quarta-feira, outubro 05, 2011

Por uma nova atitude na governação

A crise na Europa e nos Estados Unidos chama de forma dramática a atenção por atitudes na governação potencialmente desastrosas a prazo. Assim, hoje sabe-se que governar como na Grécia, escondendo da sociedade e dos parceiros dados cruciais para a permanência do país no euro pode revelar-se catastrófica. Governar como em Portugal cavalgando a euforia derivada das vantagens de pertença à zona euro não dura sempre e o dia do acerto de contas acaba por chegar. Governar como na Alemanha e nos Estados Unidos, apanhado por interesses eleitorais de curto prazo que impedem a tomada de medidas de fundo, deixa a nação sem real liderança e prejudica o futuro.

A crise prova que não dizer a verdade, substituir acção por propaganda e orientar-se só pela vontade de se manter no poder a todo o custo tem consequências gravosas. Governos que teimosamente persistirem nesses caminhos não têm desculpa. O desfecho vê-se por aí nas convulsões dos mercados, no crescimento raso da economia nacional, no desemprego persistente e no desespero crescente particularmente das populações mais vulneráveis.

Em Cabo Verde, oito meses após as eleições legislativas, a postura do governo não mudou. Parece que nas altas esferas de decisão política ainda persiste a ilusão da blindagem do país à crise ou talvez a ideia que o país “is too small to fail”. Entretanto sucedem-se crises de energia e água, mantém-se o sentimento de insegurança e notam-se em todas as ilhas as consequências sociais do abrandamento do crescimento da economia nacional. E a população já percebe que não se está a lidar com a situação no país da melhor forma. Provavelmente os resultados das eleições presidenciais desfavoráveis ao candidato preferido do governo já são sinais de desagrado e frustração crescente em vários sectores da sociedade.

O Governo aparentemente nada nota. Continua nas suas práticas de sempre. Esta semana escolheu as falhas na facturação da Electra para justificar as crises no fornecimento de energia e água. Na semana passada aproveitou a assinatura do contrato de construção das instalações frigoríficas de São Vicente para mais uma vez trazer o projecto de transbordo e o terminal de cruzeiros agora apresentados no âmbito do que chama cluster do mar. A visita da Ministra Sara Lopes aos bairros da Capital e as controvérsias em que se envolveu com a Câmara Municipal da Praia mostraram também que a realização de eleições, há um mês atrás, presidenciais e, daqui a nove meses, autárquicas continuam a condicionar grandemente o governo na sua agenda, na sua eficácia e na atenção que devia dedicar às questões nacionais.

A ministra de Finanças em Washington deixou transparecer receios de que Cabo Verde pode ser apanhado na chamada “armadilha de países de rendimento médio”. Outros países procuraram, em tempo útil, evitar serem apanhados na armadilha. Esforçaram-se por ganhar eficiência na utilização do capital e da mão-de-obra, designadamente via a exigência de qualidade no sistema de ensino. Fizeram um esforço de internalização da economia diversificando-se e alargando a participação do empresariado nacional. Diminuíram os custos na economia da inoperacionalidade do Estado, dos seus serviços e das empresas públicas. Desafios que ficaram por ser devidamente enfrentados aqui em Cabo Verde.

A saída para fora da armadilha que o Governo encontra é a de pedir a extensão do período em que o país continuará a beneficiar de ajuda pública e de empréstimos concessionais. Ganhar tempo porém não será de grande utilidade se os métodos e a atitude se mantiverem os mesmos. Urge pois que a governação do país vá além dos grandes gestos, da propaganda e dos interesses partidários e sirva a verdade, cultive a honestidade e aja com visão de futuro.

Editorial do jornal "Expresso das ilhas" de 5 de Outubro de 2011

terça-feira, outubro 04, 2011

Porquê Angola?

Segundo o site do Governo, Cabo Verde quer cooperação com Angola no domínio das informações militares, de comunicações e de formação da “nossa polícia militar”, palavras do ministro de Defesa de Cabo Verde. A questão que imediatamente se põe é se a experiência dos militares angolanos em lidar com civis e situações de perturbação da ordem pública é a mais ajustada para Cabo Verde. Certamente que não é. O próprio ministro angolano confessa que ainda se está a reedificar as forças armadas angolanas. Saíram de uma guerra civil há menos de dez anos, desenvolveram-se a partir de uma milícia de um partido, as FAPLA, e não funcionam num quadro constitucional como o de Cabo Verde com órgãos de soberania eleitos democraticamente e com respeito pelos direitos dos cidadãos. Com esse historial e vindo de uma realidade diferente não se vislumbra como poderão ser úteis na preparação da polícia militar caboverdiana. Por outro lado, sabe-se que Angola não se tem inibido de manter presença militar fora do território nacional, designadamente no Congo, em São Tomé, Costa do Marfim e ultimamente na Guiné-Bissau deixando antever as suas pretensões como potência regional. Isso não pode ser ignorado nem tomado de ânimo leve quando se desenvolvem relações de cooperação militar e no domínio da inteligência militar.

segunda-feira, outubro 03, 2011

Corrida às armas

Segundo a ministra da Administração Interna, a lei das armas vem aí. Será aprovada em Conselho de Ministros, em Outubro, e remetida para o parlamento. O líder da oposição já mostrou a disponibilidade do MpD em viabilizar uma lei que conduza ao controle efectivo das armas. A questão que se coloca é porque se demorou tanto tempo em se avançar com uma iniciativa legislativa nessa matéria. Uma inércia inexplicável particularmente porque há mais de uma década que se vem verificando uma corrida para aquisição de armas tanto por razões de autodefesa, como criminosas e outras até de ostentação e poder pessoal. A proliferação de armas conduziu ao aumento de acidentes e mortes por arma de fogo. Um mercado paralelo de armas artesanais floresceu para responder às necessidades daqueles com menos poder de compra, mas dispostos a exibir o seu poder de fogo. Das autoridades a resposta não tem sido nem consequente nem efectivo. Não se avançou com uma lei adaptada aos tempos. Protelou-se até agora. Preferiu-se aumentar o poder de fogo dos polícias e armá-los com AKM. O problema é que as AKM são armas de guerra e é duvidoso, em termos legais e morais, que possam ser usadas em situações de choque com os cidadãos. Usá-las é atirar o princípio de proporcionalidade na utilização da força policial pela janela fora. A falta de sentido de proporção mostra-se também quando se usam unidades especiais da polícia em missões de rotina e patrulha. E, como já se sabe, apesar das AKM e dos “ninjas” a violência não tem diminuído, nem a criminalidade e o sentido de insegurança dos cidadãos. Há que mudar a abordagem. A lei de armas é um começo, mas muito é necessário fazer para que a polícia seja eficaz, proteja os direitos dos cidadãos e conquiste a confiança da comunidade.

domingo, outubro 02, 2011

Como Cabo Verde lida com a história

Na entrevista feita pela TCV ao presidente cessante Pedro Pires, a jornalista apresentou um historial dos 50 anos da sua vida política. Bastante pormenorizada no período anterior a independência a biografia do entrevistado torna-se extremamente rarefeito a partir de 1975 que é eleito deputado e nomeado primeiro ministro. Nos quinze anos que se seguem considera-se digno de referência só a sua eleição para o cargo de secretário geral adjunto no congresso fundador do PAICV em Janeiro de 1981 e posteriormente a para secretário-geral no IV congresso em Julho de 1990. No perfil de Aristides Pereira, secretário geral do PAIGC/PAICV e presidente da república até 1990, falecido na semana passada, repete-se o mesmo. Os anos do regime de partido único são simplesmente apagados. Omitem-se as palavras e os actos dos seus principais dirigentes e suprimem-se imagens de todo o período com a excepção das imagens da proclamação da independência. Todos os valores e princípios da república como respeito pela dignidade humana, liberdade e justiça e escolha livre de governo e governantes esbatem-se ou curvam-se perante a proclamada “grandiosidade” do percurso da independência e dos seus actores, sempre contado numa única versão: a versão dos “libertadores”.

sábado, outubro 01, 2011

Primárias

Fazer das primárias excepção e não regra na selecção de candidatos às eleições autárquicas foi uma das decisões mais significativas saídas do último Conselho Nacional do PAICV. O partido resumia assim as razões para a derrota do seu candidato presidencial a um problema simples de divisão das suas hostes. Muito convenientemente as culpas foram atiradas para cima dos apoiantes de Aristides Lima. Eles, segundo relatos diversos, fizeram a devida autocrítica e o partido, supostamente, ficou mais unido e coeso. O Presidente do partido “que não se arrepende de nada” veio declarar que não há congresso extraordinário nem primárias de candidatos às câmaras. Ou seja não há discussão interna de propostas ou soluções alternativas para os problemas do país ou dos municípios. Para ganhar eleições calam-se as vozes no interior dos partidos precisamente quando o país e o mundo clamam por novas perspectivas, acções inovadoras e medidas ousadas. Sacrifica-se o que de útil pode trazer o confronto de ideias na democracia para manter a aparência de unidade interna . Secundariza-se a influenciação do eleitorado pela via de ideias e projectos de governação em favor de esquemas de arrebanhamento onde pontuam apelos à cor da camisola, demagogias diversas e compras de consciência e de votos. A democracia fica assim empobrecida. De tempos em tempos - aconteceu nas últimas presidenciais - os cidadãos rebelam-se contra a contracção de vida política que atitudes do género induzem. Mas como se constatou nos últimos dias os partidos não absorvem a lição principal e reagem diminuindo a possibilidade de fricção interna mas a grandes custos: custo de maior rigidez interna, de menos capacidade de se adaptar aos tempos e aos desafios de hoje e de ser tornar um espaço menor de liberdade e de participação. Não espanta que muitos, particularmente os jovens fujam da política partidária. E como não há outra, fiquem permanentemente fora, empobrecendo a todos.

