forma e meios utilizados. Com isso, na sua opinião, a sociedade desmoralizou-se deixando de haver sistemas morais que restabeleçam a harmonia entre as pessoas, as instituições passaram a ser simplesmente um meio para se conseguir certos fins e manifestações de narcisismo tornaram-se cada vez mais frequentes alimentadas em particular pelas redes sociais, o culto de celebridades e a exploração sem pudor de emoções e sentimentos das pessoas para ganho pessoal. Nessas condições, a luta pela afirmação pessoal, que naturalmente contraria o tipo de cooperação entre as pessoas, a começar pelo dever cívico de participação na comunidade que o desenvolvimento do mundo de hoje exige, também mina as instituições existentes que são essenciais para se garantir a democracia e não permite que se crie convergência política suficiente para, na diversidade e pluralismo, se realizar o interesse público.
Em Cabo Verde, o multiplicar de intervenções públicas de personalidades políticas em quase todas actividades que se fazem no país não consegue mudar a percepção pública da fragilidade das instituições. No Afrobarómetro os cidadãos queixam-se da falta de diálogo ou da falta de acesso a políticos não obstante as visitas, as mesas redondas, os workshops, fóruns, socializações etc., que acontecem por todo o país. E certamente que não se vai corrigir a falha e melhorar a situação pela via de aumento desses eventos. O que deixa as pessoas na mesma desemparadas, sem a satisfação de sentirem que foram ouvidas e as suas preocupações devidamente consideradas, vem em boa medida da tendência crescente dos governantes e políticos em geral em realizar a sua agenda própria em detrimento da função institucional. Os perigos dessa forma de fazer política é que quase sempre tende a resvalar para o populismo e a demagogia e, não poucas vezes, tem que recorrer à corrupção para manter os fiéis à sua volta e prontos para serem lançados em combates políticos futuros.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 862 de 06 de Junho de 2018.
Humberto Cardoso
segunda-feira, junho 04, 2018
Realismo e pragmatismo na governação
Nesta última semana falou-se do Acordo Cambial, da
liberalização de capitais e até da euroização. O pretexto foi a
comemoração dos 20 anos do acordo que estabelece o “peg” fixo do escudo
cabo-verdiano com o euro.
Também na semana em que se celebrou o Dia da África, 25 de Maio, e os 43
anos da criação da CEDEAO, foi trazida à baila a possibilidade da adesão de
Cabo Verde à união monetária no espaço da sub-região africana e a importância
crucial para o futuro do país que seria a integração económica de Cabo Verde
nessa comunidade. Algo insólito, nesses dois momentos que parecem configurar
opções diferentes, houve manifestações de entusiasmo de personalidades
oficiais, políticos e académicos. Aparentemente, num evento regozijavam-se com
o sucesso do acordo cambial e, e no outro, mostravam-se entusiastas em avançar
para um cenário em que Cabo Verde integra uma outra união monetária com países
com os quais as suas transacções anuais não conseguem ultrapassar 5% da
totalidade do seu comércio internacional.
A atitude assim demonstrada não parece primar-se pelo realismo e pragmatismo que deve caracterizar a gestão das questões do Estado, em particular na relação com outras nações. Factores como a ideologia, sentimentalismos diversos e questões identitários dão a impressão de sobreporem-se à realidade dos factos evidentes nas limitadas transacções económicas, nos relativamente raros intercâmbios culturais e académicos e no pouco espaço para protagonismo no seio da comunidade, como ficou demonstrado recentemente na corrida para a presidência da Comissão da CEDEAO. Só assim se compreende que, apesar de tudo o que aconteceu, em vez de se acautelar os interesses do país, lança-se numa ofensiva para integração, compreendendo a criação de um cargo ministerial para o efeito, abertura de embaixada em Abuja e maior abertura para acomodar imigrantes provenientes da sub-região.
Continua-se a propalar que a CEDEAO constituiu um mercado de 300 milhões de pessoas, que Cabo Verde tem uma posição estratégica única para o “transhipment” na região e como “hub” aéreo, que é ideal para oferecer serviços como praça financeira e que pode ser a via para entrada de investidores no espaço da comunidade. Nem a afirmação de Jean-Paul Dias a este jornal a reduzir os trezentos milhões a vinte milhões, ou a realidade do movimento nos portos e aeroportos de Dakar e das Canárias, ou ainda a pequena dimensão do nosso sistema financeiro e os sinais claros de fraco conhecimento das regras no seio da comunidade parecem suficientes para temperar o entusiasmo dos governantes e políticos. Ao país convém explorar e desenvolver relações com os estados vizinhos, mas para isso deve poder optar por políticas realistas e efectivas e saber sempre pôr em perspectiva o interesse comum. Não é fazendo mais do mesmo das últimas quatro décadas que se vai alterar a situação actual caracterizada pelo comércio regional fraco e pela interacção limitada que se constata a todos os níveis. Simplesmente subsidiando mais uma vez barcos e aviões não se vai aumentar a quantidade de carga e passageiros entre Cabo Verde e os países da CEDEAO. Há que fazer muito mais.
O foco excessivo e deslocado na questão da integração na CEDEAO contrasta com a falta de foco e sentido de urgência que se faz sentir sobre os problemas da ilha do Sal e na Boa Vista. As manifestações da população nas duas ilhas deixam perceber que, em particular, no que respeita à segurança, saúde e habitação não se fez o suficiente para reverter a situação que vinha de anos atrás. Diferentemente do que se passa com as relações com a CEDEAO em que a economia e a vida de muitos milhares de cabo-verdianos não depende do que ali é transaccionado, nas ilhas do Sal e da Boa Vista estão uma boa fatia da economia cabo-verdiana e a base de muitos milhares de empregos, tanto aí como nas outras ilhas. Toda a atenção do governo deve ser para dirigida para as estabilizar, criar as melhores condições de vida e de enquadramento da população de modo a potenciar os seus recursos naturais e seu capital humano. A aposta do país no turismo como um dos motores principais da sua economia obriga a que investimentos sejam feitos com a necessária urgência onde já acontece e onde tem maior potencial de crescer, de criar empregos e de eficazmente arrastar a economia nacional. A estratégia para aumentar os fluxos turísticos não deve ser deixada só para os actuais e futuros operadores. O país deve ter a sua própria estratégia e ser pro-activo em orientar o turismo para onde o impacto sobre toda a economia seja maior e os efeitos nos rendimentos e qualidade de vida sejam mais imediatos e mais profundos. É evidente que para isso recursos não devem ser desperdiçados e a atenção de governantes não deve desviar-se para objectivos que para serem atingidos vão exigir muito tempo e muito investimento mas sem garantia razoável que o retorno justifique todo o esforço despendido. Há de facto que priorizar no interesse do país e não ir atrás de sentimentos e ideologias datadas.
A complexidade dos desafios do desenvolvimento de Cabo Verde obriga, em particular, na encruzilhada em que se encontra, a que se dê particular atenção à necessidade de manter a estabilidade governativa, a confiança das pessoas nas instituições e o sentido do colectivo e do bem comum. Para isso é essencial a realização prática dos princípios e valores da democracia e do pluralismo que foram instituídos na segunda república. Liderar não pode significar subtrair-se ao exercício desse pluralismo e pôr-se acima ou abaixo do que é exigido nas relações entre as instituições, a sociedade e as pessoas. Imprescindível é pois o papel de um parlamento representativo dessa pluralidade de opiniões e da diversidade de interesses, um papel que os mídias e outros fóruns podem complementar mas nunca substituir. Pelo exercício do contraditório é que se evita cair na tentação de certa ideologia que retira realismo e pragmatismo na condução da governação, que se contornam os custos escondidos da gestão autocrática e sem transparência e que se mantém clara a responsabilização política e bem viva a possibilidade de alternância política. Mais do que nunca é desse jogo democrático que o país precisa.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 861 de 30 de Maio de 2018.
A atitude assim demonstrada não parece primar-se pelo realismo e pragmatismo que deve caracterizar a gestão das questões do Estado, em particular na relação com outras nações. Factores como a ideologia, sentimentalismos diversos e questões identitários dão a impressão de sobreporem-se à realidade dos factos evidentes nas limitadas transacções económicas, nos relativamente raros intercâmbios culturais e académicos e no pouco espaço para protagonismo no seio da comunidade, como ficou demonstrado recentemente na corrida para a presidência da Comissão da CEDEAO. Só assim se compreende que, apesar de tudo o que aconteceu, em vez de se acautelar os interesses do país, lança-se numa ofensiva para integração, compreendendo a criação de um cargo ministerial para o efeito, abertura de embaixada em Abuja e maior abertura para acomodar imigrantes provenientes da sub-região.
Continua-se a propalar que a CEDEAO constituiu um mercado de 300 milhões de pessoas, que Cabo Verde tem uma posição estratégica única para o “transhipment” na região e como “hub” aéreo, que é ideal para oferecer serviços como praça financeira e que pode ser a via para entrada de investidores no espaço da comunidade. Nem a afirmação de Jean-Paul Dias a este jornal a reduzir os trezentos milhões a vinte milhões, ou a realidade do movimento nos portos e aeroportos de Dakar e das Canárias, ou ainda a pequena dimensão do nosso sistema financeiro e os sinais claros de fraco conhecimento das regras no seio da comunidade parecem suficientes para temperar o entusiasmo dos governantes e políticos. Ao país convém explorar e desenvolver relações com os estados vizinhos, mas para isso deve poder optar por políticas realistas e efectivas e saber sempre pôr em perspectiva o interesse comum. Não é fazendo mais do mesmo das últimas quatro décadas que se vai alterar a situação actual caracterizada pelo comércio regional fraco e pela interacção limitada que se constata a todos os níveis. Simplesmente subsidiando mais uma vez barcos e aviões não se vai aumentar a quantidade de carga e passageiros entre Cabo Verde e os países da CEDEAO. Há que fazer muito mais.
