Compreende-se que assim seja. É um facto que pessoas das mais diferentes vivências, culturas e níveis de exposição ao Mundo sentem-se tocadas profundamente pela voz sublime da Cesária e gratas pela experiência única de a escutar. Em muita gente cons¬tate-se que, ao deslumbre nas actuações da Cesária, segue-se uma curiosidade, quase fascínio, por conhecer a cultura e alma do povo Caboverdiano. Querem saber de que húmus emanam as suas can¬ções e de onde retirou a vivência profunda e marcada que a sua voz tão bem transmite.
Com Cesária as pessoas comuns em todo o mundo passaram a saber da existência de Cabo Verde e dos caboverdianos. Através dela e da morna, o seu género musical de eleição, intuíram a experiência humana verificada durante séculos nas ilhas de Cabo Verde. Umas Ilhas periodicamente fustigadas pela fome e não poucas vezes dei¬xadas isoladas no meio do Atlântico a caldear os ingredientes de uma nova Nação. Europeus, asiáticos, americanos japoneses, latinos e africanos no final dos concertos ou após ouvir um CD sentiam-se tocados pela Cesária e pela morna. Com isso os caboverdianos pas¬saram a saber que tinham sido capazes de produzir no seu cadinho de civilização algo universalmente válido.
Em 1987 com o festival da World Music (música do mundo) foi desencadeado um processo que caminhando, a par e passo com a aceleração da globalização, abriu sensibilidades das mais díspares a géneros musicais vindos de todo o planeta.
Instrumental para isso foram os novos produtores. Surgiram para ajudar muitos artistas na realização do sonho de atingir audiências variadas e universais. A Cesária teve a sorte extraordinária de ter o caboverdiano Djô da Silva como seu produtor. No album "Miss Perfumado" a convergência de talentos na Cesária e no Djô já produzia resultados surpreendentes cujo retorno para o país, para os artistas e para a nação caboverdiana se revelariam incalculáveis.
Nos 20 anos de carreira artística internacional, Cesária Évora encheu de orgulho os corações dos caboverdianos. A sua voz fez o mundo inteiro apreender as nuances da vivência caboverdiana, como era testemunhada por homens simples nas décadas 40, 50, 60 e 70 que nas horas de lazer cantavam as alegrias, as tristezas, os amores, a vontade partir e a sodade da terra, da mãe e da cretcheu. No meio cosmopolita de São Vicente germinaram as mornas de B.Leza, Amândio Cabral e Lela de Maninha e as coladeras de Ti Goi, Frank Cavaquinho e Manuel d'Novas que Cesária levaria a todos os grandes palcos e revelaria Cabo Verde ao mundo.
No momento de tristeza de despedida da Cesária é fundamental lembrar a sua alegria de viver apesar das terríveis provações que teve de passar ao longo da vida. Lembrar que apesar do muito que lhe foi retirado, conservou sempre a capacidade de dar. A sua oferta maior ao mundo é o Cabo Verde de todos nós e de todas as gerações antes de nós.
Com Cesária e Djô da Silva devemos retirar a convicção de que temos algo de novo e valioso a dar desde que potenciemos o talento e a criatividade das nossas gentes. E que o sucesso estará ao nosso al-cance se aproveitarmos devidamente as oportunidades que surgem e criarmos o nível de organização com sentido de eficácia para extrair o maior retorno de todas as iniciativas e empreendimentos.
O momento é de celebração da vida da Cesária que hoje sobe ao panteão dos intelectuais, de homens e mulheres simples que con¬tribuíram para a nação caboverdiana se sinta digna, una, dinâmica e com confiança no devir.
O jornal Expresso das Ilhas apresenta as suas sentidas condolências à família, aos amigos e colaboradores da Cesária.