sexta-feira, setembro 30, 2011

Dependência e humilhação

As cenas repetidas todos os anos de distribuição de kits escolares aos alunos carenciados difundidas pela televisão são reveladoras do esforço permanente de reprodução de comportamentos de dependência em Cabo Verde. Pontificam nesses encontros os “suspeitos do costume”: os ministros, os presidentes de fundações, que também são passados ou futuros candidatos a deputados, e os responsáveis da região política do partido no governo. Sente-se forte o odor político-partidário das cerimónias não obstante a presença de entidades privadas doadoras convidadas no intuito de as fazer passar como gestos neutros de solidariedade. Completa o quadro as crianças a agradecer aos seus benfeitores. Como bem disse alguém, é extraordinário como ditadores e certos doadores gostam de ser fotografados com crianças. Têm em comum o desejo de manter as massas e os pobres infantilizados e dependentes da sua benevolência paternal. Michael Walzer, um cientista social americano num artigo recente na revista Foreign Affairs diz que “a caridade deve reger-se pelas exigências de justiça”. Só se ajuda de forma moral quando há reconhecimento e respeito da dignidade das pessoas contempladas. Ajuda que perpetua a dependência e a subordinação é profundamente injusta. Para ele, o encontro do carenciado com o benfeitor é humilhante. E citando Maimonides diz que dar anónimo é a forma moralmente superior de ajudar os outros. Em Cabo Verde como se sabe acontece precisamente o contrário. Imagens todos os dias na televisão repetem cenas de doadores com ar beatífico em frente de recipientes agradecidos num ritual perpetuador da dependência. Não espanta que depois outros pagamentos sejam exigidos designadamente apoio político e votos nas eleições. A corrupção que se manifesta na compra e venda de consciências impregna o tecido social mais fundo do que as denuncias até então revelaram. E a cumplicidade é geral.

quinta-feira, setembro 29, 2011

Atropelos

Todo o país pôde ouvir pela rádio e pela televisão um polícia da Calheta de São Miguel a ameaçar “arrebentar” com a câmara da RTC se a equipa prosseguisse com as filmagens. O passo seguinte da polícia foi deter o operador de câmara e conduzi-lo algemado à esquadra. O incidente terminou com o profissional da comunicação social a assinar um pedido de desculpas em troca de liberdade. A Associação dos Jornalistas de Cabo Verde (AJOC) considerou a matéria como grave e um atentado à liberdade de imprensa e solicitou explicações do director da Polícia Nacional. Está por vir a resposta.

Da polícia espera-se que se coloque na primeira linha de defesa dos direitos dos cidadãos. Para isso deve cumprir estritamente a lei na forma como interage com as pessoas tendo sempre presente o princípio de proporcionalidade na utilização da força, seja na manutenção da ordem pública, seja no combate à criminalidade. A polícia num Estado de Direito democrático não “arrebenta” com coisas ou pessoas. Não humilha cidadãos. Não extrai declarações de desculpa de pessoas detidas para as soltar. Acções da polícia que configuram atentados contra a liberdade de imprensa são de gravidade acrescida. Presume-se que queira esconder do público situações de abuso de poder.

Silêncio tem sido a resposta recebida das autoridades policiais às múltiplas denúncias de abusos. Mesmo quando estas têm eco em relatórios internacionais de direitos humanos como o do Departamento do Estado americano. Até recentemente o Governo parecia defender esse silêncio. O entendimento talvez era que não inspeccionar os actos da polícia ajudava a manter o moral e a corporação saía reforçada. A realidade porém vivida é de aumento da criminalidade, de crescente sentimento da insegurança e da falta de confiança das comunidades na polícia. Com a ineficácia, cresce proporcionalmente a arrogância. Esconde-se a incompetência e afirma-se estar acima da Lei.

Nos últimos meses o país tem constatado o avanço em sincronia da arrogância, do autoritarismo e da incompetência. Vê-se todos os dias em matéria de energia, água e segurança. Viu-se nas eleições presidenciais como a má gestão de processos conduz a extremos inibidores de discussões serenas no seio de partidos, retirando-lhes a função principal de dinamizar a procura de soluções para o país. A arrogância não deixa que se aprenda com os erros e se assaquem responsabilidades. O autoritarismo convida a que se enverede por atalhos perigosos em vez de trilhar o caminho aberto e transparente seguindo procedimentos conhecidos e aceites por todos.

O discurso do Sr. Primeiro Ministro na Assembleia Geral das Nações Unidas feito em crioulo é mais um exemplo de voluntarismo político que não olha a meios para atingir os seus fins. O PM falou no maior fórum das Nações numa língua que, por Lei, não é a língua oficial de Cabo Verde. O PM decidiu ultrapassar o Parlamento que, em Fevereiro de 2010, em sede de revisão constitucional, tinha concluído que ainda não estavam reunidas as condições para a oficialização do crioulo. Não mediu as consequências tanto internas como externas do acto. Fica-se por saber em que língua da ONU os outros países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) seguiram o discurso de Cabo Verde.

O autoritarismo crescente do Governo nota-se a cada passo. Inventa sabotadores para explicar problemas na Electra, ameaça de perda de trabalho os não apoiantes do candidato preferido, encolhe os ombros perante acusações de desmandos policiais, encoraja tácticas excessivas e contraproducentes no combate à delinquência juvenil e financia organizações sociais para manter a população arrebanhada e útil em tempos eleitorais. Paralelamente usa meios de marketing político para passar uma espécie de ideologia do Estado que pouco espaço deixa aos princípios e valores constitucionais de dignidade humana, liberdade e justiça. Todas as oportunidades são boas para se banhar em nostalgia e sentimentos de gratidão para com o percurso independentista e, assim, justificar-se na presente deriva autoritária. Mas o desnorte é evidente e urge repor os equilíbrios de poderes que a Nação considerou dever existir na Constituição, já com 19 anos de existência, para que a caminhada rumo à prosperidade na Liberdade prossiga sem sobressaltos.

Editorial do Jornal “Expresso das Ilhas” de 28 de Setembro de 2011

quarta-feira, setembro 21, 2011

Quebrar o círculo de dependência

Denúncias de condicionamento do voto recentemente feitas deixaram claro que organizações da sociedade civil designadamente as associações comunitárias são activamente instrumentalizadas pelos poderes públicos para fins partidários. Não ficaram dúvidas que muitas delas são criadas para se constituírem em centros de poder nas comunidades disputando recursos com as câmaras e posicionando-se como rivais na realização do que normalmente seriam atribuições municipais. A ausência de controlos adequados no uso dos fundos públicos recebidos faz dessas associações o veículo perfeito para dar trabalho, distribuir dádivas e prestar favores numa perspectiva eleitoralista.

As pessoas em Cabo Verde, como noutras paragens, juntam-se num esforço colectivo para fazer face às dificuldades da vida e à escassez de recursos. No processo reforçam as relações entre si, aumentam a confiança mútua e sentido de pertença e aprofundam o seu sentido cívico. Há perversão de objectivos quando se deixa instalar uma cultura assistencialista que em vez de fazer as pessoas autónomas fá-las mais dependentes do Estado. Então ênfase é colocada na distribuição e tal facto estimula o aparecimento de oportunistas que socorrem-se de expedientes diversos para se colocarem em posição de controlar o “bolo”, de retirar dele um maior naco possível e de oferecer migalhas a quem sabe mostrar gratidão. Deixa-se campo aberto para mais tarde serem extraídos outros ganhos ou servidos certos interesses.

O ambiente propício a esse tipo de perversões cria-se com o enraizamento da ideia de que se pode preservar a dignidade fazendo uma vida à custa da caridade ou solidariedade internacional. Partindo de um sentimento de vitimização histórica real, fictícia ou forjada, justifica-se uma existência na dependência permanente dos outros ao mesmo tempo que orgulhosamente se proclama ser independente e soberano. O embuste, quando levado a avante tempo demais, envenena alma, esvazia energias para uma vida autónoma e erige em arte superior esquemas de enganar parceiros. Finge-se que se está à procura da via própria e autónoma de desenvolvimento, chega-se mesmo a adoptar linguagem e conceitos de quem está seriamente engajo nisso quando, de facto, na maior parte dos casos, está-se simplesmente a inventar mais uma razão para continuar a ser financiado.

O Estado em vez de se posicionar como instrumento de vontade colectiva para a libertação da dependência, transforma-se no seu principal agente reprodutor. Por uma razão simples. Aprende a viver da dinâmica que as infusões sucessivas de recursos provocam, e, em vez de apostar no crescimento da economia nacional, centra-se na atracção de recursos que pode controlar e extrair um maior quinhão. Serve-se de vários mecanismo e entidades, incluindo associações, para obter vantagens diversas como criar uma clientela, reforçar dependência e alargar a base de apoio.