O foco excessivo e deslocado na questão da integração na CEDEAO contrasta com a falta de foco e sentido de urgência que se faz sentir sobre os problemas da ilha do Sal e na Boa Vista. As manifestações da população nas duas ilhas deixam perceber que, em particular, no que respeita à segurança, saúde e habitação não se fez o suficiente para reverter a situação que vinha de anos atrás. Diferentemente do que se passa com as relações com a CEDEAO em que a economia e a vida de muitos milhares de cabo-verdianos não depende do que ali é transaccionado, nas ilhas do Sal e da Boa Vista estão uma boa fatia da economia cabo-verdiana e a base de muitos milhares de empregos, tanto aí como nas outras ilhas. Toda a atenção do governo deve ser para dirigida para as estabilizar, criar as melhores condições de vida e de enquadramento da população de modo a potenciar os seus recursos naturais e seu capital humano. A aposta do país no turismo como um dos motores principais da sua economia obriga a que investimentos sejam feitos com a necessária urgência onde já acontece e onde tem maior potencial de crescer, de criar empregos e de eficazmente arrastar a economia nacional. A estratégia para aumentar os fluxos turísticos não deve ser deixada só para os actuais e futuros operadores. O país deve ter a sua própria estratégia e ser pro-activo em orientar o turismo para onde o impacto sobre toda a economia seja maior e os efeitos nos rendimentos e qualidade de vida sejam mais imediatos e mais profundos. É evidente que para isso recursos não devem ser desperdiçados e a atenção de governantes não deve desviar-se para objectivos que para serem atingidos vão exigir muito tempo e muito investimento mas sem garantia razoável que o retorno justifique todo o esforço despendido. Há de facto que priorizar no interesse do país e não ir atrás de sentimentos e ideologias datadas.
A complexidade dos desafios do desenvolvimento de Cabo Verde obriga, em particular, na encruzilhada em que se encontra, a que se dê particular atenção à necessidade de manter a estabilidade governativa, a confiança das pessoas nas instituições e o sentido do colectivo e do bem comum. Para isso é essencial a realização prática dos princípios e valores da democracia e do pluralismo que foram instituídos na segunda república. Liderar não pode significar subtrair-se ao exercício desse pluralismo e pôr-se acima ou abaixo do que é exigido nas relações entre as instituições, a sociedade e as pessoas. Imprescindível é pois o papel de um parlamento representativo dessa pluralidade de opiniões e da diversidade de interesses, um papel que os mídias e outros fóruns podem complementar mas nunca substituir. Pelo exercício do contraditório é que se evita cair na tentação de certa ideologia que retira realismo e pragmatismo na condução da governação, que se contornam os custos escondidos da gestão autocrática e sem transparência e que se mantém clara a responsabilização política e bem viva a possibilidade de alternância política. Mais do que nunca é desse jogo democrático que o país precisa.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 861 de 30 de Maio de 2018.
segunda-feira, maio 28, 2018
Não confundir as prioridades
Discursos do governo e dos partidos políticos na
Assembleia Nacional e também de outros sujeitos políticos
sistematicamente deixam transparecer a importância crucial da
descentralização e da regionalização no desenvolvimento de Cabo Verde.
Pela
ênfase que põem na matéria presume-se que a consideram não só como condição sina
qua non para o sucesso futuro do país como também uma das primeiras
prioridades senão mesmo a principal prioridade. As iniciativas legislativas do
governo e da principal força de oposição que já deram entrada no parlamento dão
sinal da vontade em avançar ainda que com diferenças quanto ao modelo,
distribuição de competências pelos vários poderes e necessidade ou não de se
operar uma grande reforma do Estado concomitantemente com a implementação da
regionalização preconizada. O debate parlamentar desta sessão de Maio sobre a
descentralização também é manifestação dessa vontade em manter o assunto bem
vivo na mente dos eleitores. Pelos resultados e animosidade manifestada entre
as partes ao longo do debate não é porém muito auspicioso quanto à
possibilidade de se chegar aos acordos e compromissos necessários para a sua
concretização.
Autonomia
do poder local e descentralização da administração pública são princípios
constitucionais que devem presidir a organização do Estado democrático e que
importa operacionalizar da melhor forma para que os interesses específicos das
populações organizadas em autarquias sejam reconhecidos e respeitados e que a
máquina do Estado na sua tarefa de servir os cidadãos o faça com eficiência e
eficácia, sem discriminação e garantindo igualdade de oportunidades. A
dificuldade em aplicar esses princípios vem de longe. No pós-independência, o
regime de partido único, por natureza centralizador, e o modelo de
desenvolvimento adoptado baseado na estatização da economia e na reciclagem da
ajuda externa exacerbaram a herança da centralização recebida do regime
colonial. Quando finalmente nos anos noventa da democracia se verificou a
restauração das câmaras municipais e a institucionalização do poder local
eleito já se mostrou difícil reverter a onda do centralismo. Nem o esperado
impacto da liberalização económica na dinamização das ilhas e na ascensão de
uma sociedade civil autónoma conseguiu sobrepor-se aos efeitos socioeconómicos
causados pela dependência externa que depois internamente se traduzia nas
múltiplas dependências do poder centralizado a partir da capital do país.
As
dificuldades de vária ordem, ideológicas ou outras, encontradas em operar uma
verdadeira reorientação económica do país acabaram por acumular-se e criar
frustração e ressentimentos que no ambiente político do eleitoralismo fácil
foram canalizados para conseguir apoio político sob o argumento que uns tiram a
outros o seu quinhão e que é imperativo para o desenvolvimento fazer a
redistribuição dos recursos sem a correspondente preocupação com a produção.
Com isso, infelizmente a matéria da descentralização e da regionalização passa
a dominar a vida política e partidária não porque se reconhece que é essencial
para a integridade do Estado de Direito democrático ou para se conseguir melhor
ambiente de negócios ou ainda dar às comunidades de todo o país oportunidade
para realizarem o seu futuro com autonomia, mas sim por ganância política.
Ouvindo as muitas propostas que neste âmbito são avançadas, percebe-se que os
objectivos de todo esse exercício político, apesar de todo o discurso feito,
prendem-se com a necessidade em manter e conservar bases eleitorais. Ainda não
se moveu para o centro da atenção de todos a necessidade de liberar as pessoas
para construírem o seu próprio futuro e não deixá-las presas nas malhas que
sistemas de dependência tendem a alimentar e a perpetuar.
Não
estranha pois que dificilmente se chegue a acordo ou que se firmem compromissos
quanto ao melhor caminho para realizar a descentralização ou a regionalização.
Todos querem ganhar à cabeça e ao longo do processo. Com esse objectivo em
mente todos os argumentos são válidos para se manter acesas as paixões dos
grupos de apoio. Na generalidade das democracias, ataques a políticos tornaram-se
corriqueiros, críticas devastadoras são feitas às instituições e o cinismo é
abertamente cultivado em relação às políticas dos governos. Ninguém parece
escapar à tentação de agitar sentimentos anti-partido, atacar o parlamento como
órgão de mediação política e apontar a actuação dos governantes como distantes
do real sentir do país e portanto de legitimidade duvidosa. Tanto assim é que,
seguindo essa corrente e em nome da regionalização já se propõe diminuir o
número de deputados, mudar o sistema eleitoral para se ter círculos
uninominais, combater o partidarismo com primárias, com enfraquecimento de
disciplina partidária e o fim do monopólio dos partidos na apresentação de
candidaturas nas legislativas. Em simultâneo faz-se apologia de práticas na
actuação política como “estar junto das pessoas”, ouvir as pessoas e estar
atenta às vozes expressas nas redes sociais sem mediação de qualquer tipo.
A realidade
demonstrada pelo Afrobarómetro é que, não obstante as alterações já em curso, a
democracia não está bem. A apreciação maioritária traduzida nas sondagens que
vieram a público é que as pessoas estão insatisfeitas com a democracia e não se
sentem ouvidas ou tidas em devida consideração pelos representantes do Estado.
Tal apreciação deixa entender que afinal toda essa tendência para os políticos
se comportarem como celebridades com voz própria, fraca ligação partidária e
grande proximidade das pessoas não contribui muito para melhorar a confiança na
democracia. Pelo contrário, poderá estar a piorar a situação com o ambiente quase
caótico que se vai criando em que pessoas com um cargo já parecem ter uma
agenda própria para se posicionarem para outro cargo público, e em que tiques
narcísicos normalmente encontrados em celebridades aparecem com facilidade e em
que não é muita a disponibilidade para mostrar coerência na actuação política,
prejudicando no processo a procura da verdade e a capacidade para fazer os
compromissos necessários para se atingir os grandes objectivos do país.
Cabo Verde
no ponto em que se encontra não deve confundir as suas prioridades e não deve
assumir que tem o tempo todo para soltar-se das amarras que dificultam
crescimento rápido e criação de emprego. Deve sim poder construir consensos,
acordos ou pactos de regime que favoreçam a consolidação das instituições
democráticas e a reforma no sentido de maior eficácia em sectores-chave como a
segurança e justiça.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição
impressa do Expresso das Ilhas nº 860de 23 de Maio de 2018.
segunda-feira, maio 21, 2018
Agir agora para não adiar o futuro
A dívida pública de Cabo Verde no montante de 2.150
milhões de dólares correspondeu em 2017 a 125% de Produto Interno Bruto.
De 2016 para 2017 o PIB caiu de 130% para 125% do PIB devido a uma
maior dinâmica económica que se traduziu num crescimento de 3,9%,
superior à média de 1% dos cinco anos anteriores. Uma dívida de tais
proporções é certamente preocupante e exige do governo respostas
consistentes no quadro de estratégias que ajudem a manter a confiança no
país enquanto condição indispensável para atrair investimentos e criar
melhor ambiente de negócios. O quiproquó da semana passada à volta das
declarações do primeiro-ministro e do vice-primeiro-ministro tem a ver
com a necessidade e a urgência do país em traçar essa estratégia e em
como engajar o FMI e eventualmente outras organizações internacionais
para conseguir esse objectivo.