Em Cabo Verde a caridade tem rosto. Todos os dias sucedem-se actos ostensivos de entrega de dádivas seguidos de manifestações públicas de agradecimento. Sonhos de comunidades e de pessoas individualmente são apresentados como realizados com doações. Omite-se que a sua concretização devia ser resultado do esforço, motivação e capacidade próprios.

Em tal ambiente socialmente e culturalmente armadilhado não pode ser surpresa que se comprem votos ou consciências. O que acontece nos momentos eleitorais simplesmente é a ponta de icebergue de uma existência em que outros favores indignos também se prestam, bocas se calam e mentes ficam aprisionadas para se continuar a gozar de um estatuto de privilegiado e aspirar uma subida para o “topo da cadeia alimentar”. Há que quebrar o círculo vicioso da dependência e direccionar o país e as pessoas para uma autonomia que as dignifique e liberte para dar o máximo da sua energia e criatividade na construção de uma vida mais rica, mais gratificante e mais realizada.

Editorial do Jornal “Expresso das Ilhas” de 21 de Setembro de 2011

quarta-feira, setembro 14, 2011

Ensino, conhecimento e o futuro

O novo ano escolar inicia-se hoje, dia 14 de Setembro. Milhares de alunos dirigem-se para as escolas do ensino básico e secundário sem que uma avaliação aprofundada tenha sido feita dos resultados do ano lectivo anterior. A questão crucial da qualidade do ensino continua à espera de ser equacionada. Na mesma situação também se encontra a clarificação dos objectivos pretendidos com o actual sistema de ensino e seu enquadramento na estratégia de desenvolvimento do país. Entretanto, os índices de competitividade de Cabo Verde, de acordo com o relatório do Fórum Económico Mundial de 2011-12, continuam a cair de 117º para 119º, contribuindo para isso as ineficiências nos sectores de educação e formação.

Educação não foi matéria de relevo no debate do Estado da Nação porque só a 25 de Agosto é que o Ministério prontificou-se na pessoa do director-geral do Planeamento a dar dados sobre o ano lectivo findo. E mesmo assim foram informações genéricas com base nos números de aprovação, reprovação e abandono escolar. De fora ficou a avaliação qualitativa do sistema, incluindo as dificuldades, o grau de eficácia dos métodos para as enfrentar e a identificação dos sucessos e falhas na procura de qualidade e excelência.

A aposta na educação e formação é fundamental para a riqueza das nações particularmente num país arquipélago sem recursos naturais e com pequena população. Cabe aos poderes públicos o papel central de assegurar as condições para que o investimento das famílias, das crianças e jovens e a ainda dos contribuintes traga um retorno valioso com impacto no bem-estar e autonomia das pessoas e no ambiente cultural, artístico e intelectual do país. Os recursos são sempre escassos e não devem ser desperdiçados. Nem as pessoas ficarem frustradas nos seus sonhos e objectivos de vida. Há que ter foco e uma visão ganhadora do futuro.

Em Cabo Verde, no que respeita ao nível do ensino e formação, comporta-se como se não houvesse standards mundiais de excelência. Prefere-se comparar pelo que preconceituosamente se supõe inferior. A realidade é que muitos países africanos estão à nossa frente e isso fá-los concorrentes fortes na atracção do tipo de investimentos mais procurados por quem não tem óbvias vantagens em recursos naturais e dimensão de mercado.

Opta-se por manter um sistema em que o desejo de ter um diploma não se traduz em vontade de aprender e de cultivar o conhecimento. Daí os aspectos perversos que apresenta. Com certificação do Estado proliferam liceus e escolas superiores onde a qualidade de ensino não passa de uma miragem. O pior é que nenhum dos envolvidos parece muito interessado em mudar este estado de coisas. Os alunos não pedem muito rigor e trabalho, os professores desdobram-se em compromissos part-time e a sociedade aprendeu a valorizar conexões especiais para a ascensão social e na carreira em detrimento do mérito e profissionalismo. Sem o engajamento de todos, o investimento global da sociedade tem retornos decrescentes. Maus hábitos acumulam-se e reproduz-se uma cultura avessa a resultados reais e cada vez mais fixada em absorver meios e em debitar dados estatísticos para se autojustificar.

Há que romper este círculo vicioso. Do governo espera-se que consiga inspirar a nação no cultivo da excelência e a ver o seu futuro ligado ao nível de educação das suas gentes possibilitando conhecimento e formação em áreas de futuro e com futuro a partir de Cabo Verde. Competência linguística nos idiomas mais falados internacionalmente com também sólidos conhecimentos nas ciências e na matemática são objectivos a atingir. Formação em áreas de serviço como cuidados de saúde pode ser o suporte de estratégias futuras de desenvolvimento do país ao mesmo tempo que aumenta o valor do mercado daquele que pretenda emigrar. Qualquer que seja a opção formativa e de especialização é fundamental que o país tenha escolas e universidades academicamente sólidas, uma população culta e novas gerações ousadas no desbravamento do futuro.

Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 14 de Setembro de 2011

quarta-feira, setembro 07, 2011

Uma nova Era

A tomada de posse do Presidente Jorge Carlos Fonseca na sexta feira dia 9 de Setembro inaugura uma nova era nas relações entre o Presidente da República e os outros órgãos de soberania e demais instituições da República. Pela primeira vez Cabo Verde vai ter um presidente que se identifica completamente com a Constituição da II República e que se sente perfeitamente confortável com as atribuições e competências estabelecidas na Carta Magna. Será uma oportunidade única de desenvolver o cargo de PR de acordo com o figurino constitucional. E todas as instituições irão beneficiar com a exigência de agirem conforme o Estado de Direito de democrático.

O Dr. Jorge Carlos Fonseca em vários momentos defendeu publicamente o actual sistema de governo chamado de “parlamentarismo mitigado” contra argumentos à favor do reforço do poderes do presidente. Agora vê-se no cargo e certamente que em coerência não tentará ir além dos contornos da sua magistratura nem deixar-se ultrapassar. Por ai, fica assegurada a estabilidade politico institucional por todos desejada mas que alguns temiam por que o novo PR vem de uma outra corrente política.

A contenção no quadro do equilíbrio de poderes é benéfica. Potencia as virtualidades do sistema designadamente na garantia dos direitos dos cidadãos, na salvaguarda do pluralismo e na consecução da Justiça. Ainda impede concentração de poder numa pessoa só e evita tiranias da maioria. Com o partido no governo já no terceiro mandato e vários sinais complicados de autoritarismo e arrogância é de maior importância que a acção moderadora do presidente da república seja eficazmente sentida a todo o momento. No passado recente ocasiões houve em que o governo e a sua maioria impuseram a sua vontade por cima de normas existentes. A decisão do tribunal constitucional, anos depois, não obstou os prejuízos dos contribuintes com o pagamento de impostos ilegalmente lançados. Uma acção atempada do PR a pedir fiscalização preventiva da lei teria dissipado dúvidas e evitado perdas apreciáveis a consumidores e empresas.

O escopo de actuação do novo presidente vai alargar-se no sector de Justiça. Com a revisão da Constituição de 2010 o presidente deixou de nomear juízes. O PR passou a escolher o presidente do STJ de entre os juízes desse tribunal e a nomear o presidente do conselho superior de magistratura. Com esses dois actos o mais alto representante da nação relembra aos juízes que a justiça é feita em nome do povo. Exigem-se competência, celeridade e respeito pelos direitos para que a justiça não seja denegada e sirva a todos.

A adequação das forças armadas ao papel constitucional deverá ganhar um outro ímpeto. O presidente da república é o comandante supremo das forças armadas e preside o Conselho Superior de Defesa. Mostra-se fundamental a clarificação da missão das forças armadas de modo a evitar excessos, atitudes e posicionamentos pouco consentâneos com tradições republicanas. A nomeação de um novo Chefe de Estado Maior poderá ser uma oportunidade para se renovar a cultura militar num sentido que dignifica as forças armadas e assegura o cumprimento da sua função constitucional.

Com a posse do PR termina o ciclo eleitoral para os próximos cinco anos, um quinquénio que já se configura dificil, complicado e imprevisível nos seus contornos. O mundo hoje, dez anos após o ataque terrorista a Nova York e três anos a tentar escapar à Grande Recessão, está perante um ambiente complexo marcado por fenómenos tão diversos como crise da dívida soberana, aumento do desemprego estrutural na Europa América e nos Estados Unidos, emergência de novas potencias económicas e ameaças climáticas poderosas. Confrontar os desafios do futuro para melhor aproveitar as oportunidades que surgirem exige instituições maduras. Que a posse do novo presidente seja um passo significativo nesse sentido tão crucial para a Liberdade e prosperidade da nação.

Editorial do jornal expresso das ilhas de 7 de Setembro de 2011

quarta-feira, agosto 31, 2011

Recordar o 31 de Agosto de 1981 - Uma questão de dignidade e justiça

Há trinta anos, no dia 31 de Agosto de 1981, centenas de pessoas marcharam na Ribeira Grande, S. Antão contra a reforma agrária de um governo sem legitimidade democrática. Foram recebidas com disparos da tropa e do embate resultou um morto. Seguiram-se prisões, torturas e julgamento em tribunal militar de civis que simplesmente queriam exercer direitos que hoje todos os caboverdianos tomam como garantidos: liberdade de expressão, liberdade de reunião e de manifestação. Foi-lhes negado o direito à vida, à liberdade e a serem julgados por tribunais independentes. Não eram cidadãos do seu próprio país. Quando se revoltaram viram-se à mercê de um Estado todo-poderoso que podia agir sem os constrangimentos da Lei e da Moral.

A luta pela cidadania teve que esperar longos anos. A seguir ao 31 de Agosto a opressão aumentou. O efeito sentiu-se nas eleições de 1985. Foi precisamente nas localidades em S. Antão mais sofridas que o então partido-estado recebeu 96% dos votos, uma taxa superior à média nacional de 94%. Mas o espírito não morreu e assim que as pessoas vislumbraram uma fresta no edifício do Poder desferiram um golpe demolidor. O PAICV não conseguiu eleger um deputado em S. Antão nas eleições pluripartidárias de 13 de Janeiro de 1991. A energia então libertada foi a mesma que iria motivar a adopção da Constituição de 1992 onde os direitos de cidadania de todos os caboverdianos no território nacional e na diáspora ficaram consagrados para a posteridade.

Factos recentes mostram que ainda existem entraves ao exercício pleno da cidadania. O envolvimento ostensivo do Primeiro-ministro, membros do governo e altos dirigentes da Administração e de institutos e empresas públicas na campanha pelo cargo suprapartidário de presidente da república chocou muitos na sua dignidade de cidadãos. A violência das acusações lançadas contra adversários políticos fez renascer o medo e relembrou actuações políticas causadoras de muito sofrimento. As ameaças vindas de altos dirigentes de demitir ou forçar renúncia de cargos de correligionários que dissentiram em matéria presidencial revelam a intolerância institucionalizada contra manifestações de pluralismo.

Cabo Verde continua susceptível a práticas antidemocráticas. Diferentemente de outras sociedades que fizeram a transição para a democracia não desenvolveu certas imunidades. Olha para o lado quando se manipulam politicamente crianças e jovens. Cala-se perante a flagrante partidarização da administração pública. Tolera que se explore relações de dependência do Estado para extrair votos. Já ninguém consegue 90% dos votos mas eleições ganham-se às vezes por diferenças providenciais.

Assim é porque se politiza o passado. Aceita-se normalmente o expediente politiqueiro de trazer matérias do passado para o debate político em resposta a acções de fiscalização e responsabilização do governo. Partidarizam-se datas e acontecimentos históricos. O ambiente polarizado que daí resulta desmotiva a participação dos cidadãos, prejudica a discussão do presente e do futuro do país e impede a nação de adquirir as defesas contra tentações antidemocráticas.

Neste trigésimo aniversário, recordar o 31 de Agosto não é matéria de despique político. É uma questão de dignidade e justiça. A evocação dos sacrifícios de outrora deve ser motivo para unir a nação na condenação da arbitrariedade e da prepotência e na valorização do núcleo de direitos que faz de cada caboverdiano um cidadão livre no seu país.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 31 de Agosto de 2011

sexta-feira, agosto 26, 2011

Cidadania vence

Jorge Carlos Fonseca vence na 2ª volta as eleições presidenciais de 2011 com uma margem sobre o adversário de mais de 15 mil votos. A vitória de JCF contrariou sondagens sucessivas feitas nos últimos meses que previam que no caso de passar à segunda volta dificilmente conseguiria bater qualquer dos outros dois candidatos. A renovação do espírito de cidadania verificado nestas eleições certamente teve um papel na alteração do ambiente político inicial. E o inesperado aconteceu para júbilo e alívio de muitos.

O protagonismo excessivo do Governo e do Estado provocou um súbito despertar cívico. Os métodos utilizados em granjear influência política com o objectivo de atingir objectivos eleitorais fizeram soar os alarmes. Falou-se em compra de votos, em manipulação de consciências e em ameaças de perda de trabalho e de demissão de cargos. Viu-se por todo o lado a presença forte de membros do governo, de altos funcionários e de dirigentes de empresas e institutos públicos em campanha eleitoral a favor do candidato de preferência do partido no Governo. E o surpreendente colapso nas urnas da candidatura de Aristides Lima veio relembrar a eficácia dos métodos do Poder em fazer valer a sua vontade particularmente junto dos mais vulneráveis.

A reacção popular à visível arrogância do Governo sentiu-se na segunda volta. O número de votantes aumentou em quase 20 000 e tudo indica que massivamente escolheram JCF. Uma parcela importante dos outros candidatos também se juntou a JCF em protesto contra a utilização de recursos e da autoridade do Estado numa eleição suprapartidária.

O impulso recebido por esta vaga de cidadania reforça extraordinariamente o mandato de quem já tinha proclamado que o seu caderno de encargos é a Constituição. De facto, os cidadãos caboverdianos mostraram-se nestas eleições revoltados contra o uso abusivo do poder do Estado para forçar lealdades e punir adversários políticos. Mostraram-se também indignados contra a injustiça de obrigar as pessoas vulneráveis a dar votos e apoio político em troca do que recebem do Estado e de outras entidades subsidiadas por fundos públicos. Ao terceiro presidente da II República caberá velar para que Cabo Verde continue a ser uma “república de cidadãos livres” e não de cidadãos de segunda classe como nos regimes de partido-Estado.

A percepção geral dos vinte anos da II República é que o exercício do cargo do PR não tem sido pleno no sentido de fornecer checks and balances ao sistema, de contribuir para que todos os actores se revejam no regime constitucional vigente e de ser uma força motriz e orientadora do desenvolvimento e aprofundamento institucional necessário à consolidação da democracia. Há que dar um outro conteúdo à actuação do PR, mais conforme com as exigências constitucionais. Espera-se pois do presidente eleito um novo e mais activo protagonismo no equilíbrio do sistema democrático, no aprofundamento da institucionalização do país e no desenvolvimento de uma cultura de Constituição e de respeito pelas leis.

Editorial do jornal Expresso das ilhas de 24 de Agosto de 2011

sexta-feira, agosto 19, 2011

Evitar derrapagem nas instituições

Na sequência da primeira volta das eleições presidenciais ruiu o muro de silêncio à volta do processo eleitoral em Cabo Verde. Finalmente fizeram-se ouvir as vozes que denunciavam compra de votos, manipulação de consciências e uso indevido de recursos do Estado. Testemunhos de destacados militantes do partido no governo, constatações de observadores internacionais e a indignação de muitos cidadãos convergiram em apontar que algo vai mal no seio das instituições do Estado democrático.

Há muito que se vêm manifestando sinais de erosão das instituições. O governo ignorou manifestações de má governação enquanto procurava aproveitar-se politicamente da relativa boa imagem do país no estrangeiro. Tardou em reconhecer que a sistemática fuga dos dirigentes à responsabilidade, a partidarização da função pública e a negação da meritocracia acabaria por ter um efeito nocivo tanto na sociedade como no Estado.

A existência agora revelada de compra de votos ou de um “mercado de votos”mostra como a sociedade vem sendo roubada da sua autonomia e minada pela criação de redes de dependência. Em vez de sociedade civil autónoma, há uma sociedade onde pontificam grupos, associações e redes sociais alimentados por fundos do Estado. Precisamente o que Hillary Clinton denunciou em Julho de 2010 na Cracóvia: “democracias em que governantes esforçam-se por criar a sua sociedade civil, uma colecção de ONGs, associações comunitárias, organizações juvenis, etc., dependentes em recursos e instrumentos de uma agenda maior de controlo social”.

As transferências feitas a municípios e associações nas vésperas das eleições, confirmadas na semana passada por dirigentes do partido no Governo, indiciam métodos utilizados. Chegar às pessoas via câmaras nos municípios onde o poder é da mesma cor partidária do governo e via associações nas câmaras de oposição, em violação do princípio da imparcialidade e de isenção no tratamento dos cidadãos e de não favorecimento em virtude de opções político-partidárias. Com isso perde-se o sentido do interesse público, substituído pelo interesse do partido, e as instituições e a cidadania são enfraquecidas.

A fragilidade das instituições torna-se cada vez mais notória seja em lidar com situações novas seja ainda em potenciar o conhecimento, a energia e criatividade dos seus novos quadros. A administração pública não se torna mais competente, o fornecimento de bens públicos como água e electricidade não inspiram confiança, a Justiça é morosa, a polícia não é mais eficiente e a qualidade tarda a chegar às escolas e universidades. As próprias Forças Armadas dão sinais complicados. O ataque sem qualificação dirigido ao Major Adriano Pires pelo Gabinete do Chefe de Estado Maio das Forças Armadas no jornal “A Nação” é um exemplo disso.

Problemática também se revela a inacção e o silêncio dos órgãos da direcção do Estado. Ainda não há, por exemplo, reacção da parte da procuradoria-geral da república perante acusações de compra de votos. O governo não justifica transferências vultuosas de fundos para particulares nas vésperas de eleições, em violação do código eleitoral. E os órgãos de soberania não se pronunciam face ao insólito da resposta do comando das Forças Armadas às críticas de um cidadão.