O acordo cambial em
vigor desde 1998 exige para a sua sustentabilidade uma adesão
firme do país aos critérios de Maastricht que estipulam a dívida pública até
60% e o défice orçamental até 3% aos países ligados ao euro. Em 2008, a dívida
pública cabo-verdiana situava-se em 57% do PIB. Nos anos que se seguiram
escalou rapidamente atingindo 91% em 2012 e 126% em 2015. O governo do PAICV
justificou o rápido endividamento como necessário para se fazer face à crise
financeira mundial de 2008 e também para construir as infraestruturas
necessárias para uma rápida modernização do país. Insistiu sempre que as
condições da dívida eram concessionais e
por isso sustentáveis a prazo. Não se cansou de prometer que na
sequência do investimento público verificar-se-ia o “crowding in” do
investimento privado que levaria a uma economia dinâmica com taxas de
crescimento mais elevadas e mais criação de emprego. Ao contrário do prometido,
viveram-se anos de estagnação económica e alto desemprego ao mesmo tempo que o
sector privado nacional atolava-se cada vez em dívidas e não conseguia
aproveitar as oportunidades criadas por investimentos no turismo nas ilhas do
Sal e da Boa Vista.
A economia de Cabo Verde sempre sofreu de um
desequilíbrio estrutural derivado da sua fraca capacidade de produção e de
exportação. Sem suficientes divisas para pagar as suas importações, precisa de
fluxos externos, designadamente remessas dos emigrantes e ajuda externa para as
compensar. Por outro lado, sendo um pequeno país com população diminuta e fraca
capacidade de poupança, para poder crescer e criar emprego precisa de
investimento directo estrangeiro, que trazendo capital, tecnologia e mercados
lhe permita explorar recursos naturais, valorizar a posição geográfica e
potenciar o capital humano existente. O problema do país é que passados mais de
quatro décadas após a independência ainda não resolveu o seu desequilíbrio
básico. A opção por um desenvolvimento baseado na reciclagem da ajuda externa
impediu que se desse suficiente atenção à questão central que é a atracção de
investimento para o país poder criar riqueza e exportar bens e serviços. Devia
ser evidente que persistindo nesse caminho o “ajuste de contas” acabaria
por se verificar um dia quando as ajudas diminuíssem e ainda não houvesse
suficientes receitas de exportação para repor os equilíbrios.
Quando aconteceu, a opção não foi de rever o
modelo de desenvolvimento, mas de persistir nele recorrendo agora ao endividamento
externo para compensar a perda de donativos. Justificando que os créditos eram
concessionais, beneficiando de juros bonificados ou prazos dilatados de
pagamento, os governantes apressaram-se a utilizá-los, mas sem se preocupar com
a relação custo/benefício na selecção dos projectos e muito menos se os
projectos tinham custos escondidos em forma de cláusulas que privilegiavam
empresas estrangeiras nas grandes obras ou forçavam a compra de uma boa parcela
dos materiais no país concedente do crédito. Aparentemente o que lhes
interessava, de facto, eram os ganhos políticos à volta das obras que iam
anunciando e inaugurando um pouco por todo o país. Pareciam não se importar com
o fraco impacto dessa obras na criação de emprego e na dinamização da economia,
nem com a implosão do sector nacional de construção civil e nem também com o
facto de os vários clusters que iam suportar-se nessas infra-estruturas não se
terem materializado. Muitos milhões foram gastos. Registam-se hoje como um
passivo na extraordinária dívida externa que põe Cabo Verde entre os países
mais devedores do mundo, mas os retornos obtidos desses investimentos são
comparativamente demasiados parcos.
Num encontro recente com as autoridades a
propósito da política de investimento, especialistas da UNCTAD recomendaram que
Cabo Verde tem de ser mais pró-activo na atracção do investimento estrangeiro.
Insistem em que o país não tem que ficar pelas propostas dos investidores e que
deve activamente promover o tipo de investimento que “pode melhor contribuir
para os seus objectivos de desenvolvimento”. De outra forma, como dizem,
não há diversificação da economia e o desenvolvimento do sector empresarial
local fica limitado. Esta constatação dos especialistas quanto à importância do
investimento directo estrangeiro devia ser evidente para todos. Só não é,
porque no fundo continua-se a privilegiar as políticas de sempre de reciclagem
de ajuda externas mas apresentadas em cada momento com as roupagens ajustadas
aos tempos no estilo como se diz na gíria
“para inglês ver”, enquanto tiques autárcicos, hostilidade a
turistas e a investimentos estrangeiros são sub-repticiamente alimentados.
a encruzilhada em que se encontra, a opção
em manter o país num caminho similar ao que tem percorrido não é desejável, nem
sustentável. As ajudas diminuíram, a dívida pública é extremamente pesada e não
devia haver espaço para mais sessões de ilusionismo. A tentação de voltar a
repetir o que se fez no passado, mas com diferentes argumentos e escusas é
porém muito grande. O problema é que desta vez a margem já é demasiado pequena
e os custos de mais uma vez se adiar o país demasiado grandes. Não é fácil
deixar de pensar pelos mesmos pressupostos, de exercer o poder sempre da mesma
maneira e de manter uma posição passiva e reactiva na governação em vez de se optar por uma pro-actividade e uma abordagem
estratégica na condução do país. Mas é isso que terá que ser feito para que o
futuro não seja sistematicamente adiado.
Humberto Cardoso
Texto originalmente
publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 859 de 16
de Maio de 2018.
segunda-feira, maio 14, 2018
Isenção de vistos, medida fracturante
Na sequência do Conselho de Ministros da quinta-feira
passada, o porta-voz do governo anunciou que a isenção de vistos para
cidadãos da União Europeia e do Reino Unido irá vigorar a partir de
Janeiro de 2019. A medida foi inicialmente apresentada ao público pelo
próprio Primeiro-Ministro em Abril de 2017. A ideia então era que a
medida seria efectiva no mês seguinte. Não foi possível e adiou-se para
Janeiro de 2018. Adiamentos posteriores para Maio de 2018 e agora para
2019 deveram-se a questões operacionais levantadas pelos operadores
turísticos políticos e ao que recentemente a embaixadora da União
Europeia chamou de condições técnicas necessárias. Se logo do início a
proposta de isenção de vistos não foi bem aceite, em particular em
certos círculos de opinião sensíveis a questões identitárias, com o
passar do tempo a percepção geral é que piorou. A sondagem do
Afrobarómetro publicada em Abril estimou que uma maioria de 58% dos
cabo-verdianos seriam contra a isenção de vistos a turistas europeus. No
meio de tanta hostilidade há quem pergunte se realmente os sucessivos
adiamentos devem-se a questões operacionais ou se são sinais de recuo ou
de pelo menos de alguma hesitação do governo na sua implementação.
O objectivo da isenção de vis tos, de acordo com o PM, é
“criar todas as condições para potenciar ainda mais o turismo e o investimento”
com a eliminação de barreiras que normalmente colocam à livre circulação.
Aparentemente não devia haver dúvidas quanto à necessidade de o país facilitar
a vinda de capitais e conseguir aumentar o fluxo de turistas. Podia-se discutir
se a melhor via é a isenção de vistos ou se as barreiras são na realidade
burocracias e serviços ineficazes. Não se tinha que pôr em causa o objectivo de
potenciar os
ingredientes essenciais para acelerar o crescimento do país, criar com rapidez postos de trabalho e possibilitar economias de escala a empresas nacionais envolvidas na produção de bens e serviços. Estranhamente, foi precisamente o que aconteceu e acontece sempre que a questão da isenção dos vistos é trazida para discussão. Prefere-se discutir porque é que
o cabo-verdiano tem de facilitar o visto ao turista, investidor ou homem negócios europeu, quando a mesma “gentileza” não lhe é estendida para entrar na Europa. Não se quer entender que para se ser bem-sucedido na relação com outros países há que adoptar estratégias diferenciadas, aceitar que nem tudo vai à mesma velocidade e que prioridades divergem e mudam com o tempo.
Em 1998, por exemplo, não se falou de reciprocidade quando se estabeleceu o peg fixo do escudo ao euro, mas é facto que com essa decisão unilateral o país ganhou anos de baixa inflação, granjeou confiança que lhe permitiu atrair investimento externo e conseguiu
manter a estabilidade macroeconómica enquanto duplicava o seu PIB. Hoje também há que assumir que há uma estratégia para atrair investimentos e turistas e deve haver outra para conseguir a aproximação com a Europa num quadro de livre circulação. Assim como outros países africanos insulares como as Maurícias e as Seicheles já conseguiram isenção de vistos para Europa também Cabo Verde atingirá esse Iobjectivo se tiver uma estratégia para isso e souber tomar as medidas que se impõem para designadamente “securitizar” as suas fronteiras. De outra forma o ressentimento contra os europeus só irá aumentar, prejudicando todo o esforço de desenvolvimento do país, inibindo o crescimento económico e impedindo a criação de postos de trabalho que, com novos investimentos e o aumento da procura interna devido ao consumo de turistas, seria possível conseguir.
A dificuldade em ver o óbvio nesta matéria deve-se em grande parte ao logro que de há muito os cabo-verdianos e, em particular, os que aspiram a emigrar, têm caído devido às omissões e meias verdades nas declarações dos governantes em matéria de isenção de vistos. É prática generalizada os países através de isenção de vistos facilitarem a homens de negócios, turistas, investidores, cientistas e outros estadias de curta duração de 30 ou 90 dias. Não são vistos para emigrar nem autorizações de residência ou permissão de trabalho, mas num país com tradição de emigração podem ser tidos como um expediente para emigração clandestina. Se essa interpretação nunca é, de facto, contrariada e, em sentido oposto, nas entrelinhas dos seus discursos, os governantes sistemática e disfarçadamente deixam entender que assim é,
mesmo quando assinam acordos de mobilidade com a União Europeia que os obriga a aceitar gente deportada na sequência de processos acelerados para fazer face à emigração ilegal, então o problema perpetua-se. Não tarda que venham acusações de discriminação ou de racismo e que o ressentimento desponte.
Se a discussão à volta da isenção dos vistos ficasse só pelas estratégias a seguir na consecução dos objectivos seja quanto ao investimento e turistas, por um lado, e livre circulação, por outro, e não fosse alimentada por equívocos, seria relativamente fácil ultrapassá-los como maior e melhor informação. A realidade é que não é assim e a razão disso é que há muito que a política em Cabo Verde deixou-se contaminar por elementos identitários. A fragilidade do cabo-verdiano apanhado entre a Europa e África tem vindo a agravar-se e o mais normal é que, como se vê noutras democracias, e um pouco por todo o mundo, o populismo emergente procure tirar proveito das questões identitárias e aprofunde ainda mais o fosso. A irracionalidade que normalmente acompanha esses fenómenos já é verificável em Cabo Verde nas sondagens que colocam a maioria dos cabo-verdianos contra os próprios turistas que mantêm uma parte decisiva da economia nacional a produzir e a trabalhar.