No actual contexto as eleições presidências do próximo domingo dia 21 ganham uma outra importância e pertinência. Urge evitar derivas das instituições que as afastem da realização do interesse público. O presidente da república tem umpapel essencial em assegurar-se da conformidade do funcionamento das instituições com os princípios constitucionais para que as práticas de boa governança sejam adoptadas, para que não haja discriminação e para que todos os cidadãos se sintam livres na escolha dos governantes.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 17 de Agosto de 2011

quinta-feira, agosto 11, 2011

Exorcizar o MEDO para ganhar o futuro

Em mensagem dirigida à nação na véspera das eleições de 7 de Agosto o Presidente da República veio relembrar os caboverdianos que “a livre escolha do eleitor é o princípio básico para a expressão verdadeira da vontade popular”. O PR mostrava a sua preocupação com as denúncias públicas de compra de votos, compra de consciências e abusos de poder provenientes das diferentes candidaturas. A condenação pelo PR de “quaisquer formas de pressão ou condicionalismos extra-eleitorais” deixou campo livre para um confronto sem subterfúgio com essa doença da democracia caboverdiana que os observadores da CEDEAO chamaram de “manipulação de consciência”.

Aberta a caixa de Pandora, candidatos, líderes políticos, cidadãos comuns apressaram-se a revelar casos suspeitos de pressão sobre os eleitores. O próprio Primeiro-ministro teve que se render ao engrossar das denúncias e a referir-se explicitamente à necessidade de intervenção de “autoridades judiciais” para se apurar a verdade dos factos. Pela primeira vez a Nação enfrentava a questão da compra de votos, várias vezes levantada em outros pleitos eleitorais, sem que tal fosse desconsiderada como manifestação de “dor de cotovelo” de perdedores.

No processo constatou-se que há medo na sociedade caboverdiana: medo de perder o ganha-pão, medo de ser preterido no trabalho e medo de ver passar ao lado possibilidades de carreira e de nomeação para cargos. A atitude de Aristides Lima em levar à frente a candidatura presidencial não obstante as preferências do seu partido inspirou outros a se libertarem do medo e em denunciar práticas de violação de direitos por razões políticas e eleitorais.

Quis-se saber se um militante de partido é ou não livre de se candidatar para um cargo suprapartidário, de apoiar quem candidate e mesmo de votar no candidato da sua escolha. A partir daí estava lançada a busca de outras amarras que condicionam a capacidade de escolha do eleitor caboverdiano. Pergunta-se se a dependência de serviços sociais, relações de trabalho e mesmo dívidas de gratidão estarão a ser utilizadas para fazer o cidadão dobrar-se e legitimar com seu voto o poder de alguns.

O medo amplifica a sensação de precariedade de existência. Faz as pessoas receosas do futuro e presas fáceis de anúncios demagógicos de grandes perigos em caso de mudança. As eleições caboverdianas têm sido marcadas por factos bombásticos especialmente fabricados para explorar o medo do amanhã. Na última campanha viu-se como se trouxe à baila suspeições sobre a morte de Cabral. Já quase no fim ergueu-se o espectro de uma conjura de personalidades de várias proveniências políticas e partidárias para, pela via uma eleição suprapartidária, derrubar um governo maioritário. Noutras ocasiões usaram-se tácticas similares como acusações de ligação a narcotraficantes, sabotagem na Electra e perda de credibilidade externa para pressionar o voto num determinado sentido.

Mantém-se o clima de medo partidarizando tudo, até mesmo eleições suprapartidárias, e concentrando o essencial do discurso político sobre disputas do passado. Todos ficam apanhados e em consequência, o futuro passa ao lado. Já dizia Churchillque não devemos deixar as nossas discussões sobre o passado dominar o presente porque assim perdemos o futuro”.

É tempo de acabar com esse estado de coisas. A 2ª volta das presidenciais é uma oportunidade única dos cidadãos fazerem o medo dissolver no ar. Basta ir às urnas sem as grilhetas da filiação partidária e condicionalismos outros e escolher quem pelo seu carácter, percurso e fidelidade aos princípios e valores constitucionais melhor se posiciona para defender direitos e regras do jogo democrático. Basta dar o voto livre a quem mais confiança poderá transmitir à nação nas duras lutas de adaptação às incontornáveis mudanças que se verificam no mundo. Cabo Verde precisa que os seus filhos não receiem o futuro e ponham toda a sua energia e criatividade em construir, na Liberdade, a prosperidade para todos.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 10 de Agosto de 2011

sexta-feira, agosto 05, 2011

Travões precisam-se

Diz o Lord Acton que o Poder corrompe e que o Poder absoluto corrompe absolutamente. Governos por longos períodos e pela mesma força política tendem a tornar-se cada vez mais arrogantes e mais autistas. Os 5 meses do 3º mandato do PAICV confirmam a tendência. Especialmente revelador de futuros excessos tem sido a forma como a liderança do partido no governo trata colegas do partido apoiantes de uma alternativa da mesma família política nas presidenciais.

A dureza de tratamento é sintomático do quão importante se tornou ter um presidente da república “em sintonia com a liderança do partido”. Nunca antes no Cabo Verde democrático o líder partidário no governo foi tão ostensivo em impor o seu candidato a presidente da república. Até parece que há um novo entendimento do exercício do cargo. Quer-se provavelmente cooperação e sintonia com objectivos partidários, quando o que a Constituição estabelece é que o Presidente não governa e seja árbitro e moderador do sistema.

Usar os recursos e autoridade do Estado para fazer prevalecer uma visão contrária do Presidente da República prejudica o candidato e quase que o desqualifica aos olhos dos eleitores, porque o faz refém de interesses que em consciência não pode satisfazer enquanto PR. Com tais actos perde-se mais em perturbar o sistema político do que presumivelmente podia-se ganhar em estabilidade governativa. Estabilidade, quem de facto a garante é a maioria no parlamento. O PR só tem margem para interferências nos casos em que o suporte parlamentar já foi comprometido e há impasse nas instituições.

Ter-se um PR algo diminuído no seu papel de guardião da Constituição fragiliza a democracia particularmente quando é notório o enfraquecimento da Assembleia Nacional enquanto centro do contraditório e viveiro de propostas alternativas para o país. No último debate sobre o Estado da Nação, o Primeiro Ministro apresentou a sua verdade como sendo nem “rosa nem negra”. Eventuais críticas só podiam vir de detractores brandindo as suas análises negras da realidade do país. Com o debate ferido de morte, ninguém se surpreendeu quando no discurso do fecho disse que das ideias da Oposição, umas deviam-lhe direitos de autor e outras simplesmente não serviam.

A Nação entretanto não ficou esclarecida. A questão do fornecimento de energia e água que todos os dias prejudica as pessoas e atrasa o país ficou por responder. O governo não transmitiu confiança que irá lidar resolutamente com os problemas que enfermam a polícia e diminuem a sua capacidade de confrontar os desafios actuais e futuros de segurança. Ficou-se por saber como foi o ano escolar e qual o retorno em aproveitamento, qualidade e empregabilidade dos extraordinários investimentos e sacrifícios que indivíduos, famílias e o Estado fazem no sistema de ensino. O regozijo algo deslocado pela “performance” do país em tempo de crise não deixou espaço para inventariar opções e preparar a Nação, agora país de rendimento médio, para o mundo pós-crise.

Governar em democracia passa por criar uma vontade política colectiva que se revê em princípios, ideias e objectivos. Isso constrói-se com verdade, honestidade e transparência na acção. Não com máquinas de propaganda e procurando enredar as pessoas, particularmente as vulneráveis, em relações de dependência que diminuem a sua condição de cidadão. Particularmente preocupantes nos últimos dias têm sido as denúncias vindas de todos os quadrantes políticos do inquinamento do processo eleitoral através de compra de consciências, compra de votos, medo de perda de emprego e ameaças de demissão de cargos públicos.

Por tudo isso, a eleição do Presidente da República no próximo domingo, dia 7 de Agosto, tem uma importância acrescida. É também uma forma de pôr um STOP à corrida desenfreada para a concentração do Poder num grupo partidário cujos excessos são hoje evidentes para todos. O acto desnecessário de acabar com o programa Visão Global é ilustrativo do que acontece quando se cai na tentação do poder absoluto. Travões precisam-se.

Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 3 de Agosto de 2011

quarta-feira, julho 27, 2011

Ameaças ao Estado de Direito

Indivíduos e grupos vêm colocando seriamente em causa um dos atributos fundamentais do estado que é o deter o monopólio de violência. Hoje estão ao alcance de pessoas e pequenas organizações armas sofisticadas, meios de comunicação modernos e conhecimentos especializados de guerra que outrora só se encontravam na posse de certas instituições do estado. Experiências de guerra são compartilhados via internet por combatentes informais em diferentes paragens tornando-os em ameaças formidáveis para as forças de segurança nacional. O resultado é qualquer estado ficar desnorteado perante a fúria destruidora que de repente lhe pode cair em cima.

Na semana passada um duplo ataque terrorista na Noruega perpetrado aparentemente por um indivíduo deixou mais de 90 mortes e uma nação subjugada pela dor do desaparecimento súbito de quase uma centena dos seus jovens. Também aqui em Cabo Verde o ataque contra o Juiz do 3º Juízo Crime da Praia causou consternação geral. O choque sentido não derivou somente da tentativa de assassínio de uma pessoa em plena luz de dia. Todos viram-no também como um acto de terror, um autêntico atentado ao pilar do Estado de Direito que são os tribunais e os seus titulares, os juízes. Anos atrás um procurador da república, a mulher e filho foram alvejados e feridos à porta da casa. E ao longo dos anos ameaças dirigidas a magistrados vem-se tornando frequentes.