A batalha entre a África e Europa continua a ser travada com fragor mesmo que no processo não se melhore significativa mente o destino turístico, não se garanta a segurança e não se consiga controlar o comércio informal que assedia o turista no seu dia-a-dia. E certamente que o projecto de lei ontem anunciado pela maior força da oposição e que visa legalizar imigrantes vindos dos países da CEDEAO ir trazer mais acha para a fogueira. Será mais uma oportunidade para picardias entre africanistas e europeístas. Dividido, Cabo Verde dificilmente poderá fazer uma discussão séria e consequente de como deverá posicionar-se para poder crescer de forma sustentada e garantir trabalho para todos.Com as questões identitárias a chocarem-se qual placas tectónicas é o país que fica adiado enquanto fracturas propagam no tecido social causando estragos ao nível das comunidades e dos próprios indivíduos. Considerando como a consciência da cabo-verdianidade nas múltiplas manifestações se consolidou ao longo de boa parte do século 20 não tinha que ser esta a realidade 43 anos depois da independência.
ingredientes essenciais para acelerar o crescimento do país, criar com rapidez postos de trabalho e possibilitar economias de escala a empresas nacionais envolvidas na produção de bens e serviços. Estranhamente, foi precisamente o que aconteceu e acontece sempre que a questão da isenção dos vistos é trazida para discussão. Prefere-se discutir porque é que
o cabo-verdiano tem de facilitar o visto ao turista, investidor ou homem negócios europeu, quando a mesma “gentileza” não lhe é estendida para entrar na Europa. Não se quer entender que para se ser bem-sucedido na relação com outros países há que adoptar estratégias diferenciadas, aceitar que nem tudo vai à mesma velocidade e que prioridades divergem e mudam com o tempo.
Em 1998, por exemplo, não se falou de reciprocidade quando se estabeleceu o peg fixo do escudo ao euro, mas é facto que com essa decisão unilateral o país ganhou anos de baixa inflação, granjeou confiança que lhe permitiu atrair investimento externo e conseguiu
manter a estabilidade macroeconómica enquanto duplicava o seu PIB. Hoje também há que assumir que há uma estratégia para atrair investimentos e turistas e deve haver outra para conseguir a aproximação com a Europa num quadro de livre circulação. Assim como outros países africanos insulares como as Maurícias e as Seicheles já conseguiram isenção de vistos para Europa também Cabo Verde atingirá esse Iobjectivo se tiver uma estratégia para isso e souber tomar as medidas que se impõem para designadamente “securitizar” as suas fronteiras. De outra forma o ressentimento contra os europeus só irá aumentar, prejudicando todo o esforço de desenvolvimento do país, inibindo o crescimento económico e impedindo a criação de postos de trabalho que, com novos investimentos e o aumento da procura interna devido ao consumo de turistas, seria possível conseguir.
A dificuldade em ver o óbvio nesta matéria deve-se em grande parte ao logro que de há muito os cabo-verdianos e, em particular, os que aspiram a emigrar, têm caído devido às omissões e meias verdades nas declarações dos governantes em matéria de isenção de vistos. É prática generalizada os países através de isenção de vistos facilitarem a homens de negócios, turistas, investidores, cientistas e outros estadias de curta duração de 30 ou 90 dias. Não são vistos para emigrar nem autorizações de residência ou permissão de trabalho, mas num país com tradição de emigração podem ser tidos como um expediente para emigração clandestina. Se essa interpretação nunca é, de facto, contrariada e, em sentido oposto, nas entrelinhas dos seus discursos, os governantes sistemática e disfarçadamente deixam entender que assim é,
mesmo quando assinam acordos de mobilidade com a União Europeia que os obriga a aceitar gente deportada na sequência de processos acelerados para fazer face à emigração ilegal, então o problema perpetua-se. Não tarda que venham acusações de discriminação ou de racismo e que o ressentimento desponte.
Se a discussão à volta da isenção dos vistos ficasse só pelas estratégias a seguir na consecução dos objectivos seja quanto ao investimento e turistas, por um lado, e livre circulação, por outro, e não fosse alimentada por equívocos, seria relativamente fácil ultrapassá-los como maior e melhor informação. A realidade é que não é assim e a razão disso é que há muito que a política em Cabo Verde deixou-se contaminar por elementos identitários. A fragilidade do cabo-verdiano apanhado entre a Europa e África tem vindo a agravar-se e o mais normal é que, como se vê noutras democracias, e um pouco por todo o mundo, o populismo emergente procure tirar proveito das questões identitárias e aprofunde ainda mais o fosso. A irracionalidade que normalmente acompanha esses fenómenos já é verificável em Cabo Verde nas sondagens que colocam a maioria dos cabo-verdianos contra os próprios turistas que mantêm uma parte decisiva da economia nacional a produzir e a trabalhar.
A batalha entre a África e Europa continua a ser travada com fragor mesmo que no processo não se melhore significativa mente o destino turístico, não se garanta a segurança e não se consiga controlar o comércio informal que assedia o turista no seu dia-a-dia. E certamente que o projecto de lei ontem anunciado pela maior força da oposição e que visa legalizar imigrantes vindos dos países da CEDEAO ir trazer mais acha para a fogueira. Será mais uma oportunidade para picardias entre africanistas e europeístas. Dividido, Cabo Verde dificilmente poderá fazer uma discussão séria e consequente de como deverá posicionar-se para poder crescer de forma sustentada e garantir trabalho para todos.Com as questões identitárias a chocarem-se qual placas tectónicas é o país que fica adiado enquanto fracturas propagam no tecido social causando estragos ao nível das comunidades e dos próprios indivíduos. Considerando como a consciência da cabo-verdianidade nas múltiplas manifestações se consolidou ao longo de boa parte do século 20 não tinha que ser esta a realidade 43 anos depois da independência.
segunda-feira, maio 07, 2018
Grito de alerta
O Afrobarómetro divulgou na quarta-feira passada, 25
de Abril, os resultados do inquérito realizado em Novembro de 2017. A
generalidade dos políticos e dos observadores foi apanhada de surpresa.
Ninguém esperava ouvir que 76% dos cabo-verdianos estivessem nada ou
pouco satisfeitos com a democracia e que 44% qualificassem o regime
político cabo-verdiano como sendo uma democracia com grandes problemas.
Nem tão pouco podia-se adivinhar que apenas dois anos após a mudança de
governo já houvesse uma maioria de 58% a considerar que o governo está a
caminhar na direcção errada.
O facto, porém, é que
já se devia ter previsto que esta legislatura não iria ser como as anteriores.
Os tempos são outros: as pessoas mostram-se mais críticas, as instituições
democráticas têm vindo a fragilizar-se sob a pressão do populismo e o país
globalmente está escaldado e céptico após anos seguidos de política
ilusionista. Devia ser óbvio que quem ganhasse as eleições teria curto tempo
para agir, comunicar eficazmente e convencer os caboverdianos que iria cumprir
com as promessas, sob pena de entrar num processo rápido de desgaste. A
sucessão de manifestações, as ameaças e as greves destes dois anos constituíram
avisos sérios que talvez o governo não tenha levado em devida conta. O
resultado vê-se no inquérito.
Mas podia ter sido pior
na ausência do crescimento de 3,8% e 3,9% do PIB verificado em 2016 e 2017
respectivamente muito superior à média de cerca de 1% dos cinco anos anteriores
e com impacto na criação de emprego. Não é por acaso que os inquiridos do Afrobarómetro manifestaram confiança na
melhoria das condições de vida mesmo quando a maioria diz que o país está na
direcção errada. A contradição talvez traduza, por um lado, o reconhecimento
que dinâmicas benéficas para a economia estão a ser geradas pela nova atitude
do governo em relação à actividade privada quando, por outro lado, ainda
persistem dúvidas sobre onde se quer levar o país. O governo ainda não
convenceu quanto à despartidarização da administração pública, quanto à
privatização de empresas em sectores-chave e quanto à estratégia de atracção de
investimento externo e aumento do fluxo turístico. E verdade seja dita,
dificilmente confiança é ganha, para se se ser suficientemente persuasivo em
apontar um rumo diferente ao país, se problemas urgentes como insegurança,
justiça, combate ao desemprego, habitação, saúde e educação não dão sinais
inequívocos de estarem a ser equacionados e resolvidos.
Confiança nas
instituições é fundamental nas democracias. Mostra-se por isso problemático
verificar no inquérito do Afrobarómetro que comparativamente aos anos
anteriores diminuiu a confiança do cabo-verdiano no funcionamento da democracia
e em fazer-se ouvir pelos seus representantes nos órgãos de poder político. Num
determinado sentido esta perda de confiança é um sinal dos tempos em que a
crise grassa por todas as democracias novas ou consolidadas. Noutras paragens,
razões como a globalização, as migrações internacionais, as sequelas da Grande
Recessão de 2008 e da crise do euro e conflitos entre soberanistas, nativistas
e cosmopolitas já levaram a saídas da União Europeia, eleições de populistas,
rearranjos no sistema de partidos com desaparecimento de uns e emergências de
outros, ameaças de secessão e ressurgimento do fascismo. Em Cabo Verde o
populismo não alterou ainda o quadro partidário. Tem- se manifestado dentro e
através dos partidos e no processo afectado as instituições, a relação entre
órgãos de soberania e o modo de fazer política.
Ao alimentar o espírito anti-partido e
anti-política o populismo reduziu o papel dos partidos na criação da vontade política
e abriu caminho para percursos individuais que pela forma como ascendem
explorando sentimentos, criando empatias e recorrendo a factores identitários
dificilmente se ajustam às exigências de funcionamento das instituições da
democracia representativa. Da deriva, o que se nota é que os novos políticos e
a nova política tendem a comportar-se como celebridades sempre no centro de
tudo e fazendo concentrar tudo na sua pessoa em detrimento da instituição, do
recato que o seu funcionamento exige, da preocupação em seguir as normas
procedimentais e do foco na procura do interesse geral num quadro plural e de
exercício do contraditório.