Nenhum estado consegue ficar completamento isento de ameaças semelhantes. Mas o nível de exposição a perigos diversos depende muito da adequação das políticas e estratégias de segurança à sua realidade específica e também da qualidade e probidade das suas instituições policiais. Para os enfrentar conta muita a capacidade de analisar, identificar e mesmo antecipar problemas e o uso de tácticas adaptadas ao contexto sócio-cultural.

A abordagem do Governo destaca-se, por um lado, por demasiada condescendência para com interesses corporativistas nas forças de defesa e de segurança. E, por outro, por ceder a tentações securitárias, que tem desembocado em excessos de violência policial e consequente erosão dos direitos dos cidadãos. Nessa qualidade revela-se um impedimento a um controlo social, político e legal mais apertado da actividade policial. A agravar a situação juntam-se dificuldades sérias no controlo efectivo de fronteiras nacionais, tornada porosa por tratados regionais de livre circulação, e a falta de vontade política em legislar em matéria de uso, venda e porte de arma. Neste particular é próprio Chefe de Estado Maior das Forças Armadas, em entrevista a um jornal da praça, que aponta para casos de civis na posse de armas, condição, segundo ele, que existe desde da independência nacional e da proliferação de milícias populares por todo o território nacional.

Segundo relatos da imprensa o alegado atirador contra o juiz teria sido um efectivo da Legião Estrangeira Francesa, ou seja um especialista de armas. Isso chama a atenção para a situação cada vez mais frequente de muitos estados enfrentarem indivíduos sofisticados no manuseamento de armas treinados por eles nas suas forças especiais. O problema já existe cá entre nós. Vários soldados a quem foi dado treino especializado enveredaram-se por actividades criminosas com uma sofisticação inesperada. Não se fez um plano para, por exemplo, os enquadrar na polícia ou em empresas de segurança e ficaram sem ocupação mas bem treinados em tácticas perigosas para a vida e bens dos cidadãos. O resultado vê-se.

Crimes acontecem, perigos graves podem sempre surgir mas o sentimento de insegurança só se apodera das pessoas quando a confiança deixa de existir ou é abalada profundamente. Sem confiança nas instituições, nas palavras dos governantes e nos actos concretos do dia-a-dia dos agentes da ordem pública, dificilmente se estabelece a relação adequada entre a comunidade e a polícia que viabiliza no essencial todo o plano de segurança. No mundo de hoje, onde as ameaças navegam indistinguíveis pelo meio da população, a efectividade da polícia depende da cooperação que souber granjear junto da comunidade para as puder identificar em tempo útil. Para isso é imprescindível o respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos, a defesa das instituições do estado de direito e o cultivo do orgulho e do espírito do bem servir entre todos os elementos da polícia.

Editorial do Jornal “Expresso das Ilhas” de 27 de Julho de 2011

quarta-feira, julho 20, 2011

Eleição presidencial crucial

No dia 7 de Agosto o povo vai às urnas para eleger o presidente da república. Com as eleições presidenciais fecha-se o ciclo eleitoral dos órgãos da direcção política do Estado. Já em Fevereiro último tinha sido eleita a Assembleia Nacional, enquanto órgão representativo do pluralismo e da diversidade de interesses dos cidadãos. O Governo foi então atribuído ao PAICV que conseguiu uma maioria de 38 deputados contra os 32 do MpD e os 2 da UCID. Chegou agora o momento de eleger o presidente da república que melhor encarne a nação unida nos princípios e valores que ela própria, soberanamente, consagrou na Constituição.

A eleição do presidente da república distingue-se das eleições dos outros órgãos de poder político. Os proponentes são simples cidadãos diferentemente do que acontece com o parlamento onde só partidos políticos apresentam de listas de deputados e também do que acontece nos órgãos autárquicos onde candidaturas podem vir de partidos políticos e de grupos de cidadãos. Compreende-se que assim seja, considerando que as causas do presidente visam fortalecer a unidade da nação e não a polarizá-la ou a oferecê-la opções alternativas de acção. O presidente da república não governa. É o guardião da Constituição, o árbitro e o moderador do sistema político.

A governação do país envolve execução de políticas cujo processo de definição e confirmação implica o exercício do contraditório ao longo de toda a sua extensão. São garantes desse exercício fundamental em democracia a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão, a existência de partidos políticos, os direitos das minorias e a independência dos tribunais. A existência de dissenso é fundamental para a dinâmica, a criatividade e a renovação do sistema. Mas só cumpre o seu papel na tranquilidade e de forma livre e solidária se for preservado o consenso quanto ao essencial que une a Nação.

O Presidente da República tem um papel central na conservação desse consenso indispensável ao progresso na Liberdade. Velar pelos direitos dos cidadãos e assegurar que todos os órgãos de soberania e as instituições funcionem plenamente no âmbito das suas competências e no respeito pela Lei é o que se exige dele. A sua contribuição para estabilidade da governação provem não de uma suposta colaboração com o governo mas sim de certificar-se do cumprimento das regras do jogo democrático e de que os cidadãos não sofrem abuso de Poder e não lhes é negada Justiça.

A democracia caboverdiana com vinte anos é muito jovem. As instituições mostram as marcas da luta renhida que ainda são travadas para se imporem num ambiente ainda com vestígios de culturas políticas iliberais e avessas ao estado constitucional. E notam-se na presidência da república. O exercício do cargo tem ficado aquém do esperado e do que o sistema político exige. Razões são várias, entre elas destacam-se as lealdades partidárias que se manifestam em acções e omissões na relação com o governo. Uma oportunidade se abre com as próximas eleições para se eleger um PR em paz com a Constituição e acima de tentações de colaboração ou de oposição ao governo para satisfazer antigos correligionários do partido.

Com a crise que assola o mundo e em particular os nossos parceiros na União Europeia urge que se adopte a atitude certa na mobilização da energia da nação para enfrentar os desafios do futuro. É cada mais evidente que isso não tem sido feito: Permite-se que se arraste por mais de dez anos o problema crucial do fornecimento de água e energia. A insegurança persiste, não obstante os enormes gastos públicos, e há sinais preocupantes que as próprias forças policiais deixam-se corroer. Também constata-se que, apesar dos níveis elevados de frequência, os jovens terminam os estudos sem as competências que lhes podia garantir emprego e ser um factor de competitividade do país.

O jogo democrático não tem feito valer todas as suas virtualidades. Tem faltado a confiança que o cumprimento das regras e a clara assunção das responsabilidades dentro do sistema político podia ter criado. Em vez de cooperação, inclusão e solidariedade vem-se insistindo num jogo de soma zero que aumenta a desigualdade e promove a ineficiência no uso de recursos e a incompetência na execução. Do novo presidente da república a ser eleito no dia 7 de Junho espera-se um novo comprometimento e engajamento no reforço do que nos distingue como nação e que seja garante da nossa caminhada na Liberdade e no Pluralismo, rumo à prosperidade.

Editorial do Jornal “Expresso das Ilhas” de 20 de Julho de 2011

quarta-feira, julho 13, 2011

Cidade administrativa e centralização

O Primeiro-ministro José Maria Neves confirmou a intenção do governo em construir uma cidade administrativa na cidade da Praia no valor de 220 milhões de dólares. A ideia de um centro administrativo na capital reunindo vários ministérios, institutos serviços e outras entidade do estado tinha sido aflorado a quando da visita do presidente Lula da Silva há um ano atrás. Imediatamente anunciado pelo governo, que então se encontrava em pré-campanha para as legislativas, o projecto da cidade administrativa ganhou um outro fôlego nas últimas semanas. Curiosamente isso aconteceu a meio de umas outras eleições, as presidenciais.

A ideia de construção de raiz das cidades administrativas relembra os grandes projectos estratégicos de países como Estados Unidos da América, o Brasil e a Nigéria na edificação das suas respectivas capitais em Washington, Brasília e Abuja. Foram projectos considerados megalómanos mas que eventualmente se justificaram com a necessidade de dar ao Estado Federal um símbolo, um locus, onde a nação na sua globalidade podia rever-se. Nas declarações dos governantes caboverdianos não se vislumbra que tenha sido essa a razão de ser para o projecto. Aliás está projectada para ser mais um espaço estatal na cidade-capital.

Pergunta-se então qual é estratégia por detrás da decisão do governo. O Primeiro-ministro explica em declarações à imprensa que é um “passo importante” para garantir a transformação na Administração Pública, que se quer “mais célere e mais eficaz”. No mesmo sentido o Secretário de Estado da Administração Pública diz acreditar que “será um empreendimento fabuloso tanto para os privados, quanto para os utentes que estarão mais próximos de todos os serviços”. Ou seja investe-se 220 milhões porque de alguma forma espera-se que os serviços da administração caboverdiana tornar-se-ão mais eficientes com a proximidade uns dos outros. O governo ainda encontra razões para o projecto fazendo contas nas rendas que deixaria de pagar mudando as repartições para a cidade administrativa.

Nos cálculos da construção de uma cidade administrativa no Estado das Minas Gerais no Brasil entrou a projecção no crescimento em 12% do PIB que o projecto iria induzir. Não só pelo efeito de arrastamento que teria na economia do Estado afectando a construção civil, indústrias e serviços locais como também no que iria servir de atractivo para os investimentos privados. Nos cálculos dos governantes caboverdianos tais externalidades dos investimentos públicos parecem não contar. Fica-se com a sensação que o que importa é tomar o crédito estrangeiro, nem que no essencial os trabalhos fiquem à conta de empresas estrangeiras, e depois mostrar obra feita. Depois das inaugurações é rezar para que não sejam elefantes brancos.

No caso do projecto da cidade administrativa a insensibilidade do governo para com a problemática urgente de combater o desemprego e reforçar o tecido empresarial é reforçada pelo que é aparentemente o desconhecimento dos efeitos centralizadores da do próprio projecto. Ou seja no momento em que toda a classe política fala de necessidade de um reforço de descentralização do Estado e de regionalização, o Governo envida esforços para na prática acelerar-se o processo de centralização. Depois de construídas estruturas próprias dos serviços estatais muito dificilmente serão deslocalizados para outras ilhas e pontos do território nacional.

A cidade administrativa na Praia irá acelerar a centralização do país. Aumentará os desequilíbrios na ilha de Santiago e será factor de crescimento de migrações internas em direcção á Capital prejudicando a retoma das dinâmicas económica social e cultural das outras ilhas. Em consequência diminuirá a diversidade da nação tornando todos mais pobres. Por outro lado, o crescimento rápido da Praia vai tornar ainda mais intratáveis os problemas de urbanismo, saneamento, de energia e de criminalidade. É evidente que perante este cenário negro cujos contornos já se notam com o actual nível de centralização, é fundamental que qualquer passo em frente para implementar projecto de tal envergadura seja submetido escrutínio sério e aprofundado de todos os caboverdianos.

Editorial do Jornal “Expresso das Ilhas” de 13 de Julho de 2011

quarta-feira, julho 06, 2011

Nobreza no combate pela Liberdade

Proclamação da Independência é um grito de liberdade e uma manifestação básica de dignidade. Afirma com veemência o direito de não sofrer opressão dos outros e tem como pressuposto essencial o princípio que todos os homens são iguais. Por tudo isso não deixa espaço para alguns ditarem o que é a liberdade, que formas pode assumir e que etapas é obrigada a respeitar. A Independência é sequestrada e desviada da sua razão última sempre que é invocada para legitimar tiranias, justificar a opressão e desresponsabilizar insistindo numa pseudo ética de intenções.

Na declaração de Independência dos EUA há 235 anos o escopo do que então se proclamava ficou bem claro: falava-se da existência de direitos inalienáveis do indivíduo a começar pelo direito á vida, à liberdade e á procura de felicidade que nenhum poder legitimamente devia atropelar. Também se referia ai ao direito dos povos em ter governos por eles escolhidos e não impostos por forças exteriores. E ainda ao direito de revolta contra governos que manifestassem ser destrutivos para o povo e para a nação na sua ânsia de se perpetuarem no poder.

A promessa de liberdade na proclamação de independência cria uma dinâmica e uma tensão construtiva que não consegue alívio até que se concretize na garantia de exercício dos direitos fundamentais dos indivíduos, no respeito pelos direitos das minorias e na instituição plena da democracia. Nos Estados Unidos da América o conflito entre as promessas da Declaração da Independência e a realidade da escravatura teve que ser resolvida. E foi, pela via de uma guerra civil violenta, sangrenta e que custou muitas centenas de milhares de vidas. O presidente Lincoln, para forjar uma União mais perfeita da Nação americana tornou inseparáveis o respeito pelos direitos do homem e a existência de um governo do povo, pelo povo e para o povo. Ainda hoje é relembrado por isso.

Muitos poucos dos que posteriormente se juntaram às lutas pela independência podem reivindicar o mesmo. Em muitos países, a promessa da liberdade no momento de independência foi esvaziada primeiramente pelos que a protagonizaram. Na sua esteira sucederam-se ditaduras, opressão de minorias, guerras civis cruéis e assaltos indescritíveis à liberdade do cidadão comum. É evidente que por muito que façam para exaltar os seus feitos perante o mundo não se encontram no mesmo panteão onde estão os verdadeiros Combatentes da Liberdade.

Como podem ser lembrados se anos a fio esqueceram por completo que a independência antes de mais clama pelo reconhecimento “das opiniões, dos direitos e do patriotismo essencial dos outros”. Querendo poder acima de tudo afirmaram-se como os “sages” detentores da verdade absoluta. Arvoraram-se em pais da nação e protectores do povo. Não deixaram quaisquer dúvidas quem eram os únicos patriotas. Com tais pressupostos tudo se permitiram em nome da sua condição de força, luz e guia do povo.

Hoje povos em todos os continentes conhecem a verdade. Sabem que a promessa de liberdade demasiadas vezes é morta logo no dia da independência. Cabo Verde teve de esperar mais de 15 anos para a ver cumprida. Por isso, quem a História regista como combatentes da liberdade são líderes como o Nelson Mandela. Em nome da dignidade abriu o caminho para ao reconhecimento da igualdade de todos na Africa de Sul do apartheid e promoveu a reconciliação nacional. Chegado ao Poder lançou as bases da construção de instituições sólidas que garantem para a posteridade o exercício das liberdades, a protecção das minorias e uma governação com respeito estrito pela Constituição e as leis da república.

Editorial do Jornal “Expresso das Ilhas” de 6 de Julho de 2011

quarta-feira, junho 29, 2011

Cansaço já nos cem dias?

No dia 30 de Junho completam os primeiros 100 dias do terceiro governo do Dr. José Maria Neves. O balanço não é positivo. Em vez de um governo enérgico, imaginativo e confiante depara-se com um quadro que lembra governos em fim de mandato: Líder contestado, população descrente na capacidade do governo em resolver problemas básicos de emprego, segurança e energia e água; promessas como o do 13º mês simplesmente abandonadas.

Nas democracias o período inicial do mandato é escrutinado para análise. Procuram-se indícios das políticas que vão marcar a legislatura. Pressentem-se o comprometimento e a energia que as grandes questões irão merecer. Avalia-se a destreza, segurança e lucidez na arte de reunir vontades para concretizar os objectivos e metas escolhidos. A própria Oposição e a comunicação social dão um tempo de graça para se ver o que novo governo é capaz.

Findos os cem dias do governo do PAICV notam-se sinais de fadiga e desalento. A continuidade de políticas, de estruturas e de personalidades no executivo não dá confiança que alterações significativas verificar-se-ão no emprego, na diminuição de desigualdade social e na contenção da centralização do país. Por outro lado, a crise internacional não parece ter despertado a liderança para os novos desafios da economia global. Insiste-se com o “Estado Providencial” mantem-se a rotina de acusar os adversários de deslealdade e de tentar destruir esse mesmo estado. Quando confrontado com os riscos de recorrer a empréstimos externos para impulsionar o crescimento o governo é ainda incapaz de apontar os investimentos privados que vão substituir os investimentos públicos e suportar as taxas altas de crescimento necessárias ao pagamento da dívida e à elevação do nível de vida.

A crise de água que atingiu a Praia durante semanas e em menor escala várias outras ilhas, acompanhada das exasperantes cortes de energia, abalou consideravelmente a confiança das pessoas no governo. O capital político recebido das eleições foi bastante delapidado. Ninguém tem a certeza que a curto/médio prazo se irá encontrar solução duradoira para a questão energética. As proclamações sucessivas à volta das energias renováveis não satisfazem. Todos têm alguma noção que tais alternativas pela sua natureza variável e intermitente dificilmente constituem a “mãe de todas as soluções” para a Electra.

Muito capital político perdeu-se na forma como o partido no governo lidou com a questão presidencial. Os ataques virulentos desferidos contra o candidato Aristides Lima, do mesmo quadrante político do PAICV mas não apoiado pela cúpula, tiveram o efeito de desmobilizar pessoas que antes provavelmente se sentiram tentadas a um maior engajamento no pós-eleições. A gestão inepta, arrogante e facciosa de algo que podia ser um facto normal da vida dos partidos democráticos deixou muita gente estupefacta e revoltada.

A discussão do Orçamento do Estado na Assembleia Nacional veio confirmar que, de facto, com o terceiro mandato pouca coisa mudou. Mesmo em momento de vitória eleitoral clara a retórica usada contra a Oposição visa excluí-la do debate político, tornar ilegítima as ideias e questionar as suas razões. O país fica suspenso, parado no tempo, sem puder discutir as opções do presente e futuro porque o Governo está ocupado em fustigar a oposição com supostos erros cometidos na década de noventa.

Ter um governo num terceiro mandato intolerante perante dissensões internas, intransigente com os adversários políticos e refractário à real autonomia de centros de saber como as universidades não pressagia nada de bom para o país. A realidade mundial complexa e perigosa particularmente para pequenas economias como Cabo Verde exige da liderança nacional muita imaginação, flexibilidade e capacidade de aprender com os outros. Os 100 dias do Governo do dr José Maria Neves deixam antever sinais do que de pior quanto á arrogância, o autoritarismo e a intolerância terceiros mandatos podem brindar aos governados. Oxalá não seja assim. Para bem de todos e da república.

Editorial do Jornal “Expresso das Ilhas” de 29 de Junho de 2011

quarta-feira, junho 22, 2011

Insegurança aprofunda-se

Tráfico de armas parece que já é uma realidade em Cabo Verde. Informações vindas a público nas últimas semanas deram conta da existência de um comércio activo de compra e venda de armas de guerra envolvendo nacionais e estrangeiros. Duas constatações feitas nas operações de recuperação das armas emprestaram especial gravidade à questão: Ficou-se a saber que parte das armas no tráfico resultam de roubos feitos nos paióis da Forças Armadas. E que o Governo estava praticamente às escuras quanto à dimensão do problema.