A degenerescência e
consequente perda de prestígio que, por exemplo, consome o parlamento
verifica-se quando os seus trabalhos são dominados por esse tipo de
protagonismo que se autojustifica com uma suposta ligação especial do deputado,
sem mediação alguma, com o povo. Não deixa de ser de alguma forma trágico que o
desejo legítimo das pessoas em se fazerem ouvir e em decidir quem as deve
representar desencadeie um processo de escolha de representantes que
contrariamente ao pretendido vai ajudar a alimentar uma fogueira de vaidades
capaz de consumir políticos, a política e as instituições, deixando a todos em
pior situação. No mesmo sentido, o espectáculo da degradação institucional que
se vem notando nestes anos tende a reforçar ainda mais o desejo de se romper
com as formas tradicionais de fazer política. Ao fazer isso tem o potencial de
precipitar ainda o mais o descrédito dos parlamentos e partidos e permitir o
reforço precisamente do tipo de política que inevitavelmente deixa todos mais
abertos à ascensão triunfal de algum líder exigente na lealdade que quer de
todos em troca de uma liderança com soluções simples e completa para tudo.
A publicação do inquérito do Afrobarómetro e
dos dados neles contidos sobre o relacionamento do cabo-verdiano com a
democracia deve ser tomada com um grito de alerta quanto à degradação da imagem
já sofrida pelas instituições sob o impacto do populismo infiltrado nos
partidos políticos. Populismo esse que encontrou aliados nos velhos inimigos da
democracia representativa que nunca deixaram de repetir que pluralismo é
desperdício de recursos e que a defesa dos direitos fundamentais é um obstáculo
à democracia musculada necessária para acabar com a insegurança. Opor-se à
degenerescência da democracia é fundamental para preservar a liberdade e
garantir a igualdade de oportunidades e justiça. Não é a tarefa que se deixa
para fazer depois. O próximo Afrobarómetro tem que poder mostra uma inversão da
tendência actual na confiança na democracia.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição
impressa do Expresso
das Ilhas nº
857 de 02 de Maio de 2018.
segunda-feira, abril 30, 2018
Redescobrir o livro
Iniciativas da Presidência da República, do governo e
de outras entidades juntaram-se este ano numa campanha para promover o
livro, a leitura e o saber. Houve discursos, fizeram-se leituras
públicas em encontros nas escolas, distribuíram-se livros no formato de
kits para bibliotecas escolares e municipais e aproveitou-se a
oportunidade para anunciar o início da publicação de “clássicos”
cabo-verdianos com mais uma edição do romance Chiquinho de Baltasar
Lopes.
São iniciativas todas louváveis com
foco nas crianças e nos jovens e procurando mobilizar escolas e professores num
esforço para inverter o desinteresse crescente pela leitura e pelo conhecimento
que se vem notando na sociedade cabo-verdiana. Se vão ou não ter sucesso
depende muito de se ter identificado as reais causas do desinteresse e se há
vontade de as reconhecer e de as combater de forma eficaz.
Presentemente em todo o mundo a questão dos
livros, da leitura e do saber, de uma forma ou outra, está-se a colocar. Há
quem diga que o problema é da tecnologia moderna, mas não é líquido que assim
seja. É verdade que se vive um momento especial em que a tecnologia massificada
através dos smartphones alterou radicalmente os hábitos de procura e de acesso
à informação. Se antes tinha-se que recorrer a objectos físicos como livros,
revistas e jornais para conseguir informação sistematizada e no momento
desejado, agora recorre-se ao Google, às edições digitais de jornais e livros e
às redes sociais. Mesmo a rádio e televisão que requeriam presença e um tempo
certo para passarem informação e entretenimento hoje perdem terreno para os
podcasts, vídeos e streaming à disposição a todo o instante de qualquer pessoa
com um smartphone e uma ligação à internet. Também é verdade a queda notória na
circulação da imprensa escrita, a mudança no negócio livreiro com o
desaparecimento das pequenas lojas, que ofereciam livros em várias áreas de conhecimento
a favor das grandes superfícies que privilegiam livros de alta rotação, e a
diminuição da frequência nas bibliotecas públicas. A aparente coincidência
poderia levar a pensar que uma conduziu à outra. O facto, porém, é que a
tecnologia só é instrumental. Por si própria não aumenta nem diminui o gosto
pela leitura e a vontade de saber.
Outros
factores terão que ser considerados para se compreender, por exemplo, o
fenómeno em ascendência o qual alguns chamam de “nova ignorância”. Fenómeno
particularmente visível em grupos criados muitas vezes nas redes sociais e que
de forma tribal afirmam a sua verdade e os seus preconceitos acima de todas as
evidências, chamam de fake news a factos incontornáveis e rejeitam a
mediação das instituições, da academia e da comunicação social na compreensão
do mundo à sua volta. Também estes ou outros factores poderão ajudar a entender
por que menos livros são lidos nas escolas, liceus e universidades e menos
procurados nas bibliotecas. Pergunta-se se a razão para essa calamidade não
estará na atitude geral em relação ao conhecimento, nas metodologias utilizadas
e nas formas de avaliação que não favorecem uma via mais lenta, mais profunda,
mais exigente e mais conectada com os factos na procura da verdade como os
livros oferecem. A existir esses factores inibidores do desenvolvimento da
vontade de ler e saber não se vê como simples entrega de livros, sessões de
leitura e oferta de computadores, tablets ou até smartphones por si sós vão
alterar a situação existente.
A situação calamitosa que nesta matéria se
vive em Cabo Verde devia ser de profunda reflexão e urgente acção. A começar,
nem se deveria considerar a hipótese de que são as novas tecnologias e os seus
écrans que têm levado as crianças e jovens a se afastarem dos livros e a não
desenvolverem o hábito de leitura. Notou-se o fenómeno muito tempo atrás. Nos
anos após a independência, o sistema educativo em expansão rápida e a proporcionar
o ensino massificado descurou a qualidade, favoreceu outros critérios acima dos
meritocráticos e assumiu-se como aparelho ideológico na criação do “homem
novo” e na “reafricanização dos espíritos”. Para exercer bem o papel
dele esperado teve de criar currículos e material de suporte. Em consequência
há várias gerações de alunos e professores que só usaram fotocópias de fichas
como material de estudo e nunca foram incentivados a fazer o uso de livros e
manuais. Pelo contrário.
Se passados mais de quarenta anos após a
independência ainda se está a ouvir um clamor cada vez mais alto pela melhoria
da qualidade do ensino é que, de facto, o sistema, não obstante as sucessivas
reformas, no essencial não perdeu as suas características e motivações iniciais.
Daí que o conhecimento continua a ser sacrificado como se pode ver
dramaticamente no nível baixo do português dos alunos, nível esse para o qual
terá certamente contribuído o facto de a questão do crioulo vs. português se
ter transformado numa questão identitária fracturante. Mas as falhas não se
ficam só no ensino da língua como também se verificam em outras áreas do
conhecimento, algo que já ninguém deveria pretender esconder quando se sabe dos
milhares de jovens saídos do ensino secundário e das universidades sem as
competências necessárias para lhes garantir empregabilidade nos diferentes
sectores de actividade. Devia ser motivo de reflexão o facto de antes da
independência, com menos escolas e menos livros disponíveis, o nível dos alunos
saídos das escolas primárias e dos dois liceus ser mais elevado do que
actualmente. Na época, tudo leva a crer que havia mais amor pelos livros, pela
leitura e pelo saber e esse amor era transversal a toda a sociedade
cabo-verdiana e abrangia a todos, independentemente das suas posses tanto no
campo como nas cidades. Depois a motivação passou a ser conseguir o “canudo” e
depois seguir carreira apoiado em outros critérios de influência que não os da
competência técnica e profissional. Não estranha que se tenha chegado ao ponto
actual.
A sustentabilidade da actual situação é
claramente impossível de se manter. O retorno do investimento massivo que o
Estado, as famílias e as pessoas individualmente já fizeram em busca de uma
educação é claramente baixo como se pode constatar nos níveis de desemprego
entre os jovens. Não é porém essa a percepção que se fica do debate sobre o
ensino superior no parlamento, esta terça-feira, 24 de Abril. E assim é porque
em Cabo Verde dificilmente se consegue fazer política sem cair no populismo e
na demagogia. O resultado é que os problemas de fundo do país ficam por
resolver, as pessoas ficam frustradas por não verem o retorno dos seus investimentos
e a situação de impasse retira confiança num futuro promissor. Mudar as coisas
significa fazer as pessoas acreditar que conseguir o conhecimento e as
competências para melhorar o rumo ´do país estão perfeitamente ao nosso
alcance. Para isso, livros, hábitos de leitura e gosto pelo saber são
indispensáveis.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição
impressa do Expresso das Ilhas nº 856 de 25 de
Abril de 2018.
segunda-feira, abril 23, 2018
Não deixar para amanhã
O FMI no seu World Economic Outlook (WEO) de ontem,
17 de Abril, projectou um crescimento da economia cabo-verdiana na ordem
dos 4,3% do PIB para 2018. No WEO de Outubro a previsão tinha sido de
4,1% para 2018.
A evolução positiva nas projecções denota algum optimismo quanto às
perspectivas de crescimento do país no futuro próximo. Comunga de optimismo
similar o Banco de Cabo Verde que no Relatório de Política Monetária publicado
também no mesmo dia coloca o crescimento económico no intervalo 3,5-4,5% do PIB.
Entre as múltiplas razões para o maior crescimento estará certamente a actual
conjuntura de aceleração da economia mundial. O referido relatório do FMI põe
uma taxa de crescimento de 3,9% para 2018 e para o próximo ano. O problema com
esta conexão forte com a dinâmica mundial é que se ela perder o ritmo as consequências
poderão tomar a forma de choque externo para o qual o país a braços com uma
dívida pública pesada e na posse de uma base produtiva frágil e de limitada
capacidade de exportações de bens e serviços dificilmente estará em condições
de encaixar devidamente.
Christine Lagarde, a directora-geral do FMI
numa intervenção na Universidade de Hong Kong, sexta-feira passada, congratulou-se
com o forte crescimento de que beneficiam as grandes economias e também os
países emergentes, mas chamou a atenção para os riscos que já se despontam no
horizonte e que poderão em dois anos provocar uma perda de dinâmica com
consequências para todos. Identifica riscos financeiros e fiscais, riscos
geopolíticos e também o risco de guerras comerciais desencadeadas por medidas
proteccionistas tomadas por iniciativa própria ou em retaliação a barreiras
colocadas pelos outros. Por isso mesmo aconselha que de imediato todos os
países se esforcem nesta conjuntura de “vacas gordas” para fazer as reformas
necessárias para, por um lado, aumentar o potencial de crescimento das
respectivas economias e, por outro, criar “almofadas” que lhes permitam ser
mais resilientes face a choques externos. Conselhos que deveriam ser óbvios se,
de facto, não existisse a tentação permanente de politicamente se cavalgar os
bons tempos, adiar reformas urgentes e alimentar a ilusão que a bonança irá
continuar sem necessidade de grandes mudanças.
O governo de Ulisses Correia Silva pôs como
objectivo fazer o país crescer no mínimo a 7%. Até agora só se conseguiu atingir
taxas de 3,8% em 2016 e 3,9% em 2017. Para 2018 a estimativa do BCV vai até 4,5
% do PIB, enquanto o FMI fica pelos 4,3%. A opinião de alguns economistas entre
os quais o ex-governador do BCV, Carlos Burgo, é que o país está a crescer
em torno do seu potencial. Crescer mais do que isso deverá implicar
primeiro aumentar o potencial. E isso consegue-se com reformas profundas,
investimento na capacitação da mão-de-obra e um esforço dirigido para aumentar
significativamente a eficiência global da economia com particular enfase na
diminuição dos custos de contexto, diminuição do custo de factores e melhorias
significativas nos transportes marítimo e aéreo. Também é fundamental que se
mantenha a atitude de abertura ao mundo na perspectiva de diversificar trocas
comerciais, atrair investimentos, aumentar fluxos turísticos e aproveitar as
oportunidades que a criação de cadeias de valores globais propiciam. Se isso é
verdade para a generalidade dos países mais é para uma pequena economia e num
país arquipelágico com diminuta população como Cabo Verde.
Infelizmente muito do discurso político que é
aqui feito não é dirigido para colocar em devida perspectiva os problemas com
que o país se depara para ultrapassar as suas ineficiências, melhorar a sua
conectividade, ser competitivo e capacitar os seus jovens e toda a população.
Isto é ilustrado quando, no processo de busca de soluções a discussão fica pela
troca de epítetos como foi recentemente evidenciado pelo esgrimir de expressões
como “neoliberalismo” e “socialismo escalavrado” que nada
explicam e nada ajudam a resolver. O mesmo acontece quando se traz à baila a
questão da diminuição dos custos da máquina do Estado, invariavelmente aparece
um líder político a propor cortes, no número de deputados ou no número dos
membros do governo. Parece que há vantagem junto ao público de se apresentarem
como anti-políticos e anti-partidos. Entretanto a necessidade real de diminuir
as ineficiências do Estado e aumentar a sua eficácia perde-se na demagogia e no
populismo com que questão é tratada. Também nota-se algo similar quando face ao
problema sério de uma cultura burocrática, centralizadora, hostil a negócios
que se manifesta a todos os níveis do aparelho do Estado e da administração
local responde-se com a regionalização erigida em autêntica panaceia para todos
os males.
Entre os caminhos a não seguir na resposta a
choques externos Christine Lagarde aconselha vivamente que se evite o proteccionismo
particularmente na forma de tarifas alfandegárias. Ela diz que a História
mostra que restrições de importação fere toda gente, especialmente os
consumidores pobres. Acrescenta que “não só levam a produtos mais caros e
limitam escolhas, mas também impedem o comércio de desempenhar o seu papel
essencial em impulsionar a produtividade e disseminar tecnologias. No
processo, diz ela, mesmo as indústrias
protegidas acabam por sofrer à medida que se tornam menos dinâmicas do que os
seus concorrentes estrangeiros”. A recomendação visa travar tendências em
inverter o já conseguido nas relações de comércio internacional que até agora
possibilitaram o crescimento sem precedentes do volume de transacções mundiais
e com vantagens globais.
Este e outros problemas e soluções deviam
merecer a atenção de todos visto que o está em causa é a viabilidade e a sustentabilidade
de todo o desenvolvimento do país. A manter-se porém o discurso nos termos
descritos e por todos conhecido a tendência será a sociedade polarizada ficar
dominada pelo discurso partidário que afasta muitos que numa outra situação
poderiam participar activamente na procura de soluções. Perdem as pessoas,
prejudica-se a sociedade e adiam-se os problemas. Com o país numa encruzilhada
devia ser aparente que não há tempo a perder e que o diálogo a todos os níveis
deve ser encetado para que seja encontrada a melhor via para resolução de
problemas. Espera-se que com o alerta do FMI cresça um sentido de urgência no
que deve ser feito e que as forças políticas saibam encontrar formas de alargar
o debate e colaborar no que for estruturante para o país e contribua para seu futuro.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição
impressa do Expresso
das Ilhas nº
855 de 18 de Abril de 2018.
segunda-feira, abril 16, 2018
Importância maior da justiça em tempos de crise
Vivem-se tempos difíceis nas democracias. Por toda a
parte notam-se sinais de crise nas instituições: o papel dos partidos é
altamente criticado, substitui-se o exercício do pluralismo por lutas
tribais sectárias, condimenta-se o discurso público com demagogia e
populismo e o protagonismo político é cada vez dominado por
personalidades que não escondem a sua apetência pelo poder autocrático.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 854 de 11 de Abril de 2018.
Em tal
ambiente a degradação da vida pública é inevitável e quando atinge um certo
limiar praticamente só o poder judicial a par com uma imprensa livre ficam em
posição de a conter. No Brasil é o que se passa com as investigações de
corrupção nos vários estratos da classe política e que já levou muita gente à
prisão. Nos últimos dias culminou com o processo dramático da prisão do
ex-presidente da república Lula da Silva.
O problema é que tanto nestes como noutros
casos – por exemplo, na Itália com a operação Mãos Limpas de Antonio di Prieto
e em menor escala em países como Portugal e Espanha, mas também em França,
Israel e alguns outros países sul-americanos – pelo facto dos alvos serem
políticos e a condenação ter consequências políticas diz-se que há sinais de
judicialização da política e rapidamente surgem acusações de politização da
justiça. Tais suspeições sobre as instituições do poder judicial podem ter o
efeito de alastrar a crise para os últimos baluartes do sistema democrático,
deixando abertas possibilidades que a história já demonstrou desembocarem
directamente em ditaduras. No Brasil é um facto que o ambiente de desconfiança
gerado pelas investigações de corrupção e agravado com o processo de
destituição da presidente Dilma Rousseff já provocou uma crise de grandes
proporções de tal forma que ninguém garante que a realização de eleições em
Outubro será suficiente para legitimar o governo, restaurar a confiança nas
instituições e abrir o caminho para as reformas urgentes no sistema político.
Mas parece que, não obstante dúvidas quanto à forma de agir de alguns elementos
da magistratura e do poder judicial, mantem-se um capital de confiança que a
submissão de Lula à ordem de prisão veio confirmar. Evitou a convulsão geral
que podia levar ao seu descrédito. Com o Estado de Direito confirmado nos seus
elementos essenciais haverá menos dificuldade em iniciar o processo de
relegitimação das instituições, diminuir a extrema polarização e reduzir o
espaço de manobra para populistas e forças anti sistema remanescentes dos
tempos da ditadura militar.
A importância de nas democracias tudo se
fazer para manter credível o poder judicial é relembrada pelos actos
sistemáticos dos pretendentes ao poder autocrático e ditatorial. Todos visam
nos seus esforços desacreditá-lo. Ao
fazê-lo, retiram às pessoas o instrumento fundamental para ver dirimidos
os conflitos, para administrar a justiça e proteger direitos fundamentais em
particular contra abusos e actos discricionários e arbitrários perpetrados pelo
próprio estado. Não é por acaso que na América de Trump inaugurou-se uma
pressão sem precedentes sobre juízes, procuradores e polícias. Ou que na
Turquia de Erdogan muitos juízes foram presos e a independência dos tribunais
está ameaçada na Polónia e na Hungria. De facto, se o império da lei não é
assegurado, facilmente qualquer regime inicialmente democrático poderá entrar
numa deriva em direcção a um regime iliberal que não respeita direitos
fundamentais e que tudo fará para não ser arredado do poder. Manter intacto,
competente e independente o poder judicial é essencial para afirmação da democracia
e garantir a estabilidade. Esse objectivo porém não pode ser somente dos
políticos, mas também da sociedade, dos médias e das diversas organizações da
sociedade. Deverá vir ainda dos magistrados, da sua dedicação, esforço e
conhecimento em manter o prestígio da profissão, a confiança das pessoas na
justiça e a expectativa que não obstante todo o respeito pelas garantias de
defesa, a justiça será feita em tempo útil.
O estado avançado da globalização que se vive
actualmente coloca desafios extraordinários aos países e suas populações.
Enfrentam nalguns casos perdas sem precedentes de postos de trabalho, têm
dificuldades em manter a competitividade no mercado internacional e estão
ansiosos em relação ao futuro porque não há certeza que a prazo vai-se
conseguir manter a capacidade, conhecimento e know-how globais para continuar a
aproveitar as oportunidades que vão surgindo no plano global. Insatisfação,
incertezas e ressentimento podem constituir uma mistura complicada que as
pessoas na sua ânsia de fazer ouvir a sua voz, de chamar quem governa à
responsabilidade efectiva na gestão dos recursos públicos e de clamar pelo
cumprimento das promessas feitas podem correr o risco de atirar para fora a
proverbial “água com o bebê” e apoiar oportunistas e autocratas
sacrificando no processo o construído durante décadas de democracia e
desenvolvimento.
Cabo
Verde, inserido como está na economia mundial e sob pressão de fazer o
desenvolvimento acontecer, reproduz em boa medida as insatisfações com o
sistema político que se notam noutras paragens. Também aqui as instituições
democráticas estão sob tensão e num processo de descredibilização progressiva.