Segundo a Inforpress as Forças Armadas conseguiram recuperar “70 pistolas makarov de calibre 9 mm, 17 metralhadoras AKM de calibre 7,62 mm, mais de duas mil munições reais, munições de pistolas Makarov, carregadores de AKM e cordão detonador utilizado para accionar explosivos”. Fontes militares confirmaram que “ainda falta muito material por recuperar”. Nas operações foram apreendidas armas diversas entre as quais 15 espingardas automáticas AKM que não constavam do arsenal das FA.

De todo este imbróglio várias questões se colocam. Uma é se o governo garante que as forças armadas têm os recursos materiais, humanos e institucionais para não só cumprir a sua missão de defesa nacional como também para impedir que as suas armas munições e explosivos caem nas mãos erradas alimentando o tráfico e fazendo escalar o nível de violência no país. Outra questão é em que medida a insistência em manter demasiado porosa a fronteira nacional tem inexoravelmente trazido para as ilhas os problemas graves de tráfico de droga, de armas e de pessoas que assolam os países da costa africana, a mais de 500km distante. Uma outra questão ainda é se os meios utilizados na investigação dos desvios de armas, no combate ao tráfico e na recuperação das armas trazem mais segurança para o país e para os cidadãos.

Notícias vindas a público revelam que as operações de recuperação das armas foram realizadas pelas forças armadas. Autoridades militares convidadas a fazer declarações para imprensa declinaram dizendo que as operações eram “secretas”. Informações citadas por órgãos de comunicação social dão conta que as FA teriam cercado bairros e feito buscas

domiciliárias. Em todos os relatos sobre a matéria não houve referência à presença da polícia nacional e nem se falou da polícia judiciária envolvida na investigação dos crimes. Da procuradoria-geral da república também não se ouviu nada, mesmo quando surgiram indícios que medidas coerção (sevícias e torturas) estariam a ser utilizadas nas investigações. Tudo isso é muito estranho e foge ao que se espera do normal funcionamento da república

O Governo tende a contornar a responsabilidade central do Estado em matéria de segurança sempre que é confrontado com as exigências dos cidadãos perante a violência urbana e outros crimes. Insiste na ideia “segurança partilhada”. E isso tem tido consequências. Diminui o nível de alerta das instituições de segurança perante as ameaças emergentes. Expõe as forças policiais a perigos inesperados como o de confrontar-se com elementos criminais munidos de armas de guerra. Sobrecarrega o tesouro público com pedidos de mais meios de armamento ou de unidades policiais especiais para fazer face a situações que só se tornaram graves porque não identificadas a tempo e inteligentemente confrontadas. E acaba por provocar a erosão dos direitos fundamentais dos cidadãos porque com a escalada de violência aumentam as possibilidades de abuso policial como aliás tem sido denunciado por entidades nacionais e internacionais.

Editorial do Jornal “Expresso das Ilhas” de 22 de Junho de 2011

quarta-feira, junho 08, 2011

Desresponsabilizar não rima com governar

É uma pergunta que devem colocar á administração da Electra e não ao Primeiro-ministro”. Foi assim que o PM respondeu ao jornalista que lhe colocou o problema angustiante de energia e água que os caboverdianos enfrentam no seu quotidiano e que para os praienses nas duas últimas semanas se tornou num verdadeiro pesadelo. A atitude displicente do PM em simplesmente “passar a bola” deixou o país perplexo. Todos intuem a dimensão e complexidade da questão e sabem que ultrapassá-la exige uma intervenção qualificada do Governo.

O Governo deixou arrastar por demasiados anos a situação de precariedade no sector. As consequências sentem-se designadamente na qualidade de vida das pessoas e na competitividade da economia. O diálogo descrito entre o PM e o jornalista ilustra muito bem o que tem sido a resposta do governo sempre que confrontado. Adia a questão ao mesmo tempo que procura desviar a atenção do público com novos anúncios, novos eventos e novas realizações. Mas os problemas não se esvaem simplesmente no ar. Permanecem e um dia há que os enfrentar.

A lição que chega de fora é que países e governos não podem esconder para sempre os desafios que a realidade mundial coloca às respectivas sociedades. Não podem impunemente iludir-se e iludir a nação que as dificuldades vividas ou emergentes acabarão por resolver-se por si. Um dia “alguém” vai acabar por aparecer, a bater a porta e a pedir contas ou como emissário do mercado de capitais ou do FMI. E aí não há escape possível e então há que confrontar as deficiências antes ignoradas, há que fazer as reformas que gritavam por ser feitas e há que mudar a atitude que todos complacentemente aceitam como natural e até “cultural”. Nas eleições de domingo passado Portugal finalmente aceitou mudar de rumo, como antes fizeram a Grécia e a Irlanda.

A história da Electra de há uns anos para cá tem sido uma história de equívocos e inverdades. A interferência do Governo na gestão da empresa seguiu interesses políticos de curto prazo com resultados desastrosos para o sector de energia e água, para a reputação da empresa e para competitividade da economia nacional. O que hoje se vive resulta de vários factores. Em particular dos persistentes défices tarifários que descapitalizaram a empresa, dos investimentos essenciais que não foram feitos no tempo próprio e da ausência de política energética que deixou a empresa sem norte. Mas de tudo isso o Governo vem se desresponsabilizando.

Passando a bola aos outros, culpando a oposição e mesmo inventando sabotadores pode-se segurar no Poder e mesmo ganhar eleições. Mas nem por isso os problemas desaparecem. Portugal teve de repetir eleições em menos de dois anos para finalmente estar em posição de se confrontar com a realidade das suas dificuldades.

Em Cabo Verde vive-se quotidianamente com as consequências da incompetência e desresponsabilização na gestão do sector de energia e água. Aos governantes caboverdianos recentemente eleitos para um novo mandato fica o ónus de provar que não estão a seguir a via do logro, das inverdades por razões de Poder. Têm que demonstrar que reconhecem os problemas e que são capazes de os resolver da forma a que o sector potencie a economia nacional e deixe de ser um travão para o investimento.

Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 8 de Junho de 2011

quarta-feira, junho 01, 2011

Por onde pára a autonomia universitária?

O Governo resolveu mexer com os estatutos da Universidade pública de Cabo Verde. No preâmbulo do decreto lei 23/2011 justifica a intervenção com a realização das eleições legislativas e com os compromissos assumidos com os caboverdianos no âmbito dessas eleições. As alterações nos estatutos publicadas no BO de 24 de Maio fazem equivaler a Uni-CV a uma Entidade Para Empresarial (EPE), enquadram o Reitor como gestor público e prevêem assinatura de contratos programas. Nesses contratos ficarão inscritas a política do governo e as regras de gestão e prestação de contas.

A mudança dos estatutos aconteceu num momento muito peculiar. O período transitório na Uni-CV, originalmente previsto de dois anos e renovável uma só vez, estava a terminar. Devia seguir-se a eleição do reitor e de outros órgãos da universidade. E uma nova era de mais autonomia, de mais auto governo e mais liberdade para a comunidade académica nos domínios da criação intelectual e do ensino despontaria.

As cartas baralharam-se porém na sequência de eventos em que a UNIV-CV viu o seu reitor integrado nas listas partidárias para as legislativas e, depois das eleições, convidado para ministro do ensino superior. Em vez de garantir maior autonomia, o governo optou por reforçar a superintendência através dos decreto-leis 23 e 24/2011 de 24 de Maio. Uma nova alínea f no artigo 9º concede ao ministro poderes para aprovar alterações aos estatutos por diploma próprio. Expectativas de autonomia estatutária caíram por terra e a eleição do reitor ficou outra vez adiada.

A tentação de controlar politicamente a Uni-cv não tem servido os propósitos da universidade pública nem do ensino superior em Cabo Verde. As controvérsias que desde do início rodearam a nomeação dos órgãos da universidade têm sido de pouca ajuda na construção de um edifício institucional com credenciais académicos sólidas. O espírito centralizador prevalecente descarrilou percursos institucionais autónomos como os do instituto superior de educação (ISE) e do ISECMAR sem que sejam perceptíveis os ganhos. Bem pelo contrário.

A inversão de marcha que a publicação dos decreto-leis de 24 de Maio configura não contribui para a afirmação da universidade pública e não a coloca em posição de dar o impulso esperado para o desenvolvimento do país. Dias atrás Francis Fukuyama, em conversa com o Martin Wolf do jornal Financial Times, disse de forma peremptória que foi com a invenção do método científico e a sua institucionalização nas universidades que Europa conseguiu sobrepor-se ao resto do mundo a partir do século 17 e 18. Segundo ele a intersecção das ideias e das instituições sociais verificada foi essencial. O ambiente de tolerância, de troca de ideias e de não subordinação a autoridade absoluta do Estado ou da religião concorreu para isso e aprofundou-se por sua vez com a dinâmica gerada.

De facto o crescimento rápido que todos pretendem está intimamente ligado com a capacidade de inovar em produtos e processos. Mas isso só acontece com liberdade de criação, com autonomia das universidades em relação ao poder político e com uma sociedade civil vibrante que não se deixa limitar nas suas opções pela estreiteza e conveniência de quem no momento manda.

Editorial do jornal “Expresso das Ilhas” de 1 de Junho de 2011