Contrariamente ao que se vê em outras paragens, aqui o poder judicial não tem o
crédito desejável para o qualificar como um baluarte do Estado de Direito que a
tudo resistisse. As deficiências do sector da justiça, a percepção de
impunidade acompanhada de sentimento de insegurança e a dificuldade da própria
classe dos magistrados em se auto-regular numa perspectiva de mais eficácia,
maior competência e mais celeridade colocam os juizes numa posição altamente
vulnerável. Os ataques que têm recebido de diferentes quadrantes demonstram a
sua fragilidade que também em certo sentido é fragilidade da própria democracia
e do Estado de Direito. Ora, não é aceitável que tal fragilidade persista
principalmente nestes tempos em que a democracia, como dizem certos autores,
encontra-se em “recessão”.
Na revisão constitucional de 2010 foram
transferidos competências e meios para as magistraturas e esperava-se mais
comprometimento, mais competência e menos morosidade na administração da justiça.
A situação que se constata hoje no sector da justiça, em certa medida sitiada
com acusações, que não são resolvidas num sentido ou noutro, vindas de
polícias, advogados e cidadãos comuns não é salutar para ninguém. Há que
colocar a justiça e em particular as magistraturas numa base mais sólida, menos
corporativista, mais comprometida com as necessidades da sociedade e mais
ciente do seu papel histórico único de contribuir para a construção,
consolidação e salvaguarda do Estado de Direito em Cabo Verde.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 854 de 11 de Abril de 2018.
segunda-feira, abril 09, 2018
Derivas
Assistiu-se no início desta semana a uma reunião
inédita do Conselho de República. Foi a primeira deste segundo mandato
do presidente Jorge Carlos Fonseca e trouxe novidades.
O conselho da república
foi convidado a debruçar-se sobre a segurança no país e sobre a situação de
seca. Para o efeito o PR endereçou convites ao ministro da Administração
Interna e ao ministro da Agricultura, e também a especialistas em segurança e
ao conselheiro de segurança do
primeiro-ministro, como se pode ver no seu “post” no Facebook. Com a
iniciativa, o PR rompeu com a tradição das reuniões do conselho da república
viradas quase que exclusivamente para a marcação de eleições e alargou o escopo
de actuação desse órgão auxiliar do presidente da república para matérias de
política interna normalmente sob a alçada e direcção do governo. Também nos
procedimentos inovou ao convidar directamente ministros para expor sobre temas
da governação, tarefa que constitucionalmente cabe ao PM no cumprimento do seu
dever de informar regular e completamente o presidente da república sobre os
assuntos da política interna e externa do Governo e como membro do Conselho
da República.
Na sua página do Facebook o PR disse que a
reunião serviu para reforçar convicções, reavaliar políticas e medidas,
mobilizar energias e vontades, acelerar procedimentos, alterar práticas e
atitudes. O problema é que as recomendações para terem utilidade prática
deveriam ser dirigidas ao governo, mas o conselho é órgão de consulta do PR no
exercício das suas funções e não de consulta do governo. Os constitucionalistas
portugueses referem-se à possibilidade em Portugal do PR, pela via de submissão
de matérias diversas ao conselho do estado, de transformar esse órgão numa
instituição de apreciação da vida política e da direcção política do governo e
enquanto tal num “meio indirecto” de efectivar a responsabilidade do governo.
Há aí essa possibilidade porque o governo é politicamente responsável perante o
presidente da república e perante o parlamento. Não é o caso de Cabo Verde em
que o PM só é politicamente responsável perante a Assembleia Nacional e os
ministros são responsáveis perante o primeiro-ministro e no âmbito do governo
perante a AN e por conseguinte os contactos directos dos ministros com o PR
devem ser feitos com assentimento do PM.
O presidente português
Marcelo Rebelo de Sousa inaugurou as audições no Conselho de Estado de figuras
exteriores ao órgão com os convites dirigidos ao governador do Banco Central
Europeu Mario Draghi na primeira reunião e recentemente ao presidente da
Comissão Europeia Jean-Claude Juncker e ao director da Organização Mundial do
Comércio. Para politólogos citados pela imprensa portuguesa os convites do
presidente constituem actos de marketing institucional dirigidos para dar mais
centralidade no debate político à Presidência da República. Mas
certamente que convites dirigidos á figuras de instituições supra nacionais da
União Europeia e internacionais não é mesma coisa que convidar membros do
governo para discutir matéria de governação do país. Desde 2005 que no artigo 5
do regimento do conselho da república está prevista essa possibilidade que por
sinal não resulta da Constituição mas não há notícia que alguma vez tenha sido
aplicada nem pelos presidentes anteriores nem pelo actual presidente da
república no seu primeiro mandato. E não é por acaso.
Nas democracias
parlamentares a relação entre o presidente da república e o governo é muitas
vezes de geometria variável. Se o governo é minoritário ou se num momento é
politicamente enfraquecido a influência do PR tende a aumentar, mas se os
governos gozam de uma maioria absoluta no parlamento não há grandes alterações
no que se espera do PR nas suas múltiplas funções. Quando há governos
maioritários, como é o caso de Cabo
Verde nestes 27 anos de democracia, a norma é a estabilidade política sem
grandes sobressaltos nas relações entre órgãos de soberania. Os equilíbrios
existentes, porém, podem mudar se factores diversos já conhecidos de populismo
e demagogia convergirem no enfraquecimento das instituições democráticas, como
está a acontecer. Um sinal disso é a descredibilização do parlamento que vem de
há vários anos e já alterou visivelmente a relação entre o governo e o
parlamento. Nota-se na submissão deste àquele assim como nas ausências do
primeiro-ministro do parlamento em momentos de fiscalização política, acto
sempre criticado pelo actual partido maioritário quando era oposição
parlamentar. A outra face da moeda é um relacionamento nunca visto entre o
governo e a presidência da república no qual é palpável a crescente influência
do PR.
Derivas na relação entre os órgãos de
soberania acabam por mexer com o sistema político e afectar em particular a
confiança das pessoas nas instituições. A falta de coerência e de consistência
na actuação da classe política pode tornar-se
norma como se viu no folhetim das alterações das taxas aduaneiras para
proteger produtos locais em que a fuga à responsabilidade por eventuais
prejuízos aos consumidores e à economia nacional foi generalizada. Poderá vir a
verificar-se outra vez designadamente na questão da regionalização. Na proposta de lei apresentada ao parlamento já se
viu que o apego à ideia de ilha/região caiu para o caso de Santiago que ficou
com duas regiões ao mesmo tempo que se manteve no caso de ilhas com fraca base
populacional e económica como Brava e
Maio e que se obrigam ilhas efectivamente integradas como S. Vicente e S. Antão
a serem regiões separadas. Em 2014 na discussão da composição do Conselho
dos Assuntos Regionais o actual partido maioritário, então oposição, forçou o
então governo a abandonar a proposta de fazer Santiago ser representado nesse
órgão por dois elementos de Santiago
Norte e dois de Santiago Sul. O MpD argumentou na altura que o total de quatro
representantes de Santiago iria contrastar com o número de dois por cada ilha e
estaria em contramão com o princípio que sempre vigorou na Constituição de 1992
de igualdade de representação das ilhas.
Hoje vê-se em vários sinais que o
comprometimento em manter o sistema político no seu traço básico original não
está garantido. Surgem forças a propor alterações no sistema do governo com
reforço dos poderes presidenciais e outras a querer minimizar o parlamento e a
democracia representativa. Com uma revisão da Constituição no horizonte é de
evitar derivas que tragam desequilíbrios e aumentem a desconfiança das pessoas
nas instituições. Há, por outro lado, que conter o impulso para o protagonismo
exacerbado e, pelo contrário, preparar-se com integridade para servir, ciente
de que a manutenção de um ambiente de paz e tranquilidade, funcionamento normal
das instituições e o exercício competente das funções de cada um é fundamental
para se ter liberdade e prosperidade.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição
impressa do Expresso das Ilhas nº 833 de 04 de
Abril de 2018.
segunda-feira, abril 02, 2018
Tornar os debates produtivos
Depois de mais um debate parlamentar a sensação é que
não é fácil mudar certos hábitos já arreigados de acção política.
Olhando para além da poeira levantada nos confrontos nota-se que não há
uma preocupação primeira com a criação de riqueza nacional, que o foco é
posto na redistribuição e que a via escolhida para influenciação
política ou o exercício do poder passa pelo controlo do acesso a
recursos.
A dificuldade em
mudar demonstra que décadas seguidas de aplicação de um modelo de
desenvolvimento baseado na reciclagem da ajuda externa decididamente teve
consequências graves e duradoiras na vida da nação. E isso é visível na forma
como os problemas do país são equacionados e colocados no parlamento ou na
comunicação social, assim como é claro nas atitudes e expectativas em relação
ao presente e ao futuro que são sistematicamente alimentadas e
reproduzidas.
O país debate-se com níveis altos de
desemprego, mas mostra-se incapaz de pôr suficiente atenção na procura de vias
para debelar esse flagelo. Devia ser óbvio que o desemprego só pode ser
combatido com crescimento da economia a taxas mais altas do que as verificadas
nos últimos anos. Devia, mas afinal não é. Assinou-se um pacto de concertação
estratégica, mas parece que ficou submerso nos anúncios de manifestações e
ameaças de greve e nos posicionamentos políticos que logo vêm atrás. O que
devia traduzir preocupação de todos - não só com quem está empregado mas também
com os desempregados e os com os novos que chegam ao mercado de trabalho e que
precisam de uma economia dinâmica e competitiva para os absorver - não dá
sinais de se concretizar. Prefere-se ficar com a ilusão que de alguma forma o
Estado vai continuar a manter os postos de trabalho actuais.
As discussões
intermináveis à volta das medidas de mitigação dos efeitos da seca fazem
esquecer o problema de fundo que é a vulnerabilidade no mundo rural. Discutir
ajuda externa e como distribuí-la no país parece ser o desporto favorito de muitos.
É campo para populismo e demagogia, rivalidades e disputas de influência junto
das pessoas. Sempre foi assim e é uma das razões por que a situação no meio
rural não se alterou e a vulnerabilidade das populações se aprofundou. Num ano
de seca extrema e em que o falhanço das políticas para o mundo rural ficou
claro para todos o que mais se ouve para além dos arremessos políticos é a
velha receita de fixar a população e desencravar as povoações. Por debater
ficam as vias de como mover as pessoas para actividades mais produtivas,
geradores de rendimento e com potencial de sustentabilidade que realmente
diminua a sua vulnerabilidade.
Assim como o desemprego e as dificuldades das
pessoas no campo não prendem a atenção por causa da sua utilidade na luta
política, também faz-se por esquecer que o país tem a dívida pública acima dos
130% do PIB e que várias empresas estatais têm dificuldades financeiras que
podem pesar ainda na dívida existente. Como é próprio de quem se habituou à
ajuda externa, fica-se sempre à espera ou que a dívida seja perdoada ou que se
resolva por si. Ninguém pensa nas enormes dificuldades que países como
Portugal, Irlanda, Espanha e Grécia passaram por terem acumulado dívida a tal
nível. Entretanto, também a questão é campo para picardias políticas e vontade
para criar as condições para a conter e sanar financeiramente o sector
empresarial do estado perde-se no jogo de culpar o outro e nas fugas à
responsabilidade.
A verdade é que já devia ser evidente que o
país tem de se mover num caminho que torne a economia competitiva e se criem
condições para aumento da produtividade. A adequação da administração pública é
essencial para isso, mas se noutras matérias dificilmente se encontra espaço
para se chegar aos compromissos necessários, em matéria de administração não se
vê como os atingir. É um facto constatado por todos e realçado pelos operadores
económicos. Só que a administração pública é a arena principal de disputa e
quando a política centra-se muito na capacidade do Estado em alocar recursos,
facilitar acessos e criar oportunidades dificilmente as partes vão convergir
nas reformas. E, se não há consenso para o crescimento e emprego com foco na
iniciativa privada e acompanhada de medidas de atracção de investimento externo
e de uma política de promoção de exportações de bens e serviços, ninguém vai
achar necessário tomar as medidas que se impõem para se conseguir os níveis de
eficiência e eficácia que o país tanto precisa.
Um outro empecilho a debates construtivos que
podiam levar a encontrar as vias para fazer o o país crescer nas taxas desejadas
e para resolver o problema de emprego e garantir rendimentos às pessoas tem a
ver com a orientação a ser imprimida à economia nacional. Uma das consequências
de demasiados anos a viver na dependência da ajuda externa foi que se deixou de
olhar para fora e se fixou em olhar para dentro. Caiu-se numa espécie de
paroquialismo que para o país arquipélago, de
pequena dimensão e população pode revelar-se fatal, principalmente
quando lógicas identitárias ganham impulso e rivalidades entre as ilhas são
alimentadas. Da história de Cabo Verde se aprende que, nos casos em que o país
conheceu algum momento de prosperidade, o crescimento resultou de uma ligação
mais dinâmica à economia mundial. Para aprofundar essa ligação devem ir todas
as políticas de promoção do sector privado e de atracção do investimento
externo e o esforço de transformar Cabo Verde num destino turístico com
valências múltiplas que aumentem a sustentabilidade do sector.
Melhorar o nível da política e elevar o
debate é o grande desafio que hoje se coloca às democracias. Há que evitar por
um lado a polarização que práticas populistas tendem a criar e, por outro, não
se deixar tentar por vias simplistas para questões complexas que globalmente só
vão contribuir para descredibilização da democracia. A resolução dos problemas
de desenvolvimento dependem da capacidade em conseguir estabelecer os
compromissos necessários para fazer as reformas e reorientar o país. Não se
consegue isso, porém continuando a fazer a mesma política de sempre e a
persistir nos mesmos debates estéreis que não deixa que caía o ilusionismo que
por demasiado tempo tem mantido as pessoas alheias à realidade do país.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição
impressa do Expresso
das Ilhas nº
852 de 28 de Março de 2018.
terça-feira, março 27, 2018
Dois anos depois: Balanço preocupante
Há dois anos atrás, no dia 20 de Março, anunciava-se
uma nova alternância na governação de Cabo Verde. Com a vitória do MpD
terminavam os quinze anos ininterruptos de governo do PAICV. A sensação
no país era de alívio, à mistura com alguma euforia. Para muitos, o
terceiro mandato do PAICV tinha sido um exagero e vendo-o findar e ceder
lugar ao que se esperava ser uma lufada de ar fresco era, de facto,
razão para entusiasmo, renovação de esperança e confiança no futuro. Os
últimos cinco anos tinham sido de estagnação económica em que ano após
ano se ficou à espera da prosperidade e do emprego que resultariam da
dinâmica dos clusters, hubs, interpostos comerciais e praças financeiras
prometidos repetidamente.
Teria sido bom que a euforia da mudança não
ofuscasse as tremendas dificuldades que o país iria encontrar no novo ciclo de
governação. Não devia escapar a ninguém que Cabo Verde já fora do grupo dos
países menos desenvolvidos certamente iria encontrar maiores dificuldades em
mobilizar ajuda externa e em conseguir empréstimos concessionais. Piorava a
situação o facto de iniciar uma nova fase como país de rendimento médio atolado
numa dívida pública superior a 120% do PIB e dívidas contingenciais do sector
empresarial do Estado em particular da TACV que, por elevar ainda mais esse
valor, tornava a dívida quase insustentável. A acrescentar a isso, e ao
crescimento raso de muitos anos, ficaram reformas por fazer, em particular, na
administração pública que poderiam ter tornado o país mais competitivo e
alterado para melhor o seu ambiente de negócios.
Por outro lado, é verdade que o turismo,
devido em parte a uma conjuntura favorável provocada pela retracção dos
mercados tradicionais do Norte de África, ganhou forte dinâmica nas ilhas do
Sal e da Boa Vista e serviu para impedir que o crescimento fosse ainda mais
diminuto e também para criar milhares de postos de trabalho. O efeito, porém,
era insuficiente como constatavam as pessoas nas outras ilhas e, em particular,
nas zonas rurais que viam a sua vulnerabilidade perante as chuvas e outras
contingências manter-se ou sem alteração perceptível. O mesmo acontecia com os
muitos jovens dos centros urbanos espalhados pelo país com formação secundária
e até superior que se apercebiam que a economia não tinha emprego para eles e
os apetecidos lugares no Estado eram cada vez mais escassos. A consciência de
que mesmo na falta de sinais claros de conturbação social a situação era
crítica viu-se na forma determinada como foram decididas as três eleições:
legislativas, autárquicas e presidenciais, nesse ano de 2016 a favor de uma
mudança na visão, no estilo e nas pessoas que deviam orientar o país.
É facto que nesses dois anos a economia tem
crescido três ou mais vezes do que nos anos anteriores e que as projecções para
o ano de 2018 e seguintes apontam para valores superiores a 4% do PIB. Os dados
do INE levam a crer que a retoma teria iniciado no último trimestre de 2015 em
conjugação com a nova dinâmica da economia mundial e em particular da economia
da União Europeia que finalmente parece deixar para trás os efeitos da crise
financeira e do euro. Um outro impulso para o crescimento resultou da entrada
de um novo governo disposto a promover o sector privado e que, por esse facto,
de imediato se constituiu num factor de maior confiança na economia. Está-se
porém ainda longe dos 7% do PIB prometidos e o número de postos de trabalhos
criados mantém-se aquém do desejável especialmente para os que cada vez em
maior número terminam os seus estudos universitários.
Esperavam-se reformas mais rápidas e mais
profundas designadamente na administração pública, nas empresas públicas, no
ambiente regulatório, no sistema de segurança, na comunicação social pública e
na educação. A situação herdada era crítica e o mandato recebido de forma bem
clara e vigorosa foi para pôr em prática as soluções propostas ao eleitorado. É
percepção geral que até agora ainda não se conseguiu um nível de coordenação da
acção estatal que, por um lado, diminua as ineficiências e aumente a eficácia e
a produtividade dos serviços prestados e, por outro lado, promova a paz social
e faça convergir as vontades no esforço nacional para potenciar recursos, fazer
reformas e assumir novas atitudes necessários ao desenvolvimento. Pelo contrário,
nota-se com apreensão alguma agitação social, greves inusitadas e sinais de
contestação da autoridade do Estado. E não se pode simplesmente dizer que
resultam de cabalas ou conspirações orquestradas pela oposição. Não lhes é
alheio o funcionamento notoriamente deficiente do parlamento e de sectores da
justiça e o relacionamento entre os órgãos de soberania marcado por posturas às
vezes pouco curiais dos seus titulares que pela sua novidade no que respeita à
prática constitucional deixam um rasto de perplexidade.
Estes dois anos do novo
ciclo de governo têm coincidido com fenómenos preocupantes a nível global, não
só porque convergem na sua vertente antidemocrática, como também ameaçam a
globalização e as oportunidades que proporciona especialmente aos países mais
pequenos e insulares. Tomam a forma do populismo, do iliberalismo, da ditadura
da maioria e revelam-se em tendências autocráticas. Tem-se manifestado de
várias formas em todas as democracias recentes ou maduras e Cabo Verde não é
excepção. Assim como outros países, o país não está imune aos efeitos de
críticas destrutivas às instituições democráticas, ao aumento da desigualdade
social, aos efeitos das migrações e à forte tentação dos actores políticos para
se engajarem em políticas identitárias. Os sinais vêem-se na dinâmica no
interior dos partidos designadamente na submissão ao líder e na forte e
agravada crispação que tem sido a relação entre os partidos políticos.
Consegue-se dar a maior machadada na democracia e
favorecer todos esses populismos fazendo as pessoas acreditar que os partidos
são todos iguais e que alternância não significa uma lufada de ar fresco
mas sim mais do mesmo. Pior ainda, se no processo de diabolização mútua
se se conseguir que a democracia fique sem partidos políticos credíveis e sem
alternativa. Como se pode ver da experiência de outros países é esse o momento
que se abre o caminho para a ascensão do “homem forte” e da ditadura. Não é o
destino que se quer e por isso é que no aniversário da alternância é de maior importância
defender os princípios e valores que a tornam sempre possível e pressionar para
que os partidos políticos, essenciais como são para a criação da vontade
popular, funcionem dentro dos princípios da ética e no respeito pelo primado da
lei por forma a se se manterem sempre credíveis junto do eleitorado.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição
impressa do Expresso das Ilhas nº 851 de 21 de Março
de 2018.